sexta-feira, 18 de junho de 2021

Acórdão da Relação de Évora de 27.05.2021

Processo n.º 12191/20.0YIPRT.E1

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Sumário:

1 – Não é admissível o uso do procedimento de injunção para o exercício de pretensão fundada em enriquecimento sem causa.

2 – Se o procedimento de injunção for usado fora das hipóteses em que a lei o admite, verifica-se uma excepção dilatória inominada, determinante da absolvição do réu da instância.

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H – Consultoria Unipessoal, Lda., instaurou procedimento de injunção contra E – Segurança Privada, S. A., requerendo a notificação desta para lhe pagar a quantia total de € 5.597,53.

A requerida deduziu oposição.

A requerente apresentou articulado de resposta.

Em seguida, o tribunal proferiu sentença julgando verificada a excepção dilatória de erro na forma de processo e, em consequência, absolvendo a requerida da instância.

A requerente interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

A) Admitindo a necessidade de aperfeiçoamento das peças processuais, nada impedia o tribunal de o ter determinado (cfr. arts. 10.º, n.º 3, do DL n.º 62/2013, de 10.05, e art. 17.º, n.º 3, do DL 269/98, de 01.05, e do princípio da adequação formal consagrado no artigo 547.º do CPC) ainda que por mera hipótese de raciocínio se admitissem os obstáculos invocados, designadamente, a não obediência aos requisitos da petição inicial e a alegada diferença no prazo de defesa e tramitação posterior do processo após a fase dos articulados.

B) Sem conceder, transformada a injunção em processo comum, não se verifica no âmbito deste, a excepção dilatória inominada relativa ao uso indevido do procedimento de injunção, por ser pressuposto da injunção qua tale e não obstar ao conhecimento de mérito da causa, no âmbito do processo comum em que se transmutou aquele procedimento de injunção que não foi decretado, e, …não tem influência, nem no mérito da causa (se o pedido de pagamento deve ou não proceder) nem na tramitação da causa, a questão de saber se a transacção comercial que originou o crédito reclamado se enquadra naquelas que permitem a injunção.

C) Salvo melhor opinião, o pagamento em excesso de uma determinada factura constitui uma vicissitude da execução e cumprimento do contrato, e, encontra o seu enquadramento e razão de ser, directamente, na relação contratual estabelecida, daí que verificado um pagamento que não tem suporte contratual, designadamente em factura oportunamente emitida ou no seu pagamento em duplicado, seja realizado um lançamento a crédito na conta corrente contabilística estabelecida.

D) Por outras palavras, o crédito reclamado pelo recorrente tem, necessariamente, causa no contrato, pois se esse contrato não tivesse sido celebrado o pagamento em excesso nunca teria ocorrido, sendo desajustada a necessidade de invocação do instituto do enriquecimento sem causa.

Termos em que, nos melhores de direito, doutamente supridos por V. Excias. e conforme conclusões supra, requer-se a revogação da douta sentença e a sua substituição por outra que determine o prosseguimento dos autos.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

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As questões a resolver são as seguintes:

1 – Admissibilidade do procedimento de injunção;

2 – Consequências do uso indevido do procedimento de injunção.

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Os factos relevantes para a decisão do recurso, evidenciados pelos autos, são os seguintes:

1 – A “exposição dos factos que fundamentam a pretensão” que consta do requerimento de injunção tem o seguinte teor:

“A Requerente é uma Soc. Comercial que no âmbito da sua actividade comercial procede à exploração comercial de Hotéis.

A Requerida é uma Soc. Comercial que no âmbito da sua actividade dedica-se à prestação de serviços de segurança e vigilância.

Requerente e Requerida celebram o contrato de prestação de serviços de vigilância n.º 0068.2015, no dia 24.09.2015, tendo realizado uma Adenda no dia 01.02.2016 em cujo âmbito reduziram o preço mensal para o valor de € 2.690,00 €, acrescido de IVA.

No âmbito da conta corrente estabelecida, a Requerente pagou em excesso à Requerida o montante de 4.745,53 €.

A Requerida através de email datado de 31.05.2019 reconheceu esse pagamento em excesso e solicitou o NIB da Requerente para devolução.

Decorrido quase 1 ano a requerida ainda não devolveu a quantia em causa à Requerente, daí que não reste outro mecanismo senão o recurso à presente injunção, devendo a Requerida ser notificada para pagar a quantia em dívida, acrescida de juros de mora e demais despesas, nos termos do art. 406.º do Código Civil, que dispõe que os contratos devem ser cumpridos pontualmente.”

