quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Acórdão da Relação de Évora de 08.02.2018

Processo n.º 779/15.5T8PTM.E1

*

Sumário:

1 – A causa de pedir é o acto ou facto jurídico em que o autor se baseia para formular o seu pedido e exerce uma função individualizadora deste último para o efeito da conformação do objecto do processo.

2 – Sendo dentro dos limites fixados pela causa de pedir que o tribunal exerce os seus poderes de cognição, a sentença não pode basear-se em causa de pedir não invocada pelo autor, sob pena de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.

3 – Se o autor alegar, como causa de pedir, que celebrou um contrato de mútuo com o réu e que este não cumpriu a obrigação de restituição da quantia mutuada, e se não se provar a celebração daquele contrato, mas apenas a entrega da quantia em causa, em execução de um contrato diverso, está vedado, ao tribunal, condenar o réu na restituição da mesma quantia a título de enriquecimento sem causa.

*

Relatório

AA e AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., propuseram a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra JB e LB, casados entre si, pedindo a condenação do réu JB a pagar-lhes a quantia de € 107.581,59. Os autores alegaram, em síntese, que emprestaram ao réu JB a quantia total de € 84.000 e que este último nunca a restituiu. Pretendem, pois, a restituição do capital em dívida e o pagamento dos juros de mora vencidos, no montante de € 23.581,59.

Ambos os réus contestaram.

A ré LB impugnou a matéria de facto alegada pelos autores, alegou que se encontra separada de pessoas e bens do réu JB e arguiu a nulidade, por inobservância da forma legal, dos hipotéticos contratos de mútuo. Concluiu que deverá ser absolvida do pedido.

O réu JB alegou ter recebido a quantia total de € 80.500, não a título de empréstimo, mas como contrapartida por serviços que prestou, ao longo de cerca de um ano, à autora AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., tendo em vista o pagamento, a esta, por parte da sociedade BP Portugal, SA, de uma indemnização pela denúncia de um contrato de cessão de exploração. A BP Portugal, SA aceitou pagar uma indemnização de € 250.000, acrescida de IVA, à autora AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., correspondendo a referida quantia de € 80.500 a cerca de um terço desse valor, conforme acordado. Alegou ainda que se encontra separado de pessoas e bens da ré LB desde 24.02.2014, embora a separação de facto remonte a 2005, e arguiu a nulidade, por inobservância da forma legal, dos hipotéticos contratos de mútuo. Concluiu que deverá ser absolvido do pedido.

Os autores replicaram, negando que as quantias que entregaram ao réu JB constituíssem uma contrapartida por qualquer serviço por este prestado e reafirmando a versão factual alegada na petição inicial.

Foi proferido despacho saneador, com a identificação do objecto do litígio e o enunciado dos temas de prova.

Realizou-se a audiência final.

Posteriormente ao encerramento da audiência final, foi proferido despacho com o seguinte teor:

“Da sentença

Ocorre que, na elaboração da mesma, o Tribunal enquadrou de forma diferente da alegada a factualidade dada por provada.

No processo de elaboração da sentença, conclui-se que:

- Ficou acordado entre os autores e o réu que, pela ajuda ou colaboração prestada, a AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. pagaria ao réu um terço do valor da indemnização que a BP viesse a pagar (art. 21.º da contestação do réu)

- A BP aceitou pagar mas, por razões que não se deram por provadas, não pagou, propondo até ação judicial na qual a AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. foi condenada a pagar-lhe, além do mais, € 97 700 e estando pendente ação judicial da AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. contra a BP;

- O réu JB já beneficiou dos montantes acordados.

O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – art. 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil. No entanto, deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem – art. 3.º, n.º 3, do mesmo código. Assim, com vista a ser cumprido o citado princípio, notifique as partes de que o enquadramento jurídico da factualidade dada por provada será diferente da alegada e se inscreverá no domínio do enriquecimento sem causa.

Notifique deste despacho o próprio réu.

Nada vindo, conclua de novo.”

Ambas as partes se pronunciaram na sequência deste despacho. Os autores concluíram no sentido da verificação dos pressupostos do enriquecimento sem causa, pelo que deveriam os réus ser condenados na restituição da quantia peticionada, acrescida dos respectivos juros legais. Já os réus negaram a verificação dos referidos pressupostos e invocaram a prescrição de um hipotético crédito dos autores proveniente de tal fonte.

Em seguida, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente:

a) Condenou o réu JB a restituir, à autora AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., a quantia de € 80.500, a título de enriquecimento sem causa, por ter recebido prestação daquele montante num momento em que a condição suspensiva de pagamento de 1/3 da indemnização que a BP lhe viesse efectivamente a entregar, não se tinha verificado, acrescida de juros legais contados desde 28.02.2017;

b) Absolveu o réu JB do pedido na parte restante;

c) Absolveu a ré LB do pedido.

O réu JB não se conformou com a sentença e interpôs recurso para este tribunal. As suas alegações contêm as seguintes conclusões:

I) A Apelada e AA instauraram acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, pedindo à 1.ª Instância que condenasse o Apelante a pagar € 107.581,59, tendo por causa de pedir factos relativos a alegados empréstimos pelo valor de € 84.000 e os respectivos juros de mora, totalizando a quantia global de € 107.581,59.

