sábado, 27 de abril de 2019

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2019

Processo n.º 56/07.5TBSRP-A.E1

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Sumário:

1 – Nada impede que, numa acção de incumprimento do regime de exercício das responsabilidades parentais em que já foi proferido despacho a pôr termo à causa por se ter conseguido cobrar a pensão de alimentos através de descontos em rendimentos do requerido, se solicite informação sobre quem é o actual empregador e qual é o montante do salário deste último, tendo em vista a continuidade daqueles descontos.

2 – Não obsta à conclusão enunciada em 1 a circunstância de o despacho que pôs termo à causa ter transitado em julgado.

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Relatório

Em acção de incumprimento do regime de exercício das responsabilidades parentais relativas ao menor GG, o Ministério Público interpôs recurso do despacho que indeferiu um requerimento, por si formulado, no sentido de ser solicitada informação sobre a identidade do empregador e o montante do salário do requerido, formulando as seguintes conclusões:

1 – O despacho recorrido determinou que os autos fossem arquivados com o argumento básico da inexistência de impulso processual e da ausência da alegação dos factos do direito que se pretende fazer valer, em violação do princípio do dispositivo;

2 – A decisão recorrida incorre em erro manifesto quando invoca o caso julgado do despacho que determinou o arquivamento do processo, ignorando que, nos processos de jurisdição voluntária, as decisões têm a particularidade de, apesar de cobertas pelo caso julgado, não possuírem o dom da irrevogabilidade, pois podem ser modificadas com fundamento num diferente quadro factual superveniente que justifique a alteração, tal como o artigo 988.º do CPC expressamente admite e prevê;

3 – Para além de incorrer em contradição da fundamentação, ao reconhecer que sobre o tribunal recaem “poderes oficiosos” de actuação, mas que o “ónus de alegação e de impulso processual das partes” teria “primazia”, a decisão erra, pois o Ministério Público impulsionou o processo através de uma intervenção justamente denominada “promoção”, de 09.11.2018, ao abrigo dos poderes-deveres que lhe são conferidos pelos artigos 17.º e 41.º, n.º 1, do RGPTC e 3.º, n.º 1, al. a), e 5.º, n.º 1, al. c), do Estatuto do Ministério Público;

4 – O despacho impugnado determina um burocrático arquivamento do processo que frustra, à partida, a possibilidade de um menor obter o mínimo dos mínimos do que lhe é devido para assegurar a satisfação das suas necessidades vitais, numa jurisdição não contenciosa que se deve reger por princípios e critérios inversos dos subjacentes à sua prolação;

5 – O incumprimento do regime de exercício das responsabilidades parentais configura uma hipótese legal (tatbestand ou fattispecie) que se preenche com um só facto concreto: a sua não observância, neste caso o não pagamento dos alimentos por parte do obrigado, que desde sempre constituiu fundamento do requerimento inicial – só ele constitui o facto essencial ou principal da referida hipótese;

6 – As circunstâncias do incumprimento são um mero facto complementar, concretizador, de aferição oficiosa, no limite (cfr. o artigo 5.º, n.º 2, al. b), do CPC);

7 – Nos processos de jurisdição voluntária, o julgador não está vinculado à observância rigorosa do direito aplicável, devendo antes debruçar-se sobre o caso concreto e procurar aquela solução que lhe parecer a mais adequada à justa composição dos interesses em presença;

8 – Como o Tribunal assim não procedeu, proferiu uma decisão incorrecta e materialmente injusta que, por incorrecta aplicação do disposto nos artigos 12.º, 17.º e 41.º do RGPTC e 986.º, n.º 2, 987.º e 988.º, n.º 2, do CPC, que violou, pode colocar em causa a subsistência do beneficiário de alimentos, pelo que se impõe a sua revogação.

O recurso foi admitido.

Objecto do recurso

A única questão a resolver consiste em saber se o Tribunal a quo devia ter solicitado informação sobre a identidade do empregador e o montante do salário do requerido, tal como promovido pelo Ministério Público, não obstante ter sido anteriormente proferido despacho que pôs termo à causa e ordenou o arquivamento do processo.

