Processo
n.º 56/07.5TBSRP-A.E1
*
Sumário:
1 – Nada impede que, numa acção
de incumprimento do regime de exercício das responsabilidades parentais em que
já foi proferido despacho a pôr termo à causa por se ter conseguido cobrar a pensão
de alimentos através de descontos em rendimentos do requerido, se solicite
informação sobre quem é o actual empregador e qual é o montante do salário
deste último, tendo em vista a continuidade daqueles descontos.
2 – Não obsta à conclusão
enunciada em 1 a circunstância de o despacho que pôs termo à causa ter
transitado em julgado.
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Relatório
Em acção de incumprimento do
regime de exercício das responsabilidades parentais relativas ao menor GG, o
Ministério Público interpôs recurso do despacho que indeferiu um requerimento,
por si formulado, no sentido de ser solicitada informação sobre a identidade do
empregador e o montante do salário do requerido, formulando as seguintes
conclusões:
1 – O despacho recorrido
determinou que os autos fossem arquivados com o argumento básico da
inexistência de impulso processual e da ausência da alegação dos factos do
direito que se pretende fazer valer, em violação do princípio do dispositivo;
2 – A decisão recorrida incorre
em erro manifesto quando invoca o caso julgado do despacho que determinou o
arquivamento do processo, ignorando que, nos processos de jurisdição voluntária,
as decisões têm a particularidade de, apesar de cobertas pelo caso julgado, não
possuírem o dom da irrevogabilidade, pois podem ser modificadas com fundamento
num diferente quadro factual superveniente que justifique a alteração, tal como
o artigo 988.º do CPC expressamente admite e prevê;
3 – Para além de incorrer em
contradição da fundamentação, ao reconhecer que sobre o tribunal recaem “poderes oficiosos” de actuação, mas que
o “ónus de alegação e de impulso
processual das partes” teria “primazia”,
a decisão erra, pois o Ministério Público impulsionou o processo através de uma
intervenção justamente denominada “promoção”,
de 09.11.2018, ao abrigo dos poderes-deveres que lhe são conferidos pelos
artigos 17.º e 41.º, n.º 1, do RGPTC e 3.º, n.º 1, al. a), e 5.º, n.º 1, al.
c), do Estatuto do Ministério Público;
4 – O despacho impugnado
determina um burocrático arquivamento do processo que frustra, à partida, a
possibilidade de um menor obter o mínimo dos mínimos do que lhe é devido para
assegurar a satisfação das suas necessidades vitais, numa jurisdição não
contenciosa que se deve reger por princípios e critérios inversos dos
subjacentes à sua prolação;
5 – O incumprimento do regime de
exercício das responsabilidades parentais configura uma hipótese legal (tatbestand ou fattispecie) que se preenche com um só facto concreto: a sua não observância,
neste caso o não pagamento dos alimentos por parte do obrigado, que desde
sempre constituiu fundamento do requerimento inicial – só ele constitui o facto
essencial ou principal da referida hipótese;
6 – As circunstâncias do
incumprimento são um mero facto complementar, concretizador, de aferição
oficiosa, no limite (cfr. o artigo 5.º, n.º 2, al. b), do CPC);
7 – Nos processos de jurisdição
voluntária, o julgador não está vinculado à observância rigorosa do direito
aplicável, devendo antes debruçar-se sobre o caso concreto e procurar aquela
solução que lhe parecer a mais adequada à justa composição dos interesses em
presença;
8 – Como o Tribunal assim não
procedeu, proferiu uma decisão incorrecta e materialmente injusta que, por
incorrecta aplicação do disposto nos artigos 12.º, 17.º e 41.º do RGPTC e
986.º, n.º 2, 987.º e 988.º, n.º 2, do CPC, que violou, pode colocar em causa a
subsistência do beneficiário de alimentos, pelo que se impõe a sua revogação.
O
recurso foi admitido.
Objecto
do recurso
A única questão a resolver consiste em
saber se o Tribunal a quo devia ter solicitado
informação sobre a
identidade do empregador e o montante do salário do requerido, tal como promovido
pelo Ministério Público, não obstante ter sido anteriormente proferido despacho
que pôs termo à causa e ordenou o arquivamento do processo.
