Processo n.º 1670/13.5TBCTX.E1
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Sumário:
1 – Resulta dos artigos 484.º, n.º 1, e
485.º, n.ºs 2 a 4, do CPC, que o relatório pericial deve dar resposta completa,
clara e coerente a todas as questões que constituem objecto da perícia. Tais
respostas devem, em particular, ser tecnicamente rigorosas, atentas a natureza
e finalidade do meio de prova em causa.
2 – Resulta dos mesmos preceitos legais
que a fundamentação do relatório pericial também não pode deixar de ser
completa, clara e coerente, tendo especialmente em conta que os destinatários
do relatório não possuem os especiais conhecimentos de quem o elaborou, assumindo,
assim, fundamental importância a capacidade de comunicação dos peritos com
aqueles.
3 – O incumprimento destes requisitos
legais constitui fundamento de reclamação pelas partes, que o juiz não poderá
deixar de atender. Caso as partes não reclamem, o juiz tem o dever de
determinar oficiosamente a prestação, pelo(s) perito(s), dos esclarecimentos ou
aditamentos que entenda serem necessários para a boa decisão da causa.
4 – O incumprimento dos mesmos
requisitos não é suprível através da prestação de esclarecimentos, pelo(s)
perito(s), na audiência final.
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Relatório
AJ e
mulher, MP, propuseram a presente acção declarativa comum contra MC, AC e CC, pedindo
a condenação destas últimas a reconhecerem o seu direito de propriedade sobre
uma parcela de terreno integrante do seu prédio que ilegitimamente ocupam com
uma obra inacabada, a restituírem-lhes a mesma parcela livre e desimpedida de
quaisquer construções e demais desperdícios destas decorrentes e a absterem-se
da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização, por si, da
mesma parcela.
As rés contestaram, sustentando que, com a construção
do muro contra o qual os autores se insurgem, não invadiram o prédio destes,
concluindo no sentido da improcedência da acção. As rés também deduziram
reconvenção, pedindo a condenação dos autores a pagarem-lhes uma indemnização
de montante não inferior a € 5.000 e, ainda, da que vier a apurar-se e a
liquidar-se em execução de sentença.
Os autores replicaram, impugnando a matéria do pedido
reconvencional e concluindo no sentido da improcedência deste.
Foi proferido despacho saneador, com a identificação
do objecto do litígio e o enunciado dos temas de prova.
Na data agendada para a realização da audiência final
e após a abertura desta, foi proferido despacho ordenando a realização de uma
perícia e, com esse fundamento, dando sem efeito a audiência, adiando a mesma sine die, até ao momento em que o
relatório pericial fosse junto aos autos.
Foi recebido o relatório pericial, tendo os autores e
as rés reclamado do mesmo.
Ambas as reclamações foram indeferidas.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, na
sequência da qual foi proferida sentença, que julgou improcedentes, quer a
acção, quer a reconvenção.
Os autores recorreram, quer do despacho que indeferiu
a sua reclamação contra o relatório pericial, quer da sentença. As suas
alegações contêm as seguintes conclusões:
1 – Os apelantes insurgem-se contra o despacho que
logrou indeferir a reclamação que apresentaram contra o relatório pericial, por
este padecer dos vícios de deficiência, obscuridade e falta de fundamentação.
2 – Sendo certo que, a lei exige que no mesmo o perito
ou peritos se pronunciem fundamentadamente sobre o seu objecto.
3 – Não bastando para tal efeito previsto na lei que o
dito relatório pericial apenas contenha mapa com coordenadas e documentos
fotográficos, sem qualquer fundamentação sobre o objecto da perícia.
4 – Omitindo-se no relatório a fundamentação, não
cumpre o mesmo a citada disposição legal, pelo que incorre assim nos vícios
assacados pelos apelantes.
5 – Por conseguinte, impunha-se à Mma. Juiz “a quo”
que ordenasse aos peritos que nele incluíssem a fundamentação em falta.
6 – Outrossim, a decisão sobre a matéria de facto
igualmente carece de ser alterada, julgando não provados os factos constantes
dos pontos 12, 15, 16, 19 a 21 e provado o facto constante da matéria de facto
não provada referido na al. i).