Factos relevantes para a decisão do recurso

Os factos relevantes para a decisão do recurso, evidenciados pelo processo, são os seguintes:

1 – Em 13.03.2008, SS, mãe do menor GG, deduziu a presente acção de incumprimento do regime de exercício das responsabilidades parentais relativas a este último, alegando, além do mais, que o pai nunca pagou a pensão de alimentos;

2 – Por decisão proferida em 02.09.2008, foi declarado o incumprimento da obrigação de alimentos;

3 – Devido à impossibilidade de cobrança coerciva da pensão de alimentos, foi, em 17.03.2009, proferida decisão no sentido de o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores passar a pagar ao menor o montante mensal de € 75 em substituição do devedor;

4 – O montante da prestação social paga pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores foi aumentado para € 100 mensais por decisão proferida em 05.12.2011;

5 – Em 13.11.2018, foi proferida decisão que, com fundamento no facto de a cobrança coerciva da pensão de alimentos se ter iniciado em Junho desse ano, declarou cessada a obrigação de pagamento pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores e ordenou o arquivamento do processo; esta decisão consta de fls. 370 do suporte físico do processo;

6 – Em 16.11.2018, o Ministério Público apresentou um requerimento com o seguinte teor: “O Ministério Público, ao ser notificado do despacho judicial proferido a fls. 370, vem renovar o que promoveu a fls. 365 a 368 (quanto à reformulação do valor dos descontos mensais a efectuar ao progenitor/requerido CC), na medida em que a decisão é omissa nessa parte.”;

7 – O requerimento descrito em 6 foi deferido;

8 – Em 23.11.2018, procedeu-se à elaboração da conta;

9 – Em 27.11.2018, foi recebida, no processo, uma comunicação do Instituto da Segurança Social, IP, que se transcreve na parte que interessa:

“O beneficiário CC encontra-se com a prestação de desemprego na situação – Suspensão Total por Exercício Actividade Profissional por Conta Outrem – desde 01.07.2018.

Apenas foi penhorado o valor de € 87,50, referente a 06/2018.

Deste modo não faz sentido cessar as prestações do FGADM, nem o registo da penhora enquanto subsistir esta situação.”;

10 – Em 29.11.2018, o Ministério Público apresentou um requerimento que se transcreve na parte que interessa:

“Atendendo a que o progenitor/requerido (…) está a trabalhar por conta de outrem, tendo sido este, aliás, o fundamento da cessação de atribuição do subsídio de desemprego[1] que o mesmo estava a auferir, será viável prosseguir os descontos, desta feita com base no salário que o mesmo estará a auferir mensalmente.

Assim sendo e porque o progenitor continua a não pagar, voluntariamente, a prestação de alimentos a que ficou obrigado relativamente ao filho menor desde que cessaram os descontos, o Ministério Público requer, com fundamento na ampla legitimidade e poder de iniciativa processuais que lhe são reconhecidos nesta jurisdição (cfr. arts. 3.º, n.º 1, al. a) e 5.º, n.º 1, al. c) do Estatuto do Ministério Público e art. 17.º do RGPTC), que o processo prossiga seus termos, solicitando-se ao Instituto da Segurança Social, IP – Núcleo Administrativo e Financeiro” que informe qual a actual entidade patronal por conta de quem o requerido está a trabalhar e o montante do salário que mensalmente está a auferir.”;

11 – Em seguida, o Tribunal a quo proferiu a decisão recorrida, que se transcreve:

1. Vistos os autos.

2. Após a realização de descontos no vencimento do progenitor, ao abrigo do disposto no artigo 48.º do RGPTC, foi proferida decisão a cessar a intervenção do FGADM e a ordenar o arquivamento dos autos, decisão essa que transitou em julgado.

Após surgiu nos autos informação de que a situação profissional do progenitor se alterou.

O Ministério Público teve vista nos autos e promoveu que fossem feitas diligências no sentido de apurar a entidade patronal do progenitor para efeitos de continuarem a ser feitos os descontos.

