quinta-feira, 10 de maio de 2018

Acórdão da Relação de Évora de 26.04.2018

Processo n.º 783/04.9TBBJA-B.E1

                                                           *

Sumário:

1 – É nulo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alíneas d) e e), do CPC, o despacho que, na sequência de um requerimento do exequente no sentido de ser reduzido o valor mínimo de um bem em venda por negociação particular, autoriza a adjudicação do mesmo bem ao exequente.

2 – Estamos perante uma decisão implícita quando a decisão expressa tenha como pressuposto a resolução, em determinado sentido, de uma questão que logicamente a anteceda, de forma a que possa concluir-se que a primeira, apesar de não ter sido mencionada, está subentendida na segunda; nessas condições, poderá formar-se o denominado caso julgado implícito.

3 – O exequente que pretenda que lhe sejam adjudicados bens penhorados para pagamento, total ou parcial, do seu crédito, deve indicar o preço que oferece, não podendo, em caso algum, a oferta ser inferior ao valor a que alude o n.º 2 do artigo 816.º.

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Em acção executiva para pagamento de quantia certa movida por Banco 1, S.A. contra David e outros, a exequente requereu a adjudicação do bem imóvel então em venda através de propostas em carta fechada pelo valor de € 66.500.

Na diligência destinada à sua abertura, verificou-se a inexistência de propostas. Não foi, então, considerado o requerimento de adjudicação apresentado pelo exequente porque o valor por este proposto era inferior ao mínimo resultante dos artigos 799.º, n.º 3, e 816.º, n.º 2, do CPC. Na mesma diligência, o tribunal recorrido proferiu despacho ordenando a venda por negociação particular.

Posteriormente, a exequente requereu a redução do valor base da venda do imóvel para € 66.500. Para a hipótese de tal redução ser decidida, a exequente apresentou, desde logo, uma proposta de compra do imóvel pelo referido valor de € 66.500.

O executado David opôs-se à redução do valor base da venda do imóvel por negociação particular, invocando, em síntese, o seguinte:

- Com o indeferimento da anterior proposta de adjudicação, esgotou-se o poder jurisdicional do tribunal recorrido, não sendo, por isso, possível a prolação de nova decisão em sentido contrário;

- A redução do valor base da venda do imóvel nos termos pretendidos pela exequente carece de fundamento factual e é legalmente inadmissível;

- A insistência da exequente na adjudicação do imóvel pelo valor de € 66.500, inferior ao valor real, constitui um abuso do direito, enquadrável na obtenção de um efeito proibido pelos ditames da boa-fé.

O mesmo executado requereu, ainda, a notificação da exequente para, nos termos do artigo 810.º do CPC, se pronunciar sobre a proposta de acordo global por si formulada.

Em seguida, foi proferido despacho autorizando a adjudicação do imóvel à exequente “nos exactos termos requeridos”.

O executado David recorreu desse despacho, tendo formulado as seguintes conclusões:

A) Em 21 de Junho de 2017, com a referência Citius 28894932, foi proferida a decisão de que se recorre que, na sua parte dispositiva, refere expressamente "Face ao disposto, autoriza-se a adjudicação do imóvel ao exequente nos exactos termos requeridos".

B) Sendo embora esta parte dispositiva a única relevante para apreciar da legalidade/ilegalidade da decisão, na parte da fundamentação que precede esta decisão afirma a decisão recorrida "A dinâmica processual assinalada em conjugação com a actual conjuntura de mercado, bem espelhada na total ausência de interessados na aquisição do bem justificam a adjudicação do imóvel à exequente pelo valor proposto."

C) Em 6 de Fevereiro de 2017, com a referência Citius 24813561, a exequente deu conhecimento de um "requerimento de adjudicação apresentado nos autos junto do Exmo. Agente de execução, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 799.º e ss do CPC". (doc. 1 extraído do Citius e peça destinada a instruir o presente recurso).

D) Nesse requerimento apresentado junto do Exmo. Agente de execução (com a referência Citius 24813273), a exequente requer a adjudicação do imóvel penhorado nos autos pelo montante de € 66.500 (sessenta e seis mil e quinhentos euros) - cont. do doc.1 extraído do Citius e peça destinada a instruir o presente recurso.

E) No auto de abertura de propostas em carta fechada (doc.2 extraído do Citius e peça destinada a instruir o presente recurso) realizada a 14 de Fevereiro de 2017, consignou o Exmo. Agente de Execução, no item "Propostas", "Sem Propostas. Existe pedido de adjudicação, não considerado por os valores não atingirem os mínimos."

E) A Meretíssima Juíza do tribunal a quo e perante a proposta de adjudicação da exequente determinou que o processo prosseguisse para venda por negociação particular, concordando com a decisão do Exmo. agente de execução que a proposta de adjudicação não poderia ser considerada por o respectivo valor não atingir o mínimo, pressupõe-se legalmente imposto.

G) Em 6 de Março de 2017 (15 dias depois do indeferimento da adjudicação requerida), por requerimento com a referência citius 25075088 (doc. 3 extraído do Citius e peça destinada a instruir o presente recurso), a exequente ora recorrida veio requerer a redução do valor base de venda para o valor de 66.500 euros (sessenta e seis mil e quinhentos euros) e a aquisição por si do referido imóvel.

H) Invocando, para tanto, argumentos vagos e genéricos, para além do mais falsos como, por exemplo, "a actual conjuntura económica menos favorável em que se encontra mergulhado o país, da qual resultou uma retracção do mercado imobiliário", quando é facto notório e noticiado que o mercado imobiliário está em grande expansão atravessando uma das melhores fases dos últimos anos.

I) Ou o facto de não terem sido apresentadas propostas de aquisição; mas sem que tenha sequer havido tempo para o encarregado da venda diligenciar no quadro da negociação por quaisquer propostas, sem que fosse junto qualquer estudo de mercado, avaliação, artigo de opinião que apontasse para um valor sequer semelhante ao que foi arbitrariamente indicado.

J) Tendo-se o executado oposto fundamentadamente a essa pretensão, invocando desde logo o esgotamento do poder jurisdicional em matéria de adjudicação, a falsidade, vacuidade e generalidade dos fundamentos invocados para a redução do preço e a sua consequente insubsistência e, finalmente, no que se pode considerar uma alegação de abuso de direito a falta de resposta da exequente a uma proposta de resolução extra judicial da dívida. (doc. 4 extraído do Citius e peça destinada a instruir o presente recurso).

K) Entre as duas decisões – indeferimento por o valor proposto não respeitar os limites mínimos e a de adjudicação de que se recorre e proferida em 21 de Junho de 2017 – mediaram 4 meses e não ocorreu nenhum facto processualmente relevante, como teria sido por exemplo uma informação do encarregado da venda a informar da impossibilidade ou insucesso da venda por negociação particular.

