Processo n.º 1059/20.0T8FAR.E1
*
Sumário:
O
processo especial regulado nos artigos 1045.º a 1047.º do Código de Processo
Civil é o adequado para exercer a pretensão de apresentação, por parte de uma
sociedade que se dedica à
promoção e intermediação da ocupação onerosa de imóveis por curtos períodos
através de uma plataforma digital, de documentos que contenham
informação detalhada acerca da identificação do proprietário ou entidade que a
outro título explore economicamente um imóvel através da sua inserção na
referida plataforma, tendo
em vista reclamar o ressarcimento de danos causados por aquele imóvel.
*
FF
propôs, contra Sociedade 1, acção especial para apresentação de documentos, nos
termos dos artigos 1045.º a 1047.º do Código de Processo Civil (CPC) e 574.º e
575.º do Código Civil (CC), tendo formulado o seguinte pedido: «Nestes termos e nos mais de Direito que V.
Exa. suprirá requer-se ao Tribunal que cite a Requerida nos termos e para os
efeitos do artigo 1045.º do CPC, ordenando a apresentação das informações (e
documentação de suporte) relativa à identificação do proprietário do
apartamento Z, da Avenida (…), Albufeira, no dia, hora e local que o juiz
designar.»
A
ré não contestou.
Depois
de dar o contraditório à autora para se pronunciar sobre a questão, o tribunal a quo proferiu decisão mediante a qual
absolveu a ré da instância com fundamento em erro na forma do processo.
A
autora interpôs recurso de apelação desta decisão, tendo formulado as seguintes
conclusões:
A) A
aqui recorrente instaurou uma acção especial para apresentação de documentos
contra a recorrente, com vista à obtenção de «informações (e documentação de suporte) relativa à identificação do
proprietário do apartamento Z, da Avenida (…), Albufeira, no dia, hora e local
que o juiz designar».
B) O tribunal
a quo decidiu liminarmente julgar
verificada a excepção dilatória de erro na forma de processo e, em
consequência, absolveu a requerida da instância.
C) A recorrente
discorda de tal conclusão, uma vez que esta revela uma errada ponderação dos
pressupostos da acção especial e da sua aplicação ao caso concreto.
D)
Embora a solicitação da recorrente se enquadre no direito à informação, a verdade
é que essa informação está documentada nos registos da recorrida, uma vez
estamos perante uma empresa mundialmente conhecida, com milhares de clientes e
não perante uma empresa «de vão de escada».
E)
Entendeu, no entanto, o tribunal a quo
– a nosso ver mal – que a pretensão da recorrente se cinge à obtenção de uma
informação e tal não se enquadra no espirito da norma.
F) É
evidente que no caso sub judice
encontram-se preenchidos todos os requisitos necessários para a procedência do
pedido, a saber:
(i)
Existência de direito à informação/documento, por forma a poder exercer um
direito legítimo;
(ii) O
possuidor da informação (i.e. a recorrente) recusou a prestação da informação.
G) Em
primeiro lugar, a recorrente pretende obter uma informação, que naturalmente
está vertida num documento, i.e., o registo do cliente (proprietário) no
Booking.com.
H) Não
se pode, pois, segregar os conceitos de «informação»
e «documentos», como parece fazer o tribunal
a quo, pois um e outro conceitos são,
neste caso, indissociáveis: o que a recorrente solicita é uma informação/documento.
I)
Mais: a existência de um documento que ateste a propriedade do imóvel em causa
(e da pessoa responsável por ele) não é uma hipótese remota, como entende o tribunal
a quo, mas sim uma certeza. Aqui está
o erro do tribunal a quo. Pois, não
existem dúvidas de que a recorrente possui os registos dos proprietários dos
imóveis cuja promoção faz através da sua plataforma digital (www.booking.com).
J) Com
efeito, entende a recorrente que fez uma correcta (e legítima) escolha da forma
do processo, pois, embora o artigo 1045.º do CPC remeta apenas para os artigos
574.º e 575.º do CPC, a verdade é que, através de uma interpretação analógica –
e teleológica – deverá tal remissão aplicar-se também aos casos em que se
pretenda a obtenção de informações que se encontrem documentadas, o que é
manifestamente o caso.