Apreciando e decidindo,

O RGPTC considerou os processos tutelares cíveis como de jurisdição voluntária cfr. artigo 12.º, e considerou ainda que lhes são aplicáveis subsidiariamente as regras do processo civil que não contrariem os fins da jurisdição de menores, cfr. artigo 33.º, n.º 1, como é o caso das regras do ónus de prova e do impulso processual das partes.

Entendemos assim que não cabe ao tribunal ordenar por sua iniciativa a continuação dos descontos perante a inacção do credor de alimentos, tanto mais que a decisão de encerramento do processo já transitou em julgado, mostrando-se esgotado o poder jurisdicional relativamente a esta questão concreta.

Vejamos,

No caso presente estamos perante um processo de jurisdição voluntária, cfr. artigo 12.º do RGPTC.

Quanto às regras aplicáveis aos processos de jurisdição voluntária dispõe o artigo 986.º, n.º 2 do Código de Processo Civil que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias.

A lei confere genericamente poderes oficiosos ao Tribunal quanto à indagação dos factos, e às provas. Contudo, não dispensa o interessado da alegação dos factos que integram o direito que pretende fazer valer. A verdade é que o princípio dispositivo atribui primazia aos ónus de alegação e de impulso processual das partes, nada se impondo ao tribunal, em termos de este se substituir à iniciativa do credor de alimentos em impulsionar os autos.

E nem se diga que bastará a promoção que antecede para efeitos de impulso processual.

Desde logo, porque não foi alegado que o requerido não pagou voluntariamente a prestação devida desde que cessaram os descontos, nem se conclui que se verifica uma situação actual de incumprimento, limitando-se o Ministério Público a partir desse princípio, e a assumir que uma vez que não cumpriu voluntariamente a obrigação, não mais o fará.

Não se desconhece que o cumprimento é um facto extintivo da obrigação, cuja prova compete ao devedor, conforme decorre do artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil, contudo é facto que carece de alegação, que não foi feita.

Nada obsta porém que o interessado ou o Ministério Público aleguem o incumprimento, narrando os factos respectivos, na sede própria e que permitirão sendo caso disso accionar o mecanismo pré-executivo previsto no artigo 48.º do RGPTC, ou accionar o FGADM, não se frustrando a possibilidade de a criança obter a prestação de alimentos devida para assegurar a satisfação das suas necessidades básicas.

Em face do exposto indefere-se o requerido, devendo os autos ser arquivados tal como se determinou na decisão proferida em 13/11/2018, até que seja, de facto, alegado o incumprimento das responsabilidades parentais.”

Fundamentação

Como acima referimos, a única questão a resolver consiste em saber se o Tribunal a quo devia ter solicitado informação sobre a identidade do empregador e o montante do salário do requerido não obstante ter sido anteriormente proferido despacho que pôs termo à causa, tal como requerido pelo Ministério Público.

Os argumentos com base nos quais o Tribunal a quo indeferiu o requerimento do Ministério Público foram, esquematicamente, os seguintes:

1 – Prévia prolação de despacho que pôs termo à causa e ordenou o arquivamento do processo, transitado em julgado;

2 – Falta de impulso processual e de alegação, pela requerente, dos factos geradores do direito que se pretende fazer valer, falta essa insuprível pelo Tribunal a quo;

3 – Inaptidão do requerimento do Ministério Público para substituir o referido impulso processual da requerente, por falta de alegação do não pagamento voluntário da pensão de alimentos desde que cessaram os descontos.

A isto, o Ministério Público opõe, em sede de recurso, os seguintes argumentos:

1 – Sendo este processo de jurisdição voluntária, o despacho que pôs termo à causa, apesar de transitado em julgado, pode ser modificado com fundamento em circunstâncias supervenientes, nos termos do artigo 988.º do CPC;

2 – Pela mesma razão, o julgador não está vinculado à observância rigorosa do direito aplicável, devendo antes debruçar-se sobre o caso concreto e procurar aquela solução que lhe parecer a mais adequada à justa composição dos interesses em presença;

3 – O Ministério Público impulsionou o processo no exercício das atribuições que a lei lhe confere e alegou a falta de cumprimento da obrigação de alimentos de forma suficiente;

4 – O arquivamento do processo frustra a possibilidade de o menor obter o mínimo dos mínimos do que lhe é devido para assegurar a satisfação das suas necessidades vitais.

