segunda-feira, 23 de maio de 2022

Acórdão da Relação de Évora de 28.04.2022

Processo n.º 984/19.5T8ENT-A.E1

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Sumário:

1 – Quem reclamar um crédito numa execução com base num título executivo de natureza recognitiva tem o ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, como o são os factos constitutivos do crédito reclamado.

2 – Para esse efeito, o reclamante poderá, na exposição da matéria de facto, remeter pontualmente para o teor de documento que apresente, desde que identifique com precisão o documento para que remete e o segmento do mesmo que tem em vista.

3 – Contudo, o ónus de alegação não é cumprido se o reclamante se limitar a remeter genericamente para o teor de documentos que junte ou, pior ainda, a juntar documentos à petição, sem mais.

4 – O tribunal não pode conhecer factos essenciais constitutivos da causa de pedir que não tenham sido alegados pelo reclamante, sob pena de a sentença padecer da nulidade estabelecida no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC.

5 – Se a 1.ª instância, considerando suficiente a matéria de facto alegada pelo autor, julgar a acção procedente, mas a 2.ª instância considerar aquela matéria insuficiente para assegurar tal procedência, deverá esta última, aplicando o regime constante do artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, interpretado extensivamente, anular a sentença recorrida e ordenar a ampliação da matéria de facto, ampliação essa precedida por convite ao aperfeiçoamento da petição inicial e pela tramitação processual subsequente.

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Por apenso à acção executiva para pagamento de quantia certa instaurada por T. – S.A., contra M – Imobiliária, Lda., JG reclamou um crédito sobre esta última no valor de € 150.000. O reclamante alegou, em síntese, que o crédito reclamado resultou de um negócio por si celebrado com a executada e por esta incumprido; que esse crédito se encontra garantido por hipoteca voluntária sobre um imóvel de que a executada é proprietária; e que o mesmo crédito se encontra vencido. Como título executivo, o reclamante apresentou cópia da escritura pública de constituição da referida hipoteca. O reclamante apresentou ainda quatro outros documentos.

A exequente impugnou a reclamação, invocando, em síntese, a ineptidão da petição inicial devido à falta de alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir, a inexistência de título executivo e a simulação do hipotético negócio alegado na petição.

O tribunal a quo proferiu despacho julgando não verificada a excepção dilatória da nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial.

O reclamante apresentou resposta à impugnação da reclamação.

Na audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no qual, além do mais, se julgou que a escritura pública de constituição de hipoteca apresentada pelo reclamante constitui título executivo. Procedeu-se à identificação do objecto do litígio e ao enunciado dos temas de prova.

Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença cujo dispositivo é, na parte que interessa, o seguinte:

“Na defluência de todo o exposto, decido:

A) Julgar verificado e reconhecido o crédito reclamado por JG no valor de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros); e

B) Graduar o crédito reconhecido em A) e o crédito exequendo, para serem pagos pelo produto da venda da fracção autónoma designada pela letra “E” do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito (…), inscrito na matriz sob o artigo (…), descrita na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o número (…) da freguesia de (…), da seguinte forma:

B.1) Em primeiro lugar o crédito reconhecido em A); e

B.2) Em segundo lugar o crédito exequendo.”

A exequente interpôs recurso de apelação do despacho saneador, na parte em que julgou ser título exequível a escritura de constituição de hipoteca junta pelo reclamante, e da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

A) Vem o presente recurso interposto do despacho saneador proferido em sede de audiência prévia, na parte em que julgou ser título exequível a escritura de constituição de hipoteca junta pelo reclamante e ora recorrido JG no seu articulado de reclamação de créditos, e, bem assim, da sentença que julgou verificado e reconhecido e que graduou o crédito do citado reclamante;

B) Nos termos no artigo 703.º, n.º 1, al. b), do CPC, os documentos exarados por notário só serão considerados título executivo se “importarem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação”;

C) A escritura dos autos não encerra a constituição ou o reconhecimento de qualquer obrigação, não constando da mesma qualquer declaração nesse sentido por parte da executada nestes autos, não se revelando, igualmente, constitutiva, nem dela resulta um reconhecimento, da relação subjacente e que terá dado origem à constituição hipoteca titulada pela mesma escritura;