L) Assim, a decisão de que se recorre identificada em A) das presentes conclusões viola o disposto nos artigos 613.º, n.º 1, 620.º e 625.º, n.º 2 do CPC, por ser contrária a decisão idêntica de sentido oposto, viola ainda o disposto no artigo 799.º, n.º 3, do CPC.

M) Ou, subsidiariamente e por mera cautela de patrocínio, a entender-se que não foi violado o disposto no artigo 799.º, n.º 3, porque foi determinada uma redução do valor base, é nula, por falta de fundamentação, a decisão, já que nem sequer é indicado o novo valor base, desconhecendo-se por isso esse valor.

N) Finalmente, a decisão recorrida desconsiderou a alegação de abuso de direito e, por isso, violou o disposto no artigo 334.º, n.º 1, do C. Civil.

O) De acordo com o supra exposto, estamos perante dois despachos que decidem sobre a mesma questão processual em sentidos opostos, proferidos pelo mesmo tribunal com cerca de 4 meses de intervalo.

P) Sem que entre uma e outra decisão se tenha verificado qualquer alteração factual, informação relevante, em suma circunstância superveniente que legitimasse ou fundasse a alteração da decisão.

Q) Ora, determina o artigo 613.º, n.º 1, do CPC que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.

R) E o n.º 3 esclarece que tal normativo se aplica, com as necessárias adaptações, aos despachos.

S) Ora, no caso concreto, o juiz do tribunal a quo havia já apreciado a questão processual relativa à possibilidade ou não de adjudicação do imóvel ao banco exequente pelo valor proposto de € 66.500 (sessenta e seis mil e quinhentos), tendo concluído pela impossibilidade dessa adjudicação por ela não respeitar o valor mínimo legalmente exigido.

T) Essa decisão, devidamente notificada a todas as partes, não foi alvo de qualquer recurso,

U) Ora, o tribunal a quo, no despacho recorrido, sem fixar novo valor base, decide exactamente o contrário, ou seja, determinar a adjudicação do imóvel ao exequente pelo exactamente mesmo valor que ele já havia proposto e tinha determinado a não adjudicação.

V) Ainda que logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção que errou, não pode emendar o suposto erro. Para ele, a decisão fica sendo intangível."[Cf. José Alberto dos Reis, "Código de Processo Civil Anotado", vol. V, reimpressão, 1984, pág. 126.]

W) Termos em que e desde logo, deve a decisão do tribunal a quo ser declarada inexistente, por violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional.

X) Acresce que também prescreve o artigo 620.º, n.º 1, do CPC que as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.

Y) E o artigo 625.º, n.º 1, do CPC determina que, havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar, sendo que o seu n.º 2 clarifica ainda que é aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual.

Z) Ocorrendo casos julgados contraditórios, a lei resolve apelando ao critério da anterioridade: vale a decisão contraditória sobre o mesmo objecto que tenha transitado em primeiro lugar (artigo 625.º, n.º 1, do CPC), critério operativo ainda quando estejam em causa decisões que, dentro do mesmo processo, versem sobre a mesma questão concreta (vide n.º 2 do preceito).

AA) Ora, no caso concreto, as duas decisões pronunciam-se exactamente sobre a mesma questão – a possibilidade de adjudicação do imóvel penhorado ao banco exequente pelo valor de 66.500 euros por este proposto.

BB) Na primeira decisão, o tribunal a quo entendeu não ser de considerar essa proposta por não obedecer ao valor mínimo e determinou que o imóvel fosse vendido através de negociação particular;

CC) Na segunda decisão, decidiu adjudicar o imóvel ao exequente apesar de este não respeitar o valor mínimo.

DD) Claramente estamos perante decisões opostas e contraditórias proferidas sobre o mesmo objecto, ou a mesma questão processual.

EE) Perante esta situação, determina o artigo 625.º, n.º 2, do CPC que deve valer a que primeiro transitou em julgado.

FF) Pelo que deve a decisão recorrida ser anulada e declarar-se válida e em vigor a decisão que determinou a venda por negociação particular e não permitiu a adjudicação ao exequente pelo irrisório valor de 66.500 euros.

GG) Em nenhum momento ou segmento da decisão recorrida se decidiu alterar o valor base proposto para a venda, ou se atribuiu um valor diferente ao imóvel.

HH) Pelo que se deve concluir que o valor base para venda por negociação particular se manteve nos € 96.500 (noventa e seis mil e quinhentos) euros.

II) Assim, o valor pelo qual o imóvel foi adjudicado - € 66.500 (sessenta e seis mil e quinhentos euros) é inferior a 85% do valor mínimo que se encontra ainda fixado;

JJ) Pelo que a decisão recorrida, ao determinar a adjudicação por esse valor, violou as normas do artigo 799.º, n.º 3, e do artigo 816.º, n.º 2, do CPC, para o qual aquele remete, devendo ser revogada e substituída por outra que, não autorizando a adjudicação pelo valor proposto, faça seguir a venda por negociação particular.

KK) A decisão recorrida em momento algum indica:

c) Os elementos de prova em que se fundou para definir um preço base inferior ao que estava fixado;

d) O montante exacto do preço base ou mínimo.

LL) Ou seja, o despacho recorrido é nulo nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC porque não especificou o fundamento essencial de facto, qual seja o novo valor base que justifica o juízo de admissibilidade da proposta de adjudicação.

MM)       O artigo 810.º do Código Processo Civil permite hoje, no seio do próprio processo executivo, obter um acordo quanto a um plano de pagamentos que, nos termos da lei, pode consistir nomeadamente numa simples moratória, num perdão, total ou parcial, de créditos, na substituição, total ou parcial, de garantias ou na constituição de novas garantias, pelo que nesta sede o executado vem formalmente expor as diligências já por si efectuadas para a obtenção desse acordo e a sua última proposta formulada à exequente.

NN) Que transforma esta insistência na adjudicação de um imóvel por um valor substancialmente inferior ao seu valor real num acto processualmente incompreensível, reconduzido mesmo a um abuso de direito, enquadrável na obtenção de um efeito proibido pelos ditames da boa-fé.

OO) A dívida por pagar ao tempo do incumprimento era pouco superior a 60.000 euros.

PP) Num esforço de renegociação que vem desenvolvendo desde 2012, o executado e os co-executados já pagaram à exequente mais de 80.000 euros.