7 – Por um lado, a descrição registral do prédio das
apeladas constante do registo, a qual influiu na parte de decisão de facto
impugnada, não pode constituir prova das áreas, limites e confrontações, por
não cobertas pela presunção derivada do registo, cfr. art. 7º, do CRP.
8 – Ademais, os referidos elementos da descrição
física do prédio por resultarem de declarações das partes proferidas no título
invocado, não vinculam terceiros, nem estão cobertas pela fé pública do notário
titulador, cf. o disposto no art. 371.º, do CCiv.
9 – Outrossim, os depoimentos conjugados das
testemunhas AS e ZS, cujas passagens se encontram transcritas no corpo desta
alegação, configuram uma situação factual que impõe resposta diversa daquela a
que se chegou na parte a decisão ora impugnada.
10 – Porquanto, do depoimento gravado respeitante à
primeira testemunha - declarações iniciadas nos Mins. 4.46, 5.10 e 6.17 – esta
refere qual a sua razão de ciência, contrariando a conclusão extraída pela Mma.
Juiz “a quo”, vazada na fundamentação da decisão de facto, onde ai se julgou
que a mesma “não teria conseguido
esclarecer em que assenta tal afirmação.”
11 – Quando na verdade, a mesma declarou que: “Aquilo está dentro do terreno do AJ, dentro
da tal passagenzinha que a gente ia para o poço, foi demolida para a casa ficar
em esquadria, ouvi eu dizer aos pedreiros.”
12 – Com efeito, a testemunha ZS – gravado no ficheiro
20161123151802_1035544_2871750 – que, segundo a Mma. Juiz “a quo” esta teria peremptoriamente precisado que o muro se
encontra construído no terreno das R. e porque o terreno dos A. estaria na
parte de baixo do desnível (com cerca de 1 metro).
13 – Contudo, esta testemunha respondeu a instâncias
da mandatária das recorridas sobre se a construção do prédio das R. teria
introduzido alguma alteração, a qual respondeu que sim, depondo: “Sim houve alteração, a planta da casa foi
feita um bocadinho grande demais e não havia espaço para implantar a casa.
(…).”
14 – E sobre a situação do dito carreiro, disse: “Agora eu penso que ele está mesmo na
extrema (…). Nunca lá fui medir se de facto tem um metro, acho um bocadinho
estreito para um metro. Porque é o metro que está na escritura. (…) Tenho uma
folha de partilhas da partilha da minha mãe e da mãe da minha prima (…) Eu
tenho uma folha de partilhas que consta lá um carreiro, aquilo e a adega, ao
lado da adega há um carreiro com um metro de largura. (…)”
15 – Sendo que o conhecimento da situação dele e respectiva
dimensão/largura, mormente no que a extrema entre os dois prédios concerne, tal
razão de ciência advém-lhe da escritura notarial, não que tivesse qualquer conhecimento
pessoal e directo.
16 – Outrossim, no concernente à implantação da casa
construída no prédio pela apelada mãe, a testemunha ZS foi enfática ao
responder a instância da mandatária daquelas que: “A adega foi deitada abaixo. A casa teve de ser feita na recta onde o
carreiro tinha o limite de um metro. (…)”
17 – Ora, coonestando o depoimento das testemunhas AS
e ZS verifica-se que afinal a casa edificada em lugar da adega ocupou o leito do
carreiro.
18 – O que significa que o muro foi edificado no
terreno pertença dos apelantes, talqualmente, se extrai do depoimento da
testemunha AS.
19 – Sendo aqui, imprestáveis as coordenadas
geográficas a que se refere a Mma. Juiz “a
quo”, bem como os depoimentos prestados em audiência pelos peritos e
testemunha topografo indicada pelas apeladas, que apenas se referiram à perspectiva
que extraíram da técnica que se socorreram.
20 – Mas, tal técnica não se compagina com o nosso
sistema de registo predial, que não cobre com a presunção dele derivada as
aéreas, limites e confrontações assim obtidos.
21 – Pelo que, deve assim ser alterada a decisão sobre
a matéria de facto, no sentido de não serem julgados provados os factos
elencados na conclusão 6.ª e ser julgado provado o facto vertido na al. i), da
parte da decisão respeitante aos factos não provados, como decorre do
depoimento da testemunha AS conjugado com o da testemunha ZS.