D) Consta da escritura referência a um contrato-promessa incumprido, sem esclarecer se se trata de um incumprimento definitivo ou de uma simples mora (incumprimento temporário);

E) Só o incumprimento definitivo constitui o promitente vendedor na obrigação de devolver o sinal em dobro e a escritura não concretiza se a hipoteca visava acautelar a obrigação já vencida de pagamento da indemnização correspondente à devolução do sinal em dobro, isto é, referente a um contrato-promessa definitivamente incumprido, ou se, por outro lado, visava apenas acautelar um eventual e futuro incumprimento definitivo, decorrente de um incumprimento temporário (mora) já verificado, em que ainda não estava constituída a obrigação de devolução do sinal em dobro;

F) A consignação em sede de escritura de que “O pagamento será feito, no prazo de dois anos, em duas tranches de noventa mil euros cada, a primeira até ao dia trinta e um de julho de dois mil e dezasseis e a segunda até ao dia trinta e um de julho de dois mil e dezassete”, não representa a constituição ou reconhecimento de uma dívida, mas apenas os termos e condições da devolução do hipotético sinal em dobro, não se mostrando como estando já constituída tal obrigação na mesma escritura ou por via da mesma escritura, nem estando ali a mesma obrigação reconhecida pela hipotecante e executada nestes autos;

G) Não é título executivo a escritura de mera constituição de hipoteca para garantia de um crédito. A escritura dos autos é título constitutivo de uma garantia real, mas não constitui documento ou título exequível que titule o crédito reclamado;

H) Admitindo que da escritura dos autos resulta a constituição de uma obrigação, como se decidiu na sentença recorrida, então estaríamos perante um reconhecimento ou confissão de dívida constituída em momento anterior à escritura e não na própria escritura de hipoteca, caso em que o credor reclamante não estaria dispensado de alegar e provar a relação fundamental subjacente à constituição do seu crédito;

I) A reclamação de créditos não alega a relação fundamental relativa à proveniência do crédito, suas condições e natureza, não podendo a escritura dos autos gozar de exequibilidade.

J) Também não se poderão considerar alegados os factos constitutivos do crédito do reclamante por remissão para documentos juntos com o articulado de reclamação de créditos, já que não resulta dos mesmos qualquer facto ou circunstância que permitam inferir as circunstâncias do incumprimento do alegado negócio celebrado e que, consequentemente, teriam originado a constituição do crédito reclamado, pelo que sempre seria inepta a petição inicial de reclamação de créditos por falta da indicação da causa de pedir (art.º 186º, n.º 2, alínea a) do CPC);

K) Os documentos, assim como os depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, não são factos, mas meros meios de prova de factos alegados e controvertidos, sendo que do articulado de reclamação de créditos não resulta qualquer alegação acerca do objecto do negócio;

L) Todos os depoimentos foram prestados a requerimento da ora recorrente, no intuito de provar factos desfavoráveis à executada e credor reclamante, pelo que não podia o tribunal a quo extravasar o âmbito de tais depoimentos para, com base neles, dar como provados factos que não foram sequer alegados, especialmente, quando nem o próprio recorrido se propôs, sequer, produzir qualquer prova em sede de audiência de julgamento, fosse dos factos por si alegados ou de outros não alegados;

M) Não poderão ser levados à factualidade assente os factos constantes dos pontos 3), 4), 5), 6) e 7), os quais correspondem a factos não alegados pelo aqui recorrido no seu articulado de reclamação de créditos;

N) Não tendo sido obtido o consentimento do cedido para o contrato de cessão de posição contratual mencionado no ponto 3), deve o mesmo passar a ter a seguinte redacção: “O contrato de cessão de posição contratual em contrato-promessa de compra e venda de imóvel, junto sob o documento n.º 7 do articulado de reclamação de créditos, não se completou por falta de consentimento, prévio ou posterior, do cedido.”, devendo os factos constantes dos pontos 5) e 6) ser suprimidos em decorrência do mesmo fundamento, uma vez que não se consumou qualquer cessão de posição contratual;