QQ) Em Dezembro de 2016 e porque isso correspondia a uma das exigências da exequente para renegociar a dívida, pagou mais de 13.000 euros às finanças e à segurança social, obtendo o levantamento de penhoras que impendiam sobre o imóvel e que agora permitiram o pedido da exequente de adjudicação livre de quaisquer ónus e encargos.

RR) Já em 2017 formulou uma nova proposta que consistia no pagamento de 110.000 euros (que corresponde no essencial ao pagamento do capital em dívida e juros desconsiderando a responsabilidade da exequente no prolongamento da situação e no consequente acréscimo de juros) num prazo razoável que estima ser de cerca de 15 dias (prazo que uma vez mais demonstra a sua inabalável vontade de pôr termo rápido a esta situação evitando o seu prolongamento e não de obter qualquer dilação) acrescido das custas do processo.

SS) Sendo que, até hoje, não obteve qualquer resposta ou sequer uma contraproposta.

TT) É, portanto, incompreensível que, dispondo a exequente de uma proposta de pagamento de 110.000 euros em 15 dias, perfazendo no total da execução entre entregas voluntárias, montantes penhorados no vencimento da fiadora e a proposta agora apresentada um montante superior a € 200.000 (duzentos mil euros) para uma dívida inicial de pouco mais de 60.000 euros, insista de forma extrema em garantir a propriedade para si de um imóvel pertença do executado e habitação da sua mãe por um valor muito inferior ao seu valor real;

UU) Parecendo e querendo objectivamente causar deliberadamente prejuízo ao executado; seja não respondendo às suas propostas e com isso agravando diariamente os juros devidos e portanto o montante total da dívida que podia há muito estar reestruturada e em cumprimento, seja pretendendo obter a propriedade de um bem por um valor inferior ao seu valor real que nem sequer permite a liquidação da dívida, sendo ademais um comportamento que não tem paralelo com qualquer outro caso dos muitos conhecidos pelo executado em que a exequente, perante propostas bem menos favoráveis do que a que foi apresentada pelo executado, tem aceite tais propostas, quer reestruturando as dívidas, quer aceitando dações em pagamento com perdão integral de juros.

VV) Donde, o pedido de adjudicação de um imóvel para habitação que tem um valor superior a 90.000 euros por pouco mais de 60.000 euros sem sequer responder a propostas negociais sérias do executado e sem esperar pelo resultado de uma venda por negociação particular (a repetição do pedido de adjudicação foi feito 15 dias depois da determinação da venda por negociação particular) configura um claro abuso na modalidade de venire contra factum proprium.

WW) Situação que se verifica in casu devendo considerar-se ilegítimo nos termos do artigo 334.º do Código Civil, determinando a impossibilidade de adjudicação pelo preço proposto.

Nestes termos e nos demais de direito que V.Exas como sempre doutamente suprirão, deve ser considerado procedente o presente recurso e, em consequência, deve revogar-se a decisão recorrida de 21 de Junho de 2017, com a referência Citius 28894932 por:

A) Com decisão anterior se ter esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à possibilidade de adjudicação do imóvel pelo valor proposto pelo exequente;

B) Existindo caso julgado formal de despacho anterior, dever ser aquele respeitado;

C) Violação do disposto no artigo 799.º, n.º 3, do CPC;

D) Subsidiariamente por nulidade;

E) Finalmente abuso de direito;

E determinando-se o prosseguimento da venda por negociação particular tal como oportuna e validamente determinado, assim se fazendo a costumada justiça.

A recorrida contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – Os presentes autos tiveram início por requerimento executivo apresentado a juízo no decurso do ano de 2004, ou seja, há cerca de treze anos, tendo sido penhorado o imóvel dado em garantia à Exequente, ora Recorrida, ou seja, a fracção autónoma designada pela letra "F" do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Beja com o n.º (…) e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo (…).

2 – Em 08/11/2011 foi decidido pelo senhor Agente de Execução que a fracção autónoma penhorada seria objecto de venda judicial mediante proposta em carta fechada, tendo sido fixado o valor base de € 113.000, ao qual correspondia o valor mínimo de € 79.100 (70% do valor base definido).

3 – Foram designadas como datas para a venda os dias 06/07/2015, 29/11/2016 e 14/02/2017, sendo que apenas nesta última data é que foi concretizada a venda, face às sucessivas tentativas dos executados de alcançarem acordos extrajudiciais com a exequente, ora recorrida, com vista a protelar no tempo a venda do mesmo.

4 – O valor mínimo de venda do imóvel penhorado nos presentes autos ascendia ao montante de € 96.050, correspondente a 85% do valor base fixado pelo senhor agente de execução no ano de 2011.

5 – Na data de venda designada – 14/02/2017 –, a exequente, ora recorrida, apresentou proposta de adjudicação do mencionado imóvel pelo montante de € 66.500 (sessenta e seis mil e quinhentos euros), valor ligeiramente superior a 85% do valor patrimonial do imóvel fixado no decurso do ano de 2015, conforme se constata da caderneta predial que ora se junta como Doc. n.º 1.

6 – A proposta apresentada teve como pressupostos o facto do valor mínimo fixado para a venda do imóvel ter ocorrido em 2011, sendo que a venda do mesmo se concretizou em Fevereiro de 2017, ou seja, decorridos cerca de seis anos, naturalmente que face à conjuntura do mercado e a desvalorização do mercado imobiliário, o valor mínimo de venda do imóvel penhorado há muito que se encontrava desfasado do tempo e da realidade.

7 – A venda do imóvel designada para o dia 14/02/2017 mostrou-se deserta atenta a inexistência de propostas de aquisição que cumprissem o valor mínimo fixado, não obstante a existência da proposta de adjudicação apresentada pela ora recorrida, pelo que foi ordenada a venda por negociação particular.

8 – Face ao lapso de tempo decorrido desde a fixação de valor de venda – 2011 – e a designação da venda do imóvel por negociação particular –  2017 – a exequente, ora recorrida, por requerimento apresentado a juízo em 06/03/2017, requereu a redução do valor mínimo de venda para o montante de € 66.500 e, consequentemente, a respectiva adjudicação do imóvel penhorado por aquele montante, valor este correspondente a um valor superior a 85% do actual valor patrimonial da fracção autónoma (€ 78.196,38), conforme se depreende da caderneta predial ora junta.

9 – O douto Tribunal a quo deferiu a pretensão da exequente, ora recorrida, ou seja, deferiu a redução do valor mínimo de venda e consequente adjudicação, à ora recorrida, pelo montante de € 66.500, tendo em consideração que (i) os presentes autos (iniciados em 2004) se encontram em fase de venda por negociação particular, (ii) a conjuntura do mercado imobiliário, (iii) a inexistência de qualquer outra proposta de aquisição da fracção autónoma penhorada e (iv) que o "processo ( ... ) não se pode eternizar pelo bloqueio do executado".

