Processo n.º 779/15.5T8PTM.E1
*
Sumário:
1 – A causa de pedir é o acto ou facto
jurídico em que o autor se baseia para formular o seu pedido e exerce uma
função individualizadora deste último para o efeito da conformação do objecto
do processo.
2 – Sendo dentro dos limites fixados
pela causa de pedir que o tribunal exerce os seus poderes de cognição, a
sentença não pode basear-se em causa de pedir não invocada pelo autor, sob pena
de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al.
d), do CPC.
3 – Se o autor alegar, como causa de
pedir, que celebrou um contrato de mútuo com o réu e que este não cumpriu a
obrigação de restituição da quantia mutuada, e se não se provar a celebração
daquele contrato, mas apenas a entrega da quantia em causa, em execução de um
contrato diverso, está vedado, ao tribunal, condenar o réu na restituição da
mesma quantia a título de enriquecimento sem causa.
*
Relatório
AA e AP
– Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., propuseram a presente acção
declarativa de condenação, com processo comum, contra JB e LB, casados entre
si, pedindo a condenação do réu JB a pagar-lhes a quantia de € 107.581,59. Os autores
alegaram, em síntese, que emprestaram ao réu JB a quantia total de € 84.000 e que este último nunca a restituiu.
Pretendem, pois, a restituição do capital em dívida e o pagamento dos juros de
mora vencidos, no montante de € 23.581,59.
Ambos os réus contestaram.
A ré LB impugnou a matéria de facto alegada pelos autores, alegou que
se encontra separada de pessoas e bens do réu JB e arguiu a nulidade, por inobservância da
forma legal, dos hipotéticos contratos de mútuo. Concluiu que deverá ser
absolvida do pedido.
O réu JB alegou ter recebido a quantia total de € 80.500, não a título
de empréstimo, mas como contrapartida por serviços que prestou, ao longo de
cerca de um ano, à autora AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., tendo em vista o
pagamento, a esta, por parte da sociedade BP Portugal, SA, de uma indemnização
pela denúncia de um contrato de cessão de exploração. A BP Portugal, SA aceitou
pagar uma indemnização de € 250.000, acrescida de IVA, à autora AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda., correspondendo a referida quantia de € 80.500 a
cerca de um terço desse valor, conforme acordado. Alegou ainda que se encontra
separado de pessoas e bens da ré LB desde 24.02.2014, embora a separação de facto remonte a 2005, e
arguiu a nulidade, por inobservância da forma legal, dos hipotéticos contratos
de mútuo. Concluiu que deverá ser absolvido do pedido.
Os autores replicaram, negando que as quantias que
entregaram ao réu JB
constituíssem uma contrapartida por qualquer serviço por este prestado e
reafirmando a versão factual alegada na petição inicial.
Foi proferido despacho saneador, com a identificação
do objecto do litígio e o enunciado dos temas de prova.
Realizou-se a audiência final.
Posteriormente ao encerramento da audiência final, foi
proferido despacho com o seguinte teor:
“Da sentença
Ocorre que, na
elaboração da mesma, o Tribunal enquadrou de forma diferente da alegada a
factualidade dada por provada.
No processo de
elaboração da sentença, conclui-se que:
- Ficou acordado entre
os autores e o réu que, pela ajuda ou colaboração prestada, a AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda. pagaria ao réu um terço do valor da indemnização
que a BP viesse a pagar (art. 21.º da contestação do réu)
- A BP aceitou pagar mas,
por razões que não se deram por provadas, não pagou, propondo até ação judicial
na qual a AP –
Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. foi condenada a pagar-lhe,
além do mais, € 97 700 e estando pendente ação judicial da AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda. contra a BP;
- O réu JB
já beneficiou dos montantes acordados.
O juiz não está sujeito
às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das
regras de direito – art. 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil. No entanto,
deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório,
não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões
de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes
tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem – art. 3.º, n.º 3, do
mesmo código. Assim, com vista a ser cumprido o citado princípio, notifique as
partes de que o enquadramento jurídico da factualidade dada por provada será
diferente da alegada e se inscreverá no domínio do enriquecimento sem causa.
Notifique deste
despacho o próprio réu.
Nada vindo, conclua de
novo.”
Ambas as partes se pronunciaram na sequência deste
despacho. Os autores concluíram no sentido da verificação dos pressupostos do
enriquecimento sem causa, pelo que deveriam os réus ser condenados na
restituição da quantia peticionada, acrescida dos respectivos juros legais. Já
os réus negaram a verificação dos referidos pressupostos e invocaram a
prescrição de um hipotético crédito dos autores proveniente de tal fonte.
Em seguida, foi proferida sentença que, julgando a
acção parcialmente procedente:
a) Condenou o réu JB a restituir, à autora AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda., a quantia de € 80.500, a título de enriquecimento
sem causa, por ter recebido prestação daquele montante num momento em que a
condição suspensiva de pagamento de 1/3 da indemnização que a BP lhe viesse
efectivamente a entregar, não se tinha verificado, acrescida de juros legais
contados desde 28.02.2017;
b) Absolveu o réu JB do pedido na parte restante;
c) Absolveu a ré LB do pedido.
O
réu JB não se
conformou com a sentença e interpôs recurso para este tribunal. As suas
alegações contêm as seguintes conclusões:
I) A
Apelada e AA
instauraram acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum,
pedindo à 1.ª Instância que condenasse o Apelante a pagar € 107.581,59, tendo
por causa de pedir factos relativos a alegados empréstimos pelo valor de €
84.000 e os respectivos juros de mora, totalizando a quantia global de €
107.581,59.
