sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Acórdão da Relação de Évora de 09.11.2017

Processo n.º 39188/16.1YIPRT.E1

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Sumário:

1 – A sentença só é nula nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

2 – O recorrente não cumpre qualquer dos ónus que o artigo 640.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do CPC, quando não especifica os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, limitando-se a manifestar uma genérica discordância relativamente à decisão sobre a matéria de facto, não explicita a concreta forma como, no seu entendimento, o tribunal recorrido devia ter julgado cada um dos referidos pontos de facto e não indica os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre os mesmos pontos da matéria de facto, especificando as passagens da gravação em que se funda a sua discordância.

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Relatório

Na presente acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, prevista no Decreto-Lei n.º 269/98, de 01.09, proposta por Sociedade 1, Lda. contra Partido (…), veio a primeira pedir a condenação do segundo a pagar-lhe:

- € 6.573 relativos a fornecimento de serviços e bens, nomeadamente, elaboração e fornecimento de 5 “outdoors” e respectivas aplicações, recolagem de “outdoor”, elaboração e fornecimento de 3750 programas formato A4 e de cartas aos munícipes, fornecimento de estrutura com placa e imagem digital, constantes de factura datada de 09.10.2009, com vencimento imediato, ainda não liquidada, não obstante as diversas interpelações efectuadas pela autora junto da ré;

- € 3.434,53 relativos aos juros de mora;

- € 102 a título de taxa de justiça já paga pela autora.

O réu deduziu oposição, afirmando desconhecer a factura em causa e a que serviços a mesma se refere; acrescentou que todos os serviços e bens prestados pela autora ao réu foram integralmente liquidados; concluiu pela improcedência da acção.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo início a autora desistiu parcialmente do pedido, sem oposição do réu. Por sentença já transitada em julgado, tal desistência foi homologada, tendo os autos prosseguido apenas para apreciação do valor global de € 8.427,80, sendo € 5.477,50 a título de capital, € 2.848,30, a título de juros e € 102 a título de taxa de justiça paga.

Foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou o réu a pagar, à autora, a quantia de € 5.477,50 e respectivos juros legais vencidos e vincendos, contados a partir de 09.10.2009 até integral pagamento, às seguintes taxas: 8% de 01.07.2009 a 31.12.2009, 8% de 01.01.2010 a 30.06.2010, 8% de 01.07.2010 a 31.12.2010, 8% de 01.01.2011 a 30.06.2011, 8,25% de 01.07.2011 a 31.12.2011, 8% de 01.01.2012 a 30.06.2012, 8% de 01.07.2012 a 31.12.2012, 7,75% de 01.01.2013 a 30.06.2013, 7,50% de 01.07.2013 a 31.12.2013, 7,25% de 01.01.2014 a 30.06.2014, 7,15% de 01.07.2014 a 31.12.2014, 7,05% de 01.01.2015 a 30.06.2015, 7,05% de 01.07.2015 a 31.12.2015, 7,05% de 01.01.2016 a 30.06.2016, 7%, de 01.07.2016 a 31.12.2016 e 7% 01.01.2017 a 30.06.2017.

O réu não se conformou com a sentença e interpôs recurso para este tribunal. As suas alegações contêm as seguintes conclusões:

A. A actividade de fixação dos factos materiais da causa está, por natureza, particularmente exposta a erros e imperfeições, dado que estamos a falar de uma actividade humana, a de julgar.

B. A probabilidade e a relevância de um erro quanto a tal objecto depõem, decisivamente, a favor da possibilidade de controlo, pelo tribunal ad quem, das conclusões fácticas estabelecidas pelo tribunal a quo.

C. Isto porque sabemos que o direito a um processo equitativo impõe, como dimensão ineliminável, que o exame da sentença da 1.ª instância seja não só in iure mas também in facto.

D. Assim, independentemente da reapreciação dos actos de prova realizados na 1ª instância – e mesmo da renovação dessas provas ou da produção, na instância de recurso, de novas provas – o Tribunal da Relação pode censurar o erro do Tribunal de 1.ª instância na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 666.º do CPC.