10 – O executado, ora recorrente, não se conformando com o mencionado despacho a quo proferido em 23106/2017, recorreu do mesmo invocando que este viola o disposto no n.º 1 do artigo 613.º, no n.º 1 do artigo 620.º, no n.º 3 do artigo 779.º e no n.º 1 do artigo 334.º, todos do C.P.C., improcedendo, contudo, in totum, a sua pretensão.

11 – Inexiste qualquer violação do disposto no n.º 1 dos artigos 613.º e 620.º do CPC, uma vez que não se mostra esgotado o poder jurisdicional nem tão pouco a existência de caso julgado formal, conforme pretende fazer crer o executado, ora recorrente, porquanto o douto despacho recorrido incidiu sobre requerimento distinto do apresentado pela recorrida em 06/02/2017 e numa fase processual daquela na qual já havia sido proferido despacho.

12 – Ou seja, o douto despacho recorrido incidiu sobre o requerimento de redução do valor mínimo de venda e consequente adjudicação apresentado a juízo em 06/03/2017 na fase de venda por negociação particular.

13 – O Recorrente pretende confundir o douto tribunal ao invocar que o poder jurisdicional já se mostrava esgotado e existia caso julgado formal quando, na realidade, o requerimento apresentado pela recorrida em 06/03/2017 – na fase de negociação particular – não havia sido objecto de qualquer decisão do Tribunal a quo.

14 – De igual forma, o douto despacho recorrido não se mostra ferido de qualquer nulidade prevista no n.º 3 do artigo 779.º do C.P.C.

15 – A venda de imóvel penhorado por negociação particular encontra-se prevista nos artigos 832.º e seguintes do C.P.C., sendo que as regras aplicáveis à venda por negociação particular são distintas das regras aplicáveis à venda mediante proposta em carta fechada, como sucede nos presentes autos.

16 – Se é certo que na venda mediante proposta em carta fechada é obrigatória a fixação de um valor mínimo de venda, também é certo que na venda por negociação particular tal imposição não existe.

17 – Na venda de imóvel penhorado por negociação particular deverá, naturalmente, ter-se em consideração um valor de venda do mesmo. No entanto e caso seja apresentada uma proposta por valor inferior, sempre a mesma poderá ser aceite por acordo das partes - o que não acontece nos presentes autos - ou por decisão do douto tribunal - conforme sucedeu nos presentes autos.

18 – Nesse sentido, veja-se o douto Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19/04/2016, e o douto Acordão do Tribunal da Relação do Porto de 20/0/2016.

19 – Face ao supra exposto, facilmente se afere não assistir qualquer razão ao recorrente, porquanto o douto despacho recorrido não tinha qualquer obrigatoriedade de alterar o valor base fixado em sede de venda por proposta em carta fechada.

20 – De igual modo, o douto despacho recorrido não se mostra ferido de qualquer nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C. porquanto fundamentou detalhadamente os motivos do deferimento de redução do valor de venda e consequente adjudicação do imóvel à recorrida, mais concretamente: (i) o facto dos presentes autos (iniciados em 2004) se encontrarem em fase de venda por negociação particular, (ii) a conjuntura do mercado imobiliário, (iii) a inexistência de qualquer outra proposta de aquisição da fracção autónoma penhorada e (iv) que o processo (...) não se pode eternizar pelo bloqueio do executado".

21 – O executado, ora recorrente, tem ainda a desfaçatez de vir alegar um hipotético abuso de direito da exequente, ora recorrente, nos termos do disposto no artigo 334.º do C.P.C., invocando que apresentou uma proposta de resolução extrajudicial à qual não obteve resposta da exequente, ora recorrida, pretendendo esta a aquisição de um imóvel por valor inferior ao valor de mercado do mesmo.

22 – O executado, ora recorrente, pretende, nada mais nada menos do que protelar no tempo o normal decorrer dos presentes autos, como tem feito sucessivamente sempre que é agendada data de venda do imóvel penhorado, bem sabendo que, pelo menos desde 2004, deixou de cumprir as obrigações emergentes do empréstimo hipotecário celebrado com a exequente, ora recorrida, ou seja, há mais de treze anos!

23 – O incumprimento das obrigações emergentes do contrato hipotecário celebrado com a exequente, ora recorrida, tem como manifesta consequência a venda do imóvel dado em garantia ao mesmo.

24 – O valor da adjudicação apresentado pela exequente, ora recorrida –  € 66.500 – é ligeiramente superior a 85% do valor patrimonial actual nos termos de avaliação efectuada há menos de seis anos, conforme estabelece a alínea a) do n.º 3 do artigo 812.º do C.P.C..

25 – Não obstante, tendo a proposta de adjudicação sido apresentada em sede de negociação particular, não existe qualquer obrigatoriedade de ser fixado um valor mínimo de venda, conforme supra exposto.

26 – Inexiste assim qualquer alegado abuso de direito da recorrida ao requerer a adjudicação do imóvel penhorado pelo montante de € 66.500.

27 – Motivo pelo qual, deverá ser considerado improcedente o presente recurso interposto pelo executado, ora recorrente, por falta de fundamento legal e, consequentemente, devendo manter-se o douto despacho recorrido.

Nestes termos, deve ser recusado provimento ao recurso apresentado pelo recorrente, mantendo-se o douto despacho do tribunal a quo, pois assim impõem o Direito e a Justiça!

O recurso foi admitido.

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o objecto deste último e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

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As questões a resolver são as seguintes:

1 – Nulidade do despacho recorrido;

2 – Violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional e do caso julgado formal;

3 – Admissibilidade da adjudicação pelo valor de € 66.500.

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1 – Nulidade do despacho recorrido:

O recorrente sustenta que o despacho recorrido padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, porquanto determinou uma redução do valor base da venda sem especificar para quanto, sendo certo que se trata de um elemento essencial da decisão uma vez que justificou o juízo de admissibilidade da proposta de adjudicação.

O referido artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC estabelece que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Resulta do artigo 613.º, n.º 3, do CPC que o regime das nulidades da sentença é aplicável aos despachos, com as necessárias adaptações.  