22 – Alterando-se a decisão de facto no sentido que
resulta das conclusões supra, deverão proceder os pedidos dos apelantes.
Houve lugar a resposta, sendo as seguintes as
conclusões das recorridas:
1. A decisão recorrida não merece qualquer reparo, já
que a mesma resultou de uma exaustiva produção de prova, tendo a Meritíssima
Juiz a quo, feito uma valoração criteriosa e prudente das provas produzidas,
incluindo as provas documentais trazidas pelas apeladas.
2. Os
apelantes colocam em causa matéria de facto dada por provada, sem, contudo,
respeitarem o teor da gravação, sendo dever dos recorrentes indicar com
precisão (exactidão) as passagens da gravação em que se funda ou proceder à
transcrição dos depoimentos – com a mesma precisão – que então e no seu
entender, daria uma diferente decisão de facto.
3. A
sentença recorrida não merece reparo, a qual resultou da livre apreciação e
valoração da prova produzida segundo critérios práticos e realistas e
lógico-intuitivos, colhidos quer da inquirição das testemunhas, como das
declarações do Perito e do Topógrafo que realizaram a perícia no local e ainda
da documentação junta.
4. Resulta,
assim, que a Meritíssima Juiz a quo fez o julgamento em estrito cumprimento do
artº. 607º. do C.P.C.
O
recurso foi admitido.
Objecto
do recurso
É entendimento uniforme que é pelas
conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o
âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º,
n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha
(artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo
663.º, n.º 2, do NCPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo
o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Importa apreciar, em primeiro lugar, o
recurso interposto do despacho que indeferiu a reclamação dos recorrentes
contra o relatório pericial. Está em causa saber se este relatório padece dos
vícios que os recorrentes lhe apontaram na reclamação que deu origem ao
despacho de indeferimento de que agora recorrem e, na hipótese afirmativa, se
tais vícios tiveram influência no sentido da sentença (cfr. artigo 660.º do
CPC).
Factualidade
apurada
Com interesse para a resolução da
questão acima enunciada, resulta do processo o seguinte:
1 – Na sessão da audiência realizada em
23.09.2015, foi proferido o seguinte despacho:
“Compulsados
os autos e após a tentativa de conciliação verifica-se não estar assente a
posição dos marcos limitadores dos terrenos dos AA e dos RR patentes em
levantamento topográfico apresentado pelas R. (que os A. não aceitam) o que se
impõe com vista a aferir da exata localização dos mesmos e do muro em causa
nestes autos.
Tal
situação afigura-se a este Tribunal passível de esclarecimento apenas por
perícia a ordenar nestes autos.
Termos
em que, ao abrigo do Artº 467.º e seguintes do CPC, determino a realização de
perícia com vista a determinar:
a)
concreta localização da linha de estrema (e marcos) que delimita o terreno dos
AA e dos RR;
b)
localização do muro construído e em causa nestes autos, por referência àquela
estrema;
c)
medida da frente dos terrenos dos AA e dos RR face à Rua …
Determina-se
que se solicite ao Instituto Geográfico Português, remetendo cópia de fls. 78,
as coordenadas dos marcos assinalados com os nºs 2, 3 e 4 e bem assim os dois
pontos adicionais que no mesmo vão marcados com os nºs 5 e 6, sendo a selecção
de tais pontos obtida com a concordância dos mandatários das partes.
Obtidos
tais elementos, remeta-os ao perito para efeitos da perícia ordenada, bem como
as certidões prediais dos prédios em causa.
Indique
a secção pessoa idónea para a perícia ordenada, a qual desde já se nomeia,
devendo apresentar por escrito o compromisso de honra.
Fixa-se
o prazo de trinta dias para a realização da perícia.
Por
se afigurar que o relatório pericial deverá estar junto aos autos em momento
anterior à inquirição das testemunhas, dou sem efeito a presente audiência,
adiando a mesma sine die e até ao momento em que tal relatório se mostre junto
aos autos.
Junto
tal relatório, venham-me os autos conclusos.
Notifique.”