O) No que se refere ao ponto 6), para além do fundamento constante da conclusão anterior, não resultou provado que o reclamante JG tenha pago à executada M – Imobiliária, Lda. a quantia de € 90.000,00, que tal quantia, alguma vez, tenha dado entrada nos cofres da sociedade executada, impondo-se a supressão do referido ponto da factualidade dada como provada;

P) No que respeita à factualidade do ponto 8), revela-se incorrecta a formulação de que a executada se obrigou a um pagamento por intermédio da escritura, uma vez que a forma de pagamento prevista na escritura não representa a constituição ou reconhecimento de uma dívida, mas apenas os termos e condições da devolução do hipotético sinal em dobro, não se mostrando como estando já constituída tal obrigação na mesma escritura, nem estando ali a mesma obrigação reconhecida pela hipotecante;

Q) Da prova produzida nos autos não resultou provado que a sociedade executada se encontrasse já constituída na obrigação de devolução do sinal em dobro e também não foi alegado ou provado que credor JG tenha diligenciado no sentido de converter a mora em incumprimento definitivo, interpelando (interpelação admonitória) o devedor, não se podendo considerar constituída a obrigação da devolução do sinal em dobro;

R) Por outro lado, a propriedade do imóvel objecto do suposto contrato-promessa celebrado entre a executada e o recorrido JG, já havia sido transferida para um terceiro cerca de dois anos antes da celebração do dito contrato, o que configura uma impossibilidade originária da prestação, conduzindo à nulidade do negócio, nos termos do artigo 401.º do CC;

S) Deve o ponto 8) ser reformulado, passando a ter a seguinte redacção, em função da prova produzida: “Com excepção do que se mencionará no facto provado em 10, a executada M – Imobiliária, Lda. não procedeu ao pagamento da quantia de € 180.000,00, mencionada na escritura pública a que se reporta o facto provado em 1.”;

T) Quanto ao direito, o credor reclamante, aqui recorrido, não cumpriu o dever de identificar o objecto do contrato que alegou haver sido incumprido, ou seja, a causa de pedir do seu articulado, conforme ónus de alegação que sobre si impendia, e a junção de documentos não dispensa o credor reclamante da alegação dos factos susceptíveis de integrar a causa de pedir, nomeadamente, a constituição do seu crédito;

U) Os documentos juntos com a reclamação de créditos não contêm os factos e circunstâncias constitutivos do direito do credor reclamante, isto é, incumprimento do contrato-promessa gerador do crédito reclamado, e não se considera suprida aquela falta de invocação do núcleo essencial dos factos constitutivos do crédito reclamado através dos depoimentos dos autos, quando nem o próprio recorrido JG não se propôs produzir qualquer prova em sede de audiência de julgamento;

V) O Meritíssimo Juiz a quo excedeu os seus poderes de cognição, ao substituir-se à parte - credor reclamante, propondo-se provar factos que o próprio não se propôs provar e que não havia, sequer, alegado, concretamente os factos constantes dos pontos 2) a 7) da sentença recorrida, pois, nos termos do artigo 5.º do CPC, compete às partes alegar os factos que integram a causa de pedir, não podendo o tribunal atender factos essenciais não alegados pelas partes, nomeadamente, os factos constitutivos do núcleo essencial da causa de pedir;

W) É manifestamente insuficiente como facto susceptível de integrar uma causa de pedir relativa à constituição de um crédito, a simples alegação, sem quaisquer alegações ou consideração adicionais, de que o mesmo crédito “resultou de um negócio celebrado e incumprido entre a pessoa do ora reclamante e a firma executada”, como se faz no art. 2.º do articulado de reclamação de créditos;

X) Não constando do título dado como título exequível, em sede de reclamação de créditos, nem do correspondente articulado, a proveniência, condições e natureza do crédito reclamado, verifica-se uma total ausência de causa de pedir, vício de ineptidão, razão pela qual não se poderia considerar verificado e reconhecido o crédito do recorrido JG;

Nestes termos e nos melhores de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve a decisão recorrida ser revogada, nos termos e com os fundamentos supra expostos, com as legais consequências, assim se fazendo a tão costumada justiça.