A nulidade em causa só se verifica “quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação”[1]. Ora, o despacho recorrido encontra-se fundamentado, quer de facto, quer de direito. É certo que, como o recorrente salienta, não especificou um novo valor base para a venda por negociação particular. Contudo, não o fez porque, em função daquilo que foi decidido, a fixação de tal valor não tinha cabimento. Com efeito, foi decidido adjudicar o imóvel à recorrida pelo valor de € 66.500, desistindo-se, logicamente, da venda por negociação particular. Mais concretamente, entendeu-se que, por se ter frustrado a venda através de propostas em carta fechada e, em sede de venda por negociação particular, não ter aparecido qualquer interessado, fosse pelo valor fixado, fosse por um valor inferior, se justificava a adjudicação do imóvel à recorrente pelo referido valor de € 66.500. Esta decisão, que foi a efectivamente tomada pelo tribunal recorrido, encontra-se fundamentada. Logo, não se verifica a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC.

A questão suscitada pelo recorrente conduz-nos, porém, a uma outra, ainda no campo das nulidades da decisão. O despacho recorrido padece de um vício de base, que é o de, em vez de tomar uma decisão sobre a requerida redução do valor base da venda do imóvel através de negociação particular, ter autorizado uma adjudicação que não foi requerida. Na realidade, aquilo que a recorrida requereu em 06.03.2017 não foi a adjudicação do imóvel, mas sim a redução do valor base da venda deste através de negociação particular, então já ordenada; e, para a hipótese de o tribunal recorrido decidir tal redução, apresentou uma “proposta em venda por negociação particular para aquisição do bem imóvel a vender à ordem dos presentes autos, pelo montante de € 66.500,00 (…)”. Daí, provavelmente, a convicção do recorrente de que a omissão, no despacho recorrido, de um novo valor base para a venda por negociação particular se traduzia na falta de um elemento essencial daquele despacho. Seria assim se o tribunal recorrido tivesse apreciado e decidido o que lhe foi requerido pela recorrida. Porém, o tribunal recorrido decidiu coisa diversa do que lhe foi requerido e, como acima referimos, em função dessa decisão, fê-lo de forma fundamentada. Sendo assim, o despacho recorrido padece das nulidades previstas, não na alínea b), mas nas alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC. Ao decidir adjudicar o imóvel à recorrida na sequência de lhe ter sido requerida a redução do valor base para a venda por negociação particular, o tribunal recorrido, por um lado, deixou de se pronunciar sobre uma questão que devia ter apreciado e, por outro, ultrapassou os limites dos seus poderes de cognição e decretou coisa diversa daquilo que lhe foi requerido.

O facto de a recorrida ter apresentado uma proposta de compra do imóvel para a eventualidade de o requerimento de redução do valor base ser deferido não invalida o que acabamos de afirmar. Tal proposta não constitui um requerimento de adjudicação, já que esta última tem um regime próprio, constante dos artigos 799.º a 802.º do CPC, que não se confunde com a apresentação de uma proposta em sede de venda por negociação particular. Mais, a recorrida dirigiu a proposta de compra do imóvel ao juiz, quando devia tê-lo feito ao encarregado da venda (artigo 833.º, n.º 1, do CPC), pelo que a mesma acaba por ser inócua, a menos que o tribunal recorrido passasse a actuar como intermediário entre a recorrida e o encarregado da venda, o que não faria sentido. Na sua parte útil, o requerimento apresentado pela recorrida em 06.03.2017 é, como se referiu, de redução do valor base da venda do imóvel através de negociação particular, tendo em vista facilitar a mesma venda, matéria essa da competência do juiz. Não estamos perante um requerimento de adjudicação do imóvel, repetimos.

Refira-se, por último, que o despacho recorrido é nulo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, também por não ter apreciado a questão do alegado abuso de direito por parte da recorrida. Tendo essa questão sido suscitada pelo recorrente ao pronunciar-se sobre o requerimento apresentado pela recorrida em 06.03.2017, não podia o tribunal recorrido deixar de se pronunciar sobre a mesma ao tomar uma decisão sobre o mesmo requerimento.

Conclui-se, assim, que o despacho recorrido é nulo nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alíneas d) e e), do CPC.

2 – Violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional e do caso julgado formal:

O recorrente sustenta que o despacho recorrido, ao autorizar uma adjudicação que fora anteriormente indeferida, violou o disposto no n.º 1 do artigo 613.º do CPC, de acordo com o qual (devidamente adaptado nos termos do n.º 3 do mesmo artigo), uma vez proferido um despacho, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria sobre a qual o mesmo recaiu. Nas suas alegações, a recorrida opõe, a este argumento, o de que não se mostra esgotado o poder jurisdicional, nem existe caso julgado formal, porquanto o despacho recorrido incidiu sobre requerimento distinto do de 06.02.2017 e numa fase processual diversa.

Os factos relevantes para a análise desta questão são os seguintes:

- Em 06.02.2017, a recorrida requereu ao agente de execução que, pelo valor de € 66.500, lhe fosse adjudicado o imóvel penhorado, então em venda através de propostas em carta fechada;

- Na diligência destinada à sua abertura, realizada em 14.02.2017, verificou-se a inexistência de propostas; o referido requerimento de adjudicação não foi, então, considerado porque o valor oferecido era inferior ao mínimo resultante dos artigos 799.º, n.º 3, e 816.º, n.º 2, do CPC;

- Na mesma diligência, o tribunal recorrido proferiu o seguinte despacho (manuscrito em letra dificilmente legível, prática esta incompreensível tendo em conta as ferramentas informáticas actualmente ao dispor dos tribunais):

“Sem propostas.

Segue para negociação particular.

Nomeado encarregado da venda o A. E., salvo oposição.”

- Em 06.03.2017, a recorrida requereu a redução do valor base da venda do imóvel através de negociação particular e, para a hipótese de o tribunal recorrido decidir tal redução, apresentou uma proposta de aquisição pelo preço de € 66.500;

- Após o recorrente se ter pronunciado, foi proferido, em 21.06.2017, o despacho recorrido, autorizando a adjudicação do imóvel à recorrida pelo valor de € 66.500.

O despacho proferido em 14.02.2017 não menciona o requerimento de adjudicação de 06.02.2017. Este requerimento é mencionado no auto de abertura de propostas em carta fechada nos seguintes termos (e também em letra dificilmente legível): “Existe pedido de adjudicação, não considerado por os valores não atingirem o mínimo”.

