quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Acórdão da Relação de Évora de 23.11.2023

Processo n.º 39/12.3T8STB-D.E1

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Sumário:

1 – A prolação de despacho determinando que uma das partes junte um documento aos autos não impede o tribunal de, em momento posterior, apesar da falta de junção daquele documento, considerar que já tem ao seu dispor todos os elementos necessários para proferir uma decisão de mérito.

2 – Num incidente de habilitação de cessionário de um direito de crédito, a indicação do montante deste (capital e juros vencidos) à data da cessão ou à data da dedução do incidente não é indispensável para a sua identificação. A ausência dessa indicação não determina a ineptidão do requerimento de habilitação.

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Requerente: F., S.A..

Requerido: LG e seu cônjuge.

Pedido: Habilitação da requerente para, como cessionária, prosseguir na execução no lugar da exequente.

Sentença: Julgou a requerente habilitada para, como cessionária, prosseguir na execução no lugar da exequente.

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O requerido LG interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

A) O Recorrente contestou o Incidente de Habilitação de Cessionário, impugnando a legitimidade do Cessionário, a validade da cessão de créditos bem como a discrepância quanto aos valores do crédito alegadamente cedido, em relação ao reclamado, bem quanto ao alegado crédito do banco cedente no Proc. nº. 4946/09.2TBSTB-A, todos assentes no mesmo crédito, mas divergentes nos valores exigidos tanto pelo alegado Cedente como pela alegada Cessionária. Neste processo ainda não foi proferida Sentença; A Sentença de que ora se recorre continuou a não apreciar estas questões e/ou aquelas que apreciou, a fazê-lo erradamente;

B) A Srª. Juiz a quo não apreciou nem se pronunciou sobre a Resposta à Resposta à Contestação do Requerido/Recorrente, limitando-se a aderir pura e simplesmente à posição da Requerente contida na Resposta à Contestação e decidiu mesmo contra a informação que a própria Requerente trouxe aos autos pelo Requerimento de 09.02.2023, Refª.: 7044847 do Citius;

C) E, ao fazê-lo, acabou por encontrar fundamento para julgar improcedente a ineptidão da Petição Inicial, o que não se pode aceitar dada a sua gravidade;

D) Mantém-se a ineptidão da Petição Inicial, e tendo a Sentença julgado a mesma improcedente, violou os arts. 186º, 2, al. a) e 3, 278º,1, b), 576º, 1 e 2, e 577º, al. b), do C.P.C.

E) Tal omissão de pronúncia constitui uma nulidade da sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.

F) A sentença recorrida violou ainda o princípio do contraditório e da igualdade das partes, consagrados nos artigos 3.º e 4.º do Código de Processo Civil e nos artigos 20.º da Constituição da República Portuguesa. Ora, estas questões são relevantes para apreciar o mérito da causa e devem ser conhecidas pelo Tribunal antes de decidir sobre o pedido de habilitação do cessionário.

G) Na verdade, se os factos invocados pela Requerente não se provarem, não há lugar à habilitação do cessionário, pois este não pode suceder numa posição processual sem fundamento.

H) Assim sendo, ao não conhecer da matéria alegada nos arts. 2º, 6º a 10º, 12º, e 16º a 23º da Contestação do Requerente, o Tribunal recorrido omitiu pronúncia sobre questões que devia apreciar e violou o princípio do contraditório.

I) Assim sendo, verifica-se uma omissão absoluta de pronúncia sobre questões essenciais para a boa decisão da causa, que constitui uma nulidade da Sentença tendo sido violados os arts. 615º, 1,als. b), c), d), do C.P.C., o que se invoca;

J) A douta Sentença ora recorrida ao decidir como decidiu violou os arts. 3º, 4º, 615º,1, als. b), c) e d), artº. 186º, 2, al.a) e 3; 278º,1,al. b), 576º, 1 e 2 e 577,al. b), todos do C.P.C e o artº. 20º da Constituição da República Portuguesa.

K) A nulidade do processo decorrente da ineptidão da petição inicial constitui uma exceção dilatória, determinante da absolvição do réu da instância (artigos 278.º, n.º 1, alínea b), 576.º, n.º s 1 e 2 e 577.º, alínea b) do Código de Processo Civil). O que se requer;

L) Requer-se a V. Exas. que se dignem ordenar, com a urgência que o presente caso justifica e requer, a anulação da decisão do Sr. Agente de Execução que marcou o leilão eletrónico e a venda do imóvel penhorado, baseado na douta Sentença ora recorrida, até que seja proferida sentença no incidente de habilitação ou cessionário e com trânsito em julgado.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

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Questões a decidir:

- Pedido de anulação de uma decisão do agente de execução;

- Nulidade da sentença;

- Ineptidão do requerimento inicial.

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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1) O Banco, S.A., anteriormente denominado (…), conforme registo identificado sob o Av. 1 da AP. 27/19900914 constante da certidão comercial permanente com o código de acesso (…), resultou da fusão por incorporação do Banco (…) e do Banco (…), conforme registo de fusão identificado sob a AP. 51/20041216 constante da certidão comercial permanente com o código de acesso (…).

2) Por outro lado, por Deliberação do Banco de Portugal, tomada em 20/12/2015, foi aplicada ao (…) uma medida de resolução nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 145.º-E do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31/12, na redacção introduzida pela Lei n.º 23-A/2015, de 26/03, mediante a qual foi determinada a alienação ao Banco, S.A. dos direitos e obrigações que constituam activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do (…), constantes do Anexo 3 da referida Deliberação, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 145.º-M do RGICSF, tendo a generalidade da actividade e do património do (…) sido transferido, de forma imediata e definitiva, para o Banco, S.A..

3) O Banco, S.A., incorporou ainda por fusão o (…), mediante transferência global do património desta última, incluindo todos os bens móveis e imóveis, direitos, obrigações e posições contratuais que o integram, conforme registo de fusão identificado com a AP. 24/20171227 constante da certidão comercial permanente com o código de acesso (…).

4) Por contrato de cessão de créditos, assinado em 04 de Julho de 2022, o Banco, S.A. cedeu o crédito identificados como: 000801467701096 - 000000000000000, que detinha sobre o requerido e todas as garantias acessórias a ele inerentes, à F., S.A., conforme documento n.º 1 junto com o requerimento inicial que se dá por integralmente reproduzido, de que são parte integrante do mencionado documento n.º 1 o seu anexo 1 com a lista dos activos cedidos e, o seu anexo com discriminação por verbas das garantias e respectivas hipotecas cedidas que se transmitem conjuntamente com os créditos, no qual se encontram, respectivamente, a identificação da globalidade dos créditos cedidos e a identificação das garantias que se transmitem conjuntamente com os créditos.

5) Consta do anexo com discriminação por verbas das garantias e respectivas hipotecas cedidas que se transmitem conjuntamente com os créditos, existe correspondência quanto à(s) verba(s) cento e sessenta e três.

6) A referida cessão incluiu a transmissão de todos os direitos, garantias e acessórios inerentes aos créditos cedidos, designadamente das hipotecas constituídas sobre os prédios em causa estando o requerente e cessionário a promover pelo pedido de transmissão dos respectivos registo(s) junto do SIR (Soluções Integradas de Registo].

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Pedido de anulação de uma decisão do agente de execução:

O recorrente pede que o tribunal ad quem, com urgência, anule a decisão do agente de execução que, com base na sentença recorrida, marcou o leilão eletrónico e a venda do imóvel penhorado, até que seja proferida sentença no incidente de habilitação ou cessionário e com trânsito em julgado.

Pretendendo o recorrente a “anulação” da referida decisão até ao trânsito em julgado da decisão final a proferir neste incidente, parece-nos que aquilo que ele verdadeiramente pretende é a suspensão da mesma decisão. Anular temporariamente uma decisão é uma contradição nos termos. Com a anulação, a decisão deixa de existir.

Independentemente desta precisão terminológica, o pedido do recorrente é deslocado, pois devia ter sido apresentado no tribunal a quo. O tribunal ad quem apenas tem competência para julgar um eventual recurso que fosse interposto de decisão proferida pelo tribunal a quo sobre a pretensão do recorrente, não para tomar uma decisão sobre esta em primeira instância. Consequentemente, não conhecemos do pedido em análise.

Nulidade da sentença:

O recorrente sustenta que a sentença recorrida é nula porquanto:

1 – Não conheceu da matéria alegada nos artigos 2.º, 6.º a 10.º, 12.º, e 16.º a 23.º da contestação;

2 – Não se pronunciou sobre a resposta à resposta à contestação;

3 – Decidiu que a petição inicial não é inepta.

Na contestação, foram suscitadas as seguintes questões:

1 – A recorrida não indicou o montante do crédito que alega ter adquirido, o que implica que esse crédito não se encontre devidamente identificado no requerimento de habilitação;

2 – A listagem de empréstimos que a recorrida apresentou é ilegível;

3 – Não tendo o crédito que a recorrida alega ter adquirido sido devidamente concretizado no requerimento de habilitação, este é inepto;

4 – Não pode haver habilitação na acção executiva.

Na resposta à resposta à contestação, o recorrente e o seu cônjuge pronunciaram-se sobre as seguintes questões:

1 – Falta de indicação, no requerimento de habilitação, do montante do crédito, o qual, por essa razão, não foi devidamente identificado; insistiu-se na necessidade de a recorrida identificar “concreta, precisa e claramente a causa de pedir e o pedido”;

2 – A listagem de empréstimos que a recorrida apresentou é ilegível.

Na resposta à resposta à contestação, o recorrente e o seu cônjuge limitaram-se, pois, a insistir em questões que haviam suscitado na contestação. Daí que tal articulado não carecesse de pronúncia autónoma por parte do tribunal a quo. A única pronúncia deste tribunal que faltou foi a de considerar o mesmo articulado como não escrito, atenta a sua inadmissibilidade legal, face ao disposto no artigo 356.º, n.º 1, als. a) e b), do CPC.

