Processo n.º 240/18.6T8BJA.E1
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Sumário:
1 – A causa de pedir é o acto ou facto jurídico em que o autor
se baseia para formular o seu pedido e exerce uma função individualizadora
deste último para o efeito da conformação do objecto do processo.
2 – Sendo dentro dos limites fixados pela causa de pedir
que o tribunal exerce os seus poderes de cognição, a sentença não pode
basear-se em causa de pedir não invocada pelo autor, sob pena de nulidade por
excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.
3 – Alegando o autor, como causa de pedir, a celebração de
um contrato de compra e venda com o réu e o incumprimento parcial da obrigação
de pagamento do preço por parte deste, se não se provar a celebração daquele
contrato nem, logicamente, o referido incumprimento, está vedado, ao tribunal,
condenar o réu no pagamento da quantia peticionada a título de restituição de
quantia emprestada pelo autor em consequência da nulidade de contrato de mútuo.
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César propôs a presente acção
declarativa comum contra Augusto, pedindo a condenação deste último a pagar-lhe
a quantia de € 16.000 acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor para as
operações civis, desde a citação até à data do integral pagamento. Como
fundamento, o autor alegou, em síntese, que, em Maio de 2013, vendeu, ao réu, um
tractor que comprara cerca três meses antes; ficou acordado que o preço, de €
30.000, seria pago pelo réu em prestações de montantes variáveis em função das
receitas que este obtivesse através da prestação de serviços a terceiros
mediante a utilização do tractor; por conta do preço, o réu pagou a quantia de
€ 14.000; no Verão de 2017, o réu vendeu o tractor a terceiro, assim se
colocando na posição de não mais poder cumprir o acordado.
O réu contestou, alegando, em
síntese, que comprou o tractor, não ao autor, mas à pessoa a quem este último
alegou tê-lo comprado; essa compra realizou-se em Março de 2013, pelo preço de
€ 11.000, o qual se encontra pago; o autor emprestou ao réu os referidos €
11.000; o réu já restituiu esta quantia ao autor, acrescida de juros no
montante de € 3.000. O réu concluiu que a acção deverá ser julgada improcedente.
Teve lugar audiência prévia, na
qual foi
proferido despacho saneador, com a identificação do objecto do litígio e o
enunciado dos temas de prova.
Realizou-se
a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença que, julgando a
acção totalmente procedente, condenou o réu a restituir ao autor a quantia de €
16.000, acrescida de juros contados desde a citação (22.02.2018) até efectivo e
integral pagamento.
O
réu recorreu da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:
1.ª –
A instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de
pedir, vide princípio da estabilidade
da instância (artigo 260.º do Código de Processo Civil), sendo que a sentença
não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir
(vide n.º 1 do artigo 609.º do mesmo
diploma), isto em ordem e em função do ónus de alegação das partes (em
especial, do autor), vide n.º 1 do
artigo 5.º do mesmo diploma.
2.ª –
Consagra o nosso direito processual civil a teoria da substanciação –vide n.º 4 do artigo 581.º, n.º 1 do
artigo 5.º e alínea d) do n.º 1 do artigo 552.º do Código de Processo Civil –
para a qual a causa de pedir será o facto gerador do direito, isto é, o
acontecimento concreto correspondente a qualquer fatispécie jurídica que a lei admita como criadora de direitos, com
o que estaremos perante acções diferentes sempre que seja diferente o facto
constitutivo invocado.
3.ª –
A única questão essencial decidenda em causa, é saber se, perante os factos
apurados, ao autor assistia, ou não, direito ao pagamento do remanescente do
preço do tractor, no âmbito de um alegado contrato de compra e venda.
4.ª –
Não se provando compra e venda, o tribunal a
quo não podia “repristinar” aquele montante, “fosse a que título fosse”
condenando o réu a restituí-lo.
5.ª –
Sendo a compra e venda a única causa de pedir invocada pelo autor, vedado
estava ao tribunal convolá-la para outra qualquer, designadamente, a
respeitante ao mútuo nulo, por inobservância de forma - cfr. art.º 5.º n.º 2 al.
b) do CPC de 2013.
6.ª –
Ao tê-lo feito, tendo conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento
e tendo condenado em objecto diverso do pedido, o tribunal a quo violou os princípios do dispositivo e da substanciação, e o
disposto no n.º 4 do artigo 581.º, n.º 1 do artigo 5.º e alínea d) do n.º 1 do artigo
552.º do Código de Processo Civil.