Apesar de não se ter pronunciado expressamente sobre o requerimento de adjudicação, o despacho proferido em 14.02.2017, ao ordenar a venda por negociação particular, indeferiu-o implicitamente. Isto porque a decisão de proceder à venda por negociação particular teve como pressuposto a inexistência de propostas e o indeferimento do requerimento de adjudicação. Não tendo sido interposto recurso desse despacho, o mesmo transitou em julgado nesses termos, formando-se, assim, caso julgado formal implícito no que concerne ao indeferimento do referido requerimento de adjudicação. As figuras da decisão ou julgamento implícito e do caso julgado implícito são pacificamente aceites pela nossa jurisprudência, podendo citar-se, a propósito, os seguintes acórdãos: do Supremo Tribunal de Justiça de 03.04.1991 (proc. 080492; relator: RICARDO DA VELHA), 12.09.2007 (proc. 07S923; relator: SOUSA PEIXOTO) e 14.05.2014 (proc. 120/13.1TTGRD-A.C1S1; relator: MÁRIO BELO MORGADO); da Relação de Lisboa de 13.11.2014 (proc. 1152/11.0YXLSB.L1-6; relator: VÍTOR AMARAL); e da Relação de Coimbra de 12.01.2016 (proc. 37/09.4TBSRT-D.C2; relator: FALCÃO DE MAGALHÃES).

Com o indeferimento do requerimento de adjudicação de 06.02.2017, esgotou-se o poder jurisdicional do tribunal recorrido sobre essa matéria, nos termos do artigo 613.º do CPC. Não tendo sido interposto recurso do mesmo despacho, este último, como vimos acima, adquiriu força de caso julgado formal, nos termos do artigo 620.º, n.º 1, do CPC.

Em consequência do referido esgotamento do seu poder jurisdicional sobre a matéria em questão, estava vedado, ao tribunal recorrido, proferir nova decisão sobre a mesma. Sendo essa nova decisão proferida após o trânsito em julgado do despacho de 14.02.2017, ofenderia o caso julgado formal decorrente desse trânsito.

Não obstante o esgotamento do seu poder jurisdicional e o trânsito em julgado do seu despacho de 14.02.2017, o tribunal recorrido proferiu, em 21.06.2017, o despacho recorrido, em sentido diametralmente oposto ao anterior, pois autorizou uma adjudicação em termos em tudo idênticos àqueles que anteriormente tinha julgado inadmissíveis. Mais, o despacho recorrido é contraditório, não só com o anterior indeferimento implícito do requerimento de adjudicação, mas também com a decisão que expressamente consta do despacho de 14.02.2017, pois, sem sequer abrir a porta à venda por preço inferior ao anteriormente fixado como mínimo, através do deferimento daquilo que a recorrida efectivamente requereu, desistiu da venda por negociação particular e autorizou a adjudicação. Sendo assim, impõe-se a conclusão de que o despacho recorrido violou o princípio do esgotamento do poder jurisdicional consagrado no artigo 613.º do CPC e ofendeu o caso julgado formal decorrente do trânsito em julgado do seu despacho anterior, nos termos do artigo 620.º, n.º 1, do mesmo código.

Resta esclarecer que o argumento da recorrida segundo o qual não se encontrava esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, nem existia caso julgado formal, porquanto o despacho recorrido incidiu sobre requerimento distinto do de 06.02.2017 e numa fase processual diversa, não faz sentido. A reiteração, pela parte, de uma pretensão já decidida através de despacho transitado em julgado não reabre a discussão nem permite a prolação de nova decisão sobre a mesma. É o que decorre dos citados artigos 613.º e 620.º, n.º 1, do CPC.

3 – Admissibilidade da adjudicação pelo valor de € 66.500:

Não obstante já resultar da exposição anterior que o despacho recorrido tem de ser revogado, não deixaremos de analisar, ainda que muito brevemente, a questão da admissibilidade da adjudicação do imóvel à recorrida pelo valor de € 66.500, suscitada pelo recorrente.

Decorre do artigo 799.º, n.º 3, do CPC, que o exequente que pretenda que lhe sejam adjudicados bens penhorados para pagamento, total ou parcial, do seu crédito, deve indicar o preço que oferece, não podendo, em caso algum, a oferta ser inferior ao valor a que alude o n.º 2 do artigo 816.º. Este último preceito estabelece, por seu turno, que o valor a anunciar para a venda é igual a 85% do valor base dos bens.

Resulta dos autos que o valor base do imóvel penhorado é de € 113.000, pelo que o valor a anunciar para a venda – e, logo, o valor mínimo da adjudicação – era de € 96.050, superior ao de € 66.500 oferecido pela recorrida. Consequentemente, também por esta razão, o despacho recorrido violou a lei ao adjudicar o imóvel penhorado à recorrida pelo valor de € 66.500.

Em conclusão:

Por padecer das nulidades previstas no artigo 615.º, n.º 1, alíneas d) e e), do CPC e por violar o princípio do esgotamento do poder jurisdicional (artigo 613.º, n.º 1, do CPC), o caso julgado formal decorrente da prolação do despacho de 14.02.2017 (artigo 620.º, n.º 1, do CPC) e o disposto no artigo 799.º, n.º 3, do CPC, o despacho recorrido deverá ser revogado. Em sua substituição, deverá o tribunal recorrido proferir despacho sobre o requerimento de redução do valor base da venda, analisando todas as questões suscitadas, quer pelo recorrente, quer pela recorrida, após o que os autos deverão prosseguir com vista à venda do imóvel por negociação particular.

*

Decisão:

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, revogando o despacho recorrido e ordenando que o tribunal recorrido profira despacho sobre o requerimento de redução do valor base da venda, analisando todas as questões suscitadas, quer pelo recorrente, quer pela recorrida, após o que os autos deverão prosseguir com vista à venda do imóvel por negociação particular.

Custas pela recorrida.

Notifique.                                   

*

Évora, 26 de Abril de 2018

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.ª adjunta

2.º adjunto



[1] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4.ª edição, p. 380.

terça-feira, 1 de maio de 2018

Acórdão da Relação de Évora de 12.04.2018

Processo n.º 1749/07.2TBEVR.E1

*

Sumário:

1 – Resulta dos artigos 266.º, n.º 6, e 286.º, n.º 2, do CPC que, em regra, a reconvenção é autónoma relativamente à acção.

2 – O pedido reconvencional é dependente do pedido formulado pelo autor quando só deva ser conhecido na hipótese de este último ser julgado procedente.

