quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Acórdão da Relação de Évora de 10.09.2020

Processo n.º 608/17.5T8SSB.E1

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Sumário:

1 – É legalmente inadmissível a prolação, pelo tribunal a quo, de despacho de aperfeiçoamento das alegações de recurso visando o cumprimento, pelo recorrente, dos ónus estabelecidos no artigo 640.º do CPC.

2 – Se o tribunal a quo o fizer, o tribunal ad quem não está vinculado a tal despacho, devendo desconsiderá-lo, bem como ao processado a que o mesmo deu origem, e julgar o recurso tendo em conta as alegações de recurso e as contra-alegações em devido tempo apresentadas.

3 – Ainda que se verifique incumprimento do ónus previsto no artigo 640.º, n.º 2, al. a), do CPC, relativamente aos depoimentos gravados invocados como fundamento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o recurso não poderá ser rejeitado nessa parte se, além dos referidos depoimentos, o recorrente invocar prova documental. Em tal hipótese, o tribunal ad quem não poderá ter em consideração os referidos depoimentos, mas deverá apreciar a pretensão do recorrente à luz dos documentos por este invocados, os quais poderão, por si sós, demonstrar a existência de erro de julgamento pelo tribunal a quo.

4 – A ausência de prova da causa de aquisição do direito de propriedade sobre um prédio invocada pelo autor não pode ser suprida por documento particular, assinado pelo proprietário, no qual o autor seja designado como comproprietário.

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Marta, Luís e Maria João propuseram a presente acção declarativa, com processo comum, contra Rosa e Francisco, tendo formulado os seguintes pedidos: 1) Seja reconhecido que os pais dos autores, à data das respetivas mortes, eram donos e legítimos proprietários de duas parcelas de terreno, contíguas entre si, com as áreas, respectivamente, de 37.991,0405 metros quadrados e de 14.248,065 metros quadrados do prédio rústico denominado “Moinho de Baixo”, sito na freguesia de (…), concelho de Sesimbra, registado na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o número 7791 da freguesia de (…) (extratado da descrição predial número 3953, fls.34 do Livro B-12) inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 48, secção J e, por consequência, 2) Seja reconhecida a aquisição, a favor dos autores, por sucessão hereditária, das parcelas de terreno acima identificadas; 3) Sejam anulados todos os actos materiais e jurídicos praticados pelos réus relativamente ao imóvel, à revelia dos autores, designadamente a escritura de divisão do imóvel celebrada em 19 de Novembro de 2009, no Cartório Notarial de Lisboa, constante do Livro 89, a fls. 20 e seguintes e por consequência; 4) Seja ordenada a rectificação da descrição predial n.º 7791 da freguesia de (…), por forma a ser reposta a realidade jurídica existente previamente à divisão do prédio referida em 3; 5) Serem os réus condenados a restituir imediatamente aos autores as parcelas de terreno acima referidas, livre de pessoas e bens.

Os réus contestaram, pugnando pela improcedência da acção, tendo os autores respondido à excepções por aqueles arguidas, concluindo pela improcedência das mesmas.

Foi proferido despacho saneador, com a identificação do objecto do litígio e o enunciado dos temas de prova.

Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença julgando a acção improcedente.

Os autores recorreram da sentença, apresentando as suas alegações, que concluíram nos seguintes termos:

A. Os autores, aqui recorrentes, com a presente acção, pretendem ver reconhecido que os seus pais, à data das respectivas mortes, eram donos e legítimos proprietários de duas parcelas de terreno, contíguas entre si, com as áreas, respectivamente, de 37.991,0405 metros quadrados e de 14.248,065 metros quadrados, do prédio rústico denominado “Moinho de Baixo”, sito na freguesia de (…), concelho de Sesimbra, registado na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o número 7791 da freguesia de (…), inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 48, Secção J.

B. Para o efeito, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 341.º do Código Civil, juntaram prova documental bastante que permite concluir pela existência desse direito de propriedade.

C. Sobretudo, se a mesma for adequadamente conjugada com a prova testemunhal produzida em sede de audiência final, assim como com o depoimento de parte da recorrente Marta.

D. Os réus, como a própria sentença recorrida reconhece, não lograram produzir qualquer contraprova que permitisse «desfazer» a prova dos recorrentes.

E. A sentença recorrida, não obstante no seu iter motivacional reconhecer expressamente que «embora não se duvide que a compra do prédio dos autos tenha sido efectuada nos termos alegados pelos autores, ou seja, na perspectiva de que o seu pai viria a adquirir uma quota parte do prédio,…».

F. Acaba por concluir, errada e contraditoriamente, que «…não foi feita prova de que tal alguma vez tenha vindo a concretizar-se», não fazendo convenientemente um exame crítico da prova produzida.

G. O que faz em total violação do disposto no n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, no n.º 2 do artigo 350.º, no artigo 413.º do Código do Processo Civil, no artigo 7.º do Código de Registo Predial, no n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil e do princípio da verdade material aflorado no artigo 6.º, n.º 1, do Código do Processo Civil.

H. Acabando por dar prevalência à realidade formal, quando a materialidade devidamente demonstrada impunha outra resposta.

I. A função primacial do registo predial é publicitar as situações jurídicas reais, mas o seu efeito não é atributivo de direitos reais, pelo que, em caso de divergência entre a ordem substantiva e a ordem registal é a primeira que prevalece, o que o tribunal a quo não reconheceu.

Na verdade,

J. A resposta negativa dada pelo tribunal a quo à matéria de facto articulada na petição inicial pelos autores aqui recorrentes e que consta elencada nos pontos 3.º a 6.º e 8.º a 30.º dos factos não provados é contraditória com a prova produzida pelos recorrentes, quer documental, quer testemunhal.

K. Merecendo uma resposta num sentido positivo, ou seja, ser considerada como provada.

L. Sob pena de se manter uma decisão assente numa errada valoração da prova e contraditória com todo o seu iter motivacional.

M. Pelo que deve este tribunal ad quem reapreciar a prova testemunhal gravada, alterar o sentido dado aos factos não provados, como acima detalhado, dando provimento ao presente recurso, reconhecendo-se, em consequência, aos autores aqui recorrentes o direito de propriedade sobre as parcelas identificadas supra, nos termos reclamados, prevalecendo a materialidade sobre a formalidade, em respeito do princípio da verdade material sobre a verdade formal, como impõe o n.º 1 do artigo 6.º do Código de Processo Civil.

Os recorridos contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.

Em seguida, o tribunal a quo proferiu despacho com o seguinte teor:

“Antes de mais, notifique os recorrentes para darem cumprimento do disposto no artigo 640.º do C.P.Civil, sob pena de rejeição do recurso na parte que tenha sido gravada.

Prazo: 10 dias.

Notifique.”

Na sequência deste despacho, os recorrentes apresentaram uma peça processual através da qual, em complemento às alegações, procuraram cumprir o disposto no artigo 640.º do CPC, à qual os recorridos responderam.

Os recorrentes requereram o desentranhamento da resposta dos recorridos, com fundamento na sua inadmissibilidade legal. Ao que os recorridos voltaram a responder, concluindo não existir fundamento para o referido desentranhamento.

Em seguida, o tribunal a quo proferiu despacho em que, além de admitir o recurso, determinou a manutenção nos autos de “todos os requerimentos posteriores à interposição do recurso e apresentação em juízo das contra-alegações”.