II) O Apelante contestou, alegando a inexistência de quaisquer empréstimos e que os diversos montantes, por si recebidos, foram-lhe entregues a título de pagamento pela ajuda ou colaboração prestada à Apelada para ser indemnizada pela BP Portugal, S.A., tendo sido acordado o pagamento de um valor correspondente a um terço do valor da indemnização que a “BP” viesse a aceitar pagar à Apelada, o que veio a acontecer após a “BP” ter aceite pagar uma indemnização pelo de € 250.000, acrescido de IVA, tendo o Apelante recebido € 80.500 através de treze pagamentos mensais e sucessivos de € 6.000, cada um, e de um último, com o valor reduzido, de € 2.500.

III) Através de despacho elaborado a 23/02/2017, com a referência n.º 105068408, o Tribunal a quo notificou o Apelante de que, ao elaborar a sentença, enquadrou de forma diferente da alegada a factualidade dada por provada, a qual seria considerada no domínio do enriquecimento sem causa, dando-lhe, assim, a possibilidade de se pronunciar.

IV) Exercendo o contraditório, o Apelante alegou não estarem preenchidos os requisitos ou pressupostos de qualquer uma das modalidades de “enriquecimento sem causa” e alegou a prescrição do direito a uma eventual restituição por enriquecimento, porque entre as datas dos diversos pagamentos e a data em que foi citado ou em que a prescrição tenha ficado interrompida decorreram mais de sete anos, tendo sido excedido o prazo legal dos três anos previsto no art. 482.º, do Código Civil (cfr. alegações juntas aos autos, com a referência n.º 25104487), o que sempre importará a absolvição do Réu do pedido.

V) Contudo, o Tribunal a quo veio a proferir uma sentença, nos termos da qual julgou parcialmente procedente a acção e, em consequência, condenou o Apelante a restituir à Apelada a quantia de € 80.500, a título de enriquecimento sem causa, por ter recebido prestação daquele montante num momento em que a condição suspensiva de pagamento de ⅓ (um terço) da indemnização que a “BP” lhe viesse efectivamente a entregar, não se tinha verificado, e que a essa quantia acrescem juros legais de mora contados desde 28 de Fevereiro de 2017, tendo absolvido o Apelante em tudo o mais do pedido.

VI) No que concerne ao enquadramento jurídico dos factos, entendeu a 1.ª Instância que o Apelante beneficiou do cumprimento de uma obrigação suspensiva, ineficaz ao tempo em que foi cumprida, devendo o Apelante, por estarem preenchidos os pressupostos do enriquecimento sem causa, na modalidade de “repetição do indevido”, restituir à Apelada a quantia de € 80.500.

V) O Apelante discorda deste entendimento e, consequentemente, da condenação que sofreu, padecendo a sentença de vícios formais e substanciais e o Tribunal a quo proferido uma decisão inválida e injusta, devendo a mesma ser anulada e o proferido uma outra que absolva o Apelante totalmente do pedido.

A) A nulidade da sentença por vício substancial de omissão de pronúncia:

VI) A Apelante, no exercício do contraditório alegou a prescrição do direito da Apelada a uma eventual restituição, por enriquecimento sem causa, do capital peticionado, por considerar que entre as datas dos diversos pagamentos feitos (de 24/01/2007 a 15/04/2008) e a data em que o Apelante foi citado para a acção ou aquela em que a prescrição se considera interrompida, já tinha passado mais de 7 anos, o que nos termos do art. 482º do Código Civil implica a prescrição do direito por ter decorrido um lapso temporal superior a 3 anos (cfr. alegações juntas aos autos com a referência 25104487).

VII) A prescrição necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita (art. 303.º do C.C.), fazendo-se normalmente na contestação mas nada impedindo de ser feita em qualquer outro momento ou peça processual.

VII) O Tribunal a quo considerou que os pagamentos foram feitos em momentos em que ainda não existia a obrigação, por não se ter verificado a condição suspensiva, o que importa que o decurso dos três anos de prazo para a prescrição deve ser contado a partir da data em que cada um dos pagamentos foram feitos (cfr. art. 306.º, n.º 1, 1.º segmento do C.C.).

VIII) A prescrição alegada, é uma questão de fundo e devia ter sido analisada e resolvida pelo Tribunal a quo, mas não foi conhecida pela 1.ª Instância, denegando, assim, a realização da justiça que o Apelante pretendia.

IX) Ao não se ter pronunciado sobre tal questão, remetendo-se ao silêncio sobre a mesma, a 1.ª Instância violou o disposto no art. 608.º, n.º 2, do C.P.C., o que, nos termos do art. 615.º, n.º 1, primeiro segmento da alínea d), do C.P.C. acarreta a nulidade e invalidade da sentença proferida.

B) A nulidade da sentença por vício de excesso de pronúncia:

X) A Apelada invocou como causa de pedir, justificando o seu pedido, uma sequência de mútuos onerosos concedidos ao Apelante, tendo este ficado obrigado a restituir os montantes emprestados com juros, o que foi alegadamente incumprido.

XI) A Apelada não pediu a condenação do Apelante com base no instituto do “enriquecimento sem causa”, não tendo sequer alegado quaisquer factos relativos ao mesmo, mas antes e apenas no alegado incumprimento do mútuo oneroso.

XII) Julgador tem liberdade para a qualificação jurídica dos factos, mas com limites, um dos quais é a não alteração da causa de pedir.

XIII) Ao ter julgado a acção parcialmente procedente com fundamento no enriquecimento sem causa, porque não ficaram provados os empréstimos alegados pelos Autores, a 1.ª Instância extravasou o âmbito da sua liberdade de qualificação jurídica dos factos porque alterou a causa de pedir a qual, no caso vertente, é constituída pelos diversos empréstimos que os Autores especificaram e as diversas entregas feitas a esse título, e não as entregas de capital em si ou os pagamentos recebidos pelo Apelante, os quais são factos jurídicos diferentes.