7.ª –
O que acarreta necessariamente a nulidade da sentença – artigo 615.º, n.º 1,
alíneas d) e e) do CPC - que se deve declarar com todas as legais consequências.
8.ª –
Se assim se não decidir, sempre ocorre erro de julgamento na decisão sobre a
matéria de facto, a justificar a reapreciação da prova gravada no confronto com
a prova documental.
9.ª –
Foi incorretamente julgado, e impugna-se, o ponto 2 do elenco dos factos
provados, na parte em que deu por provado que o réu prestava serviços agrícolas
esporádicos ao autor e solicitou-lhe que adquirisse para si o veículo
identificado em 1.
10.ª –
Ponto que deverá ser reformulado após reapreciação da prova gravada, de maneira
a que passe a constar o seguinte: “O réu
foi, durante muitos anos trabalhador agrícola do autor e solicitou-lhe que
adquirisse o veículo identificado em 1, uma vez que não dispunha de verba para
esse efeito, mas pretendia obter um subsídio estatal de apoio à criação do
próprio emprego.”
11.ª –
Os concretos meios probatórios que impõem decisão no sentido propugnado pelo
recorrente, que não foram devidamente valorados na sentença recorrida, são:
- As declarações
de parte do réu, prestadas no dia 29.11.2018 (ficheiro 20181129102509_997310_2870366)
registadas através do sistema integrado de gravação digital, cujo início
ocorreu pelas 10:25:10 horas e o seu termo pelas 11:17:12 horas, designadamente
as passagens 05:50 a 06:10, e 42:23 a 42:41;
- O
depoimento da testemunha João, do dia 29.11.2018 (ficheiro
20181129111819_997310_2870366), cujo início ocorreu pelas 11:18:19 horas e o
seu termo pelas 11:42:23 horas, com relevo para as passagens 06:16 a 6:35,
07:10 a 08:44;
- O
depoimento da testemunha Estevão (ficheiro, 20181129115009 997310_2870366),
prestado no dia 29.04.2019, cujo início ocorreu pelas 11:50:10 horas e o seu
termo pelas 12:03:09 horas, designadamente as passagens 10:52 em diante;
12.ª –
Também foram incorretamente julgados, e impugnam-se, os pontos 8 e 9 do elenco
dos factos provados (este último na parte em que refere que a entrega dos 14
mil euros foi por conta do preço pago pelo autor pela aquisição do tractor
identificado em 1).
13.ª –
Impõem decisão diversa da recorrida o teor do depoimento da testemunha João, do
dia 29-11-2018 (ficheiro 20181129111819 _997310_ 2870366, cujo início ocorreu
pelas 11:18:19 horas e o seu termo pelas 11:42:23 horas), com relevo para as
passagens 06:16 a 6:35, 07:10 a 08:44, transcritas no corpo das alegações, e o
depoimento da testemunha Estevão (ficheiro, 20181129115009 _997310_2870366),
dia 29-04-2019, cujo início ocorreu pelas 11:50:10 horas e o seu termo pelas
12:03:09 horas, designadamente as passagens 03:25 a 04:24 e 4:50 a 4:60,
transcritas no corpo das alegações.
14.ª –
Reapreciada que seja a prova, o ponto 8 do elenco dos factos provados deve, ao
invés, julgar-se não provado, passando ao elenco dos factos não provados.
15.ª –
Quanto ao ponto 9, dele deve passar a constar que “Até final de 2016, o réu entregou ao autor o valor total de € 14.000,00
(catorze mil euros).”
16.ª –
Impõe-se aditar ao elenco dos factos provados, os seguintes pontos, que
resultaram da discussão da causa:
16. O réu trabalhou associado ao autor,
pretendiam fazer uma sociedade, até para obterem subsídios.
17. Era o réu quem manobrava a máquina,
mas era o autor quem tinha o poder de decisão sobre ela.
18. Existia um acordo entre ambos, também
quanto a pagamentos, cujos exactos termos se desconhecem.
16.ª –
Dando-se provimento às alterações propugnadas na matéria de facto, estas ditam
que não possa subsistir a decisão de condenação do réu a restituir ao autor a
quantia de € 16.000, acrescida de juros contados desde a citação (22.02.2018)
até efectivo e integral pagamento, impondo-se absolver o réu do pedido.