II) O
Apelante contestou, alegando a inexistência de quaisquer empréstimos e que os
diversos montantes, por si recebidos, foram-lhe entregues a título de pagamento
pela ajuda ou colaboração prestada à Apelada para ser indemnizada pela BP
Portugal, S.A., tendo sido acordado o pagamento de um valor correspondente a um
terço do valor da indemnização que a “BP” viesse a aceitar pagar à Apelada, o
que veio a acontecer após a “BP” ter aceite pagar uma indemnização pelo de €
250.000, acrescido de IVA, tendo o Apelante recebido € 80.500 através de treze
pagamentos mensais e sucessivos de € 6.000, cada um, e de um último, com o
valor reduzido, de € 2.500.
III)
Através de despacho elaborado a 23/02/2017, com a referência n.º 105068408, o
Tribunal a quo notificou o Apelante
de que, ao elaborar a sentença, enquadrou de forma diferente da alegada a
factualidade dada por provada, a qual seria considerada no domínio do
enriquecimento sem causa, dando-lhe, assim, a possibilidade de se pronunciar.
IV)
Exercendo o contraditório, o Apelante alegou não estarem preenchidos os
requisitos ou pressupostos de qualquer uma das modalidades de “enriquecimento
sem causa” e alegou a prescrição do direito a uma eventual restituição por
enriquecimento, porque entre as datas dos diversos pagamentos e a data em que
foi citado ou em que a prescrição tenha ficado interrompida decorreram mais de
sete anos, tendo sido excedido o prazo legal dos três anos previsto no art.
482.º, do Código Civil (cfr. alegações juntas aos autos, com a referência n.º
25104487), o que sempre importará a absolvição do Réu do pedido.
V)
Contudo, o Tribunal a quo veio a
proferir uma sentença, nos termos da qual julgou parcialmente procedente a acção
e, em consequência, condenou o Apelante a restituir à Apelada a quantia de € 80.500,
a título de enriquecimento sem causa, por ter recebido prestação daquele montante
num momento em que a condição suspensiva de pagamento de ⅓ (um terço) da indemnização
que a “BP” lhe viesse efectivamente a entregar, não se tinha verificado, e que
a essa quantia acrescem juros legais de mora contados desde 28 de Fevereiro de
2017, tendo absolvido o Apelante em tudo o mais do pedido.
VI) No
que concerne ao enquadramento jurídico dos factos, entendeu a 1.ª Instância que
o Apelante beneficiou do cumprimento de uma obrigação suspensiva, ineficaz ao
tempo em que foi cumprida, devendo o Apelante, por estarem preenchidos os
pressupostos do enriquecimento sem causa, na modalidade de “repetição do
indevido”, restituir à Apelada a quantia de € 80.500.
V) O
Apelante discorda deste entendimento e, consequentemente, da condenação que
sofreu, padecendo a sentença de vícios formais e substanciais e o Tribunal a quo proferido uma decisão inválida e
injusta, devendo a mesma ser anulada e o proferido uma outra que absolva o
Apelante totalmente do pedido.
A) A
nulidade da sentença por vício substancial de omissão de pronúncia:
VI) A
Apelante, no exercício do contraditório alegou a prescrição do direito da
Apelada a uma eventual restituição, por enriquecimento sem causa, do capital
peticionado, por considerar que entre as datas dos diversos pagamentos feitos
(de 24/01/2007 a 15/04/2008) e a data em que o Apelante foi citado para a acção
ou aquela em que a prescrição se considera interrompida, já tinha passado mais
de 7 anos, o que nos termos do art. 482º do Código Civil implica a prescrição
do direito por ter decorrido um lapso temporal superior a 3 anos (cfr.
alegações juntas aos autos com a referência 25104487).
VII) A
prescrição necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou
extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita (art. 303.º do C.C.),
fazendo-se normalmente na contestação mas nada impedindo de ser feita em
qualquer outro momento ou peça processual.
VII) O
Tribunal a quo considerou que os
pagamentos foram feitos em momentos em que ainda não existia a obrigação, por
não se ter verificado a condição suspensiva, o que importa que o decurso dos
três anos de prazo para a prescrição deve ser contado a partir da data em que
cada um dos pagamentos foram feitos (cfr. art. 306.º, n.º 1, 1.º segmento do
C.C.).
VIII)
A prescrição alegada, é uma questão de fundo e devia ter sido analisada e
resolvida pelo Tribunal a quo, mas
não foi conhecida pela 1.ª Instância, denegando, assim, a realização da justiça
que o Apelante pretendia.
IX) Ao
não se ter pronunciado sobre tal questão, remetendo-se ao silêncio sobre a
mesma, a 1.ª Instância violou o disposto no art. 608.º, n.º 2, do C.P.C., o
que, nos termos do art. 615.º, n.º 1, primeiro segmento da alínea d), do C.P.C.
acarreta a nulidade e invalidade da sentença proferida.
B) A
nulidade da sentença por vício de excesso de pronúncia:
X) A
Apelada invocou como causa de pedir, justificando o seu pedido, uma sequência
de mútuos onerosos concedidos ao Apelante, tendo este ficado obrigado a
restituir os montantes emprestados com juros, o que foi alegadamente
incumprido.
XI) A
Apelada não pediu a condenação do Apelante com base no instituto do “enriquecimento
sem causa”, não tendo sequer alegado quaisquer factos relativos ao mesmo, mas
antes e apenas no alegado incumprimento do mútuo oneroso.
XII)
Julgador tem liberdade para a qualificação jurídica dos factos, mas com
limites, um dos quais é a não alteração da causa de pedir.
XIII)
Ao ter julgado a acção parcialmente procedente com fundamento no enriquecimento
sem causa, porque não ficaram provados os empréstimos alegados pelos Autores, a
1.ª Instância extravasou o âmbito da sua liberdade de qualificação jurídica dos
factos porque alterou a causa de pedir a qual, no caso vertente, é constituída
pelos diversos empréstimos que os Autores especificaram e as diversas entregas
feitas a esse título, e não as entregas de capital em si ou os pagamentos recebidos
pelo Apelante, os quais são factos jurídicos diferentes.