Ao contrário daquilo que o recorrente afirma, a sentença recorrida pronunciou-se sobre cada uma das questões suscitadas na contestação e parcialmente reiteradas na resposta à resposta à contestação.

Sobre a questão da invocada falta de identificação do crédito devido à não indicação do montante deste, escreveu-se, na sentença recorrida, o seguinte:

“Os requeridos vieram opor-se à cessão alegando que a requerente não indica o montante do crédito que alega ter adquirido. Impugna o valor da dívida pois a cessão ocorreu após o trânsito em julgado da Sentença de Graduação de Créditos que a requerente também figura como compradora do mesmo crédito à Cedente/Exequente no Proc. nº. 4946/09.2TBSTB que corre termos neste Juízo.

No entanto, os fundamentos da oposição que os requeridos apresentam não conduzem à procedência da pretensão que deduzem.

Relativamente à identificação do contrato e aos montantes estes estão identificados nos documentos juntos aos autos pela requerente, assim como o imóvel sobre qual se encontram registadas as garantias, não sendo suficiente a alegação dos requeridos para pôr em causa a relação entre o crédito cedido e a dívida, ponderados, de forma conjugada, todos os demais elementos, sendo os determinantes a identificação dos requeridos e das garantias registadas, no caso, as hipotecas registadas.

(…)

Daí que, além da demonstração por referência ao devedor em causa na habilitação, o requerente/habilitando tem de provar a existência e validade dos termos do acordo que, no caso, é a fonte do seu direito, não sendo necessário que identifique o montante exacto do crédito cedido (e que no documento complementar esse valor seja mencionado), havendo apenas que identificar o crédito em termos de os interessados saberem qual o objecto da cessão”

Sobre a questão da pretensa ilegibilidade da listagem de empréstimos, importa dizer, em primeiro lugar, que, na sentença recorrida, foi julgado provado que:

“4) Por Contrato de Cessão de Créditos, assinado em 04 de Julho de 2022, o BANCO, S.A. cedeu o crédito identificados como: 000801467701096 - 000000000000000, que detinha sobre o requerido e todas as garantias acessórias a ele inerentes, à F., S.A., conforme Documento n.º 1 junto com o requerimento inicial que se dá por integralmente reproduzido, de que são parte integrante do mencionado Documento n.º 1 o seu Anexo 1 com a lista dos activos cedidos e, o seu Anexo com discriminação por verbas das garantias e respectivas hipotecas cedidas que se transmitem conjuntamente com os créditos, no qual se encontram, respectivamente, a identificação da globalidade dos créditos cedidos e a identificação das garantias que se transmitem conjuntamente com os créditos.

5) Consta do Anexo com discriminação por verbas das garantias e respectivas hipotecas cedidas que se transmitem conjuntamente com os créditos, existe correspondência quanto à(s) Verba(s) Cento e Sessenta e Três.”

Sobre a mesma questão, escreveu-se ainda, na sentença recorrida, o seguinte:

“Ora, no caso em apreço, a requerente juntou a escritura pública mencionada em 4) dos factos provados que, para além de cumprir a exigência de forma legal decorrente do disposto n.º 2 do art. 578º do Código Civil, demonstra, de forma cabal, que foi celebrada entre as partes, um contrato de cessão de crédito, resultando do respectivo documento complementar que essa cessão teve por objecto os créditos em causa, a que acresce que a jurisprudência tem vindo a admitir a apresentação parcial do documento complementar, atento o elevado número de registos de créditos cedidos que por norma tem lugar nessas situações.”

Fica, assim, evidente que o tribunal a quo considerou legível a listagem de empréstimos apresentada pela recorrida. Tanto assim foi, que a leu e julgou provado o que dela consta. Acrescente-se que também consideramos que a referida listagem é perfeitamente legível. Aliás, o recorrente e o seu cônjuge não dizem por que razão a consideram ilegível.

Sobre a invocada ineptidão do requerimento inicial por falta de concretização do crédito, escreveu-se o seguinte na sentença recorrida:

“Ora, os requeridos apesar de invocarem a ineptidão do requerimento inicial, apresentam oposição e nessa defesa é possível concluir que no caso sub judice, ainda que os requeridos entenderam o conteúdo do requerimento inicial.

Tendo os requeridos compreendido de forma adequada os termos do incidente exerceram o seu direito de defesa relativamente à pretensão deduzida pela requerente.

Ora, perante esta alegação, não pode, já nesta fase, concluir-se que o requerimento inicial é inepto por falta de causa de pedir, nos termos do artigo 186.º n.º 2, alínea a) do Código de Processo Civil.”

Ou seja, a sentença recorrida conheceu a questão da ineptidão do requerimento de habilitação, considerando que, ainda que este não indicasse a causa de pedir, resultou da contestação que o recorrente e o seu cônjuge entenderam o conteúdo daquele, pelo que, atento o disposto no artigo 186.º, n.º 3, do CPC, a arguição da ineptidão era improcedente. Importa, por outro lado, recordar o que, na sentença recorrida, se escreveu acerca da invocada falta de identificação do crédito devido à não indicação do montante deste.

Sobre a questão da suposta impossibilidade de habilitação na acção executiva, escreveu-se, na sentença recorrida, o seguinte:

“Daí que, além da demonstração por referência ao devedor em causa na habilitação, o requerente/habilitando tem de provar a existência e validade dos termos do acordo que, no caso, é a fonte do seu direito, não sendo necessário que identifique o montante exacto do crédito cedido (e que no documento complementar esse valor seja mencionado), havendo apenas que identificar o crédito em termos de os interessados saberem qual o objecto da cessão, pelo que a cessão é válida, podendo dar lugar a habilitação do cessionário em processo executivo, mesmo sem indicação exacta daquele montante, neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8-02-2021, processo n.º 3248/12.1YYPRT-C.P1.”

Pode concordar-se, ou não, com o entendimento do tribunal a quo acerca de cada uma das referidas questões, mas é indiscutível que aquele se pronunciou sobre todas elas.

O recorrente invoca ainda o facto de o tribunal a quo ter considerado desnecessária uma certidão que anteriormente ordenara que a recorrida juntasse aos autos. Considera o recorrente que esta decisão não foi fundamentada e é contraditória com a decisão que ordenara a junção.

Atenta a natureza da primeira decisão, que apenas determinou que a recorrida juntasse um documento, o tribunal a quo não ficou impedido de, em momento posterior, em face dos restantes documentos que os autos então continham, considerar que já tinha ao seu dispor todos os elementos necessários para decidir o incidente e proferir tal decisão. Não há norma legal que estabeleça tal impedimento. No que concerne à fundamentação da decisão de dispensar a junção da referida certidão, ela existe. Consiste precisamente no facto de o tribunal a quo entender que os restantes documentos juntos aos autos são suficientes para decidir o incidente. É quanto basta para o efeito. Note-se, a propósito, que o recorrente não aponta qualquer erro de julgamento resultante da falta de junção aos autos da certidão em causa, o que confirma que o tribunal a quo fez bem ao dispensá-la.

Concluindo, a sentença não padece das nulidades previstas no artigo 615.º, n.º 1, als. b) a d), do CPC.

Ineptidão do requerimento inicial:

Ao contrário do que o recorrente afirma, o requerimento de habilitação indica a causa de pedir. Com efeito, aí se alega que, “Por Contrato de Cessão de Créditos, assinado em 04 de Julho de 2022, o BANCO, S.A. cedeu o(s) crédito(s) identificados como: 000801467701096 - 000000000000000, que detinha sobre o(s) requerido(s) e todas as garantias acessórias a ele(s) inerentes, à F., S.A., conforme Documento n.º 1 que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.” Mais se alega que “In casu identificado, e no que concerne ao Anexo com discriminação por verbas das garantias e respectivas hipotecas cedidas que se transmitem conjuntamente com os créditos, existe correspondência quanto à(s) Verba(s) Cento e Sessenta e Três.”

O crédito cedido foi, pois, devidamente identificado, não sendo, para o efeito, necessário especificar o seu montante (capital e juros vencidos) à data da cessão, ou à data em que a habilitação foi requerida. Diga-se, aliás, que o montante do crédito adquirido pela requerente se encontra mencionado na listagem que esta juntou aos autos, que o recorrente, sem razão, considera ilegível. Daí que o requerimento de habilitação não seja inepto.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente.

Notifique.

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Évora, 23.11.2023

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.º adjunto


quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Acórdão da Relação de Évora de 23.11.2023

Processo n.º 20/18.9T8TMR.E1

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Sumário:

1 – A exigência de discriminação, na sentença, dos factos não provados, feita pelo n.º 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, não é cumprida com a afirmação de que como tal se consideram “todos os demais alegados, que se dão por integralmente reproduzidos”.

2 – O legislador pretende que a sentença enumere a totalidade dos factos provados e não provados, de forma a evidenciar que o tribunal apreciou cada um dos factos alegados com relevância para a decisão da causa, como é seu dever, e a permitir uma perfeita apreensão, pelos destinatários da sentença, das razões da decisão, apreensão essa fundamental, nomeadamente, para um exercício esclarecido do direito ao recurso.

3 – Constituindo o thema decidendum a existência de um caminho em determinado local e a sua natureza, não poderá considerar-se como facto provado, ou não provado, que o caminho existente nesse local tem natureza pública.

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Acção popular civil.

Autores: ML e AM.

Interveniente: FA.

Réus: HF e outros.

Pedidos: A) Que a parte da rua com início no entroncamento com a Rua António Simões e fim a poente da propriedade dos autores, seja declarado público, com a denominação toponímica de Rua Joaquim Almeida, em (…), freguesia do (…) em (…); B) Que os réus sejam condenados a deixar livre e totalmente desimpedida de obstáculos ou bens a Rua Joaquim Almeida, permitindo a livre circulação de pessoas e bens, mormente o acesso ao prédio dos autores e dos restantes proprietários acima identificados.