XIV) Ao ter condenado o Apelante com base no enriquecimento sem causa, a 1.ª Instância alterou a causa de pedir da acção, o que lhe estava vedado, e desvirtuou o pedido porque mudou a razão que os Autores alegaram para justificar o pedido formulado, o que levou à prolação de uma decisão para além dos poderes de cognição do Tribunal, o que implica a nulidade da sentença proferida por excesso de pronúncia.

XV) Nesse sentido, o Ac. RP, de 07/07/2005, JTRP00038265 (publicado no sítio da Internet em www.dgsi.net), nos termos do qual foi sumariada a doutrina: I – invocando o Autor, como causa de pedir, um contrato de prestação de serviços celebrado com a Ré, e por esta incumprido no que concerne à obrigação de pagamento do preço estipulado, não pode o Tribunal condenar com fundamento no enriquecimento sem causa, se tal fonte da obrigação de indemnizar não foi invocada pelo demandante. II – Tal decisão viola os princípios processuais do dispositivo, do pedido, da substanciação e da estabilidade da instância, sendo nula. E

XVI) de forma bem elucidativa tirado num caso igual ao aqui submetido à sindicância, a doutrina sumariada no Ac. da Relação de Évora, no âmbito do proc. 2777/10.6TBPTM.E1, de 28/06/2012 (publicado no sítio da Internet www.dgsi.pt/jtre), nos termos da qual e com unanimidade é considerado que:

- É nula, por excesso de pronúncia, a sentença que condena no pagamento da quantia peticionada com fundamento no enriquecimento sem causa quando ao autor baseou o seu pedido num mútuo.

- O enriquecimento sem causa não é um remédio para quem não prova a causa do direito que pretende fazer valer, sendo essencial a alegação e prova da falta de causa do enriquecimento.

XVII) O enriquecimento sem causa não é de conhecimento oficioso e deve ser alegado pelas Partes, o que não aconteceu no caso vertente, tendo a 1.ª Instância ido mais além do conhecimento que lhe foi pedido pelos Autores porque se ocupou de uma questão que não foi suscitada pelas partes,

XVIII) tendo, assim, proferido uma decisão com violação do disposto nos arts. 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, 2.º segmento, todos do C.P.C., os princípios processuais do dispositivo, da disponibilidade privada e da estabilidade da instância, estando viciada por excesso de pronúncia e que importa, nos termos do art. 615.º, n.º1, alí. d) do Código do Processo Civil, a nulidade e invalidade da sentença recorrida.

Na eventualidade de esta 2.ª Instância assim não o entender, o que hipoteticamente se coloca, mais entende o Apelante existir:

II - Erro de julgamento ou errada aplicação do Direito:

XVIX) A 1.ª Instância considerou preenchidos os pressupostos genéricos do enriquecimento sem causa, previstos no art. 473.º, n.º 1, do C.C. – a obtenção de um enriquecimento; à custa de outrem; sem causa justificativa – e os específicos da “repetição do Indevido”, modalidade prevista no art. 476.º, n.º 1, do C.C..

XX) Sucede que, por um lado, existiu uma causa que justificou os pagamentos, que foi a prestação do trabalho ou serviço do Apelante à Apelada para receber a indemnização da BP, não se verificando, assim, preenchido o pressuposto geral e necessário da inexistência e causa justificativa, e por outro,

XXI) tendo a Apelada efectuado 13 pagamentos sem ter recebido a indemnização da BP, e um último já após a citação da acção instaurada contra si pela BP, também não se verifica o pressuposto específico previsto no art. 476.º, n.º 1, do C.C. – a intenção de cumprir uma obrigação – porque e trazendo à colação a boa doutrina do Prof. Dr. Menezes Leitão (in “Direito das Obrigações”, Vol. I, Introdução da Constituição das Obrigações, Almedina, p. 3.1.2., pág. 371) (…) A lei exige aqui, assim, uma intenção solutória específica, sem a qual não se poderá falar de um pagamento indevido, o que permite concluir pela exclusão da condictio indebiti quando o solvens realiza a prestação conhecendo a inexistência da dívida. Efectivamente, embora a lei não exija o erro do solvens como pressuposto da repetição do indevido, parece claro que, nos casos em que ele conheça a inexistência da dívida, não se verifica a intenção de cumprir uma obrigação, pelo que não pode aplicar-se o art. 476.º, n.º 1.

XXII) Aqui andou mal a 1.ª Instância, tendo interpretado e aplicado mal o instituto porque não se verificavam preenchidos os seu pressupostos, violando os arts. 473.º, n.º 1, 476.º, n.º 1, e 9.º, todos do C.C. e proferido uma sentença injusta com vícios substanciais, o que se assim não tivesse acontecido impunha a prolação de uma sentença que tivesse absolvido totalmente a Apelante do pedido formulado.

Nestes termos e nos demais de Direito que V.as Ex.as doutamente suprirão, deve o presente recurso merecer provimento e, consequentemente, ser a sentença recorrida declarada nula por omissão ou excesso de pronuncia, devendo ser revogada ou anulada em função de tais nulidades ou pela procedência dos demais vícios alegados, proferidos e uma outra decisão que a substitua em conformidade e que absolva o Apelante totalmente do pedido.

Sendo assim feita justiça!

Os recorridos contra-alegaram, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. A excepção peremptória de prescrição, como fundamento de defesa, deveria ter sido alegada em sede de contestação, uma vez que se trata de uma questão preliminar ao objecto do litígio.