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As questões a resolver são as seguintes:

1 – Valor jurídico do despacho de aperfeiçoamento das alegações de recurso proferido pelo tribunal a quo;

2 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

3 – Propriedade das parcelas de terreno reivindicadas.

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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1 – Os autores são os únicos herdeiros das heranças indivisas abertas por óbito de seus pais, Pedro, falecido a 29 de Outubro de 2008, e Joaquina, falecida a 31 de Janeiro de 2015.

2 – O prédio rústico denominado “Moinho de Baixo”, sito na freguesia de (…), concelho de Sesimbra, registado na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o número 7791 da freguesia de (…) (extratado da descrição predial número 3953, fls.34 do Livro B-12) inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 48, Secção J, foi formalmente adjudicado apenas aos réus, na proporção de 3/4 para a ré Rosa e 1/4 para o réu Francisco (também conhecido por “Moleiro filho”), na qualidade de herdeiros de José (também conhecido por “Zé Moleiro”), falecido a 16 de Agosto de 1997.

3 – No ano de 1982, em data que os autores não conseguem precisar, o seu pai, Pedro, foi abordado pelo co-proprietário do imóvel à data, Armando, o qual lhe propôs a compra do imóvel identificado em 2.

4 – Contudo, dado que o pai dos autores tinha interesse na aquisição do dito imóvel, mas não dispunha de condições financeiras para o adquirir naquele momento, propôs ao seu amigo, José (marido e pai, respetivamente, dos ora réus) que adquirisse o terreno, na condição do pai dos autores vir a adquirir posteriormente um terço da totalidade do terreno.

5 – Neste contexto, o pai dos autores combinou com o seu amigo José que este, em parceria, com outras duas pessoas, comprasse o dito imóvel.

6 – Ficando este, formalmente, investido na posição de pleno proprietário do imóvel em causa.

7 – Sempre com a condição de, logo que o pai dos autores pudesse, adquiriria a sua quota-parte no imóvel.

8 – Tal como havia sido acordado entre o pai dos autores e o seu amigo, José, no dia 01 de Junho de 1983, este último conjuntamente com a sua mulher, aqui ré Rosa, adquiriram por escritura pública o imóvel acima identificado.

9 – Em 22 de Junho de 1983, José e a ré Rosa, assinaram uma declaração onde reconhecem expressamente que 1/3 do imóvel pertencia a Horácio.

10 – Em 16 de Agosto de 1997, faleceu o referido José, tendo, na sequência do processo de inventário judicial atrás referido, sido adjudicado o imóvel à cabeça-de-casal e aqui ré, Rosa, na proporção de ¾, e ao réu Francisco, na proporção de ¼.

11 – Os autores só tiveram conhecimento dos actos que de seguida se descrevem em meados de Abril do corrente ano, mediante consulta à descrição predial na conservatória do registo predial de Sesimbra, momento em que lhes foi informado que a descrição predial n.º 7791 da freguesia de (…) havia dado origem a cinco novos prédios.

12 – Em 19 de Novembro de 2009, por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de Lisboa, os réus procederam à divisão do imóvel, tendo dessa divisão resultado os prédios de seguida identificados:

a) Prédio rústico com a área de 32.099 metros quadrados, actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º 13982, inscrito sob parte do artigo 48 da secção J;

b) Prédio rústico com a área de 4.511 metros quadrados, actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º 13983, inscrito sob parte do artigo 48 da secção J;

c) Prédio rústico com a área de 4.763 metros quadrados, actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º 13985, inscrito sob parte do artigo 48 da secção J;

d) Prédio rústico com a área de 4.561 metros quadrados, actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º 13984, inscrito sob parte do artigo 48 da secção J;

e) Prédio rústico com a área de 70.596 metros quadrados, actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º 7791, inscrito sob parte do artigo 48 da secção J.

13 – Conforme consta da referida escritura de divisão, o prédio identificado na alínea a) do artigo anterior foi adjudicado ao réu Francisco e os restantes foram adjudicados à ré Rosa.

14 – Por declaração assinada pelos autores e pela ré Rosa, em 27 de Março de 2009, em que os mesmos, na qualidade de co-proprietários do imóvel, declaram autorizar Augusto a permanecer no terreno referido em 2 com uma roulotte.

15 – Em 4 de Dezembro de 2009 a Câmara Municipal de Sintra remeteu a casa dum dos autores informações com referência a reclamações relacionadas com o imóvel referido em 2, em que designa os autores de comproprietários.

16 – A Associação de Produtores Florestais e o Ministério das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente, em 09 Agosto de 2001 e 12 de Dezembro de 2002, respectivamente, trocaram correspondência com o pai dos autores, na qualidade no primeiro caso de proprietário do imóvel e no segundo de co-proprietário do imóvel identificado em 2 dos factos provados.

17 – Por carta endereçada pelo Sr. Raul, em Abril de 2001, este pede autorização ao pai dos autores para realizar um espectáculo de música ao vivo e audiovisual.

18 – Por declaração datada de 16 de Abril de 2001 o pai dos autores autoriza a realização do espectáculo referido no artigo anterior, o que faz na qualidade de proprietário do terreno referido em 2 dos factos provados.

19 - Sendo o pai dos autores uma pessoa muito conhecida no concelho de Sesimbra, sempre foi do conhecimento público que o mesmo era co-proprietário do imóvel objecto dos presentes autos.

20 – A ré foi destinatária de processos de contra-ordenação instaurados pela Câmara Municipal de Sesimbra, por entulhos vazados no prédio referido em 2 dos factos provados.

21 – Foi instaurado processo de contra-ordenação n.º 711-19/2013, contra a ré Rosa, com o fundamento de depósito de desaterros no prédio referido em 2 dos factos provados.

22 – Está em curso processo no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada com o n.º 629/13.7BEALM, no qual a ré Rosa, enquanto proprietária do prédio, se defende da contra-ordenação movida pela Câmara Municipal de Sesimbra.

23 – A ré apresentou queixa por danos, no prédio referido em 2 dos factos provados, em processo que correu termos pelo Ministério Público de Sesimbra com o n.º 218/13.0TASSB.

24 – Sempre a ré e posteriormente o réu exerceram de forma pública, pacífica, sem que ninguém pusesse em causa o seu direito ao prédio, mormente os autores.

25 – Sempre dele colheram frutos, nomeadamente fazendo dele parque de estacionamento.

A sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:

1 – À data da morte dos pais dos autores, aqueles, para além dos activos constantes das relações de bens apresentadas em sede de partilhas, eram também proprietários de parte do prédio rústico identificado em 2 dos factos provados.

2 – Designadamente de duas parcelas de terreno com as áreas, respectivamente, de 37.991,0405 metros quadrados e 14.248,065 metros quadrados, adquiridas, respectivamente, em 25 de Maio de 1987 e 04 de Abril de 2000.

3 – A compra do prédio referido em 2 dos factos provados, por parte do José e da ré Rosa, foi efectuada, uma parte, com capitais próprios e, outra parte, com capitais de terceiros, designadamente dos Srs. Guilherme e Dorindo.

4 – Os quais acordaram com aqueles, previamente a 01 de Junho de 1983, de que ficariam proprietários informais do imóvel, na proporção de 1/3 para cada um deles.

5 – Assim, em Junho de 1983, existiam 3 proprietários reais do imóvel, aqui em causa, a saber: José, Guilherme e Dorindo.

6 – No entanto, formalmente, o prédio estava apenas em nome da ré, Rosa, e do seu marido, José, tal como havia sido acordado.