E. O exercício pelo Tribunal da Relação das suas atribuições de controlo da decisão da matéria de facto do Tribunal de 1.ª instância não está na dependência da reponderação das provas produzidas naquela instância, o que se explica por, nalguns casos, ser o simples resultado da aplicação de regras imperativas de direito probatório material – que constitui matéria de direito (artigo 607.º, n.º 4, ex-vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC).

F. O decisor da 1.ª instância errou quanto ao julgamento da matéria de facto, apontando meios de prova que justificam decisão diversa da impugnada.

G. O Partido (…) vem condenado ao pagamento de € 5.477,50, sendo que o tribunal a quo estribou esta decisão condenatória unicamente no depoimento de parte da Autora, e nas declarações das testemunhas arroladas pela Autora.

H. Desconsiderou o julgador tudo o que foi dito pelas testemunhas do agora impugnante.

I. O ora recorrente é um dos mais importantes partidos nacionais, sendo fácil de deduzir que tem uma máquina administrativa complexa, pelo que muitos actos e contratos praticados por pessoas necessariamente relacionadas ao partido, como é o caso dos respectivos candidatos a presidentes de Câmaras Municipais (como aconteceu in casu) passam perfeitamente despercebidos aos respectivos órgãos representativos;

J. Actos e contratos que não podem ser imputados automaticamente ao partido político como pessoa colectiva, sob pena de assistirmos a que todo e qualquer militante do Partido (…) possa - validamente -vincular e "amarrar" contratualmente o aqui recorrente a contratos que nunca celebrou e, ou a condições que desconhece, e que nunca quis.

K. Ora, a prova produzida foi manifestamente insuficiente, na medida em que o tribunal a quo estriba a decisão condenatória apenas com base em declarações das testemunhas do Autor, nomeadamente nas declarações de parte do legal representante do Autor.

L. Faz o M. Juiz a quo, tábua rasa do facto da prova documental se comprovar que a factura emitida a favor do ora recorrente, foi anulada e emitida uma nota de crédito.

M. O Partido (…) é um partido político e, como tal, é uma pessoa colectiva dotada de personalidade jurídica, sendo a sua vontade expressa pelos respectivos órgãos partidários, tal como resulta do disposto nos artigos 3.º e 24.º, da Lei dos Partidos Políticos.

N. De acordo com os Estatutos do Partido (…), o Partido organiza-se a nível local, distrital, regional e nacional. A estrutura do Partido a nível local assenta nas secções de residência e nas concelhias.

O. Salvo o devido respeito, que é mesmo muito, o M. Juiz a quo não fez uma correcta interpretação da matéria factual.

P. A Autora e o Réu estabeleceram relações comerciais no ano de 2009, no âmbito da sua actividade normal e corrente do ora Réu Partido (…) e no âmbito da campanha eleitoral – (…) -Autárquicas 2009, e que a sentença aqui em crise considerou como um acordo das partes.

Q. Sendo também verdade que o Réu ora recorrente liquidou TODAS as facturas correspondentes aos serviços prestados pela Autora, sendo as únicas que integraram as contas de campanha apresentadas e subscritas pelo respectivo Mandatário Financeiro Local.

R. O ora Réu Partido (…) desconhece a factura identificada nos presentes autos, uma vez que a mesma foi anulada e emitida uma nota de crédito, e, aqueles serviços nunca lhe foram prestados.

S. No âmbito das eleições autárquicas, e atento o estatuto de Mandatário Financeiro local, é a este representante local do Partido (…) que cabe definir e entregar o orçamento de campanha eleitoral, contratar os serviços necessários para o correto desenvolvimento da campanha eleitoral autárquica, o qual é responsável pela contratação de bens e/ou serviços no âmbito da campanha eleitoral e, no final, prestar as devidas contas de campanha.

T. E conforme foi afirmado em audiência de julgamento pela Mandatária Financeira Local nomeada, a mesma não autorizou os serviços descritos na factura dos presentes autos.