2. Mas mesmo que se considere que a sentença não se pronunciou sobre a questão da prescrição, o juiz a quo pode apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso, ou, quando não o faça, pode o relator mandar baixar o processo para que seja proferido despacho quanto à questão que não foi apreciada (artigo 617.º, n.ºs 1 e 5 do CPC). Pelo que a alegada omissão de pronúncia não implica a nulidade da sentença, uma vez que a mesma pode, e deve, ser suprida.

3. Ainda assim, o prazo de três anos previsto no artigo 482.º CC conta-se a partir do momento em que o credor teve conhecimento do enriquecimento, que neste caso é a data em que ficou definitivamente encerrado o processo judicial entre a BP e os autores (prolação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 29.09.2015, no âmbito do processo n.º 1552/07.0TBPTM) e no qual estes peticionaram, em reconvenção, uma indemnização com os mesmos fundamentos que serviram de base à proposta de indemnização apresentada pela BP.

4. Uma vez que a presente acção foi proposta em 17.03.2015, o direito dos autores não prescreveu, pelo que deve ser julgada improcedente a excepção peremptória invocada pelo réu.

5. De acordo com o disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC o juiz, aquando da elaboração da sentença, aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. Por outro lado, de acordo com o n.º 3 do artigo 5.º do CPC o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Quer isto dizer que o juiz é livre na interpretação das normais jurídicas que devam ser avocadas para a resolução do litígio.

6. O entendimento do tribunal a quo não extravasa o objecto da causa nem o que foi peticionado, apenas faz um enquadramento jurídico diverso dos factos dados como provados, que, de resto, vai de encontro ao que foi alegado pelo réu, devendo, por isso, ser julgada improcedente a alegada nulidade da sentença por excesso de pronúncia.

7. Ficou provado que as partes acordaram que os autores pagariam ao réu 1/3 da indemnização que a BP lhes viesse a pagar, como contrapartida pela ajuda à obtenção de uma indemnização. Ficou igualmente provado que os autores, confiando que a quantia proposta pela BP lhes iria ser entregue, iniciaram os pagamentos ao réu. Contudo, essa indemnização, que era a cláusula condicional daquele contrato, nunca ocorreu. Não só os autores não receberam qualquer valor indemnizatório por parte da BP como ainda foram condenados a pagar a esta empresa a quantia reproduzida na sentença. Em termos jurídicos, a situação fáctica dos autos configura claramente um enriquecimento sem causa, estando reunidos todos os pressupostos a que alude o artigo 473.º do CC, pelo que o réu foi correctamente condenado a restituir aos autores a quantia que lhe foi por estes entregue.

Nos termos expostos, deve ser julgado improcedente o recurso interposto pelo réu e mantida, na íntegra, a, aliás douta, sentença impugnada.

O recurso foi admitido.                                                         

Objecto do recurso

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

As questões a resolver são as seguintes:

- Se a sentença recorrida é nula, por excesso de pronúncia, devido a ter condenado o réu JB com fundamento em enriquecimento sem causa, quando os autores alegaram, como causa de pedir, diversos contratos de mútuo;

- Se a sentença recorrida é nula devido a omissão de pronúncia sobre a excepção de prescrição do direito à restituição por enriquecimento sem causa;

- Se se verificam os pressupostos do enriquecimento sem causa.

Factualidade apurada

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. O sócio gerente da sociedade AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., AA, aqui também autor, e o réu JB conhecem-se há vários anos, por força da actividade profissional que exerceram, no âmbito da venda de combustíveis (art. 4.º da petição inicial). O réu foi sócio e gerente de uma sociedade proprietária de um posto de abastecimento de combustíveis, sito em (…), que tinha um contrato de exclusividade com a "BP Portugal, S. A.” (art. 10.º da contestação do réu). O autor AA era sócio e gerente da A. AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., desde 1987, concessionária da BP Portugal, S.A., exploradora do posto de abastecimento da BP de (…) – fls. 146 (art. 11.º da contestação do réu).

2. Em Julho/Agosto de 2005, o autor AA procurou o réu por este ter conhecimentos comerciais e experiência negocial com a BP, e este aceitou ajudar a autora AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. a ser indemnizada pela BP, por esta ter denunciado o contrato de cessão de exploração (art. 12.º da contestação).

3. Por o réu alegar, com base no regime legal do "Contrato de Agência", que a AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. teria direito a uma indemnização pela clientela e, eventualmente, também por outras causas (art. 14.º da contestação do réu), o réu aceitou tratar do assunto, tendo desenvolvido o seu trabalho para a autora AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda.” desde Julho/Agosto de 2005 até Agosto/Setembro de 2006, período em que AA e réu privaram directamente para o efeito (arts. 15.º e 16.º da contestação do réu), tendo o trabalho do réu sido concretizado através de estudos da contabilidade da AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. durante os anos de vigência da concessão (art. 17.º da contestação do réu), da elaboração de cálculos anuais relativos, entre outros, às quantidades de combustível comprado e vendido, aos lucros obtidos, às taxas de exploração pagas à “BP” e à clientela obtida e fidelizada ao posto de abastecimento - fls. 179 e ss. (art. 18.º da contestação do réu), da preparação de reuniões com a BP e elaboração de documentos, propostas ou cartas de negociação para obtenção das indemnizações pretendidas, tendo ficado acordado entre os autores e o réu que, pela ajuda ou colaboração prestada, a AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. pagaria ao réu um terço do valor da indemnização que a BP viesse a pagar (art. 21.º da contestação do réu).

4. Por comunicação de 7 de Julho de 2005, a BP denunciara o contrato com efeitos a contar a partir de 5 de Julho de 2006 – fls. 157 (arts. 13.º e 14.º da contestação do réu).