7 – Ainda em vida de José, em data que os autores também não conseguem precisar, o mesmo, conjuntamente com a ré Rosa, procederam à venda de uma parcela de terreno correspondente a 1/4 da área total do imóvel, a favor do filho, Francisco, aqui réu.

8 – Em 25 de Maio de 1987, o pai dos autores comprou a sua parte no imóvel aqui em causa, na proporção de um terço, pagando o preço de 13.200.000$00 (treze milhões e duzentos mil escudos), a Guilherme.

9 – O que ficou documentado num acordo entre os pais dos autores, José, a ré Rosa e Guilherme, nos termos do qual Guilherme cedeu 1/3 da área total do imóvel a favor dos pais dos autores, correspondente à área de 37.991,0405 metros quadrados.

10 – O preço da venda de parte do imóvel foi pago pelos pais dos autores a Guilherme, por meio de cheques.

11 – Por força da venda atrás referida, o pai dos autores, Pedro, passou a ser titular de 1/3 da área total do imóvel.

12 – Não obstante, a sua parte da propriedade do imóvel continuar a não estar registada a seu favor.

13 – Esta falta de registo da propriedade era prática recorrente à época, como forma de evitar o pagamento de impostos, designadamente quando as partes envolvidas tinham como único e exclusivo objectivo a venda do imóvel.

14 – Dado que não foi possível concretizar a venda imediata do imóvel, nos anos de 1992 e 1993, os proprietários do imóvel à época (Pedro, José e Dorindo), decidiram explorar economicamente o imóvel, como parque de estacionamento junto à praia.

15 – Para efeitos da exploração do imóvel acima referida, José, conjuntamente com os restantes co-proprietários, mandaram efectuar um levantamento topográfico do imóvel, com vista à delimitação física da parcela de terreno que cabia a cada um dos proprietários.

16 – Aliás, o falecido José, chegou a entregar plantas aos restantes co-proprietários do imóvel, com a delimitação da parcela de terreno que cabia a cada um dos proprietários à época (previamente a 1997).

17 – No âmbito dessa exploração, foram apuradas receitas que foram distribuídas pelos proprietários e em parte cedidas a favor da Santa Casa da Misericórdia, pelos mesmos, tendo os proprietários do imóvel, à época, feito um acerto de contas.

18 – A adjudicação de 1/4 do prédio a favor do réu Francisco, no acto da partilha, não foi mais do que a formalização da propriedade da parcela que havia adquirido ainda em vida do seu pai (previamente a 1997) e que nunca havia sido registada em nome do réu.

19 – Embora os autores não tenham conhecimento do documento que formalizou a compra de ¼ da propriedade do imóvel a favor do réu Francisco (se é que o mesmo existiu…), a verdade é que os restantes co-proprietários do imóvel à época (Pedro e Dorindo) sempre assumiram e aceitaram esse negócio.

20 – Dado que continuava a não haver perspectivas de venda do imóvel, o pai dos autores conjuntamente com os restantes co-proprietários do imóvel (os herdeiros de José, Francisco -aqui Réu - e Dorindo), decidiram encetar diligências com vista à formalização da divisão física do imóvel e da concretização da parte respeitante a cada um, a qual, como atrás de disse, já havia sido definida em vida de José.

21 – Na sequência dessas diligências, em 17 de Fevereiro de 1998, o pai dos autores conjuntamente com os então co-proprietários, reuniram-se com vista à “formalização” da referida delimitação física da parcela de terreno que cabia a cada um dos proprietários.

22 – Nos termos da acta da reunião, ao pai dos autores foi atribuída a parcela de terreno identificada na planta anexa à referida declaração como “Pedro – 0,3333”, com as seguintes confrontações: a Norte com parte do artigo 215 da seção J, a Sul com herdeiros de José, a Nascente com parte do artigo 169 da seção J e a Poente com Câmara Municipal de Sesimbra.

23 – Entre 17 de Fevereiro de 1998 e Abril de 2000, também em data que os autores não conseguem precisar, os Réus venderam uma parcela de terreno do Imóvel com a área de 14.248,065 metros quadrados, a favor de Teodoro, o qual era cunhado e tio, respetivamente, dos aqui Réus.

24 – Também aqui, o pai dos autores não teve acesso ao documento que formalizou o negócio acima referido, contudo o mesmo sempre foi aceite e assumido pelo pai dos autores, tal como aconteceu com o negócio anterior da venda de parte do imóvel a favor do réu, Francisco.

25 – Em 04 de Abril de 2000, Teodoro vendeu a favor do pai dos autores, a referida parcela de terreno com a área de 14.248,065 metros quadrados, contígua à parcela de terreno adquirida anteriormente.

26 – O preço da transacção efectuada entre Pedro e Teodoro foi pago por meio de cheques e numerário.

27 – Posteriormente a 04 de Abril de 2000, existiram várias reuniões entre os comproprietários do imóvel, com vista à divisão efectiva do imóvel por escritura pública, tendo em todas essas reuniões comparecido os réus Rosa e Francisco.

28 – Em 16 de Junho de 2008, a ré Rosa reuniu com os pais dos autores, tendo transmitido aos mesmos que queria resolver a situação do imóvel de uma vez por todas, tendo em conta a delimitação física do terreno já acordada, facto esse que nunca veio a acontecer.

29 – Em 31 de Julho de 2009, por escritura pública lavrada no Cartório Privativo da Câmara Municipal de Sesimbra, os réus, com o consentimento expresso dos autores e da sua falecida mãe, doaram à Câmara Municipal de Sesimbra duas parcelas de terreno com as áreas respetivamente de 646,80 metros quadrados e 1573,20 metros quadrados.

30 – Por força da doação a favor da Câmara Municipal de Sesimbra, o imóvel fica reduzido à área total de 116.530 metros quadrados, doação essa que, aliás, foi expressamente comunicada pelo réu, Francisco aos autores numa reunião havida em 16 de Setembro de 2009, tendo o mesmo facultado uma cópia da escritura à autora, Marta.

31 – Após o falecimento dos pais dos autores, a autora, Marta, interpelou, por diversas vezes, a ré Rosa, no sentido de se formalizar a parte que pertencia aos seus pais.

32 – Ao que a mesma sempre respondeu que o iria fazer, contudo quando foi confrontada com a assinatura de um documento que comprovasse a propriedade dos pais dos autores, recusou-se a assiná-lo.

33 – Dizendo na altura a ré Rosa que os autores possuíam diversa documentação que reconhecia a propriedade das referidas parcelas de terreno com as áreas respetivamente de 37.991,0405 metros quadrados e de 14.248,065 metros quadrados do imóvel.

34 – Os réus, no passado, sempre reconheceram a titularidade da parte adquirida pelos pais dos autores, no imóvel, ou seja as parcelas de terreno com as áreas respetivamente de 37.991,0405 metros quadrados e de 14.248,065 metros quadrados, correspondendo à área global de 52.239,11 metros quadrados.

35 – A ré, hoje com 86 anos de idade, não intervinha nem conhecia os negócios do seu falecido marido, era doméstica e o réu nunca interveio nos negócios de seu pai, tendo vidas independentes.

36 – Sendo que nunca o falecido José e a ré tiveram intenção de vender o prédio em causa, e por esse facto nunca o venderam.

37 – E o Dorindo não tem, nem nunca teve, qualquer direito sobre o prédio, tendo o falecido José consentido que ele explorasse gratuitamente uma parte do prédio, como parque de estacionamento.

