Processo n.º 290/16.7T8LAG.E1
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Sumário:
1 – A defesa do direito de propriedade
na sequência de penhora efectuada em execução em que não é parte quem se arroga
tal direito não tem de ser judicialmente efectivada através da dedução de embargos
de terceiro.
2 – Inexiste, pois, erro na forma de
processo se quem se arroga o referido direito optar pela propositura de uma
acção com processo comum de declaração tendo em vista o reconhecimento do mesmo
direito.
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SC propôs
a presente acção declarativa comum contra JC, JP e Banco, S.A., pedindo a
condenação destes últimos a reconhecerem o seu direito de propriedade sobre a
fracção autónoma identificada na petição inicial e que seja ordenado o
cancelamento de todos os registos que possam ofender o mesmo direito,
nomeadamente o registo da penhora a que corresponde a inscrição AP.3171 de
2010/09/28, com todas as consequências legais.
Citado,
o réu Banco, S.A., contestou, invocando, além do mais, a existência de erro na
forma de processo, uma vez que, se queria fazer valer o seu direito de
propriedade em face da penhora contra a qual agora reage, o autor deveria tê-lo
feito através da dedução de embargos de terceiro no processo executivo, nos
termos do artigo 342.º, n.º 1, do CPC.
Os dois
restantes réus não chegaram a ser citados, o que determinou que o processo
fosse concluso. Nessa altura, o tribunal recorrido proferiu sentença que, com
fundamento em erro na forma de processo, anulou todo o processado, absolveu o
réu Banco, S.A., da instância e indeferiu liminarmente a petição inicial quanto
aos dois restantes réus, nos termos dos artigos 193.º, n.ºs 1 e 2, 196.º,
200.º, n.º 2, 278.º, n.º 1, al. b), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. b) e 590.º,
n.º 1, do CPC.
O autor
recorreu desta sentença. As
suas alegações contêm as seguintes conclusões:
1 – Na presente acção, o autor pede que os réus sejam
condenados a reconhecerem o seu direito de propriedade sobre a fracção autónoma
identificada no artigo 1.º da petição inicial e que seja ordenado o
cancelamento de todos os registos que possam ofender o mesmo direito de
propriedade, nomeadamente o registo da penhora com a inscrição AP. 3171 de
2010/09/28;
2 – O autor fundamenta a acção no facto de ter
adquirido a fracção autónoma por escritura de compra e venda outorgada em 20 de
Outubro de 2005, de ter sido ele quem tem praticado os actos do proprietário e
no facto de o registo de penhora ofender o seu direito de propriedade;
3 – A todo o direito corresponde a acção adequada a
fazê-lo reconhecer em juízo;
4 – Porque a penhora constitui um direito de garantia
sobre a fracção de que beneficia o exequente Banco, S.A., o seu registo afecta, limita e
restringe o direito de propriedade do autor sobre a fracção;
5 – Os meios idóneos ao alcance do dono de um bem que
queira reagir contra a penhora desse bem para garantia de dívida alheia,
consistem no protesto de reivindicação, nos embargos de terceiro e ainda na
acção de reivindicação;
6 – A forma de processo adequada para a acção de
reivindicação consiste no processo declarativo comum;
7 – A acção de reivindicação é distinta dos embargos
de terceiro, sendo certo que o autor configurou a presente acção como sendo uma
acção de reivindicação, à qual corresponde o processo que o autor utilizou;
8 – Disposições violadas: artigos 2.º, n.º 2, do CPC, e
1311.º, n.º 1, e 1315.º do Código Civil.
O recorrido Banco, S.A., apresentou contra-alegações, com
as seguintes conclusões:
1 – O recorrente não intentou, nem podia intentar, uma
acção de reivindicação contra o recorrido, à luz do disposto no artigo 1311.º
do Código Civil;
2 – A dedução de embargos de terceiro no processo
executivo, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do CPC, teria sido o
meio processual adequado à tutela da pretensão do recorrente;
3 – Por conseguinte, o recorrente incorreu em erro na
forma de processo e nessa medida, atento o disposto no artigo 2.º, n.º 2, do
CPC, a sentença recorrida não merece qualquer censura, devendo manter-se.
