sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Acórdão da Relação de Évora de 23.11.2023

Processo n.º 1610/21.8T8EVR-A.E1

Recorrente: GVN, LDA.

Recorrida: ARJ, S.A.

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Sumário:

1 – A rectificação de um acórdão pressupõe que este omita os nomes das partes, seja omisso quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contenha erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto.

2 – Apesar de os critérios indemnizatórios especiais estabelecidos no artigo 1045.º do Código Civil terem como ponto de referência o valor da renda ou do aluguer, não decorre daquele preceito legal que, até à restituição da coisa arrendada, a pessoa obrigada a efectuá-la pague rendas ao credor da entrega. O direito deste último é a uma indemnização, não ao pagamento de rendas.

3 – Pela razão referida em 2 e porque a responsabilidade civil estabelecida no artigo 1045.º do Código Civil tem natureza contratual, o prazo de prescrição do direito a indemnização é de 20 anos, nos termos do artigo 309.º do Código Civil.

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Ao abrigo do disposto nos artigos 614.º e 666.º, n.º 1, do CPC, a recorrente requereu a rectificação do acórdão proferido por esta Relação em 28.09.2023, que julgou o recurso improcedente, nos seguintes termos:

“1. A Recorrente interpôs recurso do tribunal de primeira instância que julgou não aplicável o prazo de prescrição de 3 anos regulado no artigo 498.º, por entender estarmos diante de uma situação em que, a existir responsabilidade da Ré, «esta emerge da relação contratual que manteve [a Ré] com a autora até 25 de dezembro de 2018, devendo ter aplicação o disposto no artigo 1045.º do Código Civil».

2. Com efeito, decide assim o tribunal de primeira instância:

«Uma vez que estamos em face de uma indemnização prevista no artigo 1045.º do Código Civil, pelo atraso na restituição da coisa, não estamos perante um caso de responsabilidade extracontratual, mas sim de natureza contratual e, consequentemente, não lhe é aplicável o prazo de prescrição de 3 anos a que alude o artigo 498.º do Código Civil».

3. Não conformada, a Ré Recorrente apelou do referido despacho ao douto Tribunal da Relação de Évora, onde expôs as razões pelas quais julgava que o pedido da Autora se encontra irremediavelmente prescrito. O que fez à luz do artigo 498.º do Código Civil, enquadrando a questão no âmbito da responsabilidade extracontratual.

4. Porém, entendeu este douto tribunal, em acórdão (ora objecto do presente requerimento de retificação), que «porque originária num contrato, a obrigação de indemnizar, a provar-se, tem um prazo prescricional de 5 anos e não de 3 anos como alega a recorrente (artº 310º/b) CC)», julgando a apelação improcedente e mantendo o despacho recorrido.

Pelo que,

5. Este acórdão, ao confirmar o referido despacho do tribunal a quo veio resolver definitivamente, sem hipótese de recurso (à luz da dupla conforme) o enquadramento da eventual responsabilidade civil da Ré, discutida nestes autos, no âmbito do esquema e quadro jurídico da responsabilidade contratual.

Sem prejuízo,

6. Se é verdade que a Ré Recorrente se encontra vencida em relação à alegada verificação do prazo prescricional do artigo 498.º do Código Civil, certo é que a motivação oferecida com o Acórdão abre a porta ao conhecimento da prescrição (parcial) do pedido da Recorrida.

7. Por outras palavras: pese embora o conteúdo decisório do douto Acórdão seja o de julgar a apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida, na sua motivação é possível encontrar argumentos e raciocínio jurídico que apontam para um prazo prescricional de 5 anos (em vez dos 3 anos alegados pela Recorrente) – o que, per se, permitirá ao tribunal a quo julgar verificada a prescrição do pedido da Autora, ainda que parcialmente.

8. É que a aplicação do prazo prescricional de 5 anos, nos termos do supracitado artigo 310.º, alínea b) do Código Civil, conduz à verificação da prescrição de uma parte substancial do pedido da Recorrida.

9. Na medida em que, peticionando a Recorrida nos presentes autos uma indemnização nos termos do 1045.º do Código Civil referente a um contrato com início em 26/11/2011 e fim em 25/12/2018 e tendo movido a respectiva acção judicial a 22 de Setembro de 2021 (com citação a 30/09/2021), é forçoso constatar a prescrição parcial do pedido da Recorrida.

10. De tal modo que, apenas o período compreendido entre 30/09/2016 e 25/12/2018 (26 meses) não se encontra prescrito ao abrigo do artigo 310.º, alínea b) do Código Civil.

Ora,

11. É indiscutível, com a certeza cristalizada no artigo 303.º do Código Civil, que o tribunal não pode suprir, ex officio, a prescrição. Esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, por aquele a quem aproveita.