5. A AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. enviou à BP a carta de 26.08.2005, solicitando o início de negociações com vista a obtenção de indemnização – fls. 158/159 – a qual foi respondida em 09.09.2005 – fls. 160.

6. A AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. enviou à BP a carta de 20.01.2006 – fls. 161 – que foi respondida em 10.02.2006 – fls. 162.

7. Houve mais troca de correspondência como as que se seguem:

- 24.02.2006: da AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. – fls. 178;

- 28.03.2006: da AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. – fls. 215;

- 09.05.2006: da BP – fls. 195;

- 16.05.2006: da BP – fls. 163;

- 19.05.2006: da AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. – fls. 249;

- 27.06.2006: da AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. – fls. 168;

- 29.06.2006: da BP – fls. 198.

8. Tal correspondência estava na posse do réu, assim como os documentos depois juntos de fls. 172 e ss., 187 e ss., 205 e ss., 223 e ss., 237 e ss., 263 e ss. - declarações fiscais da AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. (art. 19.º da contestação do réu).

9. A colaboração do réu ocorreu com total desconhecimento da BP, sendo que toda a documentação ou correspondência era proposta pelo réu para ser revista, assinada e remetida pela AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. à BP (art. 20.º da contestação do réu).

10. Por carta datada de 27 de Junho de 2006, a BP aceitou indemnizar a AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., pelo montante de € 250.000, acrescido de IVA, além de outras quantias a diversos títulos que não chegou a pagar – fls. 165 (art. 22.º da contestação do réu).

11. Ainda antes de receber qualquer quantia da BP, em Janeiro de 2007, a AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. e o autor iniciaram o pagamento ao réu do valor acordado, em prestações mensais e sucessivas de € 6.000 cada (art. 23.º da contestação do réu).

12. Em Abril de 2008 pagou ao réu apenas € 2.500, com base num acerto realizado entre ambos em função da indemnização aceite pela BP incluir o imobilizado pelo valor de € 20.000 – fls. 198 (art. 24.º da contestação do réu).

13. No dia 24.01.2007, o autor AA entregou ao réu e à sua ordem o cheque de € 6.000 com o n.º 4017761457 que foi efectivamente descontado - fls. 19 (parte do art. 7.º da petição inicial).

14. Em 28.02.2007, o autor entregou ao réu e à sua ordem o cheque n.º 5530085855, sacado sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 – fls. 21 (art. 11.º da petição inicial).

15. Em 30.03.2007, o autor entregou ao réu e à sua ordem o cheque nº 3730085857, sacado sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 – fls. 22 (art. 12.º da petição inicial).

16. Em 27.04.2007, a autora AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., passou ao réu o cheque n.º 6330085882, sacado sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 – fls. 27 (art. 13.º da petição inicial).

17. Em 30.05.2007, a autora AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., passou ao réu o cheque n.º 0930085888, sacado sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 – fls. 24 (art. 14.º da petição inicial).

18. Em 29.06.2007, a autora AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., passou ao réu o cheque n.º 0532863990, sacado sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 – fls. 25 (art. 15.º da petição inicial).

19. Em 31.07.2007, a autora AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., passou ao réu o cheque n.º 6832863983, sacado sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 - fls. 26 (art. 16.º da petição inicial).

20. Em 26.08.2007, a autora AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., passou ao réu o cheque n.º 5932863984, sacado sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 – fls. 27 (art. 17.º da petição inicial).

21. Em 28.09.2007, o autor entregou ao réu o cheque n.º 3232863987, sacado sobre a conta da AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., do Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 – fls. 20 (art. 10.º da petição inicial).

22. Em 31.10.2007, a autora AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., passou ao réu o cheque n.º 503286985, sacado sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 – fls. 28 (art. 18.º da petição inicial).

23. Em 30.11.2007, a autora AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., fez uma transferência bancária para o réu no montante de € 6.000 – fls. 29 (art. 19.º da petição inicial).

24. Em 27.12.2007, a autora AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., passou ao réu o cheque n.º 7732863982, sacado sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 – fls. 30 (art. 20.º da petição inicial).

25. Em 29.01.2008, a autora AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., passou ao réu o cheque n.º 4132863986, sacado sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 6.000 – fls. 31 (art. 21.º da petição inicial).

26. Em 15.04.2008, a autora AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda., passou ao réu o cheque n.º 1736639164, sacado sobre o Banco Montepio Geral, no montante de € 2.500 – fls. 32 (art. 22.º da petição inicial).

27. Os autores tinham conhecimento que o réu era proprietário de vários bens (art. 28.º da petição inicial).

28. O réu era titular dos seguintes bens (art. 29.º da petição inicial):

a) Fracção autónoma designada pela letra C, correspondente ao R/C, loja C, do prédio urbano situado em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 752 – fls. 36;

b) Fracção autónoma designada pela letra L, correspondente ao R/C, letra H, do prédio urbano situado em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 752 – fls. 35;

c) Fracção autónoma designada pela letra F, correspondente ao 3.º andar direito do prédio urbano situado em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 4426;

d) Fracção autónoma designada pela letra M, correspondente ao 6.Q andar direito do prédio urbano situado em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 5910 – fls. 34;

e) Prédio urbano designado pelo Lote 1, situado em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1569 – fls. 37;

f) Fracção autónoma designada pela letra D, correspondente ao 2º andar esquerdo do prédio urbano situado em (…), freguesia e concelho de (…).