O recorrido apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:

a) A sentença recorrida encontra-se técnica e juridicamente bem elaborada e não merece o mais breve reparo ou censura;

b) A sentença encontra-se bem fundamentada, quer de facto, quer de direito;

c) Razão pela qual o recuso em questão deverá improceder, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida;

d) O despacho saneador em causa, o qual se destinou a mandar prosseguir a acção, identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova foi proferido em sede de audiência prévia, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 596.º do CPC;

e) Nessa diligência processual, tal como consta da respectiva acta, as partes estiveram presentes e/ou representadas;

f) A decisão judicial que julgou/considerou título executivo a escritura pública sob sindicância foi aceite pela recorrente, que dela não reclamou, não recorreu e nem sequer se pronunciou, pelo que a mesma se consolidou tendo, desde há muito, transitado em julgado;

g) Razão pela qual se tornou irrecorrível, o que desde já se alega, invoca e deixa consignado para efeitos da improcedência do alegado no recurso;

h) A escritura objecto dos autos não se limita a constituir a hipoteca, dela emergindo a obrigação de pagamento a que a executada se vinculou;

i) Pelo que, a decisão em causa é irrecorrível, quer quanto à sua tempestividade, quer quanto ao valor e qualificação da escritura enquanto título executivo devendo, nesta parte o recurso ser liminarmente rejeitado;

j) Em parte alguma dos autos a recorrente faz referência ou alusão aos factos que considera errada/incorretamente julgados;

k) Não transcreve a gravação ou parte da gravação da audiência, e muito menos indica quais as passagens da mesma;

l) Não os individualiza, descrimina ou assinala, por qualquer forma;

m) Não indica qual a decisão que seu entender se impunha quanto aos factos julgados como provados e não provados;

n) O que implica a imediata e plena rejeição do recurso na sua íntegra, atenta a manifesta confusão do mesmo entre matéria de facto e matéria de direito e por inobservância dos formalismos e especificações a que alude o artigo 640.º do CPC;

o) O recurso nem sequer indica uma única norma violada pelo tribunal recorrido e não indica qual o sentido de interpretação das normas aplicáveis e, muito menos, que normas deveriam ter sido aplicadas;

p) Em clara violação do disposto no art.º 639.º n.ºs 1 e 2 do CPC;

q) Em parte alguma dos autos se consegue retirar que o negócio jurídico celebrado entre o ora recorrido e a executada padeceu de qualquer vício que importasse a sua nulidade por vício de simulação, nos termos do disposto no artigo 240.º do CC;

r) A matéria de facto julgada por provada e a resposta dada pelo tribunal aos temas da prova conduzem infalível e irremediavelmente à decisão que foi proferida em juízo;

s) Razão pela qual, sendo o recurso sub judice manifestamente infundado deverá ser objecto de decisão liminar/sumária improcedência, por aplicação do disposto no art.º 656.º atenta a inúmera proliferação de decisões semelhantes em sede de violação do disposto nos art.ºs 639.º e 640.º todos do CPC, negando-se, assim, provimento ao recurso;

Fazendo-se a tão costumada justiça.

O requerimento de interposição do recurso foi indeferido na parte em que este último visava o despacho saneador. Assim, o recurso foi admitido pelo tribunal a quo unicamente na parte em que tem por objecto a sentença, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

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Questões a resolver:

1 – Se o reclamante/recorrido tinha o ónus de alegar, na petição inicial, os factos constitutivos do direito de crédito reclamado;

2 – Se tal ónus podia ser cumprido mediante a simples junção de documentos;

3 – Se o tribunal a quo podia conhecer de factos constitutivos do direito de crédito reclamado não alegados;

4 – Como devia o tribunal a quo ter actuado em face do teor da petição inicial;

5 – Consequências da omissão, pelo tribunal a quo, da actuação processual que era devida.