U. As suas competências estão definidas e reguladas no Manual Financeiro da Campanha Autárquica do Partido (…), enviado às direcções de campanha concelhias e divulgadas por estas junto de todos os militantes e candidatos do Partido (…).

V. A ora Autora tem conhecimento de todos estes procedimentos, há muitos anos que estabelece relações comerciais com o Partido (…), e por isso está familiarizado com todos os procedimentos internos do Partido (…) quanto à contratação e aquisição de bens e serviços, devendo compreender as limitações e consignações que sobre esse processo impendem.

W. Não admitir estas regras de contratação, que a Autora bem conhece, é subverter por completo as regras que regulamentam a matérias dos contratos, criando uma insegurança contratual entre os intervenientes contratuais.

X. A sociedade recorrida sabe e tem conhecimento pelas razões supra e o Mandatário financeiro local não pode celebrar contratos por telefone, existindo regras concretas quanto a esta temática, como o preenchimento de notas de encomenda, autorização para celebrar contrato, prévio cabimento orçamental, entre outras.

Y. A Sra. Mandatária Financeira local GFS, não autorizou os serviços constantes da factura dos autos.

Z. Logo, não pode o Tribunal a quo, atender como válida aquela factura, pois tal tornaria impossível qualquer gestão prudente e parcimoniosa de uma campanha eleitoral, transformando o Partido (…), ou qualquer outro Partido colocado na mesma posição, num mero caixa de responsabilidades financeiras determinadas por outrem, concertado ou não com as empresas fornecedoras e seus representantes.

AA. Além do mais, a M. Juiz a quo deu a matéria dos presentes como provada com fundamento nos depoimentos, prestados pelas testemunhas arroladas pela Autora.

BB. Desde já cumpre fazer um reparo à fundamentação da M. Juiz a quo, uma vez que, estas testemunhas, são prestadores de serviços na empresa Autora, únicas pessoas que poderiam ser prejudicadas por prestarem depoimento contrário.

CC. Ademais, do depoimento destas testemunhas da recorrida não resulta claro nem evidenciado que o Partido (...) tenha encomendado aqueles serviços.

DD. O depoimento das testemunhas arroladas pela Recorrida não deve ser valorizado, nem atendido no que respeita à produção da prova nestes autos.

EE. O ora recorrente não percebe como pode ser condenado a efectuar o pagamento de uma factura que, além de não ter sido encomendado o serviço, a mesma foi anulada pela autora, conforme comprovado nos autos, e que não existe… SE ANULADA NÃO EXISTE….

FF. Logo, na prova produzida o tribunal a quo estava obrigado a incluir a factura nos factos não provados, uma vez que o Partido (…) desconhece, quem encomendou aqueles serviços e a produção dos objectos, não esquecendo que a factura foi anulada, pois “… foi emitida a nota de crédito 29/2009 de 26 de Outubro de 2009, a anular a factura mencionada em 3…..”

GG. E não existe nos factos provados a emissão de uma nova factura em nome do ora recorrente Partido (…).

HH. Atento o disposto no n.º 1 do artigo 662.º do CPC, deve o tribunal ad quem alterar a decisão da primeira instância, no sentido que a factura constante no ponto 3 dos factos provados não é devida, pois foi anulada, conforme ponto 4 dos factos provados, absolvendo o aqui apelante da sentença que o condenou ao pagamento.

II. Ora, remetendo para os fundamentos vertidos na sentença, e louvados agora da transcrição da matéria de facto provada estamos perante uma clara ambiguidade da decisão condenatória.

JJ. É certo e seguro que tal decisão condenatória vem estribada no disposto no nº 2 do artigo 609.º do CPC, com referência ao n.º 2 do artigo 358.º do mesmo compêndio normativo, contudo, o “obscurantismo” da decisão condenatória resulta da prova documental que consta do processo, e que ficou assente ao longo da sessão de julgamento.

KK. E que é o facto de o Partido (…) nunca ter recebido da Autora a factura que suporta todo este processo, bem sabendo que, tempestivamente, o Réu Partido (…) pagou todos os valores acordados com a Autora, não tendo ficado a dever nada... NADA!