XIV)
Ao ter condenado o Apelante com base no enriquecimento sem causa, a 1.ª
Instância alterou a causa de pedir da acção, o que lhe estava vedado, e
desvirtuou o pedido porque mudou a razão que os Autores alegaram para
justificar o pedido formulado, o que levou à prolação de uma decisão para além
dos poderes de cognição do Tribunal, o que implica a nulidade da sentença
proferida por excesso de pronúncia.
XV)
Nesse sentido, o Ac. RP, de 07/07/2005, JTRP00038265 (publicado no sítio da
Internet em www.dgsi.net), nos termos do qual foi sumariada a doutrina: I – invocando o Autor, como causa de pedir,
um contrato de prestação de serviços celebrado com a Ré, e por esta incumprido
no que concerne à obrigação de pagamento do preço estipulado, não pode o
Tribunal condenar com fundamento no enriquecimento sem causa, se tal fonte da
obrigação de indemnizar não foi invocada pelo demandante. II – Tal decisão
viola os princípios processuais do dispositivo, do pedido, da substanciação e
da estabilidade da instância, sendo nula. E
XVI)
de forma bem elucidativa tirado num caso igual ao aqui submetido à sindicância,
a doutrina sumariada no Ac. da Relação de Évora, no âmbito do proc.
2777/10.6TBPTM.E1, de 28/06/2012 (publicado no sítio da Internet
www.dgsi.pt/jtre), nos termos da qual e com unanimidade é considerado que:
- É nula, por excesso de pronúncia, a
sentença que condena no pagamento da quantia peticionada com fundamento no
enriquecimento sem causa quando ao autor baseou o seu pedido num mútuo.
- O enriquecimento sem causa não é um
remédio para quem não prova a causa do direito que pretende fazer valer, sendo
essencial a alegação e prova da falta de causa do enriquecimento.
XVII)
O enriquecimento sem causa não é de conhecimento oficioso e deve ser alegado
pelas Partes, o que não aconteceu no caso vertente, tendo a 1.ª Instância ido
mais além do conhecimento que lhe foi pedido pelos Autores porque se ocupou de
uma questão que não foi suscitada pelas partes,
XVIII)
tendo, assim, proferido uma decisão com violação do disposto nos arts. 5.º, n.º
3, 608.º, n.º 2, 2.º segmento, todos do C.P.C., os princípios processuais do
dispositivo, da disponibilidade privada e da estabilidade da instância, estando
viciada por excesso de pronúncia e que importa, nos termos do art. 615.º, n.º1,
alí. d) do Código do Processo Civil, a nulidade e invalidade da sentença
recorrida.
Na
eventualidade de esta 2.ª Instância assim não o entender, o que hipoteticamente
se coloca, mais entende o Apelante existir:
II -
Erro de julgamento ou errada aplicação do Direito:
XVIX)
A 1.ª Instância considerou preenchidos os pressupostos genéricos do
enriquecimento sem causa, previstos no art. 473.º, n.º 1, do C.C. – a obtenção
de um enriquecimento; à custa de outrem; sem causa justificativa – e os
específicos da “repetição do Indevido”, modalidade prevista no art. 476.º, n.º
1, do C.C..
XX)
Sucede que, por um lado, existiu uma causa que justificou os pagamentos, que
foi a prestação do trabalho ou serviço do Apelante à Apelada para receber a
indemnização da BP, não se verificando, assim, preenchido o pressuposto geral e
necessário da inexistência e causa justificativa, e por outro,
XXI)
tendo a Apelada efectuado 13 pagamentos sem ter recebido a indemnização da BP,
e um último já após a citação da acção instaurada contra si pela BP, também não
se verifica o pressuposto específico previsto no art. 476.º, n.º 1, do C.C. – a
intenção de cumprir uma obrigação – porque e trazendo à colação a boa doutrina
do Prof. Dr. Menezes Leitão (in “Direito das Obrigações”, Vol. I, Introdução da
Constituição das Obrigações, Almedina, p. 3.1.2., pág. 371) (…) A lei exige
aqui, assim, uma intenção solutória específica, sem a qual não se poderá falar
de um pagamento indevido, o que permite concluir pela exclusão da condictio indebiti quando o solvens realiza a prestação conhecendo a
inexistência da dívida. Efectivamente, embora a lei não exija o erro do solvens como pressuposto da repetição do
indevido, parece claro que, nos casos em que ele conheça a inexistência da
dívida, não se verifica a intenção de cumprir uma obrigação, pelo que não pode
aplicar-se o art. 476.º, n.º 1.
XXII)
Aqui andou mal a 1.ª Instância, tendo interpretado e aplicado mal o instituto
porque não se verificavam preenchidos os seu pressupostos, violando os arts.
473.º, n.º 1, 476.º, n.º 1, e 9.º, todos do C.C. e proferido uma sentença
injusta com vícios substanciais, o que se assim não tivesse acontecido impunha
a prolação de uma sentença que tivesse absolvido totalmente a Apelante do pedido
formulado.
Nestes
termos e nos demais de Direito que V.as Ex.as doutamente suprirão, deve o presente
recurso merecer provimento e, consequentemente, ser a sentença recorrida declarada
nula por omissão ou excesso de pronuncia, devendo ser revogada ou anulada em
função de tais nulidades ou pela procedência dos demais vícios alegados,
proferidos e uma outra decisão que a substitua em conformidade e que absolva o
Apelante totalmente do pedido.
Sendo
assim feita justiça!
Os
recorridos contra-alegaram, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. A
excepção peremptória de prescrição, como fundamento de defesa, deveria ter sido
alegada em sede de contestação, uma vez que se trata de uma questão preliminar
ao objecto do litígio.
2. Mas
mesmo que se considere que a sentença não se pronunciou sobre a questão da
prescrição, o juiz a quo pode
apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do
recurso, ou, quando não o faça, pode o relator mandar baixar o processo para
que seja proferido despacho quanto à questão que não foi apreciada (artigo
617.º, n.ºs 1 e 5 do CPC). Pelo que a alegada omissão de pronúncia não implica
a nulidade da sentença, uma vez que a mesma pode, e deve, ser suprida.