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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. Por escritura pública de «Hipoteca» datada de 26-11-2015, AC, na qualidade de gerente e em representação da aqui executada M – Imobiliária, Lda., hipotecante e primeira outorgante, e o aqui reclamante JG na qualidade de segundo outorgante declararam o seguinte:

«Que, em garantia de uma dívida contraída, no montante de cento e oitenta mil euros, o primeiro outorgante em nome da sua representada, constitui a favor do segundo outorgante, que a aceita, hipoteca voluntárias sobre as seguintes frações autónomas:

1 – Designada pela letra “S” (…) do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito em (…), freguesia de (…), concelho de (…), inscrito na matriz sob o artigo (…), descrita na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o número (…);

2 – Designada pela letra “E” (…) do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito em (…), inscrito na matriz sob o artigo (…), descrita na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o número (…).

Que esta hipoteca não vence juros.

Que esta hipoteca se destina a garantir o pagamento da devolução de um sinal em dobro resultante de um contrato promessa de compra e venda incumprido pela representada do primeiro outorgante e hipotecante, para com o segundo outorgante.

O pagamento será feito, no prazo de dois anos, em duas tranches de noventa mil euros cada, a primeira até ao dia trinta e um de julho de dois mil e dezasseis e a segunda até ao dia trinta e um de julho de dois mil e dezassete.

O não cumprimento da primeira prestação, dentro do prazo contratado, implica o vencimento antecipado da restante, podendo o segundo outorgante executar imediatamente a hipoteca. (…)».

2. O contrato promessa aludido naquela escritura pública fora outorgado em 14-01-2010 entre a aqui executada M – Imobiliária, Lda. na qualidade de promitente-vendedora e o aqui reclamante JG na qualidade de promitente comprador, com o seguinte (parcialmente transcrito) teor:

«(…) CONSIDERANDO QUE:

 A)

A PROMITENTE VENDEDORA é titular de um contrato promessa relativo à fração autónoma do prédio urbano designado por Lote 36, correspondente ao 3.º andar esquerdo (…) descrito na CRP de (…) com o número (…) e omisso na matriz da freguesia de (…), cuja posição contratual é possível de ser transmitida a terceiros

(…)

C)

Aquando da aquisição por si realizada a PROMITENTE VENDEDORA aceitou a transmissão para a sua pessoa através da figura da cessão de posição contratual, com transmissão de todos os direitos e deveres inerentes por força do consagrado no ponto 2.2

D)

A PROMITENTE VENDEDORA obriga-se a ter todo o processo tendente à transmissão da propriedade integral para a sua esfera jurídica até ao dia 31 de Dezembro de 2011

É celebrado o presente contrato de promessa de compra e venda, que se regerá pelos considerandos supra e pelas cláusulas seguintes:

PRIMEIRA

(Objeto contratual)

Pelo presente contrato a PROMITENTE VENDEDORA promete vender ao PROMITENTE COMPRADOR, e este promete comprar, pelo preço global de € 190.000,00 (cento e noventa mil euros), livre de ónus, hipotecas ou quaisquer outros encargos e totalmente acabada, após registo em seu nome, a frações autónoma a seguir discriminada:

- fração autónoma do prédio urbano designado por Lote 36, correspondente ao 3.º andar esquerdo (…) descrito na CRP de (…) com o número (…) e omisso na matriz da freguesia de (…), cuja cópia do contrato de cessão de posição contratual em contrato promessa de compra e venda de imóvel se junta ao presente contrato e fica fazendo parte integrante do mesmo como anexo I.