Sentença: Julgou a acção procedente, declarando a natureza pública do caminho/estrada com início no entroncamento com a Rua António Simões e fim a poente da propriedade dos autores, com a denominação toponímica de Rua Joaquim Almeida, em (…), freguesia do (…), em (…), e condenando os réus a retirar o portão de ferro existente em toda a largura da Rua Joaquim Almeida e a deixar esta rua livre e totalmente desimpedida de obstáculos ou bens, permitindo a livre circulação de pessoas e bens, mormente o acesso ao prédio dos autores.

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A ré HF interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – O tribunal não deu cumprimento ao disposto no n.º 4 do artigo 607.º do C.P.C., uma vez que não indicou quais os factos contantes que julga não provados.

2 – A sentença proferida sofre de vicio de nulidade porquanto, nos termos das alíneas d) e e) do nº1 do artº 625 do C.P.C., não se pronuncia sobre o teor dos documentos juntos quer pelos AA. quer pelo seu associado, quer pelos RR. (fotos) que identificam o verdadeiro local da rua Joaquim de Almeida, atentas as placas toponímias existentes e porque condena os RR. a retirar o portão de ferro que diz existir em toda a largura da Rua Joaquim Almeida, quando nem existe portão de fero, nem tal rua no local indicado.

3 – Atenta a prova documental junta aos autos, nomeadamente as plantas cadastrais do local, o Tribunal não podia dar como provado no facto 3, que o prédio dos AA. confronta a poente com a Rua Joaquim Almeida, uma vez que a poente situa-se o prédio rústico identificado sob o artº 320 – B e neste prédio não existe qualquer caminho que possa ser considerado de Rua Joaquim Almeida.

4 – O Tribunal relativamente aos factos 6 e 7, ao apoiar-se no documento 8 junto com a p.i., não podia dar como provado que o caminho situado a nascente correspondente à rua Joaquim Almeida, com a largura de 3,39m e que afunila para 2,92m no limite do prédio descrito na Conservatória sob o nº 1244, atenta a prova documental (fotos) referidas no ponto 2 desta conclusão.

5 – O Tribunal relativamente aos factos 8 e 9 não podia dar como provado o local de início da rua Joaquim Almeida, atenta a omissão que o doc. nº9 junto com a p.i. faz da real localização e traço desta rua, delimitado pelas placas toponímicas existentes.

6 – O Tribunal não podia dar como provado no facto 10 que o prédio propriedade do associado dos AA., confronta a poente com a estrada (rua Joaquim Almeida) situa-se sim a Rua António Simões, do próprio documento nº4, junto pelo associado dos AA. Com a p.i., e proveniente do Instituto Geográfico Português, e datado de 9/11/2010, indica apenas a existência de um caminho, porque aberto pela Ré e seu falecido marido antes da vigência do cadastro geométrico para o concelho de (…).

7 – Os factos dados por provados e constante dos nºs 11 e 12, nenhuma relação possuem com o objeto desta ação e com os intervenientes nestes autos, pelo que o Tribunal não podia tomar conhecimento de tais prédios.

8 – Também o Tribunal não podia dar como provado facto nº 13, com base no doc. 11 junto com a p.i., porquanto o caminho existente não termina no prédio 321, mas sim no nº 320 e sobre este não existe qualquer caminho, pelo que também o facto 14, não podia ser dado como provado, atenta toda a documentação (fotos e plantas cadastrais) que se encontra junta aos autos.

9 – Atendendo a que o doc. 9 junto pelos AA. com a p.i., não identifica, como já atrás se referiu, a rua Joaquim Almeida identificada nas fotos juntas pelas placas toponímicas, e atendendo a que o prédio dos AA. confronta a poente, exclusivamente com o prédio nº 320 , jamais o Tribunal podia dar como provada a ligação ao prédio dos AA. conforme consta do facto 15.

10 – Também não podia o Tribunal dar como provado que o caminho existente é uma via publica, porquanto, nenhuma prova existe nem alegado fora que quer a Junta de Freguesia, quer a Câmara Municipal, hajam praticado atos de limpeza e manutenção do caminho. O facto 16, refere apenas a expressão “terá sido ....”, ou seja, sem certezas e, o facto 17 “refere a expressão “será certamente pública...., mas sem identificação dos atos públicos que hajam sido praticados.

11 – Atento o depoimento prestada pelo testemunha IJ, ouvida na secção de julgamento de 15/6/20221 – gravação áudio 10:48:50, deveria ser considerado por provado que o caminho existente foi aberto pelo marido da Ré, há uns 40 anos para dar acesso aos terrenos deles e a um barracão que tinham feito antes da casa e por lá era a entrada – que no caminho há arvores grandes e atento o prestado pela testemunha MR (sessão de 15/6/2021 e gravação áudio 11:39:16, deveria também considerar por provada “que a HF e o falecido marido mandou abrir o caminho para o lado onde estavam a habitar e para o trator passar para zelar as terras e, “que o acesso para a casa da ML. Íamos pela rua que é agora chamada rua da Horta que agora está alcatroada”, “que foi por lá que passaram os materiais para a casa e foi por lá que fizeram o muro”.

12 – Atento o exposto e atenta a ausência de factos o Tribunal não podia dar como provado o facto 19 com o teor relatado.

13 – O tribunal com o facto provado nº 20 pronunciou-se sobre matéria não alegada, face à inexistência no local de qualquer portão de ferro.

14 – Atento os depoimentos prestados pela atrás referida testemunha MR e JL – sessão de 15/6/21 – gravação áudio 11:39:16, o tribunal não podia dar como provado que a Rua Joaquim Almeida é o único acesso para a propriedade dos AA. atenta a real localização desta rua.

15 – O Tribunal teria que dar como provado atenta a ausência de factos que revelassem a existência de atos de manutenção, melhoramento, e limpeza levados a cabo pela administração local ou pela junta de freguesia, jamais podia considerar o caminho em questão como rua publica e correspondente à rua Joaquim Almeida, e bem assim porque nenhum facto fora considerado por provado que indiciasse, que o caminho fosse utilizado livremente por todas as pessoas sem discriminação.

16 – Os pressupostos para que um caminho possa ser considerado como público, são o uso direto e imediato pelo público, desde tempos imemoráveis e a sua propriedade por parte da entidade de direito público com afetação à utilidade pública, que a sua utilização tenha por objeto a satisfação de interesses coletivos de certo grau e relevância, sendo tal fim distinto do exclusivamente pessoal.

17 – Deverá portanto o Tribunal revogar a sentença proferida, substituindo-a por outra que considere como localizada a rua Joaquim no local identificado pelas fotos juntas aos autos, atentas as placas toponímicas existentes e totalmente visíveis nas mesmas e não no caminho situada a nascente do prédio dos RR., ou seja, que tal caminho na realidade, e, passar de o Município de (…) no doc. nº 9 junto com a p.i. o haver indicado como sendo a rua Joaquim Almeida, não é rua pública, face ao não preenchimento dos pressupostos atrás referidos.

18 – Com a decisão proferida, o Tribunal violou o disposto no nº 4 do artº 607, 413º e artº 490 do C.P.C e os artºs 341º, 362º do C.C.

Todos os recorridos apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

O recurso foi admitido.

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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. Os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio misto sito na Rua Joaquim Almeida, número 340, no lugar da (…), freguesia do (…), concelho de (…), composto de terreno de cultura arvense de sequeiro, figueiras e oliveiras, com a área de 3.320m2 e de uma casa, para habitação, com 72 m2 e logradouro de 168m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o nº 2529 da freguesia do (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1435° e na matriz predial rústica sob o artigo 321° da Secção B, ambos da freguesia de (…), - conforme certidão predial permanente com o código de acesso nº (…) e cadernetas prediais juntas como docs. 1 e 2 anexos.

2. A Autora mulher adquiriu o prédio através do processo de inventário, que correu termos por óbito de seus pais, (…), pendente na extinta 2ª Secção do 5° Juízo Cível do Tribunal de Lisboa sob o nº 5868/05.1TJLSB, - doc. 3 junto com a PI.

3. O prédio dos Autores confronta de norte com (…), de sul com (…), de nascente com (…) e de poente com a Rua Joaquim Almeida, (…), (…) e (…).

4. Os RR. são proprietários do prédio misto, com a área total de 4.920 m2, composto de casa de habitação de rés-do-chão, com a área de 86 m2, logradouro de 34 m2 e ainda terra de cultura arvense, oliveiras, citrinos e macieiras com a área de 4.800 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o nº 160 da freguesia de Beco e inscrito na matriz predial rústica sob os artigos 433°, 434°, 435°, todos da Secção B, bem como na matriz predial urbana sob o artigo 1832°, todos da freguesia de (…), - conforme certidão predial permanente com o código de acesso nº (…) e docs. 4, 5, 6 e 7 junto com a PI.

5. A entrada para o prédio dos RR. faz-se pelo número 1178 da Rua António Simões, na (…), freguesia do (…) que é a morada fiscal da ora 2ª Ré.

6. De acordo com as plantas juntas ao processo de obras nº 01/2013/72, arquivado na Câmara Municipal de (…), (doc. 8 junto com a PI), a 1ª Ré, indica que o prédio confronta a nascente com caminho.

7. De acordo com aquela planta anexa, é ali declarado que os limites foram indicados pelo proprietário e que a Rua Joaquim Almeida tem a largura de 3,39 metros, afunilando para 2,92 metros no limite do prédio descrito na Conservatória sob o nº 1244.

8. A Rua Joaquim Almeida tem início no entroncamento com a Rua António Simões, - doc. 9 junto com a PI.

9. Na entrada da Rua Joaquim Almeida, do lado esquerdo localiza-se o prédio dos RR. e do lado direito o prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o nº 1244° da freguesia do (…) e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 444 da Secção B e na matriz predial urbana sob o artigo 1648°, ambos da freguesia do (…), - doc. 10 junto com a PI - conforme print retirado do sítio da internet, www.google.pt.