29. Em data indeterminada, o autor tentou saber, junto das Conservatórias do Registo Predial, qual era ao certo o património imobiliário do réu (art. 31.º da petição inicial), tendo ficado a saber que os imóveis a seguir indicados tinham sido doados pelos réus aos seus filhos, como segue:

- 24.11.2006: a fracção autónoma designada pela letra M do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o nº 5910 foi doado pelos réus ao filho GB, solteiro e maior tendo-se afirmado com os mesmos residente – fls. 47/34;

- 24.11.2006: a fracção autónoma designada pela letra L do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 752 foi doada pelos réus à filha AB, solteira, maior, tendo-se afirmado com os mesmos residente; e a fracção autónoma designada pela letra F do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 4426 foi doada pelos réus à filha AB, solteira, maior, tendo-se afirmado com os mesmos residente – fls. 47/35;

- 24.11.2006: o prédio urbano designado pelo Lote 1, situado em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1569 foi doado pelos réus ao filho TB, solteiro e menor, com os pais residente – fls. 47/37;

- 24.11.2006: a fração D do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 663, bem próprio do réu, foi doado por este ao seu filho, JH – fls. 50;

- 13.12.2006: Prédios rústicos descritos na Conservatória do Registo de (…) sob os n.ºs 37448, 37575, 37580, 3730 foram doados pelos réus ao filho JH, solteiro e maior, tendo este afirmado residir na morada dos pais - fls. 58.

30. A fracção autónoma designada pela letra C do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 752 foi doada pelos réus ao filho GB, solteiro e maior, que se afirmaram residentes na mesma habitação – fls. 43/36.

31. 17.10.2007: o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 3594 e o prédio rústico descrito na mesma Conservatória sob o n.º 2793 foram doados pelos réus ao filho TB, solteiro e menor – fls. 39. Nesse ato, os réus identificaram-se como casados sob o regime de comunhão de adquiridos e residentes em (…).

32. 17.10.2007: o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 2804 e o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º 2185 foram doados pelos réus à filha AB, tendo a mesma afirmado residir na mesma morada dos pais – fls. 54 (arts. 34.º a 37.º da petição inicial).

33. No dia 27 de Abril de 2007, a BP Portugal – Comércio de combustíveis e lubrificantes, Lda. propôs acção judicial com o n.º 1552/07.0TBPTM contra os aqui réus, os quais foram citados no dia 24 de Janeiro de 2008, tendo vindo a ser proferida sentença a 3 de Fevereiro de 2010 que, após anulação subsequente a recursos (acórdãos de 16 de Dezembro de 2010 e de 15 de Novembro de 2011) deu lugar à sentença de 17 de Abril de 2013, que condenou a ré AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. a pagar à BP a quantia de cerca de € 97.700. Nessa acção, a AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. alegara a titularidade de créditos sobre a autora referentes a derrames de combustíveis, créditos que não foram dados por provados na sentença. O pedido de indemnização de clientela também foi julgado improcedente – fls. 526.

34. No dia 28 de Março de 2014, a AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. propôs acção contra a BP, dando origem ao processo n.º 519/14.6TVLSB, ainda em curso – fls. 549.

35. Em 07.01.2014, a autora, através do seu sócio gerente, aqui também autor, enviou uma comunicação ao réu solicitando a liquidação da quantia em dívida – fls. 62 (art. 38.º da petição inicial).

36. Apesar de ter sido remetida para três moradas distintas, a mencionada comunicação foi sempre devolvida, por ninguém ter atendido – fls. 64-69 (art. 39.º da petição inicial).

37. Em Julho de 2014, os autores requereram procedimento cautelar especificado de arresto contra o réu, que correu termos junto da Unidade 3, 2.ª Secção Cível da Instância Central de Portimão. O procedimento cautelar requerido foi julgado procedente e provado, tendo sido decretado o arresto do saldo de uma conta bancária e de um prédio urbano para garantia da dívida de € 84.000 que se indiciava – fls. 124 do apenso “A” (arts. 1.º e 2.º da petição inicial). Foi arrestado o imóvel mas nenhum saldo foi encontrado em instituição em Portugal – fls. 135 e 138 e ss.

38. O Réu JB decidiu ir viver para Angola, passando algum tempo também em Portugal, tendo então os R.R., no final de 2006 e de 2007, procedido à partilha do património comum, o que fizeram através de doações aos filhos (arts. 37.º da petição inicial e 12.º da contestação da ré e 28.º e 30.º da contestação do réu). A relação matrimonial dos réus caracterizou-se pela inexistência de relações patrimoniais entre os dois, sem qualquer assistência ou cooperação mútua (arts. 29.º da contestação do réu e 11.º da da ré).

38. Os réus, casados desde 1979, obtiveram decisão de separação de pessoas e bens no dia 24 de Fevereiro de 2014, logo transitada – fls. 122 (art. 13.º da contestação da ré).

39. As quantias entregues ao Réu JB beneficiaram apenas a este, não à Ré (art. 14.º da contestação da ré).

A sentença recorrida julgou não provado que:

A) No final de 2006, o réu, valendo-se da relação de amizade que tinha com o autor AA, lhe tivesse referido estar a passar um período de graves dificuldades financeiras, que se devia ao facto da sua actividade comercial se encontrar a atravessar, momentaneamente, algumas dificuldades (art. 5.º da petição inicial).

B) O réu tivesse solicitado, então, ao autor AA um empréstimo (art. 6.º da petição inicial) e que o autor AA, na sequência deste pedido, tivesse emprestado ao réu as quantias entregues (art. 7.º da petição inicial).