3.
Ainda assim, o prazo de três anos previsto no artigo 482.º CC conta-se a partir
do momento em que o credor teve conhecimento do enriquecimento, que neste caso
é a data em que ficou definitivamente encerrado o processo judicial entre a BP
e os autores (prolação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de
29.09.2015, no âmbito do processo n.º 1552/07.0TBPTM) e no qual estes
peticionaram, em reconvenção, uma indemnização com os mesmos fundamentos que
serviram de base à proposta de indemnização apresentada pela BP.
4. Uma
vez que a presente acção foi proposta em 17.03.2015, o direito dos autores não
prescreveu, pelo que deve ser julgada improcedente a excepção peremptória
invocada pelo réu.
5. De
acordo com o disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC o juiz, aquando da
elaboração da sentença, aprecia livremente as provas segundo a sua prudente
convicção acerca de cada facto. Por outro lado, de acordo com o n.º 3 do artigo
5.º do CPC o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à
indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Quer isto dizer que
o juiz é livre na interpretação das normais jurídicas que devam ser avocadas
para a resolução do litígio.
6. O
entendimento do tribunal a quo não
extravasa o objecto da causa nem o que foi peticionado, apenas faz um
enquadramento jurídico diverso dos factos dados como provados, que, de resto,
vai de encontro ao que foi alegado pelo réu, devendo, por isso, ser julgada
improcedente a alegada nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
7.
Ficou provado que as partes acordaram que os autores pagariam ao réu 1/3 da
indemnização que a BP lhes viesse a pagar, como contrapartida pela ajuda à
obtenção de uma indemnização. Ficou igualmente provado que os autores,
confiando que a quantia proposta pela BP lhes iria ser entregue, iniciaram os
pagamentos ao réu. Contudo, essa indemnização, que era a cláusula condicional
daquele contrato, nunca ocorreu. Não só os autores não receberam qualquer valor
indemnizatório por parte da BP como ainda foram condenados a pagar a esta
empresa a quantia reproduzida na sentença. Em termos jurídicos, a situação
fáctica dos autos configura claramente um enriquecimento sem causa, estando
reunidos todos os pressupostos a que alude o artigo 473.º do CC, pelo que o réu
foi correctamente condenado a restituir aos autores a quantia que lhe foi por
estes entregue.
Nos
termos expostos, deve ser julgado improcedente o recurso interposto pelo réu e
mantida, na íntegra, a, aliás douta, sentença impugnada.
O
recurso foi admitido.
Objecto
do recurso
É entendimento uniforme que é pelas
conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o
âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º,
n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha
(artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo
663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo
o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
As questões a resolver são as seguintes:
- Se a sentença recorrida é nula, por
excesso de pronúncia, devido a ter condenado o réu JB com fundamento em enriquecimento sem
causa, quando os autores alegaram, como causa de pedir, diversos contratos de
mútuo;
- Se a sentença recorrida é nula devido
a omissão de pronúncia sobre a excepção de prescrição do direito à restituição
por enriquecimento sem causa;
- Se se verificam os pressupostos do
enriquecimento sem causa.
Factualidade
apurada
Na sentença recorrida, foram julgados provados
os seguintes factos:
1. O sócio gerente da sociedade AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda., AA, aqui também autor, e o réu JB conhecem-se há vários anos, por força da
actividade profissional que exerceram, no âmbito da venda de combustíveis (art.
4.º da petição inicial). O réu foi sócio e gerente de uma sociedade
proprietária de um posto de abastecimento de combustíveis, sito em (…), que
tinha um contrato de exclusividade com a "BP Portugal, S. A.” (art. 10.º
da contestação do réu). O autor AA era sócio e gerente da A. AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda.,
desde 1987, concessionária da BP Portugal, S.A., exploradora do posto de
abastecimento da BP de (…) – fls. 146 (art. 11.º da contestação do réu).
2. Em Julho/Agosto de 2005, o autor AA procurou o réu
por este ter conhecimentos comerciais e experiência negocial com a BP, e este
aceitou ajudar a autora AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. a ser indemnizada
pela BP, por esta ter denunciado o contrato de cessão de exploração (art. 12.º
da contestação).
3. Por o réu alegar, com base no regime
legal do "Contrato de Agência", que a AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda.
teria direito a uma indemnização pela clientela e, eventualmente, também por
outras causas (art. 14.º da contestação do réu), o réu aceitou tratar do
assunto, tendo desenvolvido o seu trabalho para a autora AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda.” desde Julho/Agosto de 2005 até Agosto/Setembro de
2006, período em que AA e réu privaram directamente para o efeito (arts. 15.º e 16.º da
contestação do réu), tendo o trabalho do réu sido concretizado através de
estudos da contabilidade da AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. durante os anos de
vigência da concessão (art. 17.º da contestação do réu), da elaboração de
cálculos anuais relativos, entre outros, às quantidades de combustível comprado
e vendido, aos lucros obtidos, às taxas de exploração pagas à “BP” e à
clientela obtida e fidelizada ao posto de abastecimento - fls. 179 e ss. (art.
18.º da contestação do réu), da preparação de reuniões com a BP e elaboração de
documentos, propostas ou cartas de negociação para obtenção das indemnizações
pretendidas, tendo ficado acordado entre os autores e o réu que, pela ajuda ou
colaboração prestada, a AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. pagaria ao réu um
terço do valor da indemnização que a BP viesse a pagar (art. 21.º da
contestação do réu).
4. Por comunicação de 7 de Julho de
2005, a BP denunciara o contrato com efeitos a contar a partir de 5 de Julho de
2006 – fls. 157 (arts. 13.º e 14.º da contestação do réu).