38 – Houve intenção por parte dos réus de vender a Teodoro uma parte do prédio, contrato nunca reduzido a escrito, em consequência de incumprimento de Teodoro.

39 – Facto bem conhecido de Pedro, que nunca suscitou a questão aos réus, ignorando estes o modo como resolveu a questão do incumprimento com Teodoro.

40 – A ré, perante várias abordagens dos autores, logo após a morte de Pedro, aliás muito determinadas, perante senhora idosa, hoje de 86 anos de idade, sempre se escusou a aceder às pretensões dos autores, porque sempre as ignorou, só sabendo do que eles lhe iam afirmando, investidas que cessaram em 2009.

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1 – Valor jurídico do despacho de aperfeiçoamento das alegações de recurso proferido pelo tribunal a quo:

O despacho mediante o qual o tribunal a quo ordenou a notificação dos recorrentes para darem cumprimento ao disposto no artigo 640.º do CPC, que consubstancia um convite ao aperfeiçoamento das alegações de recurso, é ilegal, por duas razões.

É ilegal, em primeiro lugar, porque a competência para o convite ao aperfeiçoamento das alegações de recurso propriamente ditas, isto é, da exposição das questões atinentes ao mérito da causa que o recorrente pretende ver decididas em determinado sentido e da fundamentação dessa pretensão, nos termos em que a lei o permite, cabe ao tribunal ad quem, mais precisamente ao relator, e não ao tribunal a quo, como resulta dos artigos 639.º, n.º 3, 641.º, n.ºs 1 e 2, e 652.º, n.º 1, al. a), do CPC[1]. Ao tribunal a quo deve, sim, ser reconhecida competência para proferir despacho de aperfeiçoamento do requerimento de interposição do recurso em aspectos respeitantes à admissibilidade deste. Embora a lei não preveja a possibilidade de prolação de despacho de aperfeiçoamento pelo juiz a quo com vista “a solicitar ao recorrente esclarecimentos sobre aspectos da recorribilidade, designadamente quando esta dependa de determinadas condições especiais”, deve entender-se que, “a não ser que outra norma determine efeito diverso, não deve ser descartada a admissibilidade daquele despacho ancorada nos princípios gerais do processo civil e no facto de o indeferimento do recurso, nos termos do art. 641.º, n.º 2, al. a), pressupor a certeza de que a decisão “não admite recurso”, o que, por vezes, não prescinde daqueles esclarecimentos.”[2] Também deve considerar-se admissível a prolação de despacho de aperfeiçoamento por parte do tribunal a quo se este tiver dúvidas sobre se o recurso visa toda a decisão ou apenas uma parte dela e, nesta última hipótese, sobre qual seja essa parte[3], ou até mesmo sobre qual é a decisão de que se interpõe recurso ou, na hipótese de pluralidade de partes, sobre quem são os recorrentes. Porém, repetimos, em caso algum o tribunal a quo pode proferir despacho de aperfeiçoamento das alegações de recurso propriamente ditas, o que redundaria numa intromissão indevida na discussão do mérito do recurso, condicionando o direito a este último ou influenciando o modo como o mesmo é exercido e invadindo, de forma evidente, o âmbito da competência do tribunal ad quem.

O despacho em questão é ilegal, em segundo lugar, porque, estando em causa o incumprimento dos ónus estabelecidos no artigo 640.º do CPC, como acontece no caso dos autos, nem sequer ao tribunal ad quem é permitido convidar o recorrente a aperfeiçoar as alegações, como decorre dos n.ºs 1 e 2, al. a), desse artigo, ao estabelecerem que aquele incumprimento determina a imediata rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, em contraste com o regime do artigo 639.º, n.º 3, do CPC. Sintomaticamente, o artigo 652.º, n.º 1, al. a), do CPC, prevê que o relator convide as partes a aperfeiçoar as conclusões das respectivas alegações nos termos do n.º 3 do artigo 639.º, mas não quando esteja em causa a falta de cumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º[4].

Tenha-se ainda em mente que a rejeição do recurso com fundamento no incumprimento dos ónus estabelecidos no artigo 640.º do CPC é, indiscutivelmente, competência do tribunal ad quem, como resulta dos artigos 641.º, n.º 2, al. b), e 652.º, n.º 1, al. b), do CPC[5]. Trata-se de matéria respeitante ao mérito do recurso, subtraída à competência do tribunal a quo. Salientamos este aspecto porque resulta do despacho em análise que, se os recorrentes não aperfeiçoassem as alegações nos termos determinados pelo tribunal a quo, este rejeitaria o recurso na parte respeitante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Foi certamente isso que o tribunal a quo pretendeu significar ao escrever “sob pena de rejeição do recurso na parte que tenha sido gravada”. Ora, não poderia fazê-lo, como referimos, o que reforça a ideia de que, além de ter proferido um despacho cujo conteúdo é intrinsecamente ilegal, o tribunal a quo invadiu a esfera de competência do tribunal ad quem. A ser admissível despacho de aperfeiçoamento, a competência para o proferir caberia a este último tribunal. A rejeição do recurso com o fundamento em questão cabe, seguramente, ao mesmo tribunal.

Estamos, portanto, perante um despacho proferido pelo tribunal a quo, na fase de interposição do recurso, que é ilegal e deu origem a um processado anómalo. Coloca-se a questão do valor jurídico desse despacho.

Resulta dos artigos 641.º, n.ºs 5 e 6 e 643.º do CPC que os despachos proferidos pelo tribunal a quo na fase de interposição do recurso e a este respeitantes não vinculam o tribunal ad quem.

Se o tribunal a quo indeferir o requerimento de interposição do recurso, ao abrigo do disposto no artigo 641.º, n.º 2, do CPC, o recorrente poderá, nos termos do n.º 6 do mesmo artigo, impugnar tal decisão através da reclamação prevista no artigo 643.º, dirigida ao tribunal ad quem. Este tribunal poderá manter o despacho reclamado ou revogá-lo, admitindo o recurso.

Na hipótese de o tribunal a quo admitir o recurso, fixando a sua espécie e determinando o seu efeito, estabelece o artigo 641.º, n.º 5, do CPC, que tal decisão não vincula o tribunal ad quem nem pode ser impugnada pelas partes, salvo no caso previsto no artigo 306.º, n.º 3.

A diferença entre as hipóteses de rejeição ou de admissão do recurso pelo tribunal a quo reside, pois, na necessidade de reclamação por banda do recorrente na primeira hipótese para que o tribunal ad quem sindique a decisão do tribunal a quo. Já na hipótese de admissão do recurso pelo tribunal a quo, o tribunal ad quem sindica sempre essa decisão, julgando o recurso admissível ou inadmissível e, na primeira hipótese, corrigindo aquilo que eventualmente haja para corrigir sobre os aspectos referidos no artigo 641.º, n.º 5, do CPC.