Ressalvando o devido respeito por ambas as linhas de argumentação que tentámos resumir, parece-nos que a decisão a proferir não requer grande aprofundamento de qualquer dos tópicos invocados, dada a simplicidade da situação.

Apesar de não constituir objecto deste recurso, começamos por observar, tendo em vista a clareza da nossa própria argumentação, que o despacho que pôs termo à causa foi perfeitamente justificado. Uma vez que se conseguira cobrar coercivamente a pensão de alimentos, estava alcançada a finalidade do processo. Cessava o pagamento da prestação social pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores e a pendência do processo deixava de ter utilidade. Essa pendência não faria sentido com a mera finalidade de acompanhamento judicial dos descontos a efectuar nos rendimentos do requerido, eternizando-se assim o processo.

O despacho que pôs termo à causa transitou em julgado. Isso não significa, porém, que o Tribunal a quo tenha ficado impedido de proferir decisões subsequentes no processo. Para tanto, nem sequer é necessário invocar o disposto no n.º 1 do artigo 988.º do CPC, que estabelece que, nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração. Mesmo na jurisdição contenciosa, o trânsito em julgado da decisão que põe termo à causa não impede o juiz de proferir novas decisões no processo. A decisão que põe termo à causa não é necessariamente a última decisão proferida no processo. Frequentemente, não o é. Daí que o artigo 644.º, n.º 2, al. g), do CPC, preveja essa hipótese entre aquelas de que cabe recurso de apelação autónomo. Ponto é que tais decisões subsequentes não contendam com a decisão que põe termo à causa.

No caso sub judice, o Ministério Público nada requereu que contendesse com o despacho que pôs termo à causa. Nomeadamente, não alegou uma nova situação de incumprimento do regime de exercício das responsabilidades parentais tentando aproveitar indevidamente o presente processo. Nessa hipótese sim, caberia indeferir tal tentativa de renovar a instância extinta para ver apreciada uma situação nova, pois a forma correcta de suscitar tal apreciação seria a propositura de nova acção de incumprimento, cumprindo-se a tramitação estabelecida no artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.

Aquilo que o Ministério Público requereu foi apenas que, em face da comunicação recebida do Instituto da Segurança Social, IP em 27.11.2018, se solicitasse, a este último, informação importante para assegurar a continuidade da cobrança coerciva da obrigação de alimentos, que, como vimos, constituiu pressuposto do despacho que pôs termo à causa. Este último não é minimamente posto em causa por aquele requerimento. Estava unicamente em questão averiguar a existência de rendimentos do requerido que pudessem ser objecto dos descontos necessários à satisfação do crédito de alimentos, com vista a garantir a continuidade dos mesmos descontos. Consequentemente, nada obstava a que tal informação fosse solicitada neste processo e, em função dela, se tomassem prontamente as providências necessárias à manutenção dos descontos que constituíram pressuposto do despacho que lhe pôs termo, com óbvias vantagens sob o ponto de vista do interesse fundamental em qualquer processo tutelar cível, que é o superior interesse da criança.

A legitimidade do Ministério Público para impulsionar o processo nos termos em que o fez não suscita qualquer dúvida, considerando o disposto no artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.

Flui do exposto que o recurso deverá ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido e ordenando-se que o Tribunal a quo proceda nos termos requeridos pelo Ministério Público.

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Decisão

Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, revogando o despacho recorrido e ordenando que o Tribunal a quo proceda nos termos requeridos pelo Ministério Público.

Sem custas.

Notifique.

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Évora, 11 de Abril de 2019

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta



[1] Corrigimos um lapso material evidente neste ponto do requerimento.

Voto de vencido exarado em acórdão da Relação de Évora de 30.01.2025

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