12. No entanto, não é menos certo que a Recorrente vem alegando a prescrição do pedido da Recorrida desde o momento em que foi chamada a contestar a acção que esta lhe movera, ainda que até agora com uma qualificação jurídica distinta do douto Acórdão.

Assim,

Porque omitido e necessariamente decorrente da motivação e racionalidade jurídica apresentada por este douto tribunal no Acórdão ora objecto de pedido de ratificação, vem a Recorrente pedir a retificação do Acórdão no sentido de, para além da confirmação da decisão do tribunal de primeira instância, incluir no conteúdo decisório do Acórdão a estatuição de que o prazo prescricional do pedido de indemnização do artigo 1045.º do Código Civil é de 5 anos (cfr. art. 310.º/b) CC) e não de 3 anos conforme alega a Recorrente.”

A recorrida respondeu, pugnando pelo indeferimento do pedido de rectificação.

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A recorrente pretende, em síntese, que passe a constar do dispositivo do acórdão que julgou o recurso improcedente, além da confirmação da decisão recorrida, “a estatuição de que o prazo prescricional do pedido de indemnização do artigo 1045.º do Código Civil é de 5 anos (cfr. art. 310.º/b) CC) e não de 3 anos conforme alega a Recorrente.” A finalidade deste aditamento seria abrir a porta ao conhecimento da prescrição parcial do pedido da recorrida pelo tribunal a quo.

Esta pretensão vai muito além de uma mera rectificação do acórdão e é, a todos os títulos, manifestamente infundada.

O artigo 614.º, n.º 1, do CPC, estabelece que, se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.

O artigo 666.º do CPC estabelece, na parte que nos interessa, que é aplicável à 2.ª instância o que se acha disposto nos artigos 613.º a 617.º (n.º 1) e que a rectificação do acórdão é decidida em conferência (n.º 2).

Resulta destas normas que a rectificação do acórdão que julgou o recurso improcedente pressupõe a verificação de uma das seguintes hipóteses:

1 – O acórdão omitir o nome das partes;

2 – O acórdão ser omisso quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º;

3 – O acórdão conter erros de escrita ou de cálculo;

4 – O acórdão conter quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto.

Nenhuma destas hipóteses se verifica no acórdão cuja rectificação se pretende e não é com fundamento em qualquer delas que a recorrente requer aquela rectificação. O colectivo concluiu pela improcedência do recurso e foi essa a decisão que consignou no dispositivo do acórdão. Não houve qualquer erro de escrita ou de cálculo, nem alguma inexactidão devida a outra omissão ou lapso manifesto. Da leitura do acórdão não resulta qualquer divergência entre o que foi decidido e o que foi escrito, que careça de rectificação.

Aquilo que a recorrente pretende nada tem a ver com uma rectificação do acórdão. Numa primeira abordagem, pareceria que a recorrente pretende uma alteração da decisão, a qual, de improcedência do recurso, passaria a ser de parcial procedência do recurso. Porém, na realidade, aquilo que a recorrente pretende é que, mantendo-se a decisão de improcedência do recurso, passe a constar do dispositivo do acórdão um trecho da fundamentação deste que, no seu entendimento, determina a parcial prescrição do direito invocado pela recorrida. Para quê? Para permitir, à recorrente, voltar a suscitar a questão da prescrição no tribunal a quo, tendo como referência o prazo que, naquele trecho, se diz ser aplicável.

A mera constatação de que estamos fora do âmbito de aplicação do artigo 614.º, n.º 1, do CPC, é suficiente para determinar o indeferimento do requerimento de rectificação do acórdão. Não obstante, diremos ainda o que se segue.

Ainda que tivesse sido requerida a alteração do dispositivo, no sentido de transformar a decisão de improcedência numa decisão de parcial procedência do recurso, a pretensão da recorrente não poderia proceder.

Não porque a lei vede a rectificação do dispositivo da sentença ou do acórdão. Se o lapso tiver ocorrido no dispositivo, este poderá ser rectificado, como qualquer outra parte da sentença ou do acórdão. Porém, para que isso seja possível, terá de se concluir, com base na fundamentação, noutros segmentos do dispositivo (como o respeitante à responsabilidade pelas custas) e/ou noutras peças processuais, que, na redacção do dispositivo, o juiz cometeu um lapso material, escrevendo, por exemplo, a palavra “procedente” quando tudo indica que queria escrever a palavra “improcedente”. Numa hipótese desta natureza, é “lícito ao juiz ajustar, mediante rectificação, a vontade declarada à vontade real.”[1] Note-se que esta hipótese não se confunde com a nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC (oposição entre os fundamentos e a decisão), que pressupõe a existência de um vício lógico e não de um mero erro de escrita[2].