*

QPS, Lda. propôs a presente acção declarativa, com processo comum ordinário, contra AS – Construções, Lda., formulando os seguintes pedidos:

- Declarar-se que a ré incumpriu, de forma reiterada e grave, o contrato de empreitada autuado sob doc. n.º 1 da petição inicial;

- Declarar-se que a autora procedeu à correcta aplicação das multas previstas no n.º 3 da cláusula 3.ª do contrato de empreitada;

- Declarar-se que a autora resolveu o contrato de empreitada com fundamento na previsão constante da sua cláusula 11.ª e com justa causa, o que constitui a ré na obrigação de a indemnizar;

- Ser a ré condenada a pagar à autora (ainda que no acerto final de contas) o montante de € 66.908,20, correspondente às multas contratuais aplicadas;

- Condenar-se a ré a pagar à autora o montante correspondente ao custo da reparação das deficiências apresentadas pela obra e das que, embora não aparentes, venham a ser detectadas no decurso do processo, custo esse que se liquida, provisoriamente, em € 82.241,24, acrescidos de IVA;

- Ser a ré condenada a entregar à autora a medição discriminada justificada de todos os trabalhos por ela facturados e pagos;

- Ser a ré condenada a entregar à autora a justificação discriminada e com decomposição dos “trabalhos a mais”, com medições e indicação dos valores realizados;

- Ser a ré condenada a pagar à autora o montante correspondente aos trabalhos que não realizou cabalmente, embora os tenha facturado;

- Ser a ré condenada a pagar à autora o montante correspondente aos materiais que lhe debitou, mas que já se encontravam em obra;

- Ser a ré condenada a pagar à autora uma indemnização correspondente ao montante dos subsídios a fundo perdido que esta deixará de receber do IFT, por não ter a obra tempestivamente concluída, por forma a permitir o equipamento e a abertura do estabelecimento hoteleiro, valor esse a liquidar ulteriormente, maxime em execução de sentença;

- Ser a ré condenada a indemnizar a autora pelo montante correspondente aos encargos que esta tiver de suportar em razão de não poder receber os serviços de empreiteiros em regime de ajuste directo, outros serviços, bens e equipamentos que dependem da conclusão da empreitada geral;

- Ser a ré condenada a pagar à autora uma indemnização no montante correspondente ao por esta despendido com a RD com a fiscalização da obra em momento ulterior ao da data contratualmente prevista para a sua conclusão, no valor de € 2.750;

- Ser a ré condenada a indemnizar a autora pelo montante por esta despendido com os honorários do arquitecto JB após o termo do prazo contratualmente ajustado para a conclusão da obra, no total de € 620;

- Ser a ré condenada a indemnizar a autora pelo montante correspondente àquele por ela despendido no pagamento de serviços de entidade contratada para acompanhar a recepção provisória da obra sucessivamente adiada e no acto da posse da obra – a MACE – no total de € 3.852, acrescidos de IVA;

- Ser a ré condenada a pagar à autora, a título de lucros cessantes, o montante de € 89.313.

A ré contestou, pugnando pela improcedência da acção e deduzindo reconvenção nos seguintes termos:

- Ser considerado provado o pedido reconvencional da ré e, em consequência, ser a autora condenada a pagar à ré a quantia de € 118.648,87, acrescida dos juros comerciais vencidos e vincendos até integral pagamento, a apurar em liquidação de sentença;

- Ser considerado provado o pedido reconvencional da ré e, em consequência, ser a autora condenada a devolver à ré a quantia de € 36.738,26€, mais € 18,15, ou seja, € 36.756,41, acrescida dos juros compensatórios que se mostrarem devidos em liquidação de sentença;

- Ser a autora condenada no pagamento dos custos com a maior onerosidade sofrida pela ré, no montante de € 13.950;

- Ser a autora condenada no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais não inferior a € 100.000.

A autora replicou, concluindo nos seguintes termos:

- Devem ser julgadas improcedentes, por não provadas, as excepções de não cumprimento e de exercício abusivo do direito;

- A reconvenção deve ser julgada parcialmente procedente, na medida do montante que corresponder aos trabalhos efectivamente executados pela ré-reconvinte, a apurar após a produção de prova e depois de deduzidos os trabalhos pagos pela autora-reconvinda e que não foram levados a efeito pela demandada;

- Deve ser abatido ao montante reclamado pela autora-reconvinda da ré-reconvinte aquele por ela recebido mediante a execução da garantia bancária (€ 36.738,26);

- Deve ser julgado improcedente, por não provado, o pedido de condenação da autora-reconvinda no pagamento à ré-reconvinte de € 13.950 de alegados custos com o protelamento dos trabalhos;

- Deve igualmente ser julgado improcedente, também por não provado, o pedido de condenação da autora-reconvinda no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais alegadamente sofridos pela ré-reconvinte;

- A ré-reconvinte deverá ser condenada como litigante de má-fé na adequada multa e em indemnização a favor da autora-reconvinda, a fixar de acordo com o arbítrio do tribunal.

Na sequência da junção aos autos de certidão da sentença que declarou a insolvência da ré, foi proferida decisão com o seguinte teor, resultante da rectificação de fls. 2657-2658:

“Compulsados os autos verifico que, por sentença, datada de 18-11-2016, transitada em julgado em 09-12-2016, a ré AS – Construções, Lda., foi declarada insolvente no âmbito do processo 1845/15.2T8EVR (fls. 2595 a 2601).

Na presente acção, a autora peticiona um crédito que alega ter sobre a ré, fundado no incumprimento de contrato de empreitada.

O crédito em causa poderia e deveria ter sido reclamado no processo de insolvência “supra” identificado, pois só nesse processo se estaria em condições de tratar de forma igual todos os credores, uma vez que o alcance teleológico do processo de insolvência é “exactamente o da salvaguarda da igualdade de tratamento de todos os credores perante a insuficiência da massa insolvente e a repartição do seu produto”.

Assim se decidiu no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2014, proferido pelo STJ e publicado no D.R. 1ª Série em 25 de Fevereiro de 2014.

Na senda do referido Acórdão, considera-se que, transitada que está a sentença que declarou insolvente o réu, esta acção, porque tem como fim a obtenção do reconhecimento do crédito peticionado, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil.

A instância reconvencional, porque dependente e conexionada com os pedidos formulados pela autora, não tem qualquer autonomia, pelo que, também deve ser declarada extinta (aplicando por analogia com o disposto no artº 286, nº 2 do CPC).

Pelo exposto e ainda, na senda do referido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, decreto a extinção da instância principal e reconvencional por inutilidade superveniente da lide, cfr. artº 277, al. e) do CPC.

Notifique e registe.”

A ré/reconvinte recorreu dessa decisão, formulando as seguintes conclusões:

1. A sentença sob recurso julgou extinta a presente instância por inutilidade superveniente da lide, com base na declaração da insolvência da Recorrente (em 18/11/2016), transitada em 9/12/2016.

2. O Tribunal a quo invocou para o efeito o disposto no artigo 287º, al. e) do CPC.

3. Contudo o artigo 287º do CPC tem por epígrafe a “desistência, confissão ou transação das pessoas coletivas, sociedades, incapazes ou ausentes”.

4. A declaração da insolvência da Recorrente não é uma situação de desistência.

5. O Tribunal a quo declarou a extinção da instância citando uma norma errada (identificada num Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido com base num Código de Processo Civil actualmente revogado).