5. A AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda.
enviou à BP a carta de 26.08.2005, solicitando o início de negociações com
vista a obtenção de indemnização – fls. 158/159 – a qual foi respondida em
09.09.2005 – fls. 160.
6. A AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda.
enviou à BP a carta de 20.01.2006 – fls. 161 – que foi respondida em 10.02.2006
– fls. 162.
7. Houve mais troca de correspondência
como as que se seguem:
- 24.02.2006: da AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda.
– fls. 178;
- 28.03.2006: da AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda.
– fls. 215;
- 09.05.2006: da BP – fls. 195;
- 16.05.2006: da BP – fls. 163;
- 19.05.2006: da AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda.
– fls. 249;
- 27.06.2006: da AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda.
– fls. 168;
- 29.06.2006: da BP – fls. 198.
8. Tal correspondência estava na posse
do réu, assim como os documentos depois juntos de fls. 172 e ss., 187 e ss.,
205 e ss., 223 e ss., 237 e ss., 263 e ss. - declarações fiscais da AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda. (art. 19.º da contestação do réu).
9. A colaboração do réu ocorreu com
total desconhecimento da BP, sendo que toda a documentação ou correspondência
era proposta pelo réu para ser revista, assinada e remetida pela AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda. à BP (art. 20.º da contestação do réu).
10. Por carta datada de 27 de Junho de
2006, a BP aceitou indemnizar a AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., pelo montante de €
250.000, acrescido de IVA, além de outras quantias a diversos títulos que não
chegou a pagar – fls. 165 (art. 22.º da contestação do réu).
11. Ainda antes de receber qualquer
quantia da BP, em Janeiro de 2007, a AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda.
e o autor iniciaram o pagamento ao réu do valor acordado, em prestações mensais
e sucessivas de € 6.000 cada (art. 23.º da contestação do réu).
12. Em Abril de 2008 pagou ao réu apenas
€ 2.500, com base num acerto realizado entre ambos em função da indemnização
aceite pela BP incluir o imobilizado pelo valor de € 20.000 – fls. 198 (art.
24.º da contestação do réu).
13. No dia 24.01.2007, o autor AA entregou ao réu
e à sua ordem o cheque de € 6.000 com o n.º 4017761457 que foi efectivamente
descontado - fls. 19 (parte do art. 7.º da petição inicial).
14. Em 28.02.2007, o autor entregou ao
réu e à sua ordem o cheque n.º 5530085855, sacado sobre o Banco Montepio Geral,
no montante de € 6.000 – fls. 21 (art. 11.º da petição inicial).
15. Em 30.03.2007, o autor entregou ao
réu e à sua ordem o cheque nº 3730085857, sacado sobre o Banco Montepio Geral,
no montante de € 6.000 – fls. 22 (art. 12.º da petição inicial).
16. Em 27.04.2007, a autora AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda., passou ao réu o cheque n.º 6330085882, sacado
sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 – fls. 27 (art. 13.º da
petição inicial).
17. Em 30.05.2007, a autora AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda., passou ao réu o cheque n.º 0930085888, sacado
sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 – fls. 24 (art. 14.º da
petição inicial).
18. Em 29.06.2007, a autora AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda., passou ao réu o cheque n.º 0532863990, sacado
sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 – fls. 25 (art. 15.º da
petição inicial).
19. Em 31.07.2007, a autora AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda., passou ao réu o cheque n.º 6832863983, sacado
sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 - fls. 26 (art. 16.º da
petição inicial).
20. Em 26.08.2007, a autora AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda., passou ao réu o cheque n.º 5932863984, sacado
sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 – fls. 27 (art. 17.º da
petição inicial).
21. Em 28.09.2007, o autor entregou ao
réu o cheque n.º 3232863987, sacado sobre a conta da AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda.,
do Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 – fls. 20 (art. 10.º da petição
inicial).
22. Em 31.10.2007, a autora AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda., passou ao réu o cheque n.º 503286985, sacado
sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 – fls. 28 (art. 18.º da
petição inicial).
23. Em 30.11.2007, a autora AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda., fez uma transferência bancária para o réu no
montante de € 6.000 – fls. 29 (art. 19.º da petição inicial).
24. Em 27.12.2007, a autora AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda., passou ao réu o cheque n.º 7732863982, sacado
sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 – fls. 30 (art. 20.º da
petição inicial).
25. Em 29.01.2008, a autora AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda., passou ao réu o cheque n.º 4132863986, sacado
sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 – fls. 31 (art. 21.º da
petição inicial).
26. Em 15.04.2008, a autora AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda., passou ao réu o cheque n.º 1736639164, sacado
sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 2.500 – fls. 32 (art. 22.º da
petição inicial).
27. Os autores tinham conhecimento que o
réu era proprietário de vários bens (art. 28.º da petição inicial).
28. O réu era titular dos seguintes bens
(art. 29.º da petição inicial):
a) Fracção autónoma designada pela letra
C, correspondente ao R/C, loja C, do prédio urbano situado em (…), descrito na
Conservatória do Registo Predial sob o n.º 752 – fls. 36;
b) Fracção autónoma designada pela letra
L, correspondente ao R/C, letra H, do prédio urbano situado em (…), descrito na
Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 752 – fls. 35;
c) Fracção autónoma designada pela letra
F, correspondente ao 3.º andar direito do prédio urbano situado em (…),
descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 4426;
d) Fracção autónoma designada pela letra
M, correspondente ao 6.Q andar direito do prédio urbano situado em (…),
descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 5910 – fls. 34;
e) Prédio urbano designado pelo Lote 1, situado
em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1569 – fls. 37;
f) Fracção autónoma designada pela letra
D, correspondente ao 2º andar esquerdo do prédio urbano situado em (…),
freguesia e concelho de (…).