2 – Em 27.06.2016, foi recebido nos
autos um documento, assinado pelo perito nomeado, com o seguinte teor:
“3.
Relatório Pericial
-
A perícia realizada esteve com base a localização da linha de estrema e marcos
que delimita o terreno dos AA e dos RR.
-
A localização do muro construído e em causa nos autos
-
A medida da frente dos terrenos dos AA e dos RR face à rua …”
3 – O documento referido em 2 tem, em
anexo, sete fotos e uma planta.
4 – Os ora recorrentes reclamaram do relatório
pericial, sustentando que o mesmo padece de deficiência, obscuridade e ausência
de fundamentação das conclusões, sendo, por isso, inidóneo para os fins visados
pela perícia.
5 – O requerimento referido em 4 foi
indeferido, através de despacho que, na parte que agora interessa, tem o
seguinte teor:
“Nos
termos do disposto no artigo 485.º do Código de Processo Civil as partes podem
reclamar do relatório pericial quando entenderem que do mesmo resulta qualquer
deficiência, obscuridade ou contrariedade, ou que as conclusões não se mostram
devidamente fundamentadas, naturalmente por relação aos quesitos a que devem
responder.
Compulsado
o requerimento/reclamação apresentado pelas partes e o apresentado relatório
pericial (no qual constam assinalados os marcos/pontos determinados e a posição
do muro face à linha de estrema de tais pontos/marcos) verifica-se não existir
no reclamado relatório pericial qualquer deficiência, obscuridade ou
contrariedade, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas.
Com
efeito, cabendo reclamação do relatório pericial quando o mesmo não responde a
qualquer quesito que tenha sido formulado, responde de forma insuficiente
deixando questões por responder, responde de forma obscura que não permite
descortinar o seu sentido e alcance, responde de forma a que entre respostas
exista contradição ou apresenta conclusões não devidamente fundamentadas,
verifica-se que a existência de mapas com escalas diferentes (sendo que os
apontados pontos/marcos omissos efetivamente constam indicados) e a mera
discordância relativamente à posição do muro face à estrema não é fundamento
suficiente para que possa ser admitida tal reclamação.
Em
face do exposto, indefere-se o requerido.
Notifique.”
6 – Da sentença recorrida consta,
nomeadamente, o seguinte:
“Análise
Crítica da Prova
O
Tribunal alicerçou a sua convicção na ponderação e análise crítica do conjunto
da prova produzida, designadamente, na prova testemunhal e documental, nos
termos infra indicados.
As
respostas dadas resultam da valoração do mapa cadastral remetido pelo Instituto
Geográfico Português, com sinalização das coordenadas dos pontos e marcos, bem
assim, das plantas, certidões prediais e cadernetas prediais, certidões
notariais, do relatório pericial junto (fls.), dos esclarecimentos prestados
pelos peritos em sede de audiência de julgamento.
Com
efeito, considerando as fotografias juntas com o relatório pericial, pelas
quais é visível que apenas no marco/ponto 2 parte do muro se encontra (em cerca
de seis centímetros) para lá da linha delimitadora dos prédios (ou seja, no
prédio dos A.) – todos os seguintes marcos/pontos o muro encontra-se muito
(chegando aos
Acresce,
no sentido supra, os esclarecimentos prestados pelo perito e topógrafos
nomeados, NC e PG, que prestaram um depoimento isento, claro e revelador da sua
razão de ciência. (…)”
Fundamentação
O artigo
388.º do Código Civil estabelece que a prova pericial tem por fim a percepção
ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários
conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos,
relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial. Acerca deste
meio de prova, salienta ANTUNES VARELA que “a nota típica, mais destacada, da prova pericial consiste em
o perito não trazer ao tribunal apenas a
perspectiva de factos, mas pode trazer também a apreciação ou valoração
de factos, ou apenas esta.”[1] Acrescenta o mesmo autor
que “Essencial, em princípio, para
que haja perícia, é que a percepção
desses factos assente sobre conhecimentos
especiais que os julgadores não possuam, seja qual for a natureza (científica,
técnica, artística, profissional ou de mera experiência) desses conhecimentos.”[2]
O regime
adjectivo deste meio de prova encontra-se nos artigos 467.º a 489.º do Código
de Processo Civil, diploma ao qual pertencem todas as disposições legais adiante
referidas.