O recurso foi admitido.
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É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
A questão a decidir resume-se a saber se é legalmente
admissível a defesa do direito de propriedade, na sequência de penhora
efectuada em execução em que não é parte quem se arroga tal direito, através da
propositura de uma acção com processo comum, ou, se, ao invés, tal defesa
apenas poderá ser judicialmente efectivada através da dedução de embargos de
terceiro.
A sentença recorrida pronunciou-se neste último
sentido. Entendeu-se, nela, que a pretensão deduzida pelo ora recorrente
enferma de erro na forma de processo porquanto o exercício do direito por si
invocado tem a sua sede adjectiva própria, não na instauração de uma acção
declarativa autónoma, mas sim na dedução de embargos de terceiro, nos termos do
artigo 342.º, n.º 1, do CPC, incidentalmente no âmbito da acção executiva em
que tenha sido realizada a penhora.
Analisemos a questão, começando por convocar as normas
do CPC mais relevantes:
Artigo 2.º, n.º 2: A todo o direito, excepto quando a
lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em
juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem
como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção.
Artigo 342.º, n.º 1: Se a penhora, ou qualquer acto
judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou
qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de
que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer,
deduzindo embargos de terceiro.
Artigo 344.º, n.º 2: O embargante deduz a sua
pretensão, mediante petição, nos 30 dias subsequentes àquele em que a
diligência foi efectuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa,
mas nunca depois de os respectivos bens terem sido judicialmente vendidos ou
adjudicados, oferecendo logo as provas.
Artigo 346.º: A rejeição dos embargos, nos termos do
disposto no artigo anterior, não obsta a que o embargante proponha acção em que
peça a declaração da titularidade do direito que obsta à realização ou ao
âmbito da diligência, ou reivindique a coisa apreendida.
Artigo 839.º, n.º 1: Além do caso previsto no artigo
anterior, a venda só fica sem efeito: (…)
d) Se a coisa vendida não pertencia ao executado e foi
reivindicada pelo dono.
Importa também ter em consideração o disposto nas
seguintes normas do Código Civil:
Artigo 1311.º, n.º 1: O proprietário pode exigir
judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do
seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
Artigo 1313.º: Sem prejuízo dos direitos adquiridos
por usucapião, a acção de reivindicação não prescreve pelo decurso do tempo.
Com interesse para a resolução do problema que temos
entre mãos, resulta deste conjunto de normas o seguinte:
O titular do direito de propriedade sobre uma coisa
pode sempre recorrer aos tribunais com o objectivo de ver reconhecido esse seu
direito. Se a coisa estiver em poder do demandado e o proprietário pretender a
condenação deste na respectiva restituição, a acção será de reivindicação. Se o
proprietário tiver a coisa em seu poder e, ainda assim, tiver interesse em
obter o reconhecimento judicial do seu direito de propriedade contra
determinada pessoa que, por forma diversa da detenção, ponha este último em
causa, poderá, igualmente, fazê-lo. Esta acção não será de reivindicação, mas
tal não impede a sua admissibilidade, atento o disposto nos artigos 2.º, n.º 2,
e 10.º, n.º 3, al. a), do CPC[1].
Tal como a acção de reivindicação, esta última acção não prescreve pelo decurso
do tempo, sem prejuízo dos direitos adquiridos por usucapião, pois o fundamento
substantivo é o mesmo: a imprescritibilidade do direito de propriedade[2].