17.ª –
Ainda que se decida manter inalterada a matéria de facto, ou parte dela, no
âmbito do recurso sobre a matéria de direito, verifica-se que os factos
provados enquadram-se na existência de um acordo de índole societária
(“sociedade irregular”) entre autor e réu.
18.ª –
Assim se compreende a razão porque o autor realizou outras despesas com o
tractor (no seu transporte e manutenção), até quando o mesmo já estava entregue
ao réu – v.d. pontos 6.e 7. do elenco dos factos provados.
19.ª –
A circunstância do réu ter pago ao autor até final de 2016 a quantia de € 14.000,
quando era ele quem trabalhava com o tractor, não obsta ao reconhecimento da
existência da sociedade irregular, pois tal pagamento pode inserir-se,
perfeitamente, no âmbito da repartição de lucros da referida actividade
societária.
20.ª –
O que indubitavelmente se verifica dos elementos probatórios produzidos, é a
existência de acordo diverso entre as partes aquele que, cada uma delas, alegou
nos respectivos articulados, sem que possa qualificar como tratando-se de um
contrato de mútuo, por inverificação dos respectivos pressupostos.
21.ª –
Acresce que a sentença recorrida desvalorizou totalmente, e não explica, o
facto do vendedor Octávio ter emitido uma “declaração”, através da qual declara
que vendeu um tractor da marca KOMATSU, usado, do ano 1999, quadro n.º 523484,
modelo D65-P8, equipado com buldozer, ripper louritex, ao autor, pelo valor de
€ 30.000.
22.ª –
A ter havido um qualquer empréstimo, então ele terá que ter sido feito à
“sociedade” irregular (meramente verbal) constituída entre autor e réu, e,
corresponde à entrada do autor no capital social, na qualidade de sócio de capital.
23.ª –
O certo é que, não ficou demonstrado que o autor “emprestou” ao réu a aludida
quantia de 30 mil euros.
24.ª –
Não pode dar-se como provado qualquer facto que permita concluir que o réu se
obrigou a restituir o montante de 30 mil euros ao autor.
25.ª
–A sentença recorrida fez errada aplicação aos factos do disposto no artigo
1142.º e seguintes do Código Civil, não podendo manter-se na ordem jurídica.
Não
foram apresentadas contra-alegações.
O
recurso foi admitido.
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Tendo
em conta as conclusões das alegações de recurso, que definem o objecto deste e
delimitam o âmbito da intervenção do tribunal ad quem, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se
imponha, as questões a resolver são as seguintes:
1 –
Nulidade da sentença;
2 –
Reapreciação da decisão sobre a matéria de facto;
3 –
Existência de uma sociedade irregular entre autor e réu.
*
Na sentença recorrida, foram julgados
provados os seguintes factos:
1. Em data não concretamente apurada, o
réu pretendeu adquirir um tractor para iniciar actividade de exploração
agrícola em nome individual, tendo para o efeito realizado pesquisas na
internet e encontrado um que era do seu agrado, propriedade de Octávio, da
marca KOMATSU, usado, do ano 1999, quadro n.º 523484, modelo D65-P8, equipado
com buldozer, ripper louritex e uma grade de discos.
2. O réu prestava serviços agrícolas
esporádicos ao autor e solicitou-lhe que adquirisse para si o veículo identificado
em 1, uma vez que não dispunha de verba para esse efeito, mas pretendia obter
um subsídio estatal de apoio à criação do próprio emprego.
3. Acedendo ao pedido do réu, as partes
deslocaram-se a Rio Maior, em 07 Fevereiro de 2013, tendo o autor entregado a Octávio,
para pagamento do preço devido pelo tractor identificado em 1, a quantia de €
30.000,00 (trinta mil euros).
4. Através de cheque emitido à ordem
deste, com o n.º 4125631167, sacado sobre a conta de depósitos à ordem,
titulada pelo autor, da Caixa de Crédito Agrícola de Beja e Mértola CRL, n.º
40039353346.
5. Na data referida em 3, Octávio emitiu
uma “declaração”, através da qual declara que vendeu um tractor da marca
KOMATSU, usado, do ano 1999, quadro n.º 523484, modelo D65-P8, equipado com
buldozer, ripper louritex, ao autor, pelo valor de € 30.000,00.