LL. Ficou assente que o Partido (…) liquidou todas as dívidas para com a Autora, contudo, com a presente sentença está obrigado a repetir esse pagamento, com base num documento que foi anulado, conforme ficou assente nos factos provados.

MM. Tal significa que a decisão aqui sob recurso é nula.

NN. O M. Juiz “a quo” ao julgar como julgou, violou o disposto nos artigos 354.º, nº 1, e 364.º, n.º 1, do Código Civil, artigo 607.º, n.º 4, ex-vi artigo 663.º, n.º 2, artigo 615.º, alínea a) do n.º 2 do artigo 639.º, e al. c) do n.º 2 do artigo 662.º, todos do CPC.

Nestes termos e nos melhores direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, revogar-se a douta sentença recorrida atenta a nulidade invocada em sede de conclusões.

Caso assim se não entenda, devem os Venerandos Desembargadores alterar a decisão proferida pelo tribunal a quo, uma vez que aquela sentença enferma do vício de erro de julgamento da matéria de facto e de direito, atento o que ficou dito em sede de conclusões, devendo o apelante ser absolvido, o que se peticiona. Assim se fará a devida e costumada JUSTIÇA!

Não houve lugar a resposta.                                                

O recurso foi admitido.                                                         

Objecto do recurso

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

As questões a resolver são as seguintes:

1 – Nulidade da sentença recorrida, por contradição entre os fundamentos e a decisão, ou por padecer de ambiguidade ou obscuridade que determine a sua ininteligibilidade;

2 – Impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

Factualidade apurada

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. A requerente dedica-se à prestação de serviços e fornecimento de bens, na área da publicidade;

2. No âmbito da sua actividade e a pedido da requerida, em 2009, a autora procedeu à elaboração e fornecimento de 5 “outdoors” e respectivas aplicações, no valor de € 700; à recolagem de “outdoor”, no valor de € 200; elaborou e forneceu 3.750 programas formato A4, no valor de € 2.672,50; elaborou e forneceu cartas aos munícipes, no valor de € 1.755; e elaborou e forneceu uma estrutura com placa e imagem digital, no valor de € 150, sem IVA;

3. Em 09 de Outubro de 2009, a autora emitiu a factura n.º 2009/0765, no valor de € 6.573 (com IVA incluído), referente aos trabalhos mencionados em 2, com vencimento em 09 de Outubro de 2009, em nome do réu;

4. A pedido do réu, foi emitida a nota de crédito n.º 29/2009, datada de 26 de Outubro de 2009, a anular a factura mencionada em 3, com as menções “alteração de cliente” e “substituída pela n.º 2009/0794”;

5. Em 26 de Outubro de 2009, a autora emitiu a factura n.º 2009/0794, no valor de € 6.573,00 (com IVA incluído), referente aos trabalhos mencionados em 2, com vencimento em 26 de Outubro de 2009, em nome de “Sociedade 2, S.A.”;

6. Os trabalhos mencionados em 2 foram dirigidos à campanha para as eleições autárquicas de 2009, no Concelho de Évora;

7. Em 17 de Novembro de 2015, o réu dirigiu à autora a carta junta a fls. 28, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais, registada com aviso de recepção, com o seguinte conteúdo relevante para os presentes autos: “(…) É com estranheza que o M/Constituinte Partido (…) receciona a v/fatura n.º 2009/0765 de 09/10/2009. Encarrega-me o M/Constituinte Partido (…), Partido Político, de proceder à devolução da fatura n.º 2009/0765 de 09/10/2009, uma vez que desconhece esta fatura e não existir qualquer nota de encomenda nem qualquer contrato que a suporte. (…)”;

8. A autora apresentou requerimento de injunção contra “Sociedade 2, S.A.”, peticionando o pagamento da factura mencionada em 6, o qual deu origem à Acção Especial Para Cumprimento de Obrigações Pecuniárias com o n.º 79694/14.0YIPRT, que correu termos na Secção Cível, J2, da Instância Local de Évora, do Tribunal Judicial da Comarca de Évora;

9. No âmbito do processo identificado em 8., “Sociedade 2, S.A.” apresentou a defesa vertida a fls. 35 a 37 destes autos, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais;

10. No âmbito desse mesmo processo, em 03 de Dezembro de 2014 foi determinada a extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide, pelos fundamentos aduzidos na decisão junta a fls. 64 e 65, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzida para todos os efeitos legais.

