terça-feira, 13 de março de 2018

Acórdão da Relação de Évora de 22.02.2018

Processo n.º 50489/16.9YIPRT.E1

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Sumário:

1 – Limitando-se a invocar genericamente, sem indicação das passagens da gravação em que se funda o recurso, as declarações de parte do seu administrador e o depoimento de uma testemunha por si indicada como impondo uma decisão de facto diversa da contida na sentença recorrida, a sociedade recorrente não cumpre o ónus previsto no artigo 640.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, al. a), do CPC.

2 – Numa acção que vise a condenação no pagamento de uma quantia, a pretensão do réu de deduzir, a esta última, uma outra de que ele se considera credor do autor, tem de ser qualificada como compensação, nos termos do artigo 847.º do Código Civil, com as inerentes consequências processuais.

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Relatório

GG apresentou requerimento de injunção contra FF – Gestão Hoteleira, S.A., com vista à cobrança da quantia de € 6.909,30, acrescida de € 335,57 de juros de mora vencidos e de € 102 de taxa de justiça paga.

A requerida deduziu oposição, concluindo que deve à requerente apenas a quantia de € 417,70.

Em face da oposição, os autos foram distribuídos.

Notificada do teor da oposição, a requerente respondeu às excepções aí deduzidas, mantendo a posição assumida no requerimento inicial.

Realizou-se a audiência final. Nesta, foi proferido despacho mediante o qual não foi admitida a oposição na parte em que visava a compensação de créditos e, por fim, foi proferida sentença que, julgando a acção totalmente procedente, por provada, condenou a requerida a pagar à requerente a quantia de € 6.909,30, acrescida de juros de mora, à taxa aplicável aos juros civis, desde o respectivo vencimento até integral pagamento, com custas a cargo da requerida.

A requerida recorreu da sentença, formulando as seguintes conclusões:

A - O primeiro problema que se colocava, face à oposição deduzida pela R., consistia nos pagamentos efectivamente realizados pela R. à A. e documentalmente provados, realizados entre 6 de Agosto de 2013 e 23 de Outubro de 2014.

B - Como consta do requerimento de Injunção apresentado pela A., o valor que se reclama - 6 909,30 € - referia-se ao período de rendas do Contrato Promessa de Cessão de Exploração celebrado entre a A. e a R., entre 31 de Maio de 2013 e 15 de Dezembro de 2015.

C - Porque razão se acabou por entender, na decisão, a quo, que não se provaram que a R. pagou à A. os 3 515,00 €, correspondentes às transferências e cheques realizados e emitidos pela R., a favor da A, dentro das datas correspondentes às reclamações da A.?

D - Não se entende de onde surge qualquer dúvida para que tais pagamentos feitos à A. não fossem imputados aos valores reclamados pela A..

E - Não se pode pois aceitar o não reconhecimento dos pagamentos realizados pela R. a favor da A. no montante de 3 515,00 €, no período e relativamente ao momento em que se reclama!

F - Outro ponto que se não pode aceitar será a não consideração da Nota de Lançamento nº 1716, correspondente à Comparticipação no custo das obras realizadas em zonas comuns do edifício 10/3, da fracção autónoma “O” permilagem 32,97, no montante de 2 976,60 €.

G - O valor reclamado 2 976,60€, é uma comparticipação que faz parte da conta-corrente que reproduz o deve e haver do Contrato Promessa de Cessão de Exploração, que vigorou entre a A. e a R..

H - Não se trata de compensação de créditos, ou reconvenção, são parcelas da mesma conta e por conseguinte perfeitamente enquadráveis na conta-corrente e excluídas do instituto da reconvenção.

I - Deveria a sentença ter considerado os pagamentos referidos no montante de 3 515,00€ e aceite igualmente a comparticipação reclamada no montante no montante de 2 976,60 €.

J - Termos em que se deveria tão somente condenar a R. no pagamento à A. da quantia de 417,70€, como se concluía na oposição apresentada.

A recorrida contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

1ª - Constitui objecto do recurso interposto da sentença proferida em 1ª instância, se bem o entendemos, os pagamentos efectuados pela Recorrente entre 6 de Agosto de 2013 e 23 de Outubro de 2014, e o facto de não ter sido dado como provado que os mesmos se destinaram a pagar parte dos valores reclamados pela Recorrida, por um lado.

2ª - E por outro lado por entender a Recorrente que a nota de lançamento com o nº 1716, junta aos autos em sede de Audiência de Discussão e Julgamento devia ter sido considerada uma comparticipação que faz parte da conta-corrente que reproduz o deve e haver do contrato promessa de cessão de exploração em vez de uma compensação a deduzir nos valores reclamados e por isso inadmissível, o que só se poder obter por via reconvencional, inadmissível neste tipo de processos, como o fez a douta sentença recorrida.

3ª - Não tem razão a Recorrente, quanto ao primeiro aspecto porque e desde logo a sentença recorrida não deu como provado o facto em causa, tendo fundamentado exaustivamente essa não prova com os documentos de folhas 12 v. e ss e folhas 56 v. e ss coadjuvados com o depoimento da testemunha CC, não contrariado pelo testemunho do representante da Ré que não o fez.