6. O Tribunal a quo terá pretendido aludir ao disposto na al. e) do artigo 277º do CPC.

7. Contudo, a uniformização de jurisprudência citada na sentença sob recurso consagra o seguinte entendimento: transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide…

8. Mas nos presentes autos não é só a Recorrida que se arroga detentora de um crédito, mas também a Recorrente.

9. É certo que a Recorrida pode (e deve) reclamar o seu crédito (perante a Recorrente) nos autos de insolvência.

10. Mas a Recorrente (enquanto Ré) apresentou um pedido reconvencional, contra a Recorrida (Autora) e esse contra pedido não é reconhecível no processo de insolvência, mas sim – apenas e só – nos presentes autos.

11. Inexiste assim qualquer inutilidade superveniente da lide.

12. Na sentença proferida o Tribunal a quo não se pronunciou sobre essa questão que devia, obrigatoriamente, apreciar (existência de um pedido reconvencional, impassível de ser apreciado no processo de insolvência da Recorrente).

13. Sendo a sentença sob recurso (nessa parte e medida) nula. Cfr. artigo 615º, n.º 1, al. d) do CPC.

14. Importa apreciar e ver decidido o pedido reconvencional apresentado nos autos pela Recorrente, desde logo porque tal é uma das premissas do plano de insolvência apresentado.

Termos em que se deverá julgar procedente o presente recurso, reconhecendo-se a nulidade da decisão proferida pelo Tribunal a quo, revogando-se a extinção da lide e ordenando-se o prosseguimento dos autos, desde logo por se estar perante um processo com pedido reconvencional, sendo o mesmo uma das premissas do plano de insolvência apresentado, assim se fazendo Justiça.

A autora/reconvinda não contra-alegou.                                                     

O recurso foi admitido.

*

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o objecto deste último e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

Posteriormente à interposição do recurso, a decisão recorrida foi rectificada. A referência ao artigo 287.º, al. e), do CPC foi substituída pela referência ao artigo 277.º, al. e), do mesmo código, pelo que a questão suscitada nas conclusões 1 a 5 está ultrapassada. Após a mesma rectificação, a decisão recorrida passou a fazer referência ao pedido reconvencional, pelo que também a questão suscitada nas conclusões 12 e 13 se encontra ultrapassada.

Por outro lado, a decisão recorrida não foi impugnada na parte em que julgou extinta a acção por inutilidade superveniente da lide.

Assim, a única questão a resolver consiste em saber se a inutilidade superveniente da acção, decorrente da declaração de insolvência da ré/reconvinte, determina a da reconvenção.

O tribunal recorrido entendeu que “A instância reconvencional, porque dependente e conexionada com os pedidos formulados pela autora, não tem qualquer autonomia, pelo que, também deve ser declarada extinta (aplicando por analogia com o disposto no artº 286, nº 2 do CPC).” Com esta fundamentação, o tribunal recorrido julgou extinta a instância reconvencional por inutilidade superveniente da lide.

Verifica-se, nesta parca fundamentação, alguma confusão de conceitos. A reconvenção, para ser admissível, tem de estar substantivamente conexionada com a acção, nos termos estabelecidos pelo artigo 266.º, n.º 2, do CPC. Não obstante, é, em regra, autónoma relativamente à acção, como decorre dos artigos 266.º, n.º 6, e 286.º, n.º 2, do CPC[1]. De acordo com o n.º 6 do artigo 266.º, a improcedência da acção e a absolvição do réu da instância não obstam à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido, salvo quando este seja dependente do formulado pelo autor. O n.º 2 do artigo 286.º estabelece, por seu turno, que a desistência do pedido é livre, mas não prejudica a reconvenção, a não ser que o pedido reconvencional seja dependente do formulado pelo autor.

Portanto, no caso dos autos, a conexão da reconvenção com a acção é ponto assente, mas irrelevante para a resolução da questão que nos ocupa. Importa, sim, saber se a reconvenção se pode considerar dependente da acção, para o efeito previsto no n.º 6 do artigo 266.º do CPC.

O tribunal recorrido considerou que essa dependência se verifica, embora sem explicar porquê. Limitou-se a afirmar que a instância reconvencional, porque dependente, não tem autonomia, o que é tautológico.

Um pedido reconvencional é dependente de um pedido formulado pelo autor se se destinar a ser conhecido apenas na hipótese de este último ser julgado procedente[2]. Tal dependência verifica-se, por exemplo, quando o autor reivindica uma coisa e o réu, em reconvenção, pede a condenação daquele, na hipótese de procedência da acção, a pagar-lhe o valor de benfeitorias que realizou na mesma coisa. É evidente que, se improceder a pretensão reivindicatória ou se o réu/reconvinte for absolvido da instância, o conhecimento do pedido reconvencional não terá lugar. Se a instância principal for julgada extinta por inutilidade superveniente da lide, o mesmo terá de acontecer à instância reconvencional.

No caso dos autos, tal dependência da reconvenção relativamente à acção não se verifica. Mais concretamente, como resulta da leitura dos artigos 222.º a 242.º e da parte conclusiva da contestação, nenhum dos pedidos reconvencionais se encontra dependente da procedência de qualquer dos pedidos do autor, sendo certo que bastaria que um dos primeiros não fosse dependente para que a instância reconvencional tivesse de prosseguir. Cada uma das partes imputou à outra o incumprimento do contrato de empreitada entre elas celebrado e, com esse fundamento, formulou pretensões autónomas. Consequentemente, nos termos do n.º 6 do artigo 266.º do CPC, a inutilidade superveniente da acção, resultante da declaração de insolvência da recorrente, não obsta à apreciação da reconvenção. Solução diversa não faria, aliás, qualquer sentido, pois apenas geraria, sem justificação, a necessidade de a ré propor uma nova acção, contra a autora, com conteúdo idêntico ao da reconvenção deduzida nestes autos. O tribunal recorrido decidiu, pois, erradamente ao julgar extinta a instância reconvencional como consequência da inutilidade superveniente da acção, pelo que o recurso deverá ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida na parte impugnada.

*

Decisão:

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, revogando a decisão recorrida na parte em que julgou a instância reconvencional extinta por inutilidade superveniente da lide e ordenando o prosseguimento dos autos para conhecimento da reconvenção.

Custas a cargo da recorrida.

Notifique.

*

Évora, 12 de Abril de 2018

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.ª adjunta

2.º adjunto



[1] Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA e RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, Coimbra Editora, 1999, p. 491, anotação 5 ao artigo 274.º do anterior CPC.

[2] Cfr. JORGE AUGUSTO PAIS DE AMARAL, Direito Processual Civil, 13.ª edição, p. 252.

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