A sentença recorrida julgou não provado o seguinte facto:

- Todos os serviços prestados pela autora ao réu foram por este liquidados.

Fundamentação

1

O recorrente afirma que a sentença recorrida padece de ambiguidade e obscuridade, resultantes “da prova documental que consta do processo, e que ficou assente ao longo da sessão de julgamento”. Segundo o recorrente, nunca recebeu da recorrida a factura que suporta todo este processo, pagou tempestivamente todos os valores acordados com a recorrida e nada deve a esta última. Acrescenta o recorrente que “Ficou assente que o Partido (…) liquidou todas as dívidas para com a Autora, contudo, com a presente sentença está obrigado a repetir esse pagamento, com base num documento que foi anulado, conforme ficou assente nos factos provados”, pelo que “a decisão aqui sob recurso é nula”.

O artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, estabelece que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

É evidente que nada disto ocorre com a sentença recorrida, que é absolutamente clara e coerente.

Desde logo, não é verdade que se tenha provado que o recorrente liquidou todas as suas dívidas para com a recorrida. Ao contrário, foi julgado não provado que “Todos os serviços prestados pela autora ao réu foram por este liquidados.” Este argumento do recorrente baseia-se, certamente, numa deficiente leitura da sentença.

No mais, o recorrente limita-se a manifestar o seu inconformismo relativamente à decisão sobre a matéria de facto, continuando a sustentar a versão factual que defendeu ao longo do processo e que não foi acolhida pelo tribunal recorrido, o que, como é óbvio, nada tem a ver com a questão da nulidade da sentença.

Assim se conclui, sem necessidade de maior fundamentação, que a sentença recorrida não padece da nulidade que o recorrente lhe imputa.

2

O recorrente sustenta que houve erro do tribunal recorrido no julgamento da matéria de facto e pretende que, em consequência, nos termos do n.º 1 do artigo 662.º do CPC, a Relação altere a sentença recorrida no sentido de considerar que a factura constante no ponto 3 dos factos provados não é devida, absolvendo-o do pedido.

O n.º 1 do artigo 662.º do CPC estabelece que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

O n.º 1 do artigo 640.º do CPC estabelece que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

A al. a) do n.º 2 do mesmo artigo estabelece que, no caso previsto na alínea b) do n.º 1, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Ora, o recorrente não cumpriu qualquer dos ónus que este último artigo lhe impõe. Não especificou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, limitando-se a manifestar uma genérica discordância relativamente à decisão sobre a matéria de facto. Logicamente, não indicou a concreta forma como, no seu entendimento, o tribunal recorrido devia ter julgado cada um dos referidos pontos de facto. Finalmente, não indicou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre os mesmos pontos da matéria de facto, especificando as passagens da gravação em que se funda a sua discordância. O recorrente faz referência, nas suas alegações, ao depoimento da testemunha GFS, sua mandatária financeira nas eleições autárquicas de 2009, para concluir, genericamente, que dele resultou que a sua autora “não autorizou os serviços descritos na factura dos presentes autos”, mas sem indicar as passagens da gravação de onde extrai tal conclusão, o que não cumpre as referidas exigências legais.

Isto basta para concluir no sentido da rejeição do recurso na parte em que tem por objecto a decisão sobre a matéria de facto.