C) Nos meses subsequentes, o réu tivesse continuado a solicitar ao autor AA novos empréstimos monetários, referindo que a resolução dos seus problemas económicos estava para breve e dizendo, inclusivamente, que estava prestes a vender o posto de abastecimento de combustíveis, de que era proprietário, de (…) (art. 8.º da petição inicial) e que o autor, por acreditar no réu e que iria ser ressarcido dos empréstimos monetários, fosse satisfazendo os seus pedidos de empréstimo (art. 9.º da petição inicial).

D) Quando os autores entregavam as quantias supra referidas ao réu, este dissesse sempre ao autor AA que a resolução das suas dificuldades financeiras estava para breve, que lhe iria pagar as quantias emprestadas, acrescidas de juros (art. 25.º da petição inicial) e que tivesse afirmado que liquidaria a dívida contraída com os autores num curto espaço de tempo e que nunca iria defraudar um amigo de longa data, que o estava a ajudar numa altura particularmente difícil da sua vida (art. 26.º da petição inicial) e que a satisfação do crédito dos autores não corria risco uma vez que era proprietário de um património imobiliário no valor de cerca de € 500.000, situado em (…) e (…), que iria vender caso não conseguisse pagar aos autores num curto espaço de tempo (art. 27.º da petição inicial).

E) O réu tivesse continuado a pedir dinheiro emprestado ao autor mas, tendo em conta o elevado valor do montante emprestado, este tivesse recusado a conceder-lhe novos empréstimos (art. 30.º da petição inicial).

F) Em 21.12.2007 a autora AP – Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. tivesse feito uma transferência bancária para o réu no montante de € 3 500 - fls. 33 (art. 23.º da petição inicial).

Fundamentação

Comecemos por analisar a questão acima enunciada em primeiro lugar, ou seja, se a sentença recorrida é nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC.

O recorrente sustenta que essa nulidade se verifica porquanto foi condenado com fundamento em enriquecimento sem causa, quando os autores alegaram, como causa de pedir, a celebração de diversos contratos de mútuo e a falta de restituição das quantias mutuadas. Segundo o recorrente, tal alteração não consistiu numa mera qualificação jurídica dos factos diversa daquela que os autores lhes haviam dado na petição inicial, antes tendo redundado numa verdadeira alteração da causa de pedir, sendo certo que, ao contrário da primeira, esta última é proibida e constitui causa de nulidade da sentença nos termos do preceito legal citado.

Já os recorridos defendem que “o entendimento do tribunal a quo não extravasa o objecto da causa nem o que foi peticionado, apenas faz um enquadramento jurídico diverso dos factos dados como provados, que, de resto, vai de encontro ao que foi alegado pelo réu”.

Sendo estes os termos em que a questão se encontra colocada, mostra-se necessário recordar algumas noções básicas sobre a causa de pedir. Esta é, segundo ALBERTO DOS REIS, “o acto ou facto jurídico em que o autor se baseia para formular o seu pedido.”[1] O autor tem de especificar a causa de pedir, ou seja, a fonte do direito que pretende fazer reconhecer, “o facto ou acto de que, no seu entender, o direito procede”.[2]. O autor que vimos citando exemplifica: “O direito deriva, por exemplo, de um contrato? O autor há-de invocar esse contrato, reproduzindo as suas cláusulas essenciais, para que possa saber-se, com precisão, qual foi o negócio jurídico celebrado pelas partes.”[3]

Acerca da função da causa de pedir, ensina JOSÉ LEBRE DE FREITAS: “Através da alegação desse facto constitutivo, a causa de pedir exerce a sua função delimitadora do pedido ou pretensão, individualizando-o.”[4] “A causa de pedir exerce função individualizadora do pedido para o efeito da conformação do objecto do processo.”[5]

No caso dos autos, a causa de pedir é constituída pelos contratos de mútuo cuja celebração os autores alegaram e pela também alegada não restituição das quantias mutuadas por parte do réu JB. Foi assim que os autores configuraram a causa de pedir na petição inicial e não a alteraram no decurso da acção. Note-se, a propósito, que a circunstância de o réu JB não se ter limitado a negar pura e simplesmente a veracidade dos factos integradores da causa de pedir e, em vez disso, se ter defendido através de impugnação motivada[6], contextualizando as entregas de dinheiro alegadas pelos autores à luz de um contrato diverso, em nada alterou a causa de pedir. Esta última resulta exclusivamente da alegação dos autores e não também da impugnação levada a cabo pelos réus.

Sendo a causa de pedir a acima referida, é dentro dos limites dela decorrentes que o tribunal exerce os seus poderes de cognição. “Por isso, o tribunal tem de a considerar ao apreciar o pedido e não pode basear a sentença de mérito em causa de pedir não invocada pelo autor (art. 608-2), sob pena de nulidade da sentença (art. 615-1-d)”[7]. “Não basta que haja coincidência ou identidade entre o pedido e o julgado; é necessário, além disso, (…) que haja identidade entre a causa de pedir (causa petendi) e a causa de julgar (causa judicandi). Já Mattirolo advertia: Deve anular-se, por vício de ultra petita, a sentença em que o juiz invoca, como razão de decidir, um título, ou uma causa ou facto jurídico, essencialmente diverso daquele que as partes, por via de acção ou de excepção, puseram na base das suas conclusões (…).”[8] E “(…) quando o juiz julga procedente a acção com fundamento em causa de pedir diversa da alegada pelo autor, conhece de questão que o autor não submeteu à sua apreciação, isto é, de questão de que não devia tomar conhecimento, atento o disposto no artigo 660.º; a sentença incorre, portanto, na nulidade prevista na 2.ª parte do n.º 4 do art. 668.º.”[9] “Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções na exclusiva disponibilidade das partes (…), é nula a sentença em que o faça.”[10]

Identificada da forma descrita a causa de pedir desta acção e esclarecidos os limites que a mesma impõe aos poderes de cognição do tribunal, bem as consequências legais da violação desses limites, resta analisar se a sentença recorrida se conteve dentro dos mesmos limites ou, ao invés, os ultrapassou.