2 – A requerida deduziu oposição, concluindo, além do mais, que, atenta a causa de pedir invocada, o procedimento de injunção não é legalmente admissível, pelo que se verifica uma excepção dilatória insuprível, que impõe a anulação de todo o processado e a sua absolvição da instância.

3 – A requerente apresentou articulado de resposta, concluindo que o procedimento de injunção constitui meio processual adequado.

4 – Na sentença recorrida, decidiu-se o seguinte:

“Dos fundamentos invocados para a pretensão deduzida depreende-se que a requerente reconhece que os serviços que foram prestados pela requerida mostram-se pagos e entende ter existido da sua parte um pagamento em excesso.

Ora, o objecto do procedimento de injunção é aplicável ao cumprimento de obrigações ou à aplicação estrita da regra de responsabilidade contratual decorrente do art. 806º/1, do Código Civil, ou seja, o requerente pode exigir o valor da obrigação pecuniária acrescido de juros moratórios.

Ou seja, a utilização destes procedimentos especiais pressupõe a existência de um contrato entre as partes e que o mesmo não foi cumprido, ou pelo menos não o foi integralmente, resultando desse incumprimento a obrigação para o contraente faltoso do pagamento de uma determinada quantia.

Ora, o contrato celebrado entre as partes foi o de prestação de serviços de vigilância.

Nesse âmbito, a requerente não põe em causa que a requerida prestou os serviços contratados e alega, o que a requerida não impugna, que os pagou.

Simplesmente a requerente alega que pagou em excesso e pretende ser restituída da diferença.

Assim, a quantia paga em excesso já não tem causa no contrato. Melhor dizendo, o contrato mostra-se integralmente cumprido pelas partes. O pagamento em excesso já recai no âmbito do enriquecimento sem causa.

Nessa medida, não pode a requerente lançar mão deste procedimento especial que pressupõe que a obrigação tenha por causa um contrato.

Verifica-se, pois, um erro na forma do processo.

Na verdade, a requerente deveria ter lançado mão de outra via processual.

O erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei (art. 193º/1, do CPC).

Contudo, no caso em análise, entende-se não haver possibilidade de aproveitar os actos praticados e convolar o presente procedimento em acção comum, porquanto o requerimento inicial não obedece aos requisitos de uma petição inicial (art. 552º do CPC) e ainda se verifica uma diferença no prazo de defesa e na própria tramitação do processo posterior aos articulados que não se compadecem com tal convolação.

Nestes termos, impõe-se a anulação de todo o processado, o que se determina, estando-se em presença de uma excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, conducente à absolvição do Réu da instância.

Termos em que, julgo verificada a excepção dilatória de erro na forma de processo e, em consequência, absolvo a requerida da instância.”

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1 – Admissibilidade do procedimento de injunção:

A lei admite o recurso ao procedimento de injunção quando o mesmo se destine a exigir o cumprimento de:

- Obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15.000 (Decreto-Lei n.º 269/98, de 01.09, artigos 1.º do diploma preambular e 7.º do regime dos procedimentos naquele referido);

- Obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10.05, independentemente do seu valor (artigos 10.º e 13.º, n.º 2, deste último; artigo 7.º do regime dos procedimentos a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular do Decreto-Lei n.º 269/98).

De acordo com o requerimento de injunção, recorrente e recorrida, ambas sociedades comerciais, celebraram um contrato mediante o qual a segunda prestava serviços de vigilância à primeira mediante o pagamento de uma contrapartida pecuniária com periodicidade mensal; neste contexto, a recorrente entregou à recorrida € 4.745,53 que considera não serem devidos; não obstante a recorrida ter reconhecido que tal quantia não lhe era devida, nunca a restituiu; através do requerimento de injunção, a recorrente pretende obter a restituição da mesma quantia, acrescida de juros de mora e despesas.

Resulta, assim, do requerimento de injunção que a quantia cujo pagamento a recorrente pretende não tem como causa um contrato, nem uma transacção comercial tal como esta é definida pelo artigo 3.º, al. b), do Decreto-Lei n.º 62/2013. Não se verifica qualquer incumprimento do contrato invocado pela recorrente.

Aquilo que a recorrente pretende obter da recorrida é a restituição de uma quantia que lhe entregou supondo que a tanto se encontrava obrigada por efeito do contrato que com aquela celebrara, mas, posteriormente, concluiu que não era devida. O contrato não constitui a causa jurídica da pretensão de restituição. Essa causa é, como acertadamente se considerou na sentença recorrida, um alegado enriquecimento sem causa da recorrida à custa da recorrente (artigos 473.º e 476.º, n.º 1, do Código Civil). Está em discussão uma alegada obrigação, a cargo da recorrida, de restituição de uma quantia que a recorrente indevidamente lhe terá entregue com a intenção de cumprir uma obrigação que, afinal, não existia.