Quando
se trate de perícia oficiosamente ordenada, o juiz indica, no despacho que
determina a realização da diligência, o respectivo objecto, podendo as partes
sugerir o alargamento a outra matéria (artigo 477.º). O resultado da perícia é
expresso em relatório, no qual o perito ou peritos se pronunciam
fundamentadamente sobre o respectivo objecto (artigo 484.º, n.º 1). Se as
partes entenderem que há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no
relatório pericial, ou que as conclusões não se mostram devidamente
fundamentadas, podem formular as suas reclamações (artigo 485.º, n.º 2). Se as
reclamações forem atendidas, o juiz ordena que o perito complete, esclareça ou
fundamente, por escrito, o relatório apresentado (artigo 485.º, n.º 3). Ainda
que não haja reclamações, o juiz pode determinar oficiosamente a prestação dos
esclarecimentos ou aditamentos que considerar necessários (artigo 485.º, n.º
4).
Resulta
deste conjunto de normas que o relatório pericial deverá dar resposta completa,
clara e coerente a todas as questões que constituem objecto da perícia. Tais
respostas devem, em particular, ser tecnicamente rigorosas, atentas a natureza
e finalidade do meio de prova em causa.
Além
disso, a lei tem o cuidado de exigir que as tomadas de posição do ou dos
peritos sejam fundamentadas. Tal fundamentação também não pode deixar de ser
completa, clara e coerente, tendo especialmente em conta que os destinatários
do relatório não possuem os especiais conhecimentos de quem o elaborou, assumindo,
assim, fundamental importância a capacidade de comunicação dos peritos com
aqueles.
Tratando-se
de trazer ao processo, com vista à boa decisão da causa, o contributo de
pessoas com especial qualificação em determinada área do saber, isto é, que
possuam conhecimentos especiais que o juiz não possui, tal contributo não
poderá deixar de ficar expresso num relatório que, em si mesmo, forneça, a este
último – bem como às partes e seus advogados, para que possam exercer
devidamente o contraditório –, informação completa, clara, coerente,
tecnicamente rigorosa e fundamentada sobre todas as matérias que constituem
objecto da perícia.
É, pois,
com o descrito grau de exigência que o n.º 1 do artigo 484.º tem de ser
interpretado. Sempre que o relatório pericial não logre satisfazê-lo, as partes
poderão reclamar, nos termos do n.º 2 do artigo 485.º. O juiz, por seu turno,
não poderá deixar de atender tais reclamações sempre que as mesmas tenham razão
de ser. Se as partes não reclamarem, o próprio juiz tem, nos termos do n.º 4 do
artigo 485.º, o poder, que na realidade é um dever, de determinar oficiosamente
a prestação dos esclarecimentos ou aditamentos que julgar necessários para que
todas as matérias que constituem objecto da perícia fiquem devidamente
esclarecidas.
Analisemos
o relatório da perícia realizada neste processo à luz daquilo que acabámos de
afirmar. Recordemos o seu conteúdo: “A
perícia realizada esteve com base a localização da linha de estrema e marcos
que delimita o terreno dos AA e dos RR.”; “A localização do muro construído e
em causa nos autos”; “A medida da frente dos terrenos dos AA e dos RR face à
rua …”. Apenas isto. Seguem-se sete fotos e uma planta.
É
patente que, em rigor, este escrito não cumpre, sequer, os requisitos mínimos
para poder ser considerado um relatório pericial. Ficou por dizer tudo aquilo
que interessava saber, tendo em conta o objecto definido para a perícia. Nomeadamente:
Havia marcos no terreno? Na hipótese afirmativa, em que pontos do mesmo? É
possível determinar a estrema entre os prédios dos autores e das rés com base
nesses marcos? Foi dessa forma que a linha divisória dos dois prédios foi
calculada? Ou, em vez disso, foi-o exclusivamente, ou também, com base nas
coordenadas fornecidas pela Direcção-Geral do Território? Nesta última
hipótese, qual foi o procedimento técnico adoptado pelo perito e quais são as
margens de erro que se verificam na determinação de tais coordenadas no
terreno? Tais margens de erro são as referidas na informação prestada em 29.10.2015
pela Direcção-Geral do Território? Sendo-o, é possível afirmar, com rigor, se o
muro foi construído num ou noutro prédio, quando está em disputa uma faixa com
80 cm de largura, aparentemente inferior à margem de erro máxima e à própria
margem de erro média (a resposta a esta questão é absolutamente fundamental)?