Interessa-nos a hipótese de admissão do recurso pelo tribunal a quo, pois foi ela que se verificou no caso dos autos. Esta decisão não é vinculativa para o tribunal ad quem e não faz caso julgado formal[6]. Ensinava, a propósito, JOSÉ ALBERTO DOS REIS: “Em matéria de recursos há certos pontos sobre os quais a última palavra pertence ao tribunal ad quem, tendo o tribunal a quo poder de decisão meramente provisória. Esses pontos são: a) A determinação da espécie de recurso competente; b) A fixação do efeito a atribuir ao recurso; c) A questão da admissibilidade (ou inadmissibilidade) do recurso (…). É claro que na fórmula “inadmissibilidade do recurso” quis abranger os três aspectos que podem, segundo o art. 688.º, levar o juiz a lavrar despacho de indeferimento, a saber: irrecorribilidade da decisão, extemporaneidade do recurso, ilegitimidade do recorrente.”[7] Prossegue o mesmo autor: “O despacho de admissão não vincula o tribunal ad quem porquê? Porque, se é a este tribunal que compete conhecer da matéria do recurso, é também a ele que compete, em última análise, decidir as questões prévias que o recurso suscita, a saber: qual a espécie competente (se apelação se agravo, se agravo se revista), qual o efeito do recurso (se suspensivo, se meramente devolutivo), e se há ou não fundamento para deixar de conhecer do objecto do recurso, o que equivale a dizer: se o recurso foi devidamente admitido ou se, pelo contrário, devia ser negada a admissão por a decisão ser irrecorrível, por o recurso ter sido interposto fora de tempo, por o recorrente não ter as condições legais para recorrer. O que o tribunal a quo decida quanto às ditas questões prévias vincula esse tribunal, atento o disposto no § único do art. 666.º; mas não vincula o tribunal ad quem, como se vê pelos arts. 702.º a 704.º; e porque este tribunal não fica vinculado, é que a lei não admite recurso do despacho de admissão (art. 689.º).”[8]

Ora, se cabe ao tribunal ad quem a última palavra sobre matérias relativas à fase de interposição do recurso acerca das quais a lei atribui competência ao tribunal a quo, ainda que para proferir decisão meramente provisória, por maioria de razão deve entender-se que também cabe ao tribunal ad quem a última palavra (que, segundo a lei, devia ter sido a única palavra) sobre matérias que a lei subtrai à competência do tribunal a quo mas acerca das quais este, não obstante, tenha proferido decisão. Por outras palavras, decisões proferidas pelo tribunal a quo na fase de interposição do recurso para as quais ele não seja competente também não vinculam o tribunal ad quem. Seria um contrassenso que o tribunal ad quem não ficasse vinculado pelas decisões proferidas pelo tribunal a quo para as quais este seja competente, mas ficasse vinculado a decisões proferidas pelo tribunal a quo para as quais este seja incompetente.

Ainda mais nítida é a hipótese de o tribunal a quo ter proferido decisão que a lei veda ao próprio tribunal ad quem, como é a de convite ao aperfeiçoamento das alegações de recurso com vista ao cumprimento dos ónus estabelecidos no artigo 640.º do CPC. Por maioria de razão, mesmo em relação à hipótese configurada no parágrafo anterior, tal despacho não vincula o tribunal ad quem. Ao invés, este último tem o dever de repor oficiosamente a legalidade violada pelo tribunal a quo. Insistimos: entendimento diverso implicaria admitir que o tribunal ad quem não está vinculado pelas decisões proferidas pelo tribunal a quo no uso da competência que a lei lhe atribui, mas está vinculado por decisões que o tribunal a quo profira sem para o efeito ser competente e, pior ainda, por despachos legalmente inadmissíveis, seja por que tribunal for (a quo ou ad quem).

Numa hipótese, como a dos autos, em que a decisão ilegalmente proferida pelo tribunal a quo consiste num despacho de aperfeiçoamento, é, obviamente, impossível, ao tribunal ad quem, proferir uma decisão de conteúdo oposto, como seriam a rejeição de um recurso indevidamente admitido pelo tribunal a quo ou a atribuição, a um recurso, de efeito diverso daquele que este último tribunal fixou. Não é concebível “desconvidar” quem foi convidado a aperfeiçoar uma peça processual e procedeu a esse aperfeiçoamento. Porém, não poderá tal impossibilidade impedir o tribunal ad quem de cumprir o seu dever de eliminar eventuais ilegalidades cometidas pelo tribunal a quo na fase de interposição do recurso, sob pena de ter de se reconhecer que, em situações dessa natureza, o primeiro se encontra vinculado pelas decisões tomadas pelo segundo, por mais evidentes que fossem aquelas ilegalidades e as suas consequências no julgamento do recurso. Por tudo aquilo que anteriormente referimos, tal solução é inaceitável.

Na hipótese de prolação de despacho de aperfeiçoamento ilegal pelo tribunal a quo, a reposição da legalidade pelo tribunal ad quem deverá, pois, consistir na desconsideração, por este, do referido despacho e das suas consequências processuais. No caso dos autos, terão de ser desconsiderados o despacho de aperfeiçoamento proferido pelo tribunal a quo e as peças processuais posteriormente apresentadas por recorrentes e recorridos, mormente aquela mediante a qual os primeiros procuraram corrigir as alegações de recurso. Em face do processado durante a fase de interposição do recurso, é esta a única forma de o tribunal ad quem não ficar vinculado a uma decisão do tribunal a quo manifestamente ilegal como é aquela que vimos analisando e aos efeitos processuais que, não obstante a referida ilegalidade, a mesma acabou por produzir.

Concluindo, o julgamento do recurso será feito tendo por referência as alegações e as contra-alegações em devido tempo apresentadas por recorrentes e recorridos, desconsiderando-se o despacho de aperfeiçoamento proferido pelo tribunal a quo e as peças processuais apresentadas na sequência do mesmo.

2 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

Cumpre, antes de mais, apreciar se, nas suas alegações, os recorrentes cumpriram os ónus estabelecidos no artigo 640.º do CPC.

O artigo 640.º do CPC estabelece que, quando for impugnada a decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deverá, sob pena de rejeição, especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

A al. a) do n.º 2 do mesmo artigo estabelece que, no caso previsto na al. b) do n.º 1, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

O artigo 640.º do CPC deve ser interpretado em conjugação com o disposto no artigo 662.º, n.º 1, do mesmo código, que estabelece que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Escreve, a propósito, ANTÓNIO ABRANTES GERALDES que “a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”[9].

Prossegue o mesmo autor: “sem embargo das modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de normas imperativas, à Relação não é exigido, nem lhe é permitido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos a livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio foram valorados pelo tribunal de 1.ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de facto, indicou nas respectivas alegações que circunscrevem o objecto do recurso.”[10]

À objecção de que a Relação, por apenas ter ao seu dispor, além do conteúdo material dos autos, a gravação das provas prestadas oralmente, assim ficando impedida de percepcionar a totalidade dos elementos de comunicação não verbais que possam ter sido relevantes para a formação da convicção do juiz da primeira instância, responde o autor que vimos citando que tais circunstâncias “deverão ser ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados. (…) se a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro deve proceder à correspondente modificação da decisão.”[11]

Portanto, do que se trata, em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto pela Relação, não é de fazer um novo julgamento e, com base nele, proferir uma decisão inteiramente nova, mas apenas de, em relação aos concretos pontos de facto que tenham sido impugnados pelo recorrente, verificar se o tribunal recorrido cometeu um erro de julgamento. Por isso o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, faz depender a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto da circunstância de os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente imporem decisão diversa. Assim se compreende a razão de ser das especificações impostas pelo artigo 640.º do CPC, ou seja, que o recorrente tenha o ónus de indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova que imponham decisão diversa sobre esses pontos da matéria de facto, com observância do disposto na al. a) do n.º 2, e a decisão que, em relação aos mesmos pontos da matéria de facto, deve ser proferida.