6. Na data referida em 3, o autor pagou
a Sociedade 1, Lda. a quantia de € 120,00 (cento e vinte euros) relativamente a
um Kit bomba gasóleo 12V c/ acessórios; a Sociedade 2, Lda. a quantia de €
158,26 (cento e cinquenta e oito euros e vinte e seis cêntimos), relativa a
filtro de combustível, motul Tekma Mega e Ecolub; em 11.02.2013 pagou a Sociedade
3, S.A. € 20,01 (vinte euros e um cêntimos) relativo a filtro de óleo e, em
24.02.2013, pagou a Sociedade 4, Lda. o valor de € 144,72 (cento e quarenta e
quatro euros e setenta e dois cêntimos), tudo para o veículo identificado em 1.
7. Em 13.02.2013 a Sociedade 5, Lda.
realizou a deslocação do veículo identificado em 1, de Beja para Torrão, tendo
o autor pago a quantia de € 369,00 (trezentos e sessenta e nove euros).
8. Autor e réu acordaram que este pagaria
o montante que o primeiro entregou ao vendedor do veículo identificado em 1, em
prestações de montantes variáveis, dependentes dos ingressos financeiros que
obtivesse através dos serviços que iria prestar a terceiros com o veículo
identificado em 1.
9. Até final de 2016, o réu entregou ao
autor o valor total de € 14.000,00 (catorze mil euros) por conta do preço pago
por este para aquisição do tractor identificado em 1.
10. Para que o réu pudesse obter o
subsídio a que se candidatou no Instituto de Emprego e Formação Profissional e
com esse montante pagar ao autor o tractor identificado em 1, Octávio emitiu
declaração de venda datada de 02.04.2013, onde o réu consta como comprador do
veículo identificado em 1, equipado com buldozer, ripper louritex e grade
florestal pelo preço de € 11.000,00 (onze mil euros).
11. Em 30.09.2013, o réu candidatou-se
ao benefício do cartão de gasóleo colorido e marcado, tendo pago o montante de
€ 31,60 pela emissão de dois cartões gasóleo – DRAP e EntA, onde fez constar o
tractor identificado em 1.
12. O réu declarou à Autoridade
Tributária o início de actividade agrícola em 22.03.2013.
13. Em 31.12.2013, o réu inventariou o
mesmo veículo nos activos da actividade e em 31.05.2016 fez constar o mesmo na
rubrica dos activos tangíveis do Balancete Geral.
14. Em Julho de 2017, o réu vendeu o
veículo referido em 1, equipado com buldozer, ripper louritex, à Sociedade 6,
Lda., pelo valor de €15.000,00.
15. O réu trabalha como operador de máquinas
na Sociedade 6, Lda.”.
A sentença recorrida julgou não provados
os seguintes factos:
16. O autor vendeu ao réu a máquina
identificada em 1.
17. Em 02.04.2013 o réu adquiriu a Octávio
o veículo identificado em 1, pelo preço de € 11.000,00 (onze mil euros).
18. O réu pagou ao autor a quantia que
este lhe emprestou e os juros ajustados.
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Nulidade da sentença:
Nas conclusões 1 a 7, o recorrente
sustenta que a sentença recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º,
n.º 1, alíneas d) e e), do CPC, porquanto o condenou com fundamento em causa de
pedir diversa daquela que o recorrido invocou. Mais precisamente, o recorrido
alegou ter vendido um tractor ao recorrente e que este incumpriu parcialmente a
obrigação de pagamento do preço, sendo essa a causa de pedir; consequentemente,
estava vedado, ao tribunal a quo,
condenar o recorrente com fundamento na nulidade de um contrato de mútuo cuja
celebração, entre aquele e o recorrido, julgou provada.
Antecipando esta crítica, o tribunal a quo, na sentença recorrida,
considerou-se livre para proferir aquela condenação argumentando que, nos
termos do n.º 3 do artigo 5.º do CPC, não está sujeito às alegações das partes
no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Em
momento posterior da sentença recorrida, o tribunal a quo acrescentou que o próprio recorrente alegou a celebração de
um contrato de mútuo com o recorrido.
Sendo estes os termos em que a questão
se encontra colocada, mostra-se necessário revisitar o conceito de causa de
pedir.