10. O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o nº 1244° confronta de norte com (…), de sul com estrada (Rua António Simões), de nascente com (…) e de poente com estrada (Rua Joaquim Almeida) e (…) - certidão predial com o código de acesso nº (…).

11. Confronta de poente com a Rua Joaquim Almeida o prédio rústico sito em Carraminheira, descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o nº 2112° da freguesia do Beco e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 352° da Secção B da freguesia do (…), - certidão predial com o código de acesso nº (…).

12. E o prédio rústico sito em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o nº 1447° da freguesia do (…) e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 351° da Secção B da freguesia do (…) confronta de poente com estrada - certidão predial com o código de acesso nº (…).

13. A Rua Joaquim Almeida termina a poente do prédio dos Autores, sito na Rua Joaquim Almeida, nº 340, (…), - conforme doc. 11 junto com a PI.

14. Os prédios descritos na Conservatória sob os nºs 1244, 2112, 1447 e ainda a propriedade dos Autores, são servidos pela Rua Joaquim Almeida.

15. A estrada que liga a Rua António Simões, na (…), ao prédio dos Autores é uma via pública, com a denominação de Rua Joaquim Almeida (documento nº 9 junto com a PI).

16. Em 25 de agosto de 2011, através de ofício, MC, que assina pelo Presidente da Junta de Freguesia do (…), informa a Autora que a estrada em questão já existe desde pelo menos e de acordo com populares, desde 1960, e que a estrada, ou seja, a Rua Joaquim Almeida, terá sido intervencionada, para limpeza e manutenção, pela Junta de Freguesia, por volta de 1990, - doc. nº 12.

17. Através do ofício 3088/2012 de 23/06/2012, o Presidente da Junta de Freguesia do (…) confirma à Câmara Municipal de (…) que a via identificada na planta e fotografias "será certamente pública de acordo com informação recolhida junto à população", - doc. nº 13 junto com a PI.

18.Em data que não consegue precisar, mas que seguramente em meados de 2009, os RR. colocaram um portão de ferro em toda a largura da Rua Joaquim Almeida, ou seja, entre os muros da sua propriedade e do prédio descrito sob o nº 1244°, - conforme doc. 14 junto com a PI.

19. Até àquela atuação dos RR., não apenas os Autores, como os proprietários identificados nos artigos 11º e 12º desta petição inicial, tinham acesso à sua casa através da Rua Joaquim Almeida - conforme doc. 15 junto com a PI.

20. A colocação do portão de ferro pelos RR., em toda a largura da Rua Joaquim Almeida impossibilita, desde então, a passagem de pessoas e de qualquer viatura.

21. Para além de impedir a passagem, impossibilitou os Serviços da Câmara Municipal de (…) de construir o ramal de abastecimento de água para a casa dos Autores - doc. nº 16.

22. A Rua Joaquim Almeida é o único acesso para a propriedade dos Autores.

23. O comportamento dos RR foi levado ao conhecimento nas sessões da Assembleia Municipal de (…) de 24 de setembro de 2010 (doc. nº 17 anexo -fls. 2 e seguintes), de 22 de fevereiro de 2013 (doe. 18 junto com a PI - fls. 2 e seguintes), de 24 de abril de 2015 (doe. 19 - fls. 10 e seguintes), de 25 de setembro de 2015 (doe. 20 - fls. 5 e seguintes) e ainda à de 4 de dezembro de 2015 (doc. 21 - fls. 5 e seguintes).

24. Não obstante, aquela entidade nada fez em defesa dos bens do domínio público e da livre circulação de pessoas e bens.

A sentença recorrida julgou não provados os demais factos alegados.

*

A recorrente suscita a questão da falta de cumprimento, pelo tribunal a quo, do disposto no n.º 4 do artigo 607.º do CPC (diploma ao qual pertencem todas as normas doravante referenciadas), na medida em que a sentença recorrida não menciona os factos julgados não provados.

Na sentença recorrida, consignou-se o seguinte:

“Factos não provados:

Todos os demais alegados que se dão por integralmente reproduzidos.”

A exigência de discriminação dos factos não provados, feita pelo n.º 4 do artigo 607.º, não se cumpre através desta remissão genérica para os articulados. Se fosse esse o sentido da referida exigência legal, a mesma seria inútil. Em vez disso, o legislador pretende que a sentença enumere a totalidade dos factos provados e não provados, de forma a evidenciar que o tribunal apreciou cada um dos factos alegados com relevância para a decisão da causa, como é seu dever, e a permitir uma perfeita apreensão, pelos destinatários da sentença, das razões da decisão, apreensão essa fundamental, nomeadamente, para um exercício esclarecido do direito ao recurso.

Sendo assim, a recorrente tem razão. A sentença recorrida não discriminou os factos julgados não provados e, com isso, violou o disposto no n.º 4 do artigo 607.º.

Todavia, o problema é mais amplo. A decisão sobre a matéria de facto é obscura, eventualmente contraditória, e insuficiente. A sua fundamentação também se encontra incompleta. Passamos a fundamentar cada uma destas afirmações.

No n.º 8 da matéria de facto provada, consignou-se que a Rua Joaquim Almeida tem início no entroncamento com a Rua António Simões. Suscita-se a dúvida sobre qual seja o entroncamento que se tem em vista.

É consensual que a Rua Joaquim Almeida forma um entroncamento com a Rua António Simões, situando-se um dos seus extremos no lado direito de quem nesta circule no sentido sudoeste-nordeste (cfr. o fotomapa constante do documento junto com a petição inicial sob o n.º 9). Já a questão de saber se a Rua Joaquim Almeida forma um segundo entroncamento com a Rua António Simões, junto ao prédio da recorrente, encontra-se no epicentro do litígio que opõe as partes deste processo. Na versão dos recorridos ML e AM, um dos extremos da Rua Joaquim Almeida situa-se junto ao seu prédio, do lado poente, o que, logicamente, determina a existência de um cruzamento entre essa rua e a Rua António Simões junto ao prédio da recorrente. Na versão da recorrente, a Rua Joaquim Almeida começa e acaba na Rua António Simões, assim formando, com esta, dois entroncamentos sucessivos.

Daí que o n.º 8 da matéria de facto provada seja dúbio: a que entroncamento se refere? Ao primeiro, que comprovadamente surge do lado direito de quem circule pela Rua António Simões no sentido sudoeste-nordeste? Ou àquele que, algumas dezenas de metros adiante, junto ao prédio da recorrente, alegadamente surge, também do lado direito, a quem circule na Rua António Simões no sentido poente-nascente, após descrever uma curva à direita? Nesta segunda hipótese, a qualificação do ponto onde a Rua Joaquim Almeida intercepta a Rua António Simões como um entroncamento e não como um cruzamento seria contraditória com os n.ºs 3, 10, 11, 13, 14, 18, 19, 20 e 22 da matéria de facto provada, dos quais resulta que o tribunal a quo ficou convencido de que a Rua Joaquim Almeida cruza a Rua António Simões e se prolonga até ao prédio dos recorridos ML e AM.

Impõe-se, assim, esclarecer qual é o exacto local a que o n.º 8 da matéria de facto provada se refere, reformulando-se a matéria de facto provada tendo em atenção as questões que acabámos de referir.

Também o n.º 9 da matéria de facto provada suscita dúvidas quando refere que, na entrada da Rua Joaquim Almeida, do lado esquerdo, se localiza o prédio da recorrente e, do lado direito, o outro prédio aí identificado.

Esses dois prédios não se localizam na entrada da Rua Joaquim Almeida, seja na versão da recorrente, seja na versão dos recorridos. Na versão da recorrente, esses prédios não se situam na Rua Joaquim Almeida, pura e simplesmente. Na versão dos recorridos ML e AM, os mesmos prédios situam-se na Rua Joaquim Almeida, mas não junto a qualquer das entradas desta. Decorre da descrição do local feita na petição inicial que uma das entradas da Rua Joaquim Almeida dá origem ao primeiro dos entroncamentos acima referidos, ou seja, ao único entroncamento que eles consideram existir, e a outra entrada situa-se junto ao prédio dos recorridos ML e AM. Quando muito, a aceitar-se a versão dos recorridos, os dois prédios referidos no n.º 9 situam-se à entrada do trecho da Rua Joaquim Almeida que fica do lado esquerdo da Rua António Simões, tendo como referência o sentido poente-nascente. É isto que resulta dos artigos 8.º, 29.º, 34.º e 35.º da petição inicial, onde aquele trecho é referido como “parte da Rua Joaquim Almeida”, rua esta que, logicamente, começa no lado oposto da Rua António Simões. Note-se, a propósito, que, no artigo 8.º da petição inicial, certamente por lapso, os recorridos ML e AM qualificam, contraditoriamente com a descrição resultante da globalidade daquele articulado, o local onde a Rua Joaquim Almeida intercepta a Rua António Simões junto à casa da recorrente como um entroncamento. Contudo, no artigo 29.º, já alegam que esse local constitui um cruzamento, em consonância com a versão factual que sustentam.

É, pois, necessário esclarecer também esta matéria, reformulando o n.º 9 da matéria de facto provada de forma a esclarecer as dúvidas expostas.

O tribunal a quo não se pronunciou, como devia, sobre inúmeros factos alegados pelas partes que têm interesse para a decisão da causa, julgando-os provados ou não provados. Temos em vista os factos alegados nos artigos 30.º a 35.º, 44.º e 45.º da petição inicial e nos artigos 7.º a 12.º, 18.º a 20.º, 22.º, 24.º, 25.º, 36.º, 38.º, 39.º e 41.º da contestação.