4ª - Por outro lado a Apelante apenas diz que não pode aceitar essa posição da decisão sob recurso, a quem incumbia o ónus da prova, em 1ª instância, e também em sede de recurso alegar e demonstrar quais os depoimentos ou parte deles que contrariavam esta decisão, o que não fez.

5ª - A Recorrente não só não indicou no recurso as normas jurídicas violadas, mormente nas suas conclusões, o que contraria o disposto no artigo 639/2 a) do CPC como o disposto no artigo 640/1ª) do mesmo código, uma vez que ao atacar a matéria de facto dada como não provada, considerando-a provada, não indicou os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação que impunham decisão diferente.

6ª - A violação deste preceito implica a rejeição do recurso, pelo menos nesta parte, nos termos do disposto no artigo 640/2ª) do CPC.

7ª - A não ser que o processo contenha todos os elementos, nomeadamente documentais que permitam essa apreciação pelo Tribunal, o que não parece ser o caso.

8ª - Quanto à segunda questão, objecto do recurso, se o Tribunal entender apreciá-la como excepção, uma vez que o Julgamento se processou também sobre a mesma, resulta claro da cláusula sétima do contrato promessa de cessão de exploração junto aos autos que a responsabilidade pelo pagamento do Condomínio e despesas de manutenção era da Apelante, sendo que a nota de lançamento foi impugnada e por si só não tem a virtualidade de fazer prova do que dela consta.

9ª - Não faz prova do pagamento, nem de que as obras nela descritas foram realizadas, quando e porquê.

10ª - Não tem razão a Apelante quando diz que o Tribunal “a quo” deveria ter considerado a despesa constante da nota de lançamento como fazendo parte de uma conta corrente, excluindo-a do instituto da reconvenção.

11ª - A causa de pedir da presente acção foi definida no requerimento inicial pela A., ora Recorrida, precisamente o contrato promessa de cessão de exploração e as quantias devidas ao abrigo do mesmo.

12ª - Não está em causa, nem constitui causa de pedir uma conta corrente e respectivo saldo apurado, que não existe, mas apenas a Apelante decidiu reclamar compensação pela despesa constante da nota de lançamento junta, o que claramente fez por via da compensação, que só se pode obter por reconvenção, inadmissível neste tipo de processos.

13ª - Bem andou o Tribunal Recorrido ao ter decidido como o fez, seguindo a corrente Jurisprudencial dominante e conforme com a Lei.

14ª - A sentença sob recurso não violou nenhum preceito alegado, e fez uma apreciação critica correta, justa e adequada dos factos, aplicando bem o Direito.

Termos em que devem improceder todas as conclusões formuladas pela Recorrente e consequentemente o Recurso deve ser considerado improcedente, mantendo-se a sentença recorrida, “in totum”, assim se fazendo Justiça!

O recurso foi admitido.                                                         

Objecto do recurso

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o objecto deste último e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

As questões a resolver são as seguintes:

- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

- Admissibilidade de dedução do valor de € 2.976,60, correspondente à alegada comparticipação no custo de obras realizadas em zonas comuns do edifício.

Factualidade apurada

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. Por acordo escrito datado de 31 de Maio de 2010, epigrafado de “Contrato promessa de cessão de exploração”, que consta de fls. 11, v., e ss. e que aqui se dá por reproduzido, celebrado entre a Autora (como Primeira Contratante) e a Ré (como Segunda Contratante) foi acordado, entre o mais, que: “Divisão I (…) 2.OBJECTO DO CONTRATO: Apartamento 222 do Piso 1 do Prédio urbano denominado 10.3, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tavira sob a ficha n.º 842 “O” e inscrito na matriz urbana sob o artigo 842 O da freguesia de Cabanas, concelho de Tavira. 3 PREÇO E CONDIÇÕES DO PAGAMENTO 3.1 – PREÇO € 2 515,00 (…) 3.2 – CONDIÇÕES DE PAGAMENTO: O preço de cessão é pago no termo do presente contrato e das suas renovações. Divisão II (…) CLÁUSULA PRIMEIRA O Primeiro Contratante é promitente comprador do apartamento identificado no ponto 2 da Divisão I do presente contrato. CLÁUSULA SEGUNDA Pelo presente contrato, o Primeiro Contratante promete ceder a exploração à Segunda Contratante, que promete aceitá-la, do apartamento identificado no ponto 2 da Divisão I do presente contrato, nas condições constantes das cláusulas seguintes. CLÁUSULA TERCEIRA O apartamento destina-se à exploração hoteleira ou de alojamento turístico conjuntamente com as restantes fracções autónomas do prédio. Como tal, o Primeiro Contratante cede à Segunda Contratante a utilização da sua quota parte nas áreas comuns do edifício autorizando que faça as obras de adaptação que se mostrem necessárias durante o período que durar o presente contrato. CLÁUSULA QUARTA O presente contrato tem início no dia em que o Primeiro Contratante celebre a escritura de compra e venda do apartamento ora prometido ceder, durará pelo prazo de um ano, e será automática e sucessivamente renovado por períodos anuais. Quando a qualquer uma das Contratantes não convenha a continuação da cessão para além do prazo em curso, deverá comunicá-lo à outra Contratante através da carta registada, até ao dia 31 de Dezembro, devendo a devolução da posse do apartamento e o acerto de contas de rendas operar-se a 30 de Setembro de ano seguinte, independentemente da data que corresponder ao termo da última renovação. CLÁUSULA QUINTA 1.O preço anual é o que consta do ponto 3.1 da Divisão I deste contrato e será pago conforme definido no ponto 3.2 da mesma Divisão I. 2. A renda estabelecida será actualizada anualmente nos termos legais. (…)”.