Analisemos, à luz do exposto, a parte das alegações de recurso dedicada à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Os recorrentes pretendem que o conteúdo dos n.ºs 3 a 6 e 8 a 30 dos factos julgados não provados seja julgado provado. Invocam, como meios de prova demonstrativos de erro de julgamento pelo tribunal a quo e determinantes das alterações pretendidas, os seguintes:

- N.º 3: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 4: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 5: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 6: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 8: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 9: Documento n.º 8 junto com a petição inicial, depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 10 – Documentos n.ºs 9, 10 e 11 juntos com a petição inicial, depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 11: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 12: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 13: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 14: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 15: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 16: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 17: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 18: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 19: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 20: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 21: Documento n.º 13 junto com a petição inicial, depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 22: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 23: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 24: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo

- N.º 25: Documentos n.ºs 14 e 15 juntos com a petição inicial, depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 26: Documentos n.ºs 16 e 16-A juntos com a petição inicial, depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 27: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 28: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 29: Documento n.º 17 junto com a petição inicial, depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo;

- N.º 30: Depoimento de parte de Marta e depoimento da testemunha Dorindo.

Os recorrentes não cumprem o disposto no artigo 640.º, n.º 2, al. a), do CPC, pois não indicam com exactidão as passagens da gravação das declarações de parte (e não depoimento de parte, como referem) de Marta e do depoimento da testemunha Dorindo em que fundam a sua discordância relativamente à decisão sobre a matéria de facto e, concretamente, a cada uma das questões de facto que pretendem ver reapreciadas pelo tribunal ad quem. Invocar, na sua globalidade, os dois referidos depoimentos afirmando que dos mesmos, por si sós ou em conjugação com determinados documentos, resulta a prova de 27 factos, não cumpre a citada norma legal. Recordamos, a propósito, que a função do tribunal ad quem não é fazer um novo julgamento, como os recorrentes parecem pretender, mas apenas corrigir pontuais erros de julgamento eventualmente cometidos pelo tribunal a quo, sendo essa a razão de ser das exigências de concretização que o artigo 640.º do CPC faz.

Por outro lado, os recorrentes censuram o tribunal a quo por não ter dado crédito ao depoimento da testemunha Dorindo e, em vez disso, ter acreditado nas testemunhas arroladas pelos recorridos, afirmando que os depoimentos destas foram superficiais, inconsistentes, inseguros, hesitantes e parciais. Os recorrentes tecem ainda alguns considerandos de natureza genérica sobre os depoimentos da testemunha Rendeiro (no seu entendimento merecedor de “uma nova apreciação” pelo tribunal ad quem) e de uma outra, que identifica como filha da recorrida e irmã do recorrido (relativamente a cuja falta de credibilidade parece concordar com a sentença recorrida). Ora, considerandos desta natureza são, face às exigências, decorrentes no artigo 640.º do CPC, de concretização das razões da discordância relativamente à decisão sobre a matéria de facto e de referência a cada uma das concretas questões de facto que se entende terem sido mal julgadas pelo tribunal a quo, inócuos, não permitindo, ao tribunal ad quem, sindicar aquela decisão. De novo, os recorrentes parecem pretender que o tribunal ad quem efectue um novo julgamento, reapreciando a totalidade da prova produzida, limitando-se eles, recorrentes, a fornecer alguns tópicos avulsos que consideram deverem ser tidos em consideração nesse novo julgamento. Não pode ser, como é evidente.

Não obstante aquilo que acabamos de afirmar, o recurso não poderá ser totalmente rejeitado na parte em que é dirigido contra a decisão sobre a matéria de facto. É certo que, como anteriormente assinalámos, em consequência do incumprimento do disposto no artigo 640.º, n.º 2, al. a), do CPC, as declarações de parte de Marta e o depoimento da testemunha Dorindo não poderão ser considerados pelo tribunal ad quem em sede de reapreciação dos pontos da decisão sobre a matéria de facto que os recorrentes põem em causa. Todavia, os recorrentes também invocam prova documental, que identificam devidamente, no que concerne aos n.ºs 9, 10, 21, 25, 26 e 29 dos factos não provados. Dada a possibilidade de tal prova documental, por si só, impor alterações à decisão do tribunal a quo sobre os referidos pontos da matéria de facto, deverá a mesma ser analisada.

Já os restantes números da matéria de facto não provada cuja alteração os recorrentes pretendem, uma vez que a única prova que estes para tanto invocam são as declarações de parte de Marta e o depoimento da testemunha Dorindo, não serão reapreciados, por incumprimento do disposto no artigo 640.º, n.º 2, al. a), do CPC.

Analisemos, então, a decisão do tribunal a quo sobre o conteúdo dos n.ºs 9, 10, 21, 25, 26 e 29 dos factos não provados à luz dos documentos invocados pelos recorrentes.

O n.º 9 só faz sentido se for lido na sequência do n.º 8. No n.º 8, o tribunal a quo julgou não provado que, em 25.05.1987, o pai dos recorrentes comprou a sua parte no imóvel, na proporção de um terço, pagando o preço de 13.200.000$00 a Guilherme. No n.º 9, o tribunal a quo julgou não provado que essa compra ficou documentada num acordo celebrado entre os pais dos recorrentes, José, a recorrida Rosa e Guilherme, nos termos do qual este último cedeu uma terça parte da área total do imóvel a favor dos primeiros, correspondente à área de 37.991,0405 metros quadrados. Os recorrentes invocam o documento n.º 8 junto com a petição inicial.

Este documento, de natureza particular, corporiza um contrato celebrado entre 1) José e sua mulher, a recorrida Rosa, 2) Pedro, pai dos recorrentes e 3) Guilherme e sua mulher, Alice. Ora, esse contrato não tem o conteúdo pretendido pelos recorrentes, pois não é um contrato de compra e venda, o qual, aliás, para ser válido, teria de ser celebrado por escritura pública, nos termos do artigo 875.º do Código Civil, na redacção vigente em 25.05.1987. Na cláusula 1.ª, José e sua mulher, a recorrida Rosa, e apenas eles, são identificados como “donos e possuidores” do prédio dos autos. Na cláusula 2.ª, afirma-se que, por documento particular datado de 22.06.1983, José e a recorrida Rosa prometeram vender a Guilherme uma terça parte do prédio dos autos, tendo sido pago integralmente o preço acordado. Na cláusula 3.ª, estipulou-se, entre o mais, que, com o consentimento de José e da recorrida Rosa, Guilherme cedia a Pedro a sua posição de promitente comprador, pelo preço de Esc. 13.200.000$00. Na cláusula 4.ª estipulou-se, nomeadamente, que a escritura de compra e venda da referida terça parte deveria ser realizada, dentro do prazo de 3 meses, em data, hora e local a indicar por Pedro a José e à recorrida Rosa por carta registada com uma antecedência mínima de 10 dias. Na cláusula 5.ª, estipulou-se que, em caso de incumprimento do contrato por parte de Pedro, José e a recorrida Rosa podiam fazer suas as importâncias que receberam de Guilherme e do cônjuge deste; estipulou-se ainda que, se José ou a recorrida Rosa faltassem ao cumprimento do contrato, Pedro teria o direito de exigir, de qualquer deles, o dobro da importância paga a Guilherme e ao cônjuge deste; em alternativa, quer os promitentes compradores, quer os promitentes vendedores, poderiam requerer a execução específica do contrato. Na cláusula 6.ª, estipulou-se que Pedro aceitava a cessão e prometia adquirir, a José e à recorrida Rosa, a referida terça parte do prédio dos autos.