Ao pronunciar-se sobre todos esses factos, máxime sobre aquele que consta do artigo 35.º da petição inicial, o tribunal a quo deverá reformular o n.º 15 da matéria de facto provada, segundo o qual a estrada que liga a Rua António Simões ao prédio dos recorridos ML e AM é uma via pública, com a denominação de Rua Joaquim Almeida. Não porque consideremos, em geral, inadmissível a utilização de expressões conclusivas no enunciado da matéria de facto, mas porque a existência da referida rua e a sua natureza pública constituem precisamente o thema decidendum. Qualificar o caminho em questão como público equivale a antecipar, no elenco dos factos provados, uma conclusão a que o tribunal só poderá chegar no final da sentença, após a ponderação da globalidade da matéria de facto provada e a sua apreciação à luz do Direito aplicável.

Finalmente, o tribunal a quo não fundamentou a sua convicção relativamente aos factos que considerou – sem os enunciar nos termos impostos pelo n.º 4 do artigo 607.º, como vimos – não provados. Deverá, agora, fundamentar a sua convicção relativamente, quer aos factos provados, quer aos factos não provados.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, anular a sentença recorrida, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC.

Na sequência da descida dos autos, deverá o tribunal a quo, através da Senhora Juíza que proferiu a sentença recorrida, proferir nova sentença em que:

- Amplie a matéria de facto, pronunciando-se, julgando-os provados ou não provados, sobre os factos alegados nos artigos 30.º a 35.º, 44.º e 45.º da petição inicial e nos artigos 7.º a 12.º, 18.º a 20.º, 22.º, 24.º, 25.º, 36.º, 38.º, 39.º e 41.º da contestação;

- Reformule os n.ºs 8, 9 e 15 da matéria de facto julgada provada nos termos expostos na fundamentação deste acórdão;

- Fundamente a sua convicção sobre os factos que julgar provados e não provados, analisando criticamente a prova.

Custas a cargo dos recorridos.

Notifique.

*

Évora, 23.11.2023

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta 

 

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Acórdão da Relação de Évora de 07.11.2023

Processo n.º 144/22.8T8ELV.E1

Exequente: F, S.A.

Executado: SB

*

Sumário:

1 – A não integração, pela instituição de crédito, do cliente bancário em PERSI, quando os respectivos pressupostos se verifiquem, consubstancia, em acção executiva instaurada pela primeira contra o segundo, uma excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que determina a extinção da instância, nos termos dos artigos 576.º, n.º 2, e 578.º, do Código de Processo Civil.

2 – As comunicações impostas pelos artigos 14.º, n.º 4, e 17.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25.10, devem ser efectuadas em suporte duradouro, entendido este, nos termos do artigo 3.º, al. h), do mesmo diploma legal, como qualquer instrumento que permita armazenar informações durante um período de tempo adequado aos fins a que as informações se destinam e que possibilite a reprodução integral e inalterada das informações armazenadas.

3 – Uma carta não registada ou um e-mail constituem um suporte duradouro.

4 – O ónus da prova da realização das comunicações impostas pelos artigos 14.º, n.º 4, e 17.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 227/2012, recai sobre a instituição de crédito, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.

5 – Para fazer prova da realização de tais comunicações através de carta simples ou de e-mail, não é suficiente a junção aos autos de pretensas cópias daquelas hipotéticas comunicações. Por se tratar de documentos unilateralmente elaborados pela instituição de crédito, tais cópias não podem ser consideradas, sequer, como princípio de prova.

6 – Se a instituição de crédito não alegar, no requerimento executivo, factos que permitam concluir que cumpriu o dever de integrar o executado em PERSI, efectuando as comunicações impostas pelos artigos 14.º, n.º 4, e 17.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 227/2012, nem juntar meios de prova desses factos, deverá o juiz convidá-la a fazê-lo.

7 – Se a instituição de crédito se mantiver em silêncio, ou se, pronunciando-se, não apresentar os meios de prova solicitados, o juiz deverá rejeitar imediatamente a execução, nos termos do artigo 734.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

*

A exequente interpôs recurso de apelação da decisão que indeferiu o requerimento executivo com fundamento na verificação da excepção dilatória inominada, não suprível e de conhecimento oficioso, decorrente da falta de prova do envio das comunicações de integração do executado no PERSI (Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento) e de extinção deste, tendo formulado as seguintes conclusões:

A. Apelante e Apelado celebraram um contrato de crédito de mútuo para aquisição de um veículo automóvel.

B. Apesar de interpelado para o efeito, o Apelante não cumpriu com as suas obrigações, pelo que a Apelante viu-se obrigada a proceder à resolução do contrato sub judice, e consequentemente forçada a intentar o presente processo com vista à recuperação do seu crédito.

C. Antes mesmo da implementação do PERSI, a aqui Apelante pautou a sua atividade pela proximidade com o Cliente, mantendo uma relação de confiança e transparência, e acima de tudo de ajuda em situações de necessidade.

D. A Apelante dispõe na sua organização uma sólida e ampla estrutura de colaboradores que acompanham os seus clientes desde o primeiro momento de incumprimento, quer através de contactos telefónicos, comunicações escritas e até contactos presenciais.

E. Apenas resolvendo os contratos por incumprimento e recorrendo à ação judicial quando não restam alternativas para ver o seu crédito recuperado.

F. A ora Apelante cumpriu as obrigações impostas pelo D.L. nº 227/2012, de 25 de outubro.

G. Em 4 de março de 2021, a Apelante procedeu ao envio de carta, a comunicar a integração em PERSI, conforme documento que se juntou aos autos.

H. Carta esta que foi enviada para a morada domiciliada do Apelado, conforme consta da cláusula 17 das condições gerais do contrato de crédito em apreço.

I. Nesta carta, foram facultados vários contactos (telefone, email e site) para que o ora Apelado pudesse juntamente com a ora Apelante, encontrar uma solução para a regularização do incumprimento, alertando para extinção do PERSI, no prazo de 12 dias, caso não o fizesse.

J. Porém, uma vez que não houve qualquer resposta dentro do prazo estipulado, a Apelante em 23 de Março de 2022, enviou email, para o endereço indicado pelo Apelado, a reiterar a extinção do PERSI e eventuais consequências pelo não cumprimento das suas obrigações.

K. Entende a M.ª Juiz “a quo” que não foi feita prova do envio e receção dos documentos enviados no âmbito do cumprimento PERSI.

L. Tecendo algumas considerações que, salvo Douta opinião contrária, são no mínimo desconcertantes e até, permitam-nos, preconceituosas relativamente ao comportamento das Instituições de Crédito.

M. Refere na Douta sentença: “Sobretudo quando – e sem prejuízo das instituições de crédito que cumprem os requisitos em causa, juntando comunicações e comprovativos de envio e recepção -, não é raro o caso em que, suscitada tal questão: (i) são juntas pelos exequentes cartas com avisos de recepção com datas não coincidentes; (ii) é o tribunal informado que as mesmas são feitas por empresas de cobrança de créditos, não tendo o exequente «controlo material» sobre a forma pela qual são cumpridas; ou em que (iii) mesmo atentando ao teor das cartas, as datas apostas, pela exígua limitação temporal entre a integração e extinção, permitem entrever que – ainda que eventualmente enviadas – tais missivas não pretendem mais do que cumprir uma mera formalidade com vista a permitir ao exequente aceder à acção executiva, muitas vezes sob a forma sumária e com base em títulos de crédito, permitindo uma lesão do direito de propriedade do executado desproporcional e «oculta», à revelia da intervenção do Tribunal.”

N. Estamos em crer que a Mª Juiz “a quo” não se refere a aqui Apelante, nem que haja motivo para duvidar da autenticidade das “impressões de documentos elaborados em computador”, conforme alude.

O. Com efeito, quer o impresso de registo quer o aviso de receção emitidos pelos CTT, serão, em última análise, também eles “impressões de documentos elaborados em computador”.

P. Não se vislumbra motivo para se tentar desacreditar os documentos juntos pela Apelante, porque argumento, que inclusivamente encontra alguma força na jurisprudência é a falta de prova do envio e receção de tais documentos;

Q. Argumentos surpreendentemente diferentes são a descrença de documentos por se tratarem de “documentos simples elaborados a computador”, e até mesmo a acusação das Instituições de Crédito de práticas intencionalmente ilegais “para cumprir uma mera formalidade com vista a permitir ao exequente aceder à acção executiva, muitas vezes sob a forma sumária e com base em títulos de crédito” – conforme referido na Douta Sentença.

R. Conforme se esclareceu nos autos a Apelante apenas resolve os contratos por incumprimento e recorre à ação judicial quando não restam alternativas.

S. Como se pode verificar o cumprimento do PERSI ocorreu em Março de 2021, cumprindo desta forma os prazos estabelecidos no respetivo diploma.

T. O contrato foi resolvido por incumprimento no final de Agosto de 2021, conforme consta do titulo executivo.

U. Tendo sido apenas intentado o procedimento de injunção no final de Novembro de 2021!

V. Inexiste, sem qualquer margem para duvidas, qualquer comportamento da Apelante com vista à deturpação dos direitos do Apelado.

W. Existe sim, uma crise financeira global que obriga a Apelante a evitar custos desnecessários (por entendermos honestamente não serem legalmente exigíveis), como é o caso do custo de registo e aviso de receção das comunicações PERSI, que devido também à crise são milhares diariamente!

X. O normativo do Decreto-Lei n° 227/2012 de 25 de Outubro apenas obriga a integração e extinção do PERSI através de comunicação em suporte duradouro, e não através de carta registada com aviso de receção, conforme se pode ler neste diploma no seu artigo 14 n.º 4: “(…) a instituição de crédito deve informar o cliente bancário da sua integração no PERSI, através de comunicação em suporte duradouro”.

Y. A definição de suporte duradouro encontra-se prevista no artigo 3º, alínea h) do citado diploma, definindo como suporte duradouro "qualquer instrumento que permita armazenar informações durante um período de tempo adequado aos fins a que as informações de destinam e que possibilite a reprodução integral e inalterada das informações armazenadas”.

Z. Resulta claro que não há qualquer exigência legal de que as comunicações referentes ao PERSI sejam remetidas por correio registado e/ou aviso de receção.