Ainda assim, não deixaremos de observar que, além da questão formal acabada de analisar, é evidente a falta de razão do recorrente nas críticas ao modo como o tribunal recorrido formou a sua convicção sobre a matéria de facto. Para se chegar a esta conclusão, basta ler a sentença recorrida com a devida atenção. Assim:

O recorrente afirma que o tribunal recorrido “estribou esta decisão condenatória unicamente no depoimento de parte da Autora, e nas declarações das testemunhas arroladas pela Autora” (conclusão G), desconsiderando “tudo o que foi dito pelas testemunhas do agora impugnante” (conclusão H); reforça, mais à frente, que “a prova produzida foi manifestamente insuficiente, na medida em que o tribunal a quo estriba a decisão condenatória apenas com base em declarações das testemunhas do Autor, nomeadamente nas declarações de parte do legal representante do Autor” (conclusão K), que, “a M. Juiz a quo deu a matéria dos presentes como provada com fundamento nos depoimentos, prestados pelas testemunhas arroladas pela Autora” (conclusão AA), que “cumpre fazer um reparo à fundamentação da M. Juiz a quo, uma vez que, estas testemunhas, são prestadores de serviços na empresa Autora, únicas pessoas que poderiam ser prejudicadas por prestarem depoimento contrário” (conclusão BB), que “do depoimento destas testemunhas da recorrida não resulta claro nem evidenciado que o Partido (…) tenha encomendado aqueles serviços” (conclusão CC) e que “O depoimento das testemunhas arroladas pela Recorrida não deve ser valorizado, nem atendido no que respeita à produção da prova nestes autos” (conclusão DD). Ora, a sentença recorrida, em sede de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, teve o cuidado de salientar que, na formação da sua convicção, o tribunal teve em conta as declarações de parte do legal representante da recorrida, mas na medida em que foram corroboradas por outros meios de prova, a saber, no tocante à prova testemunhal, “os depoimentos de HJN, NCV, GFS e GDA”. Ora, estas duas últimas testemunhas foram indicadas pelo recorrente. A sentença é claríssima a este respeito, esclarecendo, com detalhe, em que medida os depoimentos de GFS e de GDA corroboraram, quer as declarações de parte do legal representante da recorrida, quer os depoimentos das testemunhas por esta indicadas. A sentença recorrida refere ainda que, para a formação da sua convicção sobre os factos constantes dos pontos 2 e 6, que são os factos essenciais desta acção, foram relevantes, além do referido conjunto de depoimentos, os documentos de fls. 31, 43, 45 e 46. Não é, pois, possível afirmar, com seriedade, que o tribunal recorrido decidiu unicamente com base no depoimento de parte da autora e nas declarações das testemunhas por esta arroladas, desconsiderando tudo o que foi dito pelas testemunhas da recorrente.

Outra questão que o recorrente refere é a de o tribunal recorrido, no seu entendimento, ter feito “tábua rasa” do facto de a factura emitida pela recorrida ter sido anulada e, nessa sequência, ter sido emitida uma nota de crédito. Queixa-se o recorrente de não perceber como pode ser condenado a pagar uma factura anulada pela recorrida (conclusões L, R, EE, FF e HH). Também sobre esta matéria, a sentença não podia ser mais clara e completa. O essencial, que é o facto de o recorrente ter solicitado e a recorrida ter fornecido aquilo que é descrito nos pontos 2 e 6 da matéria de facto provada, ficou demonstrado e, por si só, justifica a condenação. Aquilo que aconteceu em matéria de facturação, aliás a pedido da própria recorrente, descrito nos pontos 3 a 5 da matéria de facto provada, acaba por ser, para o efeito, irrelevante. O serviço foi solicitado, prestado e não pago. É quanto basta para justificar a condenação do recorrente, independentemente das peripécias que, no caso concreto e, repete-se, por razões imputáveis ao recorrente, se verificaram em matéria de facturação. Tudo isto resulta da sentença recorrida.

Conclui-se, assim, que, além de incumprir as formalidades estabelecidas pelo artigo 640.º do CPC, o recorrente não tem a mínima razão nas – em qualquer caso inconsequentes, por preterição das referidas formalidades – críticas que dirige à sentença recorrida, pelo que esta última deverá ser confirmada, negando-se provimento ao recurso.

Decisão

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente.

Notifique.

*

Évora, 9 de Novembro de 2017

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.ª adjunta

2.º adjunto


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