O tribunal recorrido entendeu, quer no despacho que proferiu entre o momento do encerramento da audiência final e o da prolação da sentença, quer nesta última, que a condenação do réu JB com fundamento, não na falta de restituição das quantias alegadamente mutuadas pelos autores, como estes pretendiam, mas em enriquecimento sem causa, se traduz numa mera diferença de enquadramento jurídico da factualidade dada como provada, legalmente admissível porquanto o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC. A única exigência legal seria, segundo o tribunal recorrido, a observância do contraditório, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do mesmo código.

Discordamos.

É indiscutível que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Di-lo expressamente o artigo 5.º, n.º 3, do CPC, à semelhança do artigo 664.º, 1.ª parte, do CPC anterior. Ensinava, a propósito, ALBERTO DOS REIS que “As partes fornecem os factos ao juiz; mas a sua qualificação jurídica, o seu enquadramento no regime legal, é função própria do magistrado, no exercício da qual ele procede com a liberdade assinalada na 1.ª parte do art. 664.º.” No entanto, logo advertia: “É livre o tribunal na qualificação jurídica dos factos, contanto que não altere a causa de pedir.[11]

Ora, o fundamento da condenação do réu JB não se circunscreve aos factos integrantes da causa de pedir, ainda que com um enquadramento jurídico diverso do proposto pelos autores. Isso teria acontecido, por exemplo, se, provando-se a celebração dos acordos alegados pelos autores, estes os tivessem qualificado como contratos de comodato, ou tivessem sustentado que os mesmos eram contratos atípicos, e o tribunal os qualificasse como contratos de mútuo.

Porém, o tribunal recorrido foi mais longe. A celebração dos contratos de mútuo alegados pelos autores como causa de pedir não se provou. Lendo o elenco dos factos não provados, verificamos que os mesmos são os alegados como causa de pedir, com excepção das entregas de dinheiro ao réu JB, julgadas provadas. Não obstante tal falta de prova dos concretos contratos que constituíam a causa de pedir, o tribunal recorrido não julgou a acção improcedente, como devia. Em vez disso, passou a analisar a pretensão dos autores à luz de um contrato cuja existência estes não alegaram, acabando por concluir que, em função do conteúdo desse mesmo contrato, se tinha verificado um enriquecimento sem causa – nunca invocado por qualquer das partes – em benefício do réu JB. Desta forma, o tribunal recorrido transpôs os limites decorrentes da causa de pedir, passando a conhecer de questão que lhe estava vedada, nos termos do artigo 608.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC, e acabando por condenar o réu JB com fundamento diverso da mesma causa de pedir. Consequentemente, a sentença recorrida é nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do mesmo código.

O artigo 665.º, n.º 1, do CPC, estabelece que, anulada a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação. No caso dos autos, perante aquilo que afirmámos até aqui, pouco mais há a fazer que concluir. Não se provou a celebração dos contratos de mútuo que os autores invocaram como causa de pedir. As transferências patrimoniais dos autores para o réu JB tiveram causa diversa desses hipotéticos contratos de mútuo, conforme se provou. Inexistindo os referidos contratos de mútuo, logicamente inexistem as obrigações de restituição das quantias recebidas pelo réu JB que resultariam dos mesmos contratos. Consequentemente, o pedido terá de improceder, por falta de prova da causa de pedir.

Fica, assim, prejudicado o conhecimento das restantes questões acima enunciadas, a saber, se a sentença recorrida é nula devido a omissão de pronúncia sobre a excepção de prescrição do direito à restituição por enriquecimento sem causa e se se verificam os pressupostos deste último.

Em conclusão, o recurso deverá ser julgado procedente, anulando-se a sentença recorrida e absolvendo-se os réus do pedido.

Decisão

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, anulando a sentença recorrida e absolvendo os réus do pedido.

Custas pelos recorridos.

Notifique.

*

Évora, 08.02.2018

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.ª adjunta

2.º adjunto 



[1] Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, p. 369.

[2] Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, p. 370.

[3] Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, p. 370.

[4] Introdução do Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 1996, p. 58.

[5] A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4.ª edição, p. 53.

[6] Sobre esta forma de defesa, leia-se PAULO PIMENTA, Processo Civil Declarativo, 2.ª edição, p. 184.

[7] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4.ª edição, p. 53. Este autor explicita o seu pensamento através do seguinte exemplo: “não pode, por exemplo, em ação em que se pretenda o reconhecimento do direito de propriedade adquirido por um contrato de compra e venda, reconhecê-lo com fundamento na aquisição por testamento; ainda que a ocorrência e o conteúdo deste tenham sido introduzidos no processo pelas partes, só a sua elevação a nova causa de pedir (subsidiária ou substitutiva da primeira), nos termos em que a lei a consente, permitiria ao juiz tal decisão.”

[8] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume V (reimpressão), página 56.

[9] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume V (reimpressão), página 58.

[10] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, p. 670, em anotação ao artigo 668.º do anterior CPC.

[11] Código de Processo Civil Anotado, volume V (reimpressão), páginas 93-94.

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

Processo n.º 135/22.9T8BNV.E1 * Sumário: 1 – Um pedido de demarcação deve fundar-se na existência de uma situação de incerteza sobre a...