29. Em data indeterminada, o autor
tentou saber, junto das Conservatórias do Registo Predial, qual era ao certo o
património imobiliário do réu (art. 31.º da petição inicial), tendo ficado a
saber que os imóveis a seguir indicados tinham sido doados pelos réus aos seus
filhos, como segue:
- 24.11.2006: a fracção autónoma
designada pela letra M do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial
de (…) sob o nº 5910 foi doado pelos réus ao filho GB, solteiro e maior
tendo-se afirmado com os mesmos residente – fls. 47/34;
- 24.11.2006: a fracção autónoma
designada pela letra L do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial
de (…) sob o n.º 752 foi doada pelos réus à filha AB, solteira, maior, tendo-se
afirmado com os mesmos residente; e a fracção autónoma designada pela letra F
do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 4426
foi doada pelos réus à filha AB, solteira, maior, tendo-se afirmado com os
mesmos residente – fls. 47/35;
- 24.11.2006: o prédio urbano designado
pelo Lote 1, situado em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o
n.º 1569 foi doado pelos réus ao filho TB, solteiro e menor, com os pais
residente – fls. 47/37;
- 24.11.2006: a fração D do prédio
descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 663, bem próprio
do réu, foi doado por este ao seu filho, JH – fls. 50;
- 13.12.2006: Prédios rústicos descritos
na Conservatória do Registo de (…) sob os n.ºs 37448, 37575, 37580, 3730 foram
doados pelos réus ao filho JH, solteiro e maior, tendo este afirmado residir na
morada dos pais - fls. 58.
30. A fracção autónoma designada pela
letra C do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 752
foi doada pelos réus ao filho GB, solteiro e maior, que se afirmaram residentes
na mesma habitação – fls. 43/36.
31. 17.10.2007: o prédio rústico
descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 3594 e o prédio
rústico descrito na mesma Conservatória sob o n.º 2793 foram doados pelos réus
ao filho TB, solteiro e menor – fls. 39. Nesse ato, os réus identificaram-se
como casados sob o regime de comunhão de adquiridos e residentes em (…).
32. 17.10.2007: o prédio rústico
descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 2804 e o prédio
rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 2185
foram doados pelos réus à filha AB, tendo a mesma afirmado residir na mesma
morada dos pais – fls. 54 (arts. 34.º a 37.º da petição inicial).
33. No dia 27 de Abril de 2007, a BP
Portugal – Comércio de combustíveis e lubrificantes, Lda. propôs acção judicial
com o n.º 1552/07.0TBPTM contra os aqui réus, os quais foram citados no dia 24
de Janeiro de 2008, tendo vindo a ser proferida sentença a 3 de Fevereiro de
2010 que, após anulação subsequente a recursos (acórdãos de 16 de Dezembro de
2010 e de 15 de Novembro de 2011) deu lugar à sentença de 17 de Abril de 2013,
que condenou a ré AP
– Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. a pagar à BP a quantia de
cerca de € 97.700. Nessa acção, a AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. alegara a
titularidade de créditos sobre a autora referentes a derrames de combustíveis,
créditos que não foram dados por provados na sentença. O pedido de indemnização
de clientela também foi julgado improcedente – fls. 526.
34. No dia 28 de Março de 2014, a AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda. propôs acção contra a BP, dando origem ao processo
n.º 519/14.6TVLSB, ainda em curso – fls. 549.
35. Em 07.01.2014, a autora, através do
seu sócio gerente, aqui também autor, enviou uma comunicação ao réu solicitando
a liquidação da quantia em dívida – fls. 62 (art. 38.º da petição inicial).
36. Apesar de ter sido remetida para
três moradas distintas, a mencionada comunicação foi sempre devolvida, por
ninguém ter atendido – fls. 64-69 (art. 39.º da petição inicial).
37. Em Julho de 2014, os autores
requereram procedimento cautelar especificado de arresto contra o réu, que
correu termos junto da Unidade 3, 2.ª Secção Cível da Instância Central de
Portimão. O procedimento cautelar requerido foi julgado procedente e provado,
tendo sido decretado o arresto do saldo de uma conta bancária e de um prédio
urbano para garantia da dívida de € 84.000 que se indiciava – fls. 124 do
apenso “A” (arts. 1.º e 2.º da petição inicial). Foi arrestado o imóvel mas
nenhum saldo foi encontrado em instituição em Portugal – fls. 135 e 138 e ss.
38. O Réu JB decidiu ir viver para Angola,
passando algum tempo também em Portugal, tendo então os R.R., no final de 2006
e de 2007, procedido à partilha do património comum, o que fizeram através de
doações aos filhos (arts. 37.º da petição inicial e 12.º da contestação da ré e
28.º e 30.º da contestação do réu). A relação matrimonial dos réus
caracterizou-se pela inexistência de relações patrimoniais entre os dois, sem
qualquer assistência ou cooperação mútua (arts. 29.º da contestação do réu e
11.º da da ré).
38. Os réus, casados desde 1979,
obtiveram decisão de separação de pessoas e bens no dia 24 de Fevereiro de
2014, logo transitada – fls. 122 (art. 13.º da contestação da ré).
39. As quantias entregues ao Réu JB beneficiaram
apenas a este, não à Ré (art. 14.º da contestação da ré).
A sentença recorrida julgou não provado que:
A) No final de 2006, o réu, valendo-se
da relação de amizade que tinha com o autor AA, lhe tivesse referido estar a passar um
período de graves dificuldades financeiras, que se devia ao facto da sua actividade
comercial se encontrar a atravessar, momentaneamente, algumas dificuldades
(art. 5.º da petição inicial).
B) O réu tivesse solicitado, então, ao
autor AA um
empréstimo (art. 6.º da petição inicial) e que o autor AA, na sequência deste pedido, tivesse
emprestado ao réu as quantias entregues (art. 7.º da petição inicial).
C) Nos meses subsequentes, o réu tivesse
continuado a solicitar ao autor AA novos empréstimos monetários, referindo que a resolução dos
seus problemas económicos estava para breve e dizendo, inclusivamente, que
estava prestes a vender o posto de abastecimento de combustíveis, de que era
proprietário, de (…) (art. 8.º da petição inicial) e que o autor, por acreditar
no réu e que iria ser ressarcido dos empréstimos monetários, fosse satisfazendo
os seus pedidos de empréstimo (art. 9.º da petição inicial).