SEGUNDA

(Condições de Pagamento)

1. O preço acordado será pago pela PROMITENTE COMPRADORA à PROMITENTE VENDEDORA da seguinte forma:

a) A título de sinal e início de pagamento o valor pecuniário de € 10.000,00 (dez mil euros), cuja entrega será promovida na data da assinatura do presente contrato promessa de compra e venda, e de cuja assinatura do mesmo fará efetiva prova de recebimento para efeitos de quitação.

b) A título de 1.º reforço do sinal, o valor pecuniário de € 10.000,00 (dez mil euros) cuja entrega será efetuada no dia 11 de junho de 2010;

c) A título de 2.º reforço de sinal o valor pecuniário de € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros) cuja entrega será efectuada no dia 15 de julho e 2010;

d) A título de 3.º reforço de sinal o valor pecuniário de € 5.000,00 (cinco mil euros) cuja entrega será efetuada no dia 4 de outubro de 2010;

b) O remanescente do valor pecuniário de € 100.000,00 euros (cem mil euros) será liquidado no ato da celebração da escritura pública ou do documento particular autenticado, cuja realização ter-se-á que operar no espaço temporal de um mês após a obtenção da competente licença de utilização e, ou, no máximo até ao fim do ano de 2012.

TERCEIRA

(Escritura Pública ou Documento Particular Autenticado)

A escritura de compra e venda ou contrato de compra e venda outorgado por documento particular autenticado será celebrada(o), impreterivelmente, no prazo de um mês após a comunicação de interpelação para o efeito promovida após a obtenção da licença de utilização relativa à fração a adquirir, em dia, hora e local a designar pela PROMITENTE VENDEDORA, e dentro da temporalidade fixada para o efeito – até ao fim do ano de 2012 (…).

(…)

QUINTA

(Incumprimento)

1. A não celebração da escritura pública ou do contrato de compra e venda outorgado por documento particular autenticado prometido no prazo contratual por razões imputáveis à PROMITENTE VENDEDORA confere ao PROMITENTE COMPRADOR o direito de resolver o presente contrato e exigir a restituição em dobro de todas as importâncias entregues a título de sinal.

(…)».

3. O contrato de cessão de posição contratual em contrato promessa de compra e venda de imóvel mencionado na cláusula PRIMEIRA do contrato mencionado em 2 fora outorgado em 14-10-2018 entre a sociedade L., S.A. na qualidade de cedente, a aqui executada M – Imobiliária, Lda. na qualidade de cessionária e AC enquanto terceiro outorgante.

4. O referido contrato, cujo teor se considera integralmente reproduzido, incluiu no seu objecto um contrato-promessa de compra e venda outorgado em 06-10-2003 entre a L., S.A. enquanto promitente compradora e a sociedade E, S.A. na qualidade de promitente vendedora referente à futura aquisição da fracção autónoma supra identificada.

5. Por intermédio desse contrato mencionado em 3 e 4, a L., S.A. cedeu à aqui executada M – Imobiliária, Lda. a sua posição contratual de promitente vendedora naquele contrato-promessa outorgado em 06-10-2003.

6. No âmbito do contrato-promessa mencionado no facto provado em 2 o aqui reclamante JG pagou à aqui executada M – Imobiliária, Lda. a quantia global de € 90.000,00 (noventa mil euros), o que fez em quatro tranches de, respectivamente, € 10.000,00 (dez) mil euros, € 10.000,00 (dez) mil euros, € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros) e € 5.000,00 (cinco mil euros).

7. Por razões nomeadamente atinentes a incumprimento por parte da L., S.A., a aqui executada M – Imobiliária, Lda. nunca chegou a agendar a celebração de escritura pública definitiva ou de contrato de compra e venda outorgado por documento particular autenticado.

8. Além disso, e com excepção do que se mencionará no facto provado em 10, não procedeu ao pagamento, nos prazos ali fixados, dos valores a que se obrigou por intermédio da escritura pública a que se reporta o facto provado em 1.

9. Em 23-05-2017, após solicitação por parte da gerência da aqui executada M – Imobiliária, Lda. e subsequente assunção pessoal por parte do seu sócio gerente, aceitou o aqui reclamante cancelar a hipoteca incidente sobre a fracção autónoma designada pela letra “S” do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito (…), inscrito na matriz sob o artigo (…), descrita na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o número (…).

10. Aquando da emissão da declaração para cancelamento da aludida hipoteca incidente foi liquidado ao reclamante, através de duas tranches, o valor pecuniário de € 30.000,00 (trinta mil euros).