A restituição que a recorrente pretende surge no contexto do contrato que celebrou com a recorrida, mas não constitui um efeito desse contrato, não tem como fundamento um incumprimento do mesmo contrato.

A circunstância, invocada nas alegações de recurso, de existir uma conta-corrente contabilística associada ao contrato celebrado entre recorrente e recorrida é indiferente para o enquadramento jurídico dos factos dos autos. Os tribunais estão sujeitos a critérios de decisão jurídicos, que não influenciáveis por regras de natureza contabilística.

Concluindo, a pretensão da recorrente não é compatível com o procedimento de injunção.

2 – Consequências do uso indevido do procedimento de injunção:

A recorrente sustenta, por outro lado, que, ainda que a sua pretensão não pudesse ser exercida através do procedimento de injunção, a partir do momento em que, por efeito da oposição deduzida, esse procedimento se transformou numa acção com processo comum, nada obstava ao conhecimento daquela pretensão. Para tanto, segundo a recorrente, o tribunal deveria ter convidado as partes no sentido de aperfeiçoarem as suas peças processuais caso o considerasse necessário.

A recorrente parte, desde logo, do errado pressuposto de que, por efeito da dedução de oposição, o procedimento de injunção se transformou numa acção declarativa com processo comum (artigo 548.º do CPC). Não é assim. Atento o disposto nos artigos 16.º, n.º 1, e 17.º, n.º 1, do regime dos procedimentos a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular do Decreto-Lei n.º 269/98, o procedimento de injunção transformou-se numa acção especial regulada pelo mesmo diploma legal, ou seja, numa acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15.000. Ora, à semelhança do que acontecia com o procedimento de injunção, esta acção especial também não é compatível com a causa de pedir alegada pela recorrente, como decorre do artigo 1.º do diploma preambular do Decreto-Lei n.º 269/98. Apesar da transformação do procedimento de injunção numa acção declarativa de condenação, o problema da incompatibilidade da causa de pedir invocada pela recorrente com a forma de processo utilizada subsiste.

Ainda que, por efeito da dedução de oposição, o procedimento de injunção se tivesse transformado numa acção declarativa com processo comum (o que acontece nas hipóteses previstas no artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 62/2013), a recorrente continuaria a não ter razão. Mesmo na hipótese de o requerido deduzir oposição à injunção, a instância mantém-se, ou seja, não se extingue o procedimento de injunção para nascer uma acção declarativa de condenação. Em vez disso, o procedimento de injunção transforma-se numa acção declarativa de condenação. A ideia de que, operada aquela transformação, se deve fazer tábua rasa do que se passou na fase anterior, não havendo, então, lugar a qualquer controlo judicial da verificação dos pressupostos de admissibilidade do procedimento de injunção, não encontra fundamento na lei. Ao invés, a exigência legal desses pressupostos tem a sua efectividade garantida pela possibilidade de controlo judicial em caso de oposição do requerido, oposição essa que pode basear-se, precisamente, na falta de verificação daqueles pressupostos.

Em qualquer caso, o uso do procedimento de injunção fora das hipóteses em que a lei o admite inquina insanavelmente o processo desde o seu início, pelo que não é concebível que, na sequência de oposição do requerido e após a distribuição do processo em tribunal, este feche os olhos àquela violação da lei e deixe a acção seguir os seus termos até final, ainda que convidando as partes para aperfeiçoarem as peças processuais por si apresentadas, tal qual faria na hipótese de o procedimento de injunção ter sido bem utilizado.

O uso do procedimento de injunção fora das hipóteses em que a lei o admite tem de ter alguma consequência e esta só pode ser a absolvição do réu da instância, por verificação de uma excepção dilatória inominada, nos termos dos artigos 278.º, n.º 1, al. e), e 577.º, proémio, do CPC.

Concluindo, o recurso deverá ser julgado improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Notifique.

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Évora, 27 de Maio de 2021

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.º adjunto 


domingo, 13 de junho de 2021

Acórdão da Relação de Évora de 27.05.2021

Processo n.º 720/17.0T8FAR.E1

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Sumário:

1 – Uma conclusão que se refira a uma questão não suscitada no corpo das alegações deve considerar-se não escrita.

(...)

5 – Litiga de má-fé o vendedor que, em acção contra si proposta pelo comprador, impugna a alegação, por este feita, dos defeitos da coisa vendida, não obstante saber que tais defeitos se verificam.


Texto integral: Link


Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

Processo n.º 135/22.9T8BNV.E1 * Sumário: 1 – Um pedido de demarcação deve fundar-se na existência de uma situação de incerteza sobre a...