Salta à vista que não estamos perante um contrato de compra e venda, mas sim perante um contrato de cessão da posição dos promitentes compradores num contrato-promessa de compra e venda (artigos 424.º a 427.º do Código Civil). Através dele, Pedro, pai dos recorrentes, não comprou uma terça parte do prédio dos autos, antes se tendo limitado a adquirir a posição de promitente comprador até então ocupada por Guilherme e seu cônjuge. Consequentemente, o tribunal a quo decidiu bem ao julgar não provado o conteúdo do n.º 9.

É o seguinte o conteúdo do n.º 10 da matéria de facto não provada: “O preço da venda de parte do imóvel foi pago pelos pais dos autores a Guilherme, por meio de cheques.” Os recorrentes invocam, como fundamento da alteração que pretendem, os documentos n.ºs 9, 10 e 11 juntos com a petição inicial.

A inviabilidade desta pretensão dos recorrentes já decorre daquilo que afirmámos a propósito do n.º 9 da matéria de facto não provada. Não houve qualquer venda de parte do imóvel, a qualquer dos progenitores dos recorrentes, por Guilherme, até porque este não era proprietário do mesmo imóvel, ou de parte dele. O contrato celebrado em 25.05.1987 teve por efeito a cessão, ao pai dos recorrentes, da posição de Guilherme num contrato-promessa de compra e venda que este, na qualidade de promitente comprador, celebrara com José e a recorrida Rosa em 22.06.1983. O mesmo contrato não produziu qualquer efeito real, qualquer efeito translativo do direito de propriedade sobre o imóvel dos autos, ou de parte dele. O contrato-promessa de compra e venda não produz tal efeito translativo (artigos 410.º a 413.º do Código Civil), o mesmo acontecendo, logicamente, com o contrato de cessão da posição contratual do promitente comprador. Os documentos invocados pelos recorrentes apenas provam o pagamento, por seu pai, da contrapartida da cessão da posição contratual.

O conteúdo do n.º 21 dos factos não provados é o seguinte: “Na sequência dessas diligências, em 17 de Fevereiro de 1998, o pai dos autores conjuntamente com os então co-proprietários, reuniram-se com vista à “formalização” da referida delimitação física da parcela de terreno que cabia a cada um dos proprietários.”

O documento n.º 13 junto com a petição inicial, invocado pelos recorrentes, consiste numa “acta de reunião”, assinada por Pedro, Francisco e Dorindo, com a seguinte redacção: “Em 17 de Fevereiro de 1998, reuniram-se os comproprietários do prédio inscrito na matriz sob o artigo 48 de secção J (Moinho de Baixo), e acordaram que as extremas são as que ficaram assinaladas a vermelho na planta que fica anexa a esta acta. Praia do Meco, 17 de Fevereiro de 1998.” Segue-se uma planta do prédio dos autos, dividido em 4 parcelas. No interior dos desenhos das parcelas aparecem, sucessivamente, os nomes “Pedro”, “Herdeiros”, “Francisco” e “Dorindo”.

Deste documento apenas resulta que Pedro, Francisco e Dorindo se reuniram no dia 17 de Fevereiro de 1998 e, nessa reunião, chegaram a um acordo sobre a delimitação da parcela que caberia a cada um deles, bem como à recorrida Rosa e herdeiros (que não assinaram a acta em questão). Ora, a circunstância de Pedro e Dorindo serem designados, na acta em questão, como comproprietários do prédio dos autos, não os transforma em comproprietários do mesmo prédio. Pedro era um mero promitente comprador de uma terça parte do prédio, como vimos, e não adquiriu a propriedade pelo simples facto de ser designado como comproprietário na acta da referida reunião. Para tanto, teria de ser celebrado o contrato de compra e venda prometido e tal celebração não se provou. A delimitação feita na reunião a que nos vimos referindo só pode, pois, ter sido feita no pressuposto de que o prédio viesse a ser efectivamente dividido e as parcelas daí resultantes vendidas a quem não fosse já proprietário do mesmo prédio. A mesma delimitação não prova, insistimos, que o pai dos recorrentes fosse comproprietário do prédio. Aquilo que resulta do documento em causa é, pois, inócuo para a decisão da causa. Daí que não haja fundamento para alterar a decisão do tribunal a quo também quanto a este ponto.

O conteúdo do n.º 25 dos factos não provados é o seguinte: “Em 04 de Abril de 2000, Teodoro vendeu a favor do pai dos autores, a referida parcela de terreno com a área de 14.248,065 metros quadrados, contígua à parcela de terreno adquirida anteriormente.”

Os documentos n.ºs 14 e 15 juntos com a petição inicial, invocados pelos recorrentes, são, respectivamente, uma planta do prédio e um “contrato de promessa de compra e venda” datado de 04.04.2000. Através deste contrato, Teodoro prometeu vender ao pai dos recorrentes uma parcela do prédio dos autos. Reconhece-se, na cláusula 2.ª, que “a parcela prometida vender encontra-se registada em nome da Srª. Dª. Rosa”. O preço estipulado para a venda foi de Esc. 8.000.000$00, dos quais Esc. 2.000.000$00 foram entregues imediatamente como sinal e princípio de pagamento.

Como referimos anteriormente, um contrato-promessa de compra e venda não produz o efeito, de natureza real, de transmissão do direito de propriedade sobre a coisa prometida vender. Esse efeito é típico do contrato de compra e venda prometido, como decorre do artigo 879.º, al. a), do Código Civil, e não do contrato-promessa. Este último apenas gera uma obrigação de futura emissão das declarações negociais que formarão o contrato prometido. Mais, o próprio promitente vendedor não era comproprietário do prédio, pelo que não poderia, no momento da celebração do contrato-promessa, transmitir um direito de propriedade de que não era titular. Por tudo isto, não pode considerar-se provado, como os recorrentes pretendem, que Teodoro tenha vendido a seu pai, Pedro, a parcela em questão. O tribunal a quo decidiu bem, nada havendo a corrigir.

O conteúdo do n.º 26 dos factos não provados é o seguinte: “O preço da transacção efectuada entre Pedro (pai dos Autores) e Teodoro, foi pago por meio de cheques e numerário.”

Os documentos n.ºs 16 e 16-A juntos com a petição inicial, invocados pelos recorrentes, apenas demonstram que o pai dos recorrentes efectuou os pagamentos estipulados no contrato-promessa que celebrou com Teodoro. Como vimos anteriormente, inexistiu qualquer contrato de compra e venda (é este contrato que se pretende designar através do termo corrente de “transacção”). Logo, aqueles documentos nada trazem de novo. Nomeadamente, não provam que tenha sido celebrado o contrato de compra e venda prometido. Também quanto a este ponto, o tribunal a quo decidiu bem.

O conteúdo do n.º 29 dos factos não provados é o seguinte: “Em 31 de Julho de 2009, por escritura pública lavrada no Cartório Privativo da Câmara Municipal de Sesimbra, os réus, com o consentimento expresso dos autores e da sua falecida mãe, doaram à Câmara Municipal de Sesimbra duas parcelas de terreno com as áreas respetivamente de 646,80 metros quadrados e 1573,20 metros quadrados.”

O documento n.º 17 junto com a petição inicial, invocado pelos recorrentes, constitui uma escritura pública, realizada em 31.07.2009, mediante a qual os réus e ora recorridos doaram, à Câmara Municipal de Sesimbra, duas parcelas de terreno, com as áreas, respectivamente, de 646,80 metros quadrados e 1573,20 metros quadrados. Todavia, não resulta do mesmo documento que os autores e ora recorrentes, conjuntamente com a sua falecida mãe, tenham prestado qualquer consentimento para os recorridos efectuarem a referida doação. Os recorrentes e sua mãe não intervieram na escritura, tanto quanto resulta desta.