Esta é, segundo ALBERTO DOS REIS, “o acto ou facto jurídico em que o autor se
baseia para formular o seu pedido.”[1] O autor tem de especificar
a causa de pedir, ou seja, a fonte do direito que pretende fazer reconhecer, “o facto ou acto de que, no seu entender, o
direito procede”.[2]. O autor que vimos citando
exemplifica: “O direito deriva, por
exemplo, de um contrato? O autor há-de invocar esse contrato, reproduzindo as
suas cláusulas essenciais, para que possa saber-se, com precisão, qual foi o
negócio jurídico celebrado pelas partes.”[3]
Acerca da função da causa de pedir,
ensina JOSÉ LEBRE DE FREITAS: “(…) a
identificação da causa de pedir com o facto constitutivo (ou os factos
constitutivos) da situação jurídica que o autor quer fazer valer ou negar (ou
com os elementos constitutivos do facto jurídico cuja existência ou
inexistência afirma) é, fundamentalmente, correcta. Através da alegação desse
facto constitutivo, a causa de pedir exerce a sua função delimitadora do pedido
ou pretensão, individualizando-o, e, por outro lado, ainda quando não
simultaneamente, exerce essa sua outra função, que o fundamenta.”[4] “A causa de pedir exerce função individualizadora do pedido para o
efeito da conformação do objecto do processo.”[5]
No caso dos autos, a causa de pedir é
constituída pelo contrato de compra e venda que o recorrido alegou ter
celebrado com o recorrente e pelo incumprimento parcial da obrigação de
pagamento do preço a cargo deste último. Foi assim que o recorrido configurou a
causa de pedir na petição inicial e não a alterou no decurso da acção. Note-se,
a propósito, que a circunstância de o recorrente não se ter limitado a negar
pura e simplesmente a veracidade dos factos integradores da causa de pedir e,
em vez disso, se ter defendido através de impugnação motivada[6], contextualizando as
entregas de dinheiro alegadas pelo recorrido à luz de um contrato diverso, em
nada alterou a causa de pedir. Esta última resulta exclusivamente da alegação
do autor e não também da impugnação levada a cabo pelo réu.
Sendo a causa de pedir a acima referida,
é dentro dos limites dela decorrentes que o tribunal tem de exercer os seus
poderes de cognição. “Por isso, o
tribunal tem de a considerar ao apreciar o pedido e não pode basear a sentença
de mérito em causa de pedir não invocada pelo autor (art. 608-2), sob pena de
nulidade da sentença (art. 615-1-d)”[7]. “Não basta que haja coincidência ou identidade entre o pedido e o julgado;
é necessário, além disso, (…) que haja identidade entre a causa de pedir (causa
petendi) e a causa de julgar (causa judicandi). Já Mattirolo advertia: Deve
anular-se, por vício de ultra petita, a sentença em que o juiz invoca, como
razão de decidir, um título, ou uma causa ou facto jurídico, essencialmente
diverso daquele que as partes, por via de acção ou de excepção, puseram na base
das suas conclusões (…).”[8] E “(…) quando o juiz julga procedente a acção com fundamento em causa de
pedir diversa da alegada pelo autor, conhece de questão que o autor não
submeteu à sua apreciação, isto é, de questão de que não devia tomar
conhecimento, atento o disposto no artigo 660.º; a sentença incorre, portanto, na
nulidade prevista na 2.ª parte do n.º 4 do art. 668.º.”[9] “Não podendo o juiz conhecer de causas
de pedir não invocadas, nem de excepções
na exclusiva disponibilidade das partes (…), é nula a sentença em que o
faça.”[10]
Identificada da forma descrita a causa de pedir desta acção
e esclarecidos os limites que a mesma impõe aos poderes de cognição do
tribunal, bem as consequências legais da violação desses limites, importa
analisar se a sentença recorrida se conteve dentro dos mesmos limites ou, ao
invés, os ultrapassou.
O tribunal a quo entendeu
que a condenação do recorrente com fundamento, não no parcial incumprimento da
obrigação de pagamento do preço decorrente do contrato de compra e venda
alegado pelo recorrido, mas na obrigação de restituição do dinheiro ainda não
reembolsado pelo recorrente ao recorrido, obrigação esta decorrente da nulidade
de um contrato de mútuo entre estes celebrado, se traduz numa mera diferença de
enquadramento jurídico da factualidade dada como provada, legalmente admissível
porquanto o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à
indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nos termos do
artigo 5.º, n.º 3, do CPC.
Discordamos.