Finalmente, qual é e como foi determinada a medida da frente dos prédios dos
autores e das rés (não basta a remissão para planta anexa, antes tendo de
constar, com toda a clareza, do próprio relatório, tal como acontece com a
restante informação)?
Perante
a evidente falta de toda esta informação, essencial para a boa decisão da causa,
bem como de um mínimo de fundamentação, há que reconhecer razão aos recorrentes
quando, na sua reclamação, afirmam que não resulta do relatório pericial
qualquer elemento útil e que, consequentemente, o mesmo é inidóneo para os fins
tidos em vista com a ordenada perícia. O relatório pericial é, em suma,
deficiente, obscuro e, de todo, não fundamentado. Logo, nos termos dos n.ºs 2 e
3 do artigo 485.º, a reclamação dos autores (apenas dessa tratamos) não podia
deixar de ter sido deferida.
Deficiências
do relatório pericial como as apontadas não são supríveis através da prestação
de esclarecimentos, pelo perito, na audiência final. As partes têm o direito
de, no momento processual próprio, isto é, aquando da notificação da
apresentação do relatório pericial, ficarem a conhecer, com rigor, o resultado
da perícia. Com efeito, desse conhecimento poderá depender, desde logo, a
decisão das partes de requererem a realização de uma segunda perícia, para o
que têm de alegar fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao
relatório apresentado (artigo 487.º, n.º 1). Do atempado conhecimento rigoroso
do resultado da perícia também poderá depender a decisão de os advogados se
fazerem assistir, durante a produção da prova e a discussão da causa, de
assistentes técnicos, ou seja, de pessoas dotadas de competência especial para
se ocuparem das questões de natureza técnica para as quais eles próprios não
tenham a necessária preparação (artigo 50.º). Note-se que a parte que pretenda
fazê-lo deverá, até 10 dias antes da audiência final, indicar, além da pessoa
que escolheu, “as questões para que reputa conveniente a sua assistência” (n.º
2 deste último artigo), o que pressupõe que, nesse momento processual, todas as
questões de natureza técnica que o objecto do processo envolva estejam
devidamente analisadas, respondidas e fundamentadas no relatório pericial, sem
prejuízo da sua ulterior discussão e esclarecimento na audiência final. De um
modo geral, está em causa o direito de as partes delinearem as suas estratégias
probatórias em devido tempo e na posse de todos os dados que, por lei, devem
ter. É nesta ordem de ideias que o artigo 486.º fala em meros “esclarecimentos”
dos peritos na audiência final. Esclarecer pontos concretos de um relatório
pericial devidamente elaborado não é, obviamente, a mesma coisa que prestar
declarações na sequência da apresentação de um relatório vazio de informação,
ou incompleto. Logo, da permissão legal dos primeiros não pode resultar uma
porta aberta para a violação do disposto nos artigos 484.º, n.º 1, e 485.º,
n.ºs 2 a 4.