2. Por escritura pública de compra e venda datada de 31 de Maio de 2010, celebrada entre HH – Sociedade de Gestão Imobiliária, S.A., representada por LL, e GG, representada por KK, a primeira declarou vender à segunda a fracção autónoma designada pela letra “O”, correspondente ao piso um – letra H-Doze, destinada a habitação, do prédio urbano denominado por Lote dez-três, sito em Canada, freguesia de Cabanas de Tavira, concelho de Tavira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tavira sob o número 234, inscrito na respectiva matriz sob o art. 842.

A sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:

3. A Ré pagou à Autora a quantia de € 3.515 quanto a parte do período de 2012/2013, quanto aos períodos de 2013/2014 e 2014/2015 e quanto a parte do período de 2015/2016.

Fundamentação

A recorrente insurge-se contra a decisão sobre a matéria de facto, considerando que o tribunal recorrido devia ter julgado provado que ela entregou, à recorrida, a quantia de € 3.515, para pagamento parcial da prestação correspondente ao período em causa nestes autos.

Coloca-se a questão de saber se a recorrente cumpriu os ónus que o artigo 640.º do CPC lhe impõe.

O n.º 1 do artigo 640.º do CPC estabelece que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

A al. a) do n.º 2 do mesmo artigo estabelece que, no caso previsto na al. b) do n.º 1, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

No caso dos autos, pode considerar-se que a recorrente, ainda que sem o rigor que o artigo 640.º do CPC tem em vista, cumpriu os ónus previstos nas alíneas a) e c) do n.º 1, pois percebe-se qual é a matéria de facto que ela considera ter sido incorrectamente julgada e o sentido em que, no seu entendimento, deve ser proferida decisão sobre a mesma. Concretamente, a recorrente entende que a matéria de facto julgado não provada pelo tribunal recorrido devia ter sido julgada provada.

Todavia, a recorrente não cumpriu, manifestamente, o ónus previsto na al. b) do n.º 1, com o conteúdo descrito na al. a) do n.º 2, pois não indicou as passagens da gravação em que se funda o recurso. Em vez disso, a recorrente limitou-se a invocar, genericamente, os depoimentos do seu administrador e da testemunha por si indicada (pontos 3, 6 e 10 das suas alegações de recurso), sem a referida indicação e em evidente incumprimento do referido ónus.

Consequentemente, por incumprimento, por parte da recorrente, do disposto no artigo 640.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, al. a), do CPC, não poderá esta Relação reapreciar a matéria de facto fixada pela sentença recorrida, considerando-se definitivamente fixada a matéria de facto julgada provada e não provada na sentença recorrida.

Passemos à análise da questão da admissibilidade de dedução do valor de € 2.976,60 à quantia de que a recorrida é credora, correspondente à alegada comparticipação no custo de obras realizadas em zonas comuns do edifício.

Esta questão não foi conhecida na sentença recorrida, mas sim em despacho anterior à prolação desta, que não foi objecto de recurso e, por isso, transitou em julgado. Logo, a mesma questão encontra-se definitivamente resolvida, no sentido de não ser admissível a oposição na parte em que visava a compensação de créditos.

Nas suas alegações de recurso, a recorrente procura tornear esse obstáculo argumentando que “Não se trata de compensação de créditos, ou reconvenção, são parcelas da mesma conta e por conseguinte perfeitamente enquadráveis na conta-corrente e excluídas do instituto da reconvenção” (conclusão H).

Porém, este argumento não é válido. A recorrente afirma, no fundo, que nunca pretendeu uma compensação de créditos porque do que realmente se trata é de uma “conta-corrente”. Daí que, segundo a recorrente, a consideração do referido valor de € 2.976,60 não dependa da dedução de reconvenção. Ora, juridicamente, isto não faz sentido. A argumentação da recorrente, nomeadamente a qualificação da situação como uma “conta-corrente”, pode fazer sentido do ponto de vista contabilístico, mas, numa abordagem jurídica da mesma situação, que é, obviamente, aquela a que temos de proceder, não há como fugir ao instituto da compensação, como resulta do artigo 847.º do Código Civil. Em sentido técnico-jurídico, aquilo que a recorrente pretende é uma compensação de créditos. Logo, tem inteira pertinência e prevalece o decidido no despacho proferido antes da sentença, já transitado em julgado.

Concluindo, o recurso deverá ser julgado improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Decisão

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.

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Évora, 22.02.2018

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.ª adjunta

2.º adjunto

 

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