Se o direito de propriedade for posto em causa, por
penhora ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de
bens, em processo de que o respectivo titular não seja parte, poderá este
último defendê-lo através da dedução de embargos de terceiro, nos termos do
artigo 342.º, n.º 1, do CPC. Porém, em parte alguma a lei impõe que, sendo
dessa natureza a ofensa ao direito de propriedade, o titular deste apenas possa
requerer judicialmente a sua defesa através de embargos de terceiro, ficando,
assim, inibido de propor uma acção de reivindicação ou uma acção declarativa de
simples apreciação. Bem pelo contrário, o artigo 346.º do CPC pressupõe,
precisamente, que tais acções são sempre admissíveis, esclarecendo que o serão mesmo
na hipótese de rejeição dos embargos de terceiro. Ou seja, nem sequer a
rejeição dos embargos de terceiro prejudica, de alguma forma, a admissibilidade
das mesmas acções.
Nem podia deixar de ser assim, sob pena de sermos
conduzidos a soluções absurdas. Suponhamos que, quando o proprietário tem
conhecimento da ofensa ao seu direito, a coisa já foi judicialmente vendida ou
adjudicada. Por força do disposto no artigo 344.º, n.º 2, do CPC, ele já não
pode deduzir embargos de terceiro. Teria, então, perdido o seu direito de
propriedade em consequência da referida venda ou adjudicação? Ou continuaria a
ser titular do direito, mas sem poder recorrer à tutela jurisdicional do mesmo,
por não ter deduzido embargos de terceiro tempestivamente? A resposta a
qualquer destas questões é, obviamente, negativa, e, caso houvesse dúvidas, seria
o próprio CPC, através do seu artigo 839.º, n.º 1, al. d), a desfazê-las, ao
estabelecer que a venda fica sem efeito se a coisa vendida não pertencia ao
executado e foi reivindicada pelo dono. Ou seja, o proprietário não deixa de o
ser e, consequentemente, continua a ter ao seu dispor todos os meios de defesa do
seu direito. Como, aliás, nunca deixou de ter.
Sendo assim, até à venda ou adjudicação judicial da
coisa, o proprietário tem ao seu dispor, em alternativa, a acção declarativa
comum, de simples apreciação ou de reivindicação, e os embargos de terceiro.
Depois daquela venda ou adjudicação, estão-lhe vedados estes últimos,
restando-lhe a primeira[3].
No caso dos autos, o autor, ora recorrente, pediu,
através da propositura de uma acção declarativa comum, a condenação dos réus a reconhecerem o seu
direito de propriedade sobre uma fracção autónoma e o cancelamento de todos os
registos que possam ofender o mesmo direito, nomeadamente o registo de uma
penhora. Como já vimos, até à venda do bem penhorado, o recorrente tinha a
possibilidade de optar entre a propositura desta acção e a dedução de embargos
de terceiro. Nada o impedia, pois, de tomar a primeira opção.
Mais,
verifica-se, através do documento de fls. 63-64, junto pelo ora recorrido à sua
contestação, que, na execução, o bem penhorado foi vendido em 24.09.2013, pelo
que, nos termos do artigo 344.º, n.º 2, do CPC, o recorrente, na data em que esta acção foi
proposta (20.05.2016), já nem sequer podia deduzir embargos de terceiro,
restando-lhe a propositura desta acção para obter o reconhecimento do direito
que invoca.
Inexiste, assim, erro na forma de processo. Questão
diversa é, obviamente, a da procedência dos pedidos do recorrente, a apreciar
pelo tribunal recorrido no momento processual próprio.
Deverá, assim, a sentença recorrida ser revogada e o processo seguir os seus termos para apreciação dos pedidos formulados pelo recorrente.
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Decisão:
Acordam os juízes do
Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, revogando a
sentença recorrida e ordenando que a acção prossiga os seus termos.
Custas pelo recorrido.
Notifique.
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Évora, 12.10.2017
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.ª
adjunta
2.º adjunto
[1] Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES
VARELA, Código Civil Anotado, vol.
III, 2.ª edição revista e actualizada (reimpressão), p. 113, em anotação ao
artigo 1311.º.
[2] Sobre a imprescritibilidade do
direito de propriedade, cfr. a obra anteriormente citada, p. 117, em anotação
ao artigo 1313.º.
[3] Cfr. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Acção Executiva Singular, p. 317-318.