Factos
relevantes para a decisão do recurso
Os factos relevantes para a decisão do
recurso, evidenciados pelo processo, são os seguintes:
1 – Em 13.03.2008, SS, mãe do menor GG,
deduziu a presente acção de incumprimento do regime de exercício das responsabilidades parentais
relativas a este último, alegando, além do mais, que o pai nunca pagou a pensão
de alimentos;
2 – Por decisão proferida em 02.09.2008, foi declarado o incumprimento da
obrigação de alimentos;
3 – Devido à impossibilidade de cobrança coerciva da pensão de alimentos,
foi, em 17.03.2009, proferida decisão no sentido de o Fundo de Garantia dos Alimentos
Devidos a Menores passar a pagar ao menor o montante mensal de € 75 em
substituição do devedor;
4 – O montante da prestação social paga pelo Fundo de Garantia dos
Alimentos Devidos a Menores foi aumentado para € 100 mensais por decisão
proferida em 05.12.2011;
5 – Em 13.11.2018, foi proferida decisão que, com fundamento no facto de
a cobrança coerciva da pensão de alimentos se ter iniciado em Junho desse ano,
declarou cessada a obrigação de pagamento pelo Fundo de Garantia dos Alimentos
Devidos a Menores e ordenou o arquivamento do processo; esta decisão consta de
fls. 370 do suporte físico do processo;
6 – Em 16.11.2018, o Ministério Público apresentou um requerimento com o
seguinte teor: “O Ministério Público, ao
ser notificado do despacho judicial proferido a fls. 370, vem renovar o que
promoveu a fls. 365 a 368 (quanto à reformulação do valor dos descontos mensais
a efectuar ao progenitor/requerido CC), na medida em que a decisão é omissa
nessa parte.”;
7 – O requerimento descrito em 6 foi deferido;
8 – Em 23.11.2018, procedeu-se à elaboração da conta;
9 – Em 27.11.2018, foi recebida, no processo, uma comunicação do Instituto
da Segurança Social, IP, que se transcreve na parte que interessa:
“O beneficiário CC encontra-se
com a prestação de desemprego na situação – Suspensão Total por Exercício
Actividade Profissional por Conta Outrem – desde 01.07.2018.
Apenas foi penhorado o valor de
€ 87,50, referente a 06/2018.
Deste modo não faz sentido
cessar as prestações do FGADM, nem o registo da penhora enquanto subsistir esta
situação.”;
10 – Em 29.11.2018, o Ministério Público apresentou um requerimento que
se transcreve na parte que interessa:
“Atendendo a que o
progenitor/requerido (…) está a trabalhar por conta de outrem, tendo sido este,
aliás, o fundamento da cessação de atribuição do subsídio de desemprego[1]
que o mesmo estava a auferir, será viável prosseguir os descontos, desta feita
com base no salário que o mesmo estará a auferir mensalmente.
Assim sendo e porque o
progenitor continua a não pagar, voluntariamente, a prestação de alimentos a
que ficou obrigado relativamente ao filho menor desde que cessaram os
descontos, o Ministério Público requer, com fundamento na ampla legitimidade e
poder de iniciativa processuais que lhe são reconhecidos nesta jurisdição (cfr.
arts. 3.º, n.º 1, al. a) e 5.º, n.º 1, al. c) do Estatuto do Ministério Público
e art. 17.º do RGPTC), que o processo prossiga seus termos, solicitando-se ao
Instituto da Segurança Social, IP – Núcleo Administrativo e Financeiro” que
informe qual a actual entidade patronal por conta de quem o requerido está a
trabalhar e o montante do salário que mensalmente está a auferir.”;
11 – Em seguida, o Tribunal a quo
proferiu a decisão recorrida, que se transcreve:
1. Vistos os autos.
2. Após a realização de
descontos no vencimento do progenitor, ao abrigo do disposto no artigo 48.º do
RGPTC, foi proferida decisão a cessar a intervenção do FGADM e a ordenar o
arquivamento dos autos, decisão essa que transitou em julgado.
Após surgiu nos autos informação
de que a situação profissional do progenitor se alterou.
O Ministério Público teve vista
nos autos e promoveu que fossem feitas diligências no sentido de apurar a
entidade patronal do progenitor para efeitos de continuarem a ser feitos os
descontos.