Não
acompanhamos, pois, neste ponto, JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO e
RUI PINTO quando, embora afirmando, a propósito do artigo 588.º do anterior
CPC, a que corresponde o actual artigo 486.º, que “Os esclarecimentos que aí
(na audiência final) podem ser pedidos aos peritos transcendem a mera
reclamação contra o relatório apresentado”, que “Não se trata agora de corrigir
vícios do relatório” e que se trata, “fundamentalmente, de precisar as
conclusões do relatório, justificá-las e compreender as eventuais divergências
entre os peritos, de modo a proporcionar o máximo de elementos para a formação
da convicção judicial”, acabam por admitir, parece-nos que contraditoriamente,
que “esses vícios, se subsistirem (por as partes não terem reclamado, o juiz
não ter deferido a reclamação ou os peritos não terem esclarecido ou completado
devidamente o relatório), também possam ser eliminados no interrogatório dos
peritos em audiência”[3]. Esta última tomada de
posição, na medida em que abre a porta à possibilidade de, através do
expediente da prestação de esclarecimentos pelos peritos na audiência final,
suprir vícios do relatório pericial na sequência do injusto indeferimento de
reclamação das partes contra o mesmo, é inaceitável, por prejudicar o exercício
dos direitos processuais destas acima referidos e, no fundo, redundar no
reconhecimento, ao juiz, em sede de decisão de reclamações contra o relatório
pericial, de um poder discricionário (deferir a reclamação, ordenando
imediatamente que o perito complete, esclareça ou fundamente, por escrito, o
relatório apresentado, ou, em vez disso e apenas segundo o seu arbítrio, indeferir
a reclamação apesar do bem-fundado desta, deixando a correcção dos vícios do
relatório para a audiência final, em sede de esclarecimentos orais) que a lei
não lhe atribui (cfr., a este propósito, o disposto no artigo 152.º, n.º 4, 2.ª
parte).
Seja
como for, no caso dos autos, as declarações que, a título de esclarecimentos, o
perito e o topógrafo que o auxiliou na realização da perícia prestaram na
audiência final não responderam, de forma alguma, a todas as questões acima
formuladas. O perito declarou que achou a linha divisória entre os prédios
tendo como ponto de referência as coordenadas fornecidas pelo cadastro e que há
um único marco no terreno (não disse exactamente em que ponto), alinhado com as
referidas coordenadas. Quanto ao aspecto fundamental da margem de erro do meio
técnico através do qual efectuou a perícia, o perito admitiu o seu
desconhecimento, remetendo a questão para o topógrafo. Este último, além de
corroborar as declarações do perito, confirmou a existência das margens de erro
referidas na informação prestada em 29.10.2015 pela Direcção-Geral do
Território. No que toca às restantes questões relevantes, em especial à questão
fundamental de saber se é possível afirmar, com rigor, se o muro foi construído
num ou noutro prédio, quando está em disputa uma faixa com 80 cm de largura,
inferior à margem de erro máxima e à própria margem de erro média das
coordenadas fornecidas pela Direcção-Geral do Território, nada foi dito. Ou
seja, a um relatório pericial extremamente deficiente, seguiram-se, não
esclarecimentos, mas verdadeiras declarações do perito e do topógrafo que o
auxiliou sobre matéria que não consta do referido relatório, e, mesmo essas
declarações, não esclareceram os aspectos essenciais da perícia, tendo em conta
o objecto desta. Logo, ainda que se entendesse que as deficiências do relatório
pericial podem, em geral, ser supridas através da prestação de esclarecimentos,
pelo perito, na audiência final, tal suprimento não se verificou no caso dos
autos.
Por
último, é evidente, através da leitura da fundamentação de facto da sentença
recorrida, acima parcialmente transcrito, que o relatório pericial em questão,
apesar das suas patentes deficiências, acabou por constituir um dos meios de
prova fundamentais para a formação da convicção do tribunal recorrido sobre a
matéria de facto controvertida.
Em
conclusão, o despacho que indeferiu a reclamação dos recorrentes contra o
relatório pericial terá de ser revogado nessa parte e substituído por outro
que, deferindo o requerido, ordene, ao perito, que complete o relatório nos
termos por aqueles requeridos.
Como
consequência lógica da revogação do referido despacho, fica anulado o
processado subsequente ao mesmo, incluindo, naturalmente, a audiência final e a
sentença. Daí que fique prejudicado o conhecimento do recurso na parte em que
tem esta última por objecto.
Decisão
Acordam os juízes do
Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, na parte que tem
por objecto o despacho que
indeferiu a reclamação dos recorrentes contra o relatório pericial, revogando o
mesmo despacho nessa parte e ordenando a sua substituição por outro que,
deferindo o requerido pelos recorrentes, ordene, ao perito, que complete aquele
relatório nos termos por estes requeridos. Em consequência, anula-se o
processado subsequente ao mesmo, ficando prejudicado o conhecimento do recurso
na parte que tem por objecto a sentença.
Custas a cargo da parte
com elas onerada a final.
Notifique.
*
Évora, 12.10.2017
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.ª
adjunta
2.º adjunto