D) Quando os autores entregavam as
quantias supra referidas ao réu, este dissesse sempre ao autor AA que a resolução
das suas dificuldades financeiras estava para breve, que lhe iria pagar as
quantias emprestadas, acrescidas de juros (art. 25.º da petição inicial) e que
tivesse afirmado que liquidaria a dívida contraída com os autores num curto
espaço de tempo e que nunca iria defraudar um amigo de longa data, que o estava
a ajudar numa altura particularmente difícil da sua vida (art. 26.º da petição
inicial) e que a satisfação do crédito dos autores não corria risco uma vez que
era proprietário de um património imobiliário no valor de cerca de € 500.000,
situado em (…) e (…), que iria vender caso não conseguisse pagar aos autores
num curto espaço de tempo (art. 27.º da petição inicial).
E) O réu tivesse continuado a pedir dinheiro
emprestado ao autor mas, tendo em conta o elevado valor do montante emprestado,
este tivesse recusado a conceder-lhe novos empréstimos (art. 30.º da petição
inicial).
F) Em 21.12.2007 a autora AP – Sociedade Comercial
de Combustíveis, Lda. tivesse feito uma transferência bancária para o
réu no montante de € 3 500 - fls. 33 (art. 23.º da petição inicial).
Fundamentação
Comecemos
por analisar a questão acima enunciada em primeiro lugar, ou seja, se a
sentença recorrida é nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º,
n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC.
O
recorrente sustenta que essa nulidade se verifica porquanto foi condenado com
fundamento em enriquecimento sem causa, quando os autores alegaram, como causa
de pedir, a celebração de diversos contratos de mútuo e a falta de restituição
das quantias mutuadas. Segundo o recorrente, tal alteração não consistiu numa
mera qualificação jurídica dos factos diversa daquela que os autores lhes
haviam dado na petição inicial, antes tendo redundado numa verdadeira alteração
da causa de pedir, sendo certo que, ao contrário da primeira, esta última é
proibida e constitui causa de nulidade da sentença nos termos do preceito legal
citado.
Já os
recorridos defendem que “o entendimento do tribunal a quo não extravasa o objecto da causa nem o que foi peticionado,
apenas faz um enquadramento jurídico diverso dos factos dados como provados,
que, de resto, vai de encontro ao que foi alegado pelo réu”.
Sendo
estes os termos em que a questão se encontra colocada, mostra-se necessário
recordar algumas noções básicas sobre a causa de pedir. Esta é, segundo ALBERTO
DOS REIS, “o acto ou facto jurídico em que o autor se baseia para formular o
seu pedido.”[1]
O autor tem de especificar a causa de pedir, ou seja, a fonte do direito que
pretende fazer reconhecer, “o facto ou acto de que, no seu entender, o direito
procede”.[2]. O autor que vimos citando
exemplifica: “O direito deriva, por exemplo, de um contrato? O autor há-de
invocar esse contrato, reproduzindo as suas cláusulas essenciais, para que
possa saber-se, com precisão, qual foi o negócio jurídico celebrado pelas
partes.”[3]
Acerca
da função da causa de pedir, ensina JOSÉ LEBRE DE FREITAS: “Através da alegação
desse facto constitutivo, a causa de pedir exerce a sua função delimitadora do
pedido ou pretensão, individualizando-o.”[4] “A causa de pedir exerce função individualizadora do pedido para
o efeito da conformação do objecto do processo.”[5]
No caso
dos autos, a causa de pedir é constituída pelos contratos de mútuo cuja
celebração os autores alegaram e pela também alegada não restituição das
quantias mutuadas por parte do réu JB. Foi assim que os autores configuraram a causa de pedir na
petição inicial e não a alteraram no decurso da acção. Note-se, a propósito,
que a circunstância de o réu JB não se ter limitado a negar pura e simplesmente a veracidade
dos factos integradores da causa de pedir e, em vez disso, se ter defendido
através de impugnação motivada[6], contextualizando as
entregas de dinheiro alegadas pelos autores à luz de um contrato diverso, em
nada alterou a causa de pedir. Esta última resulta exclusivamente da alegação
dos autores e não também da impugnação levada a cabo pelos réus.
Sendo a
causa de pedir a acima referida, é dentro dos limites dela decorrentes que o
tribunal exerce os seus poderes de cognição. “Por isso, o tribunal tem de a
considerar ao apreciar o pedido e não pode basear a sentença de mérito em causa
de pedir não invocada pelo autor (art. 608-2), sob pena de nulidade da sentença
(art. 615-1-d)”[7].
“Não basta que haja coincidência ou identidade entre o pedido e o julgado; é
necessário, além disso, (…) que haja identidade entre a causa de pedir (causa petendi) e a causa de julgar (causa judicandi). Já Mattirolo
advertia: Deve anular-se, por vício de ultra
petita, a sentença em que o juiz invoca, como razão de decidir, um título, ou uma causa ou facto jurídico,
essencialmente diverso daquele que as partes, por via de acção ou de excepção,
puseram na base das suas conclusões (…).”[8] E “(…) quando o juiz julga
procedente a acção com fundamento em causa de pedir diversa da alegada pelo
autor, conhece de questão que o autor não submeteu à sua apreciação, isto é, de
questão de que não devia tomar conhecimento, atento o disposto no artigo 660.º;
a sentença incorre, portanto, na nulidade prevista na 2.ª parte do n.º 4 do
art. 668.º.”[9]
“Não podendo o juiz conhecer de causas
de pedir não invocadas, nem de excepções
na exclusiva disponibilidade das partes (…), é nula a sentença em que o
faça.”[10]
Identificada
da forma descrita a causa de pedir desta acção e esclarecidos os limites que a
mesma impõe aos poderes de cognição do tribunal, bem as consequências legais da
violação desses limites, resta analisar se a sentença recorrida se conteve
dentro dos mesmos limites ou, ao invés, os ultrapassou.