Apreciando e decidindo,
O RGPTC considerou os processos
tutelares cíveis como de jurisdição voluntária cfr. artigo 12.º, e considerou
ainda que lhes são aplicáveis subsidiariamente as regras do processo civil que
não contrariem os fins da jurisdição de menores, cfr. artigo 33.º, n.º 1, como
é o caso das regras do ónus de prova e do impulso processual das partes.
Entendemos assim que não cabe ao
tribunal ordenar por sua iniciativa a continuação dos descontos perante a
inacção do credor de alimentos, tanto mais que a decisão de encerramento do
processo já transitou em julgado, mostrando-se esgotado o poder jurisdicional
relativamente a esta questão concreta.
Vejamos,
No caso presente estamos perante
um processo de jurisdição voluntária, cfr. artigo 12.º do RGPTC.
Quanto às regras aplicáveis aos
processos de jurisdição voluntária dispõe o artigo 986.º, n.º 2 do Código de
Processo Civil que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as
provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são
admitidas as provas que o juiz considere necessárias.
A lei confere genericamente
poderes oficiosos ao Tribunal quanto à indagação dos factos, e às provas.
Contudo, não dispensa o interessado da alegação dos factos que integram o
direito que pretende fazer valer. A verdade é que o princípio dispositivo
atribui primazia aos ónus de alegação e de impulso processual das partes, nada
se impondo ao tribunal, em termos de este se substituir à iniciativa do credor
de alimentos em impulsionar os autos.
E nem se diga que bastará a
promoção que antecede para efeitos de impulso processual.
Desde logo, porque não foi
alegado que o requerido não pagou voluntariamente a prestação devida desde que
cessaram os descontos, nem se conclui que se verifica uma situação actual de
incumprimento, limitando-se o Ministério Público a partir desse princípio, e a
assumir que uma vez que não cumpriu voluntariamente a obrigação, não mais o
fará.
Não se desconhece que o
cumprimento é um facto extintivo da obrigação, cuja prova compete ao devedor,
conforme decorre do artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil, contudo é facto que
carece de alegação, que não foi feita.
Nada obsta porém que o
interessado ou o Ministério Público aleguem o incumprimento, narrando os factos
respectivos, na sede própria e que permitirão sendo caso disso accionar o
mecanismo pré-executivo previsto no artigo 48.º do RGPTC, ou accionar o FGADM,
não se frustrando a possibilidade de a criança obter a prestação de alimentos
devida para assegurar a satisfação das suas necessidades básicas.
Em face do exposto indefere-se o
requerido, devendo os autos ser arquivados tal como se determinou na decisão
proferida em 13/11/2018, até que seja, de facto, alegado o incumprimento das
responsabilidades parentais.”
Fundamentação
Como acima referimos, a única questão a
resolver consiste em saber se o Tribunal a
quo devia ter solicitado informação sobre a identidade do empregador e o montante do
salário do requerido não obstante ter sido anteriormente proferido despacho que
pôs termo à causa, tal como requerido pelo Ministério Público.
Os argumentos com base nos quais o Tribunal a quo indeferiu o requerimento do Ministério Público foram, esquematicamente,
os seguintes:
1 – Prévia prolação de despacho que pôs termo à causa e ordenou o
arquivamento do processo, transitado em julgado;
2 – Falta de impulso processual e de alegação, pela requerente, dos
factos geradores do direito que se pretende fazer valer, falta essa insuprível
pelo Tribunal a quo;
3 – Inaptidão do requerimento do Ministério Público para substituir o
referido impulso processual da requerente, por falta de alegação do não
pagamento voluntário da pensão de alimentos desde que cessaram os descontos.
A isto, o Ministério Público opõe, em sede de recurso, os seguintes argumentos:
1 – Sendo este processo de jurisdição voluntária, o despacho que pôs
termo à causa, apesar de transitado em julgado, pode ser modificado com
fundamento em circunstâncias supervenientes, nos termos do artigo 988.º do CPC;
2 – Pela mesma razão, o julgador não está vinculado à observância
rigorosa do direito aplicável, devendo antes debruçar-se sobre o caso concreto
e procurar aquela solução que lhe parecer a mais adequada à justa composição
dos interesses em presença;
3 – O Ministério Público impulsionou o processo no exercício das
atribuições que a lei lhe confere e alegou a falta de cumprimento da obrigação
de alimentos de forma suficiente;
4 – O arquivamento do processo frustra a possibilidade de o menor obter o
mínimo dos mínimos do que lhe é devido para assegurar a satisfação das suas
necessidades vitais.