K) Em
segundo lugar, a solução propugnada pelo tribunal a quo da necessidade de interposição de uma acção comum (por falta
de disposição especial para o efeito) é, salvo o devido respeito, irrazoável,
uma vez que a mesma teria necessariamente que ser interposta contra incertos.
L)
Mais: neste caso, havendo esta conexão da recorrida ao proprietário do imóvel
sito em Albufeira, e estando a recorrida legitimada para facultar a informação/documento
solicitado, não faria sentido recorrer ao artigo 22.º do CPC, que não está
pensado para casos como o presente, mas sim para aqueles casos em que os
autores não têm qualquer forma de identificar os interessados directos em
contradizer a demanda, como é o caso típico do falecimento do réu originário.
M) Não
é também despiciendo referir que, não obstante ser admissível a instauração de
uma acção comum, a presente forma de processo evita um desperdício de recursos,
com a inerente violação da imprescindível economia de custos, e determina a
obtenção, de forma mais célere, do interesse que se pretende acautelar.
N)
Esta solução surge, assim, compaginada com os princípios processuais que dimanam
do actual regime processual civil, que impõe ao juiz fazer uso dos seus poderes
de gestão processual e de adequação formal.
O) É,
assim, evidente que a recorrente tem direito obter o documento de registo do
proprietário no Booking.com, do qual conste, designadamente, nome completo,
morada, número de cartão de cidadão e número de contribuinte, para que possa
legitimamente, e caso assim o entenda, demandá-lo em sede própria em virtude do
acidente ocorrido em 21 de Setembro de 2017, razão pela qual não andou bem o tribunal
a quo ao anular todo o processado, em
virtude da declarada excepção dilatória de erro na forma de processo.
O recurso foi admitido, com
subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
*
A
única questão a resolver consiste em saber se se verifica erro na forma do
processo.
*
A formulação de um juízo sobre a
adequação da forma processual escolhida pela autora terá de se basear nos
termos em que a petição inicial se encontra formulada, maxime no teor do pedido formulado.
Aquilo que a autora pretende obter não é
uma simples informação que seja do conhecimento pessoal da ré. Trata-se, sim,
de informação institucional, fundada em documentos que a ré, que é uma
sociedade que se dedica à promoção e intermediação da ocupação onerosa de
imóveis por curtos períodos através de uma plataforma digital, terá certamente
em seu poder. É expectável que tais documentos permitam uma identificação detalhada
do proprietário ou da entidade que, a outro título, explore economicamente o
imóvel onde ocorreu o evento que, alegadamente, causou danos à autora e de quem
esta pretende o ressarcimento destes últimos, seja extrajudicialmente, seja com
recurso à via judicial. Será através do exame dos documentos a que pretende ter
acesso através desta acção que a autora poderá obter, de modo fiável, a
informação de que necessita para a prossecução da finalidade pretendida.
Mais, visando a autora o ressarcimento
dos danos que alega, se, para esse efeito, propuser uma acção judicial,
necessitará, não só da informação resultante dos documentos cuja apresentação expressamente
peticiona, mas também, provavelmente, de obter a reprodução dos mesmos, nos
termos do artigo 576.º do CC, a fim de servirem como meio de prova.
Portanto, resulta da petição inicial que
a autora pretende mais que a prestação de uma simples informação ao abrigo do
disposto no artigo 573.º do CC. Pretende, na realidade, a apresentação de
documentos nos termos do artigo 575.º do mesmo código, tal como invocou na
petição inicial, pois, em termos práticos, é essa a forma que lhe permitirá
atingir plenamente a finalidade por si visada através da propositura desta
acção. Assim terá acesso a informação fidedigna e a meios de prova que poderão
ser-lhe úteis em acção de indemnização que venha a propor.
Para essa finalidade, é adequado o
processo especial regulado nos artigos 1045.º a 1047.º do CPC, inexistindo,
portanto, erro na forma do processo.
Concluindo, o recurso deverá ser julgado
procedente, devendo a decisão recorrida ser revogada.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo
exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida e
ordenando-se que o processo siga os seus ulteriores termos.
Custas
a cargo da recorrida.
Notifique.
*
Évora, 11.11.2021
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.ª adjunta