AA. Ora, é nosso modesto entendimento que a carta simples enviada para morada convencionada cumpre este requisito.

BB. Em comunicado de 8 de Janeiro de 2013, sob o título “Entendimentos do Banco de Portugal sobre o novo quadro legal e regulamentar relativo à prevenção e regulação do incumprimento de contratos de crédito celebrados e com clientes bancários particulares” o Banco de Portugal expressamente declarou que “entende que as mensagens de correio eletrónico configuram suporte duradouro para efeitos de aplicação do Regime Geral”.

CC. A Apelante juntou também aos autos carta deixada pessoalmente na caixa do correio do Apelado por colaborador da Apelante, assim como print (suporte duradouro) extraído do seu sistema com o registo de comunicações que foram encaminhadas para a Cliente.

DD. O Preâmbulo do Decreto-Lei n° 227/2012 citado na douta Sentença descreve a atuação da Apelante, quer a sua atuação geral relativamente aos seus clientes quer relativamente ao caso concreto, tendo juntado prova disso: comunicações mediante cartas, emails, sms e até tentativa de contacto pessoal.

EE. A Apelante claramente tomou as devidas providências para aferir o motivo do incumprimento e superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelo Apelado.

FF. A Apelante tem elementos objetivos que lhe permitem afirmar que o PERSI foi cumprido.

GG. Pelo que não pode a ora Apelante concordar com a Douta Sentença proferida que julgou verificada a exceção dilatória insuprível prevista no Art. 18º nº 1 al. b) do D.L. nº 227/2012, de 25 de Outubro e que indeferiu liminarmente a ação executiva.

HH. A Apelante está pois convicta que Vossas Excelências, analisando as normas legais aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de revogar a decisão recorrida, ordenando a prossecução dos autos nos seus trâmites normais até efetivo e integral pagamento da quantia exequenda, custas e demais encargos.

O Ministério Público, em representação do recorrido, apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:

1. Na sequência do incumprimento contratual por parte do aqui executado, a recorrente refere ter iniciado o PERSI através do envio de carta simples, acrescentando que enviou e-mail a informar da extinção do PERSI e das consequências pelo não cumprimento das suas obrigações, vindo a instaurar a presente ação executiva.

2. Para evitar custos, não procedeu ao envio de cartas por correio registado e/ou com registo e aviso de receção, juntando apenas aos autos cópias de duas missivas, por correio simples e e-mail.

3. Não juntou qualquer prova pelo menos do efetivo envio das referidas cartas, em cumprimento da obrigação legal de informar o cliente da integração e extinção do PERSI, mediante comunicação em suporte duradouro.

4. A existência de cartas com cópias armazenadas em sistema informático ou arquivo não deve confundir-se com a prova/registo (em suporte duradouro) do seu envio e comunicação ao destinatário, pois tais comunicações obedecem ao regime das declarações receptícias - cf. artigos 17.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 227/2012, e 224.º, n.º 1, primeira parte, do Código Civil.

5. Não resulta dos autos qualquer registo do seu envio, prova de depósito das mesmas, aviso de receção ou qualquer correspondência posterior do destinatário em que faça alusão a essas comunicações que lhe foram expedidas, sendo que tal falta de prova não pode ser colmatada por prova testemunhal – cf. artigo 393.º, n.º 1, do Código Civil.

6. Também nada nos autos induz a ideia de que as missivas foram expedidas pelo remetente, mas não foram afinal recebidas por culpa do destinatário, quer porque não as tenha levantado no serviço postal, quer porque hipoteticamente tenha alterado residência e não comunicou tal facto à contraparte no contrato – casos hipotéticos em que poderia ser tal falta de receção imputável ao destinatário – cf. artigo 224.º, n.º 2, do Código Civil.

7. Verifica-se, assim, a exceção dilatória inominada de falta de um pressuposto processual previsto no regime imperativo do PERSI que conduz, tal como corretamente decidido na sentença recorrida, à absolvição da instância – cf. Artigos 14.º, n.º 4, 17.º, n.º 3, e 18.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25-10, 726.º, n.º 2, alínea b) e 734.º do Código de Processo Civil.

O recurso foi admitido.

*

Questões a resolver:

1 – Se os meios de prova que a recorrente apresentou são suficientes para a demonstração de que comunicou, ao recorrido, pela forma legalmente exigida, a integração deste em PERSI e, posteriormente, a extinção deste procedimento;

2 – Se uma resposta negativa à questão anterior justifica o indeferimento do requerimento executivo na fase processual em que o mesmo ocorreu.

*

Os factos relevantes para a decisão do recurso são os seguintes:

1 – A recorrente instaurou acção executiva para pagamento de quantia certa, fundada em requerimento de injunção a que foi atribuída força executiva.

2 – No primeiro despacho que proferiu no processo, o tribunal a quo decidiu o seguinte:

“(…)

II. Antes de mais, ao abrigo do disposto no art. 726.º e 734.º do CPC, convida-se o exequente a, no prazo de 10 dias:

(…)

(ii) Alegar se e de que forma foi dado cumprimento à obrigação de integração do executado no procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI), previsto no DL nº 227/2012, de 25 de Outubro, juntando ou requerendo a respectiva prova da comunicação de integração no PERSI e da sua extinção.”

3 – Na sequência do despacho referido em 2, a recorrente apresentou os documentos descritos nos números seguintes e, ainda, uma comunicação do Banco de Portugal.

4 – Para prova do facto de ter comunicado, ao recorrido, que o integrou no PERSI, a recorrente apresentou um escrito, assinado por um colaborador seu, com o seguinte conteúdo:

“50000006421504 / 522

Exmo. Senhor

SB

Rua (…)

São Vicente e Ventosa

7350-481 São Vicente e Ventosa

Lisboa, 4 de Março de 2021

Dossier nº: 50000006421504

Exmo. (s) Sr. (s): SB

Informamos que o contrato acima identificado foi integrado em PERSI na data de emissão da presente carta, por se verificar mora no cumprimento das obrigações, nos termos da lei.

Informamos ainda, ao abrigo do DL 227/2012 e Aviso nº 17/2012 do Banco de Portugal, que:

a) As prestações total ou parcialmente em atraso são as que se venceram, no dia 5 ou no dia útil seguinte, de cada mês, desde Janeiro de 2021;

b) O Montante total em atraso, na data de geração da carta, é de € 426,58 que corresponde a € 217,94 de capital, €168,00 de juros remuneratórios, € 5,01 de juros de mora, € 24,00 de comissões por atraso no pagamento e € 11,63 de outros encargos (fiscais, seguros, se aplicável, outras comissões e despesas cobrança postal);

c) Para obter informações adicionais e para negociar eventuais soluções para a regularização da situação de incumprimento que lhe sejam propostas, ligue para o número de telefone abaixo indicado, envie um e-mail para (…) ou vá a www.--------.pt à zona “Prevenção e Gestão do Incumprimento”.

Enviamos em anexo um documento informativo e explicativo sobre o PERSI e os direitos e deveres do cliente bancário.

Para bem avaliarmos a sua capacidade financeira solicitamos que nos envie, no prazo máximo de 12 dias a contar da data desta carta, uma exposição escrita da mesma, acompanhada dos seguintes documentos atualizados:

- Última declaração de IRS do(s) titular(es) do contrato;

- Últimos 3 recibos de vencimento ou comprovativos de outros rendimentos do(s) titular(es) do contrato;

- Declaração a confirmar que os dados fornecidos são verdadeiros e atualizados.

O não envio destes documentos no prazo de 12 dias extinguirá o PERSI por falta de colaboração do Cliente com possível resolução do contrato e demais consequências legais.

Para qualquer esclarecimento adicional estamos ao seu dispor através do telefone (…). Pode ainda contactar-nos através do e-mail (…) ou através do site (…).

Com os melhores cumprimentos,”

5 – Para prova do facto de ter comunicado, ao recorrido, que o PERSI se extinguiu, a recorrente apresentou um escrito, assinado por um colaborador seu, com o seguinte conteúdo:

“De: F, S.A.

Para: SB@gmail.com

Assunto: Extinção PERSI – 50000006421504

Data Envio: 23/03/2021 22:02

Contrato nº:50000006421504

Matricula: XX-XX-XX

Caro/a(s) SB,

Informamos que o PERSI relativo ao contrato acima identificado, foi extinto na data da presente carta, uma vez que, não obstante as tentativas efetuadas pela F, S.A., não nos enviou os documentos solicitados, nem prestou as informações necessárias para que fosse possível a análise da sua situação financeira, assim como de uma proposta de acordo.

Relembramos que, a falta de pagamento das prestações, verificadas as condições legal e contratualmente previstas, pode implicar a resolução do contrato de crédito por incumprimento, com as consequências previstas nas Condições Gerais do mesmo.

A F, S.A. mantém-se disponível para avaliar novas propostas que permitam resolver a situação em que se encontra o seu contrato, de forma amigável e sem necessidade de recurso à via judicial.

Conte com o nosso apoio em tudo o que precisar. Estamos sempre disponíveis através dos seguintes canais:

- Email: (…)

- Telefone: (…)

- Site: (…)

Cordialmente,”.

6 – A recorrente apresentou um escrito, assinado por um colaborador seu, com o seguinte conteúdo:

“Lisboa, 16 de Abril de 2021

Contrato nº: 50000006421504

Matricula: XX-XX-XX

Assunto: Aviso de Cobrança

Caro SB,

Informamos que o Gestor de Recuperação CS lhe fez uma visita pessoal para regularização da situação de incumprimento relativa ao contrato acima identificado.

Consulte em baixo toda a informação necessária para efetuar o pagamento do montante em atraso.

Caso o pagamento não seja efetuado poderemos avançar com uma ação judicial.