Ressalvando o devido respeito
por ambas as linhas de argumentação que tentámos resumir, parece-nos que a decisão
a proferir não requer grande aprofundamento de qualquer dos tópicos invocados,
dada a simplicidade da situação.
Apesar de não constituir objecto
deste recurso, começamos por observar, tendo em vista a clareza da nossa
própria argumentação, que o despacho que pôs termo à causa foi perfeitamente
justificado. Uma vez que se conseguira cobrar coercivamente a pensão de
alimentos, estava alcançada a finalidade do processo. Cessava o pagamento da
prestação social pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores e a
pendência do processo deixava de ter utilidade. Essa pendência não faria
sentido com a mera finalidade de acompanhamento judicial dos descontos a
efectuar nos rendimentos do requerido, eternizando-se assim o processo.
O despacho que pôs termo à causa
transitou em julgado. Isso não significa, porém, que o Tribunal a quo tenha ficado impedido de proferir
decisões subsequentes no processo. Para tanto, nem sequer é necessário invocar
o disposto no n.º 1 do artigo 988.º do CPC, que estabelece que, nos processos
de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos
efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que
justifiquem a alteração. Mesmo na jurisdição contenciosa, o trânsito em julgado
da decisão que põe termo à causa não impede o juiz de proferir novas decisões
no processo. A decisão que põe termo à causa não é necessariamente a última
decisão proferida no processo. Frequentemente, não o é. Daí que o artigo 644.º,
n.º 2, al. g), do CPC, preveja essa hipótese entre aquelas de que cabe recurso
de apelação autónomo. Ponto é que tais decisões subsequentes não contendam com
a decisão que põe termo à causa.
No caso sub judice, o Ministério Público nada requereu que contendesse com o
despacho que pôs termo à causa. Nomeadamente, não alegou uma nova situação de
incumprimento do regime de exercício das responsabilidades parentais tentando
aproveitar indevidamente o presente processo. Nessa hipótese sim, caberia
indeferir tal tentativa de renovar a instância extinta para ver apreciada uma
situação nova, pois a forma correcta de suscitar tal apreciação seria a
propositura de nova acção de incumprimento, cumprindo-se a tramitação
estabelecida no artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
Aquilo que o Ministério Público
requereu foi apenas que, em face da comunicação recebida do Instituto da
Segurança Social, IP em 27.11.2018, se solicitasse, a este último, informação
importante para assegurar a continuidade da cobrança coerciva da obrigação de
alimentos, que, como vimos, constituiu pressuposto do despacho que pôs termo à
causa. Este último não é minimamente posto em causa por aquele requerimento. Estava
unicamente em questão averiguar a existência de rendimentos do requerido que
pudessem ser objecto dos descontos necessários à satisfação do crédito de
alimentos, com vista a garantir a continuidade dos mesmos descontos. Consequentemente,
nada obstava a que tal informação fosse solicitada neste processo e, em função
dela, se tomassem prontamente as providências necessárias à manutenção dos descontos
que constituíram pressuposto do despacho que lhe pôs termo, com óbvias
vantagens sob o ponto de vista do interesse fundamental em qualquer processo
tutelar cível, que é o superior interesse da criança.
A legitimidade do Ministério
Público para impulsionar o processo nos termos em que o fez não suscita
qualquer dúvida, considerando o disposto no artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do Regime
Geral do Processo Tutelar Cível.
Flui do exposto que o recurso
deverá ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido e ordenando-se
que o Tribunal a quo proceda nos
termos requeridos pelo Ministério Público.
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Decisão
Acordam os juízes da
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso
procedente, revogando o despacho recorrido e ordenando
que o Tribunal a quo proceda nos
termos requeridos pelo Ministério Público.
Sem
custas.
Notifique.
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Évora, 11 de Abril de 2019
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.ª adjunta
[1] Corrigimos um lapso material evidente neste ponto do requerimento.