O
tribunal recorrido entendeu, quer no despacho que proferiu entre o momento do
encerramento da audiência final e o da prolação da sentença, quer nesta última,
que a condenação do réu JB com fundamento, não na falta de restituição das quantias
alegadamente mutuadas pelos autores, como estes pretendiam, mas em
enriquecimento sem causa, se traduz numa mera diferença de enquadramento
jurídico da factualidade dada como provada, legalmente admissível porquanto o
juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação,
interpretação e aplicação das regras de direito, nos termos do artigo 5.º, n.º
3, do CPC. A única exigência legal seria, segundo o tribunal recorrido, a
observância do contraditório, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do mesmo código.
Discordamos.
É
indiscutível que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à
indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Di-lo expressamente
o artigo 5.º, n.º 3, do CPC, à semelhança do artigo 664.º, 1.ª parte, do CPC
anterior. Ensinava, a propósito, ALBERTO DOS REIS que “As partes fornecem os
factos ao juiz; mas a sua qualificação jurídica, o seu enquadramento no regime
legal, é função própria do magistrado, no exercício da qual ele procede com a
liberdade assinalada na 1.ª parte do art. 664.º.” No entanto, logo advertia: “É
livre o tribunal na qualificação jurídica dos factos, contanto que não altere a causa de pedir.”[11]
Ora, o
fundamento da condenação do réu JB não se circunscreve aos factos
integrantes da causa de pedir, ainda que com um enquadramento jurídico diverso
do proposto pelos autores. Isso teria acontecido, por exemplo, se, provando-se
a celebração dos acordos alegados pelos autores, estes os tivessem qualificado
como contratos de comodato, ou tivessem sustentado que os mesmos eram contratos
atípicos, e o tribunal os qualificasse como contratos de mútuo.
Porém, o
tribunal recorrido foi mais longe. A celebração dos contratos de mútuo alegados
pelos autores como causa de pedir não se provou. Lendo o elenco dos factos não
provados, verificamos que os mesmos são os alegados como causa de pedir, com
excepção das entregas de dinheiro ao réu JB, julgadas provadas. Não obstante tal falta
de prova dos concretos contratos que constituíam a causa de pedir, o tribunal recorrido
não julgou a acção improcedente, como devia. Em vez disso, passou a analisar a
pretensão dos autores à luz de um contrato cuja existência estes não alegaram,
acabando por concluir que, em função do conteúdo desse mesmo contrato, se tinha
verificado um enriquecimento sem causa – nunca invocado por qualquer das partes
– em benefício do réu JB. Desta forma, o tribunal recorrido transpôs os limites
decorrentes da causa de pedir, passando a conhecer de questão que lhe estava
vedada, nos termos do artigo 608.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC, e acabando por
condenar o réu JB
com fundamento diverso da mesma causa de pedir. Consequentemente, a sentença
recorrida é nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do
mesmo código.
O artigo
665.º, n.º 1, do CPC, estabelece que, anulada a decisão que põe termo ao
processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação. No caso
dos autos, perante aquilo que afirmámos até aqui, pouco mais há a fazer que
concluir. Não se provou a celebração dos contratos de mútuo que os autores
invocaram como causa de pedir. As transferências patrimoniais dos autores para
o réu JB
tiveram causa diversa desses hipotéticos contratos de mútuo, conforme se
provou. Inexistindo os referidos contratos de mútuo, logicamente inexistem as
obrigações de restituição das quantias recebidas pelo réu JB que resultariam
dos mesmos contratos. Consequentemente, o pedido terá de improceder, por falta
de prova da causa de pedir.
Fica,
assim, prejudicado o conhecimento das restantes questões acima enunciadas, a
saber, se a sentença recorrida é nula devido a omissão de pronúncia sobre a
excepção de prescrição do direito à restituição por enriquecimento sem causa e
se se verificam os pressupostos deste último.
Em
conclusão, o recurso deverá ser julgado procedente, anulando-se a sentença recorrida e absolvendo-se os réus do pedido.
Decisão
Acordam os juízes do
Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, anulando a sentença
recorrida e absolvendo os réus do pedido.
Custas
pelos recorridos.
Notifique.
*
Évora, 08.02.2018
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.ª
adjunta
2.º adjunto
[1] Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, p. 369.
[2] Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, p. 370.
[3] Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, p. 370.
[4] Introdução do Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais à Luz do
Código Revisto, Coimbra Editora, 1996, p. 58.
[5] A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de
Processo Civil de 2013, 4.ª edição, p. 53.
[6] Sobre esta forma de defesa, leia-se
PAULO PIMENTA, Processo Civil Declarativo,
2.ª edição, p. 184.
[7]
JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Acção
Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4.ª edição, p.
53. Este autor explicita o seu pensamento através do seguinte exemplo: “não
pode, por exemplo, em ação em que se pretenda o reconhecimento do direito de
propriedade adquirido por um contrato de compra e venda, reconhecê-lo com
fundamento na aquisição por testamento; ainda que a ocorrência e o conteúdo
deste tenham sido introduzidos no processo pelas partes, só a sua elevação a
nova causa de pedir (subsidiária ou substitutiva da primeira), nos termos em
que a lei a consente, permitiria ao juiz tal decisão.”
[8]
ALBERTO DOS REIS, Código de Processo
Civil Anotado, volume V (reimpressão), página 56.
[9]
ALBERTO DOS REIS, Código de Processo
Civil Anotado, volume V (reimpressão), página 58.
[10] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A.
MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO, Código de
Processo Civil Anotado, volume 2.º, p. 670, em anotação ao artigo 668.º do
anterior CPC.
[11] Código de Processo Civil Anotado, volume V (reimpressão), páginas
93-94.