É indiscutível que o juiz não está sujeito às alegações das
partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
Di-lo expressamente o artigo 5.º, n.º 3, do CPC, à semelhança do artigo 664.º,
1.ª parte, do CPC anterior. Ensinava, a propósito, ALBERTO DOS REIS que “As partes fornecem os factos ao juiz; mas a
sua qualificação jurídica, o seu enquadramento no regime legal, é função
própria do magistrado, no exercício da qual ele procede com a liberdade
assinalada na 1.ª parte do art. 664.º.” No entanto, logo advertia: “É livre o tribunal na qualificação jurídica
dos factos, contanto que não altere a causa de pedir.”[11]
Ora, o fundamento da condenação do recorrente nada tem a
ver com a causa de pedir invocada pelo recorrido. Como anteriormente referimos,
o recorrido invocou, como causa de pedir, um contrato de compra e venda de um
tractor e o incumprimento parcial da obrigação de pagamento do preço por banda
do recorrente. O tribunal a quo
condenou o recorrente com fundamento na nulidade de um outro contrato, que
qualificou como mútuo. Ao fazê-lo, o tribunal a quo extravasou claramente da causa de pedir invocada pelo
recorrido.
Não se tratou de um mero enquadramento jurídico diverso dos
factos invocados como causa de pedir. Isso teria acontecido, por exemplo, se o
tribunal a quo tivesse julgado provada
a celebração do contrato alegado pelo recorrido, mas tivesse qualificado esse
contrato, não como compra e venda, mas como pertencendo a outro tipo legal, por
exemplo como contrato de mútuo. Então sim, o contrato seria o mesmo e o
tribunal a quo, nos termos previstos
no n.º 3 do artigo 5.º do CPC, ter-lhe-ia dado um enquadramento jurídico
diverso. Contudo, aquilo que o tribunal a
quo fez foi diferente: julgou não provada a celebração do contrato de
compra e venda invocado pelo recorrido (n.º 16), julgou provada a celebração de
um outro contrato entre este e o recorrente, qualificando-o como mútuo, julgou
que este último contrato é nulo por inobservância da forma legalmente prescrita
e condenou o recorrente a restituir ao recorrido o montante mutuado que ainda
não fora pago. É evidente que a causa de pedir invocada pelo recorrido não
ficou demonstrada e que a condenação se baseou em causa de pedir por aquele não
invocada[12].
Afirmámos anteriormente que a circunstância de o
recorrente, em vez de se limitar a negar a veracidade dos factos integradores
da causa de pedir, se ter defendido através de impugnação motivada, invocando,
como justificação para as entregas de dinheiro que fez ao recorrido, a
celebração de um contrato de mútuo mediante o qual este último lhe emprestou a
quantia de € 11.000, não alterou a causa de pedir. Consequentemente, ao
contrário daquilo que a propósito se refere na sentença recorrida, é
indiferente, para a problemática que vimos analisando, que o recorrente se
tenha defendido da forma descrita. Sempre estaria vedado, ao tribunal a quo, condenar o recorrente com
fundamento em causa de pedir diversa daquela que o recorrido invocou.
Porém, há mais. O contrato com fundamento em cuja nulidade
o tribunal a quo condenou o
recorrente também não é aquele que este último invocou na contestação e que
qualificou – bem, considerando o conteúdo que lhe atribuiu – como mútuo. Isso
resulta do cotejo dos factos alegados nos artigos 2.º, 3.º, 5.º e 6.º da
contestação, completamente diversos daqueles que foram julgados provados na
sentença recorrida, boa parte deles factos principais não alegados por qualquer
das partes (n.ºs 2, 2.ª parte, 3, 8 e 9) e cujo conhecimento estava, por isso,
vedado ao tribunal a quo, nos termos
dos n.ºs 1 e 2 do artigo 5.º do CPC[13]. Aliás, o tribunal a quo nem sequer se pronunciou, em sede
de decisão sobre a matéria de facto, acerca da celebração do contrato de mútuo
alegado pelo recorrente. Julgou não provados os factos alegados nos artigos 2.º
e 6.º da contestação (n.ºs 17 e 18 da sentença recorrida), mas, quanto ao
conteúdo dos artigos 3.º e 5.º do mesmo articulado, não o julgou, nem provado,
nem não provado.
Portanto, o tribunal a
quo julgou provada a celebração, entre recorrente e recorrido, não do
contrato de compra e venda que constitui a causa de pedir ou do contrato de
mútuo alegado pelo recorrente na contestação, mas de um outro contrato, que
descreve na matéria de facto provada e que qualificou como mútuo[14], contrato esse não
alegado por qualquer das partes. Com fundamento na nulidade deste último
contrato e tendo como pressuposto a sua qualificação como sendo de mútuo,
condenou o recorrente nos termos já repetidamente descritos. Por tudo aquilo
que anteriormente afirmámos, o tribunal a
quo não o podia fazer.