Sem o segmento do alegado consentimento para a realização da doação por parte dos recorrentes e de sua mãe, a matéria do n.º 29 dos factos não provados é irrelevante para a decisão da causa. Consequentemente, inexiste razão para alterar a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal a quo também neste ponto.

Concluindo, mantém-se integralmente a decisão proferida pelo tribunal a quo sobre a matéria de facto.

3 – Propriedade das parcelas de terreno reivindicadas:

O primeiro pedido dos recorrentes, cuja procedência constitui pressuposto da dos restantes, é o de que seja reconhecido que seus pais, nas datas em que faleceram (29.10.2008 o pai e 31.01.2015 a mãe), eram proprietários de duas parcelas do prédio dos autos, identificado no artigo 2.º da petição inicial.

O modo de aquisição do direito de propriedade pelos pais dos recorrentes que estes invocaram foi a compra e venda, mais precisamente dois contratos de compra e venda alegadamente celebrados por seu pai. Esses contratos teriam sido celebrados, respectivamente, com Guilherme em 25.05.1987 e com Teodoro em 04.04.2000. É esta a causa de pedir.

Nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. Cabia, pois, aos recorrentes o ónus da prova da celebração dos dois contratos de compra e venda que alegaram.

Essa prova não se fez. Os recorrentes qualificam erradamente uma cessão da posição contratual de promitente comprador e um contrato-promessa de compra e venda como contratos de compra e venda, como anteriormente analisámos. Esses dois contratos não têm efeito translativo do direito de propriedade, pelo que o pai dos recorrentes, que em ambos outorgou, não adquiriu esse direito real.

Na qualidade de sucessores mortis causa de seus pais, os recorrentes poderão ser titulares de direitos de crédito contra as pessoas com quem celebraram os contratos referidos. Trata-se, porém, de questão estranha ao objecto da presente acção, atenta a forma como os recorrentes a configuraram. Seguro é que o pai dos recorrentes não adquiriu qualquer direito de propriedade sobre as parcelas em causa por efeito dos contratos por aqueles invocados como causa de pedir.

A argumentação em contrário que os recorrentes desenvolvem nas suas alegações não procede.

Os recorrentes afirmam que os factos provados sob os números 3 a 9 e 14 a 18 são, por si sós, suficientes para a acção proceder, por demonstrarem que seu pai adquiriu o direito de propriedade sobre as parcelas que reivindicam. Porém, aquilo que os n.ºs 3 a 9 da matéria de facto provada demonstram é precisamente o contrário daquilo que os recorrentes pretendem, ou seja, que o pai destes queria, na realidade, comprar o prédio dos autos ou, ao menos, uma parcela ou uma quota ideal do mesmo, mas não chegou a fazê-lo. Quem acabou por comprar o prédio e, por essa via, adquirir o direito de propriedade sobre o mesmo, foram a recorrida Rosa e seu marido. Era vontade do pai dos recorrentes comprar-lhes, no futuro, uma terça parte do prédio, mas isso nunca aconteceu, tanto quanto se provou.

A circunstância de, em 22.06.1983, a recorrida Rosa e seu marido terem assinado um documento em que declararam reconhecer que uma terça parte do prédio pertencia ao acima referido Guilherme, em nada altera aquilo que acabámos de concluir. O direito de propriedade sobre um imóvel apenas se transmite pelas formas previstas na lei, não podendo estas últimas ser substituídas por “declarações” como a referida. Acresce que, como analisámos detalhadamente no ponto 2, o mesmo Guilherme foi qualificado como mero promitente comprador no documento n.º 8 junto com a petição inicial e apenas cedeu a sua posição contratual ao pai dos recorrentes. Inexiste, pois, fundamento para concluir que o pai dos recorrentes adquiriu a Guilherme o direito de propriedade sobre alguma parcela do prédio dos autos ou alguma quota ideal do direito de propriedade sobre o mesmo prédio.

O mesmo se diga em relação à autorização descrita no n.º 14 da matéria de facto provada. A circunstância de os recorrentes aí serem qualificados como comproprietários não os investe nessa qualidade. Perante as vicissitudes do direito de propriedade sobre o prédio dos autos que se provaram, apenas pode concluir-se que aquela qualificação não corresponde à realidade.

A circunstância de a Câmara Municipal de Sesimbra, numa ocasião, ter actuado nos termos descritos no n.º 15 da matéria de facto provada também não atribui o direito de propriedade aos recorrentes sobre o prédio dos autos, como é óbvio. O mesmo se diga em relação aos factos descritos nos n.ºs 16 a 18: nenhum deles transforma em proprietário de um prédio quem o não é face ao disposto na lei.

As categorias de “proprietário material” e de “proprietário formal” que os recorrentes propõem com vista a serem colocados na primeira e, por essa via, a obterem a procedência da acção, carece de fundamento legal. Ou se é proprietário (ou comproprietário) de uma coisa, ou não se é. E é proprietário quem adquira esse direito real através de um modo que a que a lei atribua esse efeito, como são, por exemplo, os contratos de compra e venda, de doação, de sociedade, de empreitada ou de troca, a sucessão por morte, a usucapião, a ocupação, a acessão ou a expropriação – cfr. artigos 879.º, al. a), 939.º, 954.º, al. a), 984.º, al. a), 1212.º, 1308.º e 1316.º do Código Civil e 480.º do Código Comercial. Dado que os contratos invocados pelos recorrentes como tendo produzido o efeito translativo do direito de propriedade para seu pai, na realidade, não o fizeram, a única conclusão possível é a de que eles, recorrentes, não são – como seus pais nunca foram – proprietários de qualquer parcela do prédio dos autos ou titulares de qualquer quota ideal do direito de propriedade sobre o mesmo prédio. Ao concluir nesse sentido, o tribunal a quo decidiu bem.

Concluindo, o recurso deverá ser julgado improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

*

Decisão:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelos recorrentes.

Notifique.

*

Évora, 10 de Setembro de 2020

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.º adjunto)

 


[1] ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4.ª edição, p. 148, nota 6 ao artigo 639.º; RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, vol. II, 2.ª edição, p. 145, anotação 6 ao artigo 641.º.

[2] ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, obra citada, p. 171, nota 3 ao artigo 641.º; cfr., também, ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, p. 772, anotações 1 e 3 ao artigo 641.º.

[3] JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil – Recursos, AAFDL, 1980, p. 156.

[4] ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, obra citada, p. 157, anotação 4 ao artigo 640.º; RUI PINTO, obra citada, p. 145, anotação 6 ao artigo 641.º.

[5] ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, obra citada, p. 159, anotação 5 ao artigo 640.º.

[6] ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, obra citada, p. 251, nota 1 ao artigo 654.º; JOÃO DE CASTRO MENDES, obra citada, p. 154; ARMINDO RIBEIRO MENDES, Recursos em Processo Civil, Lisboa, 1992, p. 193.

[7] Código de Processo Civil Anotado, volume V (reimpressão), p. 339.

[8] Obra citada, p. 340.

[9] Obra citada, p. 274, anotação 4 ao artigo 662.º.

[10] Obra citada, p. 279-280, anotação 8 ao artigo 662.º.

[11] Obra citada, p. 287-288, anotação 11 ao artigo 662.º.

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

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