Conte com o nosso apoio em tudo o que precisar. Estamos sempre disponíveis através dos seguintes canais:

- Telefone do Gestor: (…)

- E-mail: (…)

- Telefone: (…)

- Site: (…)

Se já regularizou o montante em atraso, por favor, considere esta carta sem efeito.

Cordialmente,

(…)”

7 – A recorrente apresentou um escrito, extraído do seu sistema informático, com o registo das comunicações que alega ter encaminhado para o recorrido.

*

1 – Se os meios de prova que a recorrente apresentou são suficientes para a demonstração de que comunicou, ao recorrido, pela forma legalmente exigida, a integração deste em PERSI e, posteriormente, a extinção deste procedimento:

Não é questionado que o contrato celebrado entre recorrente e recorrido se encontra abrangido pelo regime estabelecido no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25.10 (diploma ao qual pertencem as normas adiante referenciadas sem indicação da sua proveniência), pelo que, perante a situação de incumprimento por parte do recorrido, a recorrente tinha o dever de o integrar em PERSI entre o 31.º e o 60.º dia subsequentes à data do vencimento da obrigação, nos termos do artigo 14.º, n.º 1.

Nos termos do artigo 14.º, n.º 4, a recorrente tinha o dever de informar o recorrido da sua integração em PERSI através de comunicação em suporte duradouro, entendendo-se como tal, nos termos do artigo 3.º, al. h), qualquer instrumento que permita armazenar informações durante um período de tempo adequado aos fins a que as informações se destinam e que possibilite a reprodução integral e inalterada das informações armazenadas.

Do artigo 17.º, n.º 3, resulta que a recorrente tinha também o dever de informar o recorrido, através de comunicação em suporte duradouro, da extinção do PERSI, descrevendo o fundamento legal para essa extinção e as razões pelas quais considerava inviável a manutenção deste procedimento. O n.º 4 do mesmo artigo estabelece que a extinção do PERSI só produz efeitos após a comunicação referida no n.º 3, salvo quando o fundamento de extinção for o previsto na alínea b) do n.º 1.

Decorre do artigo 18.º, n.º 1, al. b), a proibição de a recorrente intentar ações judiciais, tendo em vista a satisfação do seu crédito, no período compreendido entre a data de integração do recorrido em PERSI e a extinção deste procedimento.

Encontrando-se a recorrente obrigada, em face do incumprimento por parte do recorrido, a integrar este último em PERSI, e, até à extinção deste procedimento, impedida de intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito, conclui-se que o cumprimento dos deveres acima descritos constitui uma condição de admissibilidade da acção. A falta de cumprimento desses deveres consubstancia uma excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que determina a extinção da instância – artigos 576.º, n.º 2, e 578.º do CPC. O ónus da prova dos factos em que esse cumprimento se traduz, nomeadamente da realização das comunicações impostas pelos artigos 14.º, n.º 4, e 17.º, n.º 3, recai sobre a recorrente, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.

Está em causa, em primeiro lugar, saber se os meios de prova que a recorrente apresentou, na sequência de para tanto ter sido notificada, são suficientes para a demonstração de que, nos termos dos citados artigos 14.º, n.º 4, e 17.º, n.º 3, comunicou, ao recorrido, que o integrou em PERSI e, posteriormente, que este procedimento se extinguiu.

O tribunal a quo respondeu negativamente a esta questão, considerando que a recorrente se limitou a juntar aos autos “dois documentos (simples) em que o executado aparentemente consta como destinatário, o primeiro datado de 04-03-2021 (integração em PERSI) e o segundo de 23-03-2021 (onde consta, como destinatário, um email, aí melhor identificado, e é mencionada a extinção do PERSI por falta de colaboração) – sem qualquer comprovativo de envio ou de recepção. Ou seja, juntou impressões de documentos elaborados em computador (…). Não juntou qualquer comprovativo de envio ou de recepção das comunicações em causa.”

Mais adiante, no despacho recorrido, concluiu-se o seguinte:

“Do articulado que antecede, apresentado pela exequente, resulta a elaboração de dois documentos tendo por destinatário o executado, comunicando a integração/extinção do PERSI – mas não o envio ou sequer a recepção de tais comunicações.

A junção dos documentos apenas permite demonstrar a utilização de um processador de texto com vista a documentar uma mensagem.

Não foi junta ou requerida, pela parte, qualquer prova suplementar com vista a demonstrar os factos «envio» e «recepção» – concluindo-se que a exequente entende que é desnecessário fazer qualquer prova sobre o envio ou recepção das referidas comunicações.

Assim, não podem, evidentemente, considerar-se provados os factos enunciados em a) e b) do ponto i. da presente decisão.

Atento o exposto, porque tal matéria (envio e recepção das missivas) resulta não demonstrada, não podendo concluir-se pelo cumprimento do regime em causa, verifica-se uma excepção dilatória inominada decorrente do art. 18.º n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro - que constitui pressuposto da admissibilidade da acção executiva.”

A recorrente discorda deste entendimento, considerando que os meios de prova que juntou aos autos da realização das comunicações em causa são suficientes. Analisemos a argumentação por si expendida.

A forma como a recorrente coloca a questão nas conclusões N a Q não nos parece curial. Não está em causa a formulação de um específico juízo de valor sobre a fiabilidade dos meios de prova apresentados por instituições de crédito. Isso seria absolutamente despropositado. As exigências probatórias são as mesmas para todos. Dito de outra forma, os meios de prova, nomeadamente documental, que sejam apresentados por uma instituição de crédito, devem ser valorados exactamente da mesma forma como o seriam caso tivessem sido apresentados por outra entidade, nomeadamente por uma pessoa singular.

Como qualquer outra entidade, as instituições de crédito que se encontrem oneradas com o ónus da prova da realização de uma comunicação terão de demonstrar que emitiram a declaração e que esta foi recebida pelo destinatário. Para tanto, não basta a junção ao processo de um escrito, por si unilateralmente elaborado, que seja endereçado a outrem ou com a configuração descrita no n.º 7.

A lei não exige que as comunicações da integração do devedor em PERSI e da extinção deste procedimento sejam remetidas através de correio registado, com ou sem aviso de recepção. Os artigos 14.º, n.º 4, e 17.º, n.º 3, exigem, sim, que aquelas comunicações sejam efectuadas em suporte duradouro, sendo este definido pelo artigo 3.º, al. h), como “qualquer instrumento que permita armazenar informações durante um período de tempo adequado aos fins a que as informações se destinam e que possibilite a reprodução integral e inalterada das informações armazenadas”. Uma carta constitui um suporte duradouro independentemente de ser enviada com ou sem registo. Ou seja, uma carta simples constitui um suporte duradouro e, sendo assim, as comunicações da integração do devedor em PERSI e da extinção deste procedimento podem ser feitas por esse meio.

À semelhança daquela que é feita através de outro suporte duradouro, a comunicação através do envio de carta simples tem de ser provada. Ora, é conhecida a dificuldade de prova desse envio e da recepção pelo destinatário. Daí a frequente utilização de carta registada, com ou sem aviso de recepção, quando seja necessário fazer aquela prova.

É esta a consequência prática da realização das comunicações da integração do devedor em PERSI e da extinção deste procedimento através do envio de carta simples: a dificuldade de fazer prova desse envio e da recepção. O meio é legalmente admissível, mas dificulta a prova da prática do acto.

Aquilo que não se pode pretender é que a prova do envio de uma carta simples e da sua recepção pelo destinatário possa ser feita através da simples apresentação de uma cópia dessa carta. Ou, mais precisamente, de uma alegada cópia dessa hipotética carta. É neste ponto que a argumentação da recorrente parece confundir a questão da validade da comunicação com a da sua prova. A comunicação através de carta simples é válida. Porém, se for essa a sua opção, a parte onerada com o ónus da prova da realização da comunicação enfrentará dificuldades probatórias acrescidas, relativamente àquelas que teria se tivesse recorrido ao correio registado. A comunicação é válida, mas de difícil prova.

Ainda assim, as duas questões permanecem distintas. Daí que, do facto de a lei não exigir que as comunicações da integração do devedor em PERSI e da extinção deste procedimento sejam feitas através de carta registada, não resulte que o grau de exigência da prova da comunicação feita através de carta simples diminua, ao ponto de poder ser feita através da simples apresentação de uma pretensa cópia dessa hipotética carta. Argumentar contra este grau de exigência probatória invocando que a lei não exige a utilização de correio registado para a validade das comunicações é confundir as questões.

Sendo assim, a apresentação do escrito referido no n.º 4, não prova que a recorrente tenha comunicado, ao recorrido, que o integrara em PERSI. Não prova, nem a emissão, nem a recepção, nem sequer o conteúdo da carta que a recorrente alega ter enviado. Ou seja, nada prova. Nem sequer como princípio de prova poderá valer. Com efeito, por se tratar de um documento unilateralmente elaborado por uma das partes, não é idóneo para que o julgador forme, sequer, uma convicção sobre a hipótese desse facto. Como meio de prova, vale tanto quanto a mera alegação desse facto, ou seja, nada[1]. Pela mesma razão por que não poderia ser atribuído qualquer valor probatório, por exemplo, a um documento elaborado pelo recorrido no qual este “certificasse” ter pago a sua dívida à recorrente.

O mesmo se diga, mutatis mutandis, dos documentos descritos nos n.ºs 5 a 7. A recorrente alega ter remetido um e-mail ao recorrido para lhe comunicar a extinção do PERSI, mas, para prova desse facto, apenas apresentou uma pretensa cópia daquele. Alega que um colaborador seu deixou pessoalmente a carta descrita em 6 na caixa do correio do recorrido, mas, para prova desse facto, apenas apresentou uma pretensa cópia daquela. E alega ter efectuado as tentativas de contacto com o recorrido descritas no documento n.º 7, sem apresentar qualquer meio de prova para além deste último. Por serem documentos elaborados unilateralmente pela recorrente, não lhes pode ser reconhecido qualquer valor probatório.