Ao transpor, nos termos expostos, os limites decorrentes da
causa de pedir, o tribunal a quo
conheceu de questão que lhe estava vedada, nos termos do artigo 608.º, n.º 2,
2.ª parte, do CPC, e condenou o recorrente com fundamento diverso da mesma
causa de pedir. Consequentemente, a sentença recorrida é nula, nos termos do
artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do mesmo código.
O artigo 665.º, n.º 1, do CPC, estabelece que, anulada a
decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do
objecto da apelação. No caso dos autos, perante aquilo que afirmámos até aqui,
pouco mais há a fazer que concluir. Não se provou a celebração do contrato de compra
e venda e o incumprimento parcial da obrigação de pagamento do preço que o recorrido
invocou como causa de pedir. Consequentemente, a acção terá de improceder.
Fica, assim, prejudicado o conhecimento das restantes
questões acima enunciadas como constituindo objecto do recurso.
Em conclusão, o recurso deverá ser julgado procedente, anulando-se a sentença recorrida e absolvendo-se o recorrente
do pedido.
*
Decisão:
Delibera-se, pelo exposto, julgar o
recurso procedente, anulando a sentença recorrida e absolvendo o recorrente do
pedido.
Custas pelo
recorrido.
Notifique.
*
Évora, 19 de Dezembro de 2019
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.º adjunto
[1] Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, p. 369.
[2] Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, p. 370.
[3] Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, p. 370.
[4] Introdução do Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo
Código, 4.ª edição, páginas 73-74.
[5] A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de
Processo Civil de 2013, 4.ª edição, p. 53.
[6] Sobre esta forma de defesa,
leia-se PAULO PIMENTA, Processo Civil
Declarativo, 2.ª edição, p. 184.
[7]
JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Acção
Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4.ª edição, p.
53. Este autor explicita o seu pensamento através do seguinte exemplo: “não
pode, por exemplo, em acção em que se pretenda o reconhecimento do direito de
propriedade adquirido por um contrato de compra e venda, reconhecê-lo com
fundamento na aquisição por testamento; ainda que a ocorrência e o conteúdo
deste tenham sido introduzidos no processo pelas partes, só a sua elevação a
nova causa de pedir (subsidiária ou substitutiva da primeira), nos termos em
que a lei a consente, permitiria ao juiz tal decisão.”
[8]
ALBERTO DOS REIS, Código de Processo
Civil Anotado, volume V (reimpressão), página 56.
[9]
ALBERTO DOS REIS, Código de Processo
Civil Anotado, volume V (reimpressão), página 58.
[10] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A.
MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO, Código de
Processo Civil Anotado, volume 2.º, p. 670, em anotação ao artigo 668.º do
anterior CPC.
[11] Código de Processo Civil Anotado, volume V (reimpressão), páginas
93-94.
[12] Leia-se, sobre toda esta
problemática, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.07.2018, proferido
no processo n.º 779/15.5T8PTM.E1.S1 (relator: SOUSA LAMEIRA), disponível em http://www.dgsi.pt/, que confirmou acórdão desta
Relação proferido em 08.02.2018, cujo relator é o mesmo do presente e que versa
sobre uma situação semelhante à deste recurso, acórdão este que seguimos de
perto.
[13] Leia-se, sobre esta matéria, RUI
PINTO, Notas ao Código de Processo Civil,
volume I, 2.ª edição, páginas 24 a 34.
[14] Qualificação essa em cuja
discussão não nos iremos deter, por ser irrelevante para a decisão deste
recurso. Sempre adiantaremos, contudo, que, tendo em conta os factos julgados
provados na sentença recorrida que são relevantes para aquela qualificação e
não obstante a sua insuficiência para tal efeito, nos parece estarmos perante
um contrato de mandato sem representação (artigos 1157.º e 1180.º do Código
Civil) e não de mútuo, ainda que a forma que recorrente e recorrido estipularam
para o cumprimento, pelo primeiro, da obrigação estabelecida na parte final do
artigo 1182.º do Código Civil (n.º 8 da matéria de facto provada), acabe por
cumprir a função de concessão de crédito típica deste último.