11. O aqui reclamante sabia que o valor patrimonial da fracção identificada em 10 era superior ao da outra fracção identificada na escritura pública mencionada em 1.

12. O aqui reclamante JG representou a aqui executada M – Imobiliária, Lda., enquanto advogado, nos Processo n.ºs 1959/13.3TBLRA e 2029/18.3T8LRA do Juízo Central Cível de Leiria - Juiz 2 - do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria.

13. Nos registos contabilísticos da sociedade executada, nomeadamente relativos aos anos de 2016, 2017 e 2018, não está registado qualquer crédito a favor do aqui reclamante.

14. A propriedade da fracção autónoma objecto do contrato-promessa plasmado no facto provado em 2 nunca esteve registada a favor da aqui executada M – Imobiliária, Lda..

15. Por requerimento executivo datado de 20-03-2019, a sociedade T. – S.A. moveu contra a sociedade M – Imobiliária, Lda. a acção executiva para pagamento de quantia certa que corre termos nos autos principais, dando à execução a sentença homologatória (transitada em julgado em 01-06-2018) da seguinte transacção celebrada entre ambas em 26-04-2018 e no âmbito do Processo n.º 71923/16.2YIPRT do Juízo Central Cível de Santarém – Juiz 2 – deste Tribunal Judicial da Comarca de Santarém:

«1) A Autora reduz o pedido para a quantia de 46.769,25 € (quarenta e seis mil setecentos e sessenta e nove euros e vinte e cinco cêntimos).

2) A Ré obriga-se a pagar a quantia referida no número anterior até 31 de Dezembro de 2018. (…)».

16. No âmbito dessa execução principal foi penhorada à executada a supra identificada fracção autónoma designada pela letra “E” do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito em (…), inscrito na matriz sob o artigo (…), descrita na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o número (…) da freguesia de (…), penhora essa registada através da AP. 3636 de 2019/04/02, ao passo que a hipoteca mencionada no facto provado em 1 está registada através da AP. 3227 de 2015/11/26.

Na sentença recorrida, foi julgado não provado o seguinte facto:

- O documento n.º 5 junto pelo reclamante foi adulterado.

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1 – Se o reclamante/recorrido tinha o ónus de alegar, na petição inicial, os factos constitutivos do direito de crédito reclamado:

O artigo 788.º, n.º 2, do CPC (diploma ao qual pertencem todas as normas legais doravante referenciadas sem indicação da sua origem) estabelece que a reclamação de créditos tem por base um título exequível. É, pois, aplicável o disposto no artigo 703.º, cujo n.º 1, al. b), atribui o valor de título executivo aos documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem a constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação.

O título executivo com base no qual o recorrido reclamou o crédito é uma escritura pública de constituição de hipoteca na qual a executada declarou que esta se destina a garantir a obrigação de restituição de um sinal em dobro resultante de um contrato promessa de compra e venda por si incumprido. Tal título executivo enquadra-se, assim, na previsão do artigo 703.º, n.º 1, al. b). Mais precisamente, trata-se de um título recognitivo, pois, através dele, a executada confessa encontrar-se adstrita ao cumprimento de uma obrigação resultante de fonte diversa.

Tal confissão de dívida menciona a causa desta de forma muito genérica: incumprimento, pela executada, de um contrato-promessa de compra e venda. Nada é declarado no sentido de individualizar este contrato e os factos em que aquele incumprimento se traduziu. Resulta da declaração que se trata de uma dívida causal, mas não se identifica a causa. Vale, pois, o disposto no artigo 458.º do Código Civil, cujo n.º 1 estabelece que se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.

Dispensado de provar, mas não de alegar, sublinhe-se.

O beneficiário da confissão de dívida continua a ter o ónus de alegação dos factos constitutivos do correspondente direito de crédito, mesmo em acção que proponha contra o próprio confitente. E, acrescente-se, ao nível do ónus da prova, apenas beneficia, perante o confitente, da sua inversão, graças à presunção ilidível (cfr. artigo 350.º do Código Civil) estabelecida na referida norma. É por isso que o ónus de alegação do autor, beneficiário da