Concluindo este ponto, respondemos negativamente à primeira das questões que enunciámos, à semelhança do tribunal a quo: os meios de prova que a recorrente apresentou não são suficientes para a demonstração de que comunicou, ao recorrido, pela forma legalmente exigida, a integração deste em PERSI e, posteriormente, a extinção deste procedimento. Conclusão esta que, aliás, seria idêntica se reconhecêssemos o valor de princípio de prova a algum dos documentos descritos nos n.ºs 4 a 7, dada a ausência de qualquer meio de prova que os corroborasse.[2]

2 – Se tal resposta negativa justifica o indeferimento do requerimento executivo na fase processual em que o mesmo ocorreu:

O artigo 726.º, n.º 2, al. b), do CPC, estabelece que o juiz indefere liminarmente o requerimento executivo quando ocorram excepções dilatórias, não supríveis, de conhecimento oficioso. O objectivo desta norma é evidente. Se, em face do requerimento executivo, for patente que se verifica uma excepção daquela natureza, o processo não poderá prosseguir, devendo aquele requerimento ser indeferido logo em sede de despacho liminar, a fim de evitar a prática de actos processuais inúteis. O legislador pretende que, logo na fase de apreciação liminar do requerimento executivo, o juiz sindique a regularidade da instância, obstando a que esta se desenvolva inutilmente.

O artigo 734.º, n.º 1, do CPC, estabelece que o juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro acto de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo. Visa-se, assim, nomeadamente, que, até ao momento processual acima referido, logo que o juiz se aperceba da ocorrência de uma excepção dilatória, não suprível, de conhecimento oficioso, rejeite a execução. A partir do momento em que o juiz tiver elementos para concluir que aquela excepção se verifica, deverá obstar a que a execução prossiga.

Estas duas normas encontram-se, pois, em perfeita sintonia, actuando em momentos processuais distintos.

No caso dos autos, apesar de o crédito exequendo ter como fonte um contrato abrangido pelo regime estabelecido no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25.10, a recorrente nada alegou, no requerimento executivo, sobre o cumprimento do seu dever de integrar o recorrido em PERSI e a extinção deste procedimento. Daí que, logo no primeiro despacho que proferiu, o tribunal a quo tenha, acertadamente, convidado a recorrente a alegar se, e de que forma, cumprira o dever de integração do recorrido em PERSI, juntando ou requerendo prova da comunicação daquela integração e da extinção do procedimento. Sem a prova do cumprimento daquele dever, estava por demonstrar a verificação de uma condição de admissibilidade da acção, demonstração essa a cargo da recorrente, como vimos anteriormente. E, sem essa demonstração, a execução não deveria prosseguir, para evitar a prática de actos inúteis. Ou a recorrente estava em condições de provar que cumprira o dever de integrar o recorrido em PERSI, ou não valia a pena a execução prosseguir, para ser rejeitada apenas em momento ulterior.

Na sequência do convite que lhe foi dirigido pelo tribunal a quo, a recorrente apenas apresentou, como meios de prova, os documentos acima analisados, que não têm qualquer valor probatório. Perante isto, o tribunal a quo tomou a única decisão possível: julgou verificada a excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, decorrente da falta de cumprimento do dever de integração do recorrido em PERSI, e rejeitou o requerimento executivo. Não faria sentido a execução prosseguir quando já era evidente que a recorrente não se encontrava em condições de cumprir o ónus da prova do cumprimento daquele dever.

Na decisão recorrida, o tribunal a quo declarou indeferir liminarmente o requerimento executivo. Porém, em rigor, não se tratou de um despacho liminar, pois não foi o primeiro despacho proferido no processo. Pela sua própria natureza e tal como a sua designação inculca, o despacho liminar não é precedido por qualquer outro despacho, ainda que este seja proferido com a finalidade daquele que referimos no n.º 2[3]. Consequentemente, é aplicável o disposto no artigo 734.º, n.º 1, do CPC, com o qual a decisão recorrida se harmoniza perfeitamente.  Ou seja, independentemente da forma como o qualificou, o tribunal a quo podia e devia ter proferido a decisão recorrida no momento processual em que o fez.

Contra o que acabámos de afirmar, argumenta-se que, mesmo nas condições descritas, a execução deve prosseguir, porquanto, por um lado, o despacho liminar de indeferimento pressupõe que a inviabilidade da acção seja manifesta e indiscutível e, por outro, que o executado poderá opor-se à execução e, nessa sede, invocar todos os fundamentos que pudessem sê-lo, como defesa, no processo de declaração, nos termos do artigo 731.º do CPC.

A primeira objecção não vale para a situação dos autos, porquanto a decisão recorrida não pode ser qualificada como sendo de indeferimento liminar. A circunstância de essa decisão ter sido antecedida por um despacho de convite da recorrente a “abrir o jogo”, alegando os factos relativos ao cumprimento do dever de integração do recorrido em PERSI, nomeadamente a realização das comunicações legalmente exigidas, e apresentando ou requerendo os meios de prova desses mesmos factos, altera completamente os dados da questão. Da resposta ao referido convite resultou claramente que a recorrente não se encontra em condições de cumprir o ónus da prova da realização daquelas comunicações. Com isso, a inviabilidade da execução ficou patente, justificando-se a sua imediata rejeição.

A segunda objecção não faz sentido, desde logo, porque assenta na expectativa de que, de um meio de defesa que a lei confere ao executado, resulte, não a paralisação da pretensão do exequente, mas sim o reforço da posição deste através da prova, que até aí não fora feita, da verificação de uma condição de admissibilidade da acção. Ou seja, assenta na expectativa de uma disfuncionalidade dos embargos de executado, decorrente de uma de duas hipóteses.

 A primeira hipótese seria a de o exequente, em sede de embargos de executado, apresentar os meios de prova do cumprimento dos deveres de comunicação resultantes do regime jurídico do PERSI que deixara de juntar ao requerimento executivo ou, pior ainda, que deixara de apresentar mesmo na sequência de para tanto ter sido convidado pelo juiz. Não nos parece que tal actuação processual do exequente seja merecedora de tutela através da concessão de uma nova oportunidade para apresentar os meios de prova que devia ter apresentado em qualquer dos momentos processuais antes referidos.

A segunda hipótese seria a de a prova do cumprimento dos deveres de comunicação resultantes do regime jurídico do PERSI resultar da actuação processual do próprio executado. Trata-se de uma hipótese, no mínimo, remota, que de forma alguma justifica que o juiz deixe de cumprir o seu dever de indeferir o requerimento executivo logo que constate que a parte onerada com o ónus da prova da verificação da condição de admissibilidade da acção que vimos analisando não se encontra em condições de o fazer.

Mais, precisamente por serem um meio de defesa do executado, os embargos constituem um processado de natureza eventual, dependente da iniciativa da parte em benefício da qual a lei os admite. Não nos parece que a mera probabilidade, que poderá ser muito remota – como acontece no caso dos autos, em que o recorrido foi citado editalmente –, de que o executado venha a deduzir embargos, constitua fundamento válido para o juiz deixar de indeferir o requerimento executivo logo que constate que, com base nos meios de prova constantes dos autos, não pode concluir que o exequente cumpriu o seu dever de integrar o executado em PERSI e de, no âmbito deste procedimento, ter efectuado as comunicações legalmente exigíveis.

Deverá, inclusivamente, equacionar-se o seguinte: na ausência de dedução de embargos de executado, qual deveria ser a atitude do juiz? Deixar a execução prosseguir, ficcionando, com fundamento na não dedução de embargos de executado, que as comunicações foram feitas? A lei não prevê este cominatório. Ou deveria o juiz, só então, rejeitar a execução por se ter gorado a expectativa de dedução de uns embargos de executado “salvadores” da pretensão do exequente? Não nos parece que tal solução se harmonize com o normal funcionamento do processo executivo e, em particular, com o princípio da economia processual.

Concluindo, o tribunal a quo podia e devia conhecer da excepção dilatória inominada decorrente do artigo 18.º n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25.10, no momento processual em que o fez, pelo que a decisão recorrida deverá manter-se, improcedendo o recurso[4].

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.

*

Évora, 07.11.2023

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Anabela Luna de Carvalho (1.ª adjunta)

Maria Domingas Simões (2.ª adjunta, com voto de vencida)

 

Vencida.

Tal como defendi no processo 193/22.6T8ELV-A.E1, de 15/9/2022, em que fui relatora, continuo a entender, pese embora a valia, que reconheço, dos argumentos aqui invocados, que a junção aos autos das denominadas cartas de comunicação e a alegação de que foram enviadas à executada, não fazendo prova do seu envio e recepção deve, todavia, ser considerada princípio de prova do envio, podendo ser corroborada por outros meios probatórios.



[1] Sobre o conceito de princípio de prova, leia-se JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Manual de Processo Civil, volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, páginas 478 e 479, JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4.ª edição, Gestlegal, 2017, p. 260, e FRANCISCO MANUEL LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, Volume II, 2.ª edição - Reimpressão, Edições Almedina, 2020, p. 386.

[2] Nota do relator: Ao negar o valor, sequer, de princípio de prova aos documentos apresentados pela recorrente, altero a posição que assumi ao subscrever, na qualidade de 2.º adjunto, o acórdão desta Relação de 15.09.2022, relatado pela agora 2.ª adjunta, onde se afirmou que a apresentação de cópia das cartas mediante as quais uma instituição de crédito comunicou a um devedor a integração deste em PERSI e a extinção deste procedimento constituíam um princípio de prova, que careceria de corroboração por outros meios de prova. Pelas razões referidas no texto, nem como princípio de prova tais documentos podem ser considerados.

[3] Neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.02.2015 (ANA PAULA BOULAROT) e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, em https://blogippc.blogspot.com/2023/09/jurisprudencia-2023-7.html.

[4] Nota do relator: Assim altero, também, a posição que assumi ao subscrever o acórdão desta Relação de 15.09.2022, referido na nota 2.

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

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