A pretensão da recorrente não poderia proceder porque nada no acórdão permite concluir que o colectivo pretendesse decidir coisa diversa da improcedência do recurso. Toda a fundamentação do acórdão antecipa esse desfecho. No dispositivo, o relator escreveu aquilo que pretendia. Logo, a alteração do dispositivo no sentido de julgar o recurso parcialmente procedente constituiria, não uma rectificação de um lapso de escrita, mas sim uma alteração do julgado. Tal alteração pressuporia uma reapreciação do aspecto jurídico da causa, que o artigo 614.º, n.º 1, do CPC, não legitima.

Todavia, não é a transformação da decisão de improcedência numa decisão de parcial procedência do recurso que a recorrente pretende, mas sim a manutenção da decisão de improcedência com o aditamento de que o prazo de prescrição do direito invocado pela recorrida é de 5 anos, nos termos do artigo 310.º, al. b), do Código Civil, e não de 3 anos. Isto apesar de a recorrente entender que, sendo o prazo de prescrição de 5 anos, parte do direito invocado pela recorrida estaria prescrito.

Esta pretensão é absurda, pois, se fosse atendida e o entendimento da recorrente sobre o efeito de um prazo de prescrição de 5 anos sobre o direito invocado pela recorrida fosse correcto, o dispositivo do acórdão tornar-se-ia contraditório. Estar-se-ia a decidir, em simultâneo, que o recurso improcede e que o direito invocado pela recorrida se encontra parcialmente prescrito. Ou seja, que o recurso improcede apesar de dever ser julgado parcialmente procedente. É óbvio que isto não é possível. A ser admissível uma reapreciação da questão da prescrição e acolhendo-se a tese da recorrente sobre o efeito de um prazo de prescrição de 5 anos sobre o direito invocado pela recorrida, a decisão de improcedência teria de se transformar numa decisão de parcial procedência.

A finalidade indicada pela recorrente para a alteração que pretende está na linha da pretensão que acabámos de analisar. Essa finalidade seria abrir a porta ao conhecimento da prescrição parcial do direito invocado pela recorrida por parte do tribunal a quo. Ou seja, o tribunal ad quem consignaria, no dispositivo do acórdão, que o recurso improcedia e que o prazo de prescrição era de 5 anos; em seguida, a recorrente suscitaria novamente a questão da prescrição no tribunal a quo, tendo em vista que este declarasse o direito invocado pela recorrida parcialmente prescrito. É evidente a impossibilidade legal de isto acontecer. A questão da prescrição ficou definitivamente decidida no acórdão que julgou o recurso improcedente, nada mais podendo ser decidido sobre essa matéria.

Importa notar, por outro lado, que a recorrida pretende que a recorrente a indemnize por danos que alega ter sofrido, não que lhe pague rendas em atraso. O artigo 1045.º do Código Civil prevê a indemnização pelo atraso na restituição da coisa locada e estabelece critérios indemnizatórios especiais. Apesar de tais critérios terem como ponto de referência o valor da renda ou do aluguer, não decorre daquele preceito legal que, até à restituição da coisa arrendada, a pessoa obrigada a efectuá-la pague rendas ao credor da entrega. O direito deste último é a uma indemnização, não ao pagamento de rendas.

Daqui resultam dois corolários.

O primeiro é o de que o direito invocado pela recorrida é unitário. Consequentemente, a contagem do prazo de prescrição só se iniciou no momento em que cessou a produção do dano na esfera jurídica da recorrida que gerou esse direito. Daí que, ainda que o prazo de prescrição fosse de 5 anos, não se encontrasse expirado à data da citação da recorrida.

O segundo é o de que, a corrigir-se o acórdão que julgou o recurso improcedente, seria na parte em que nele se afirma que o prazo de prescrição do direito invocado pela recorrida é de 5 anos. O prazo de prescrição é de 20 anos, nos termos do artigo 309.º do Código Civil, e não de 5 anos. É a fundamentação do acórdão que contém um erro de direito, que não se repercutiu no acerto da decisão. Esta última está correcta.

Concluímos, assim, que o pedido de rectificação do acórdão que decidiu o recurso é manifestamente improcedente, devendo ser indeferido.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, indeferir o pedido de rectificação do acórdão que julgou o recurso improcedente.

Custas do incidente a cargo da recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça (Regulamento das Custas Processuais, artigo 7.º, n.º 4).

Notifique.

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Évora, 23.11.2023

Vítor Sequinho dos Santos

(relator, na sequência da redistribuição do processo decorrente da jubilação do relator do acórdão que julgou o recurso improcedente)

1.ª adjunta

2.ª adjunta



[1] JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume V (reimpressão), Coimbra Editora, 1981, p. 130.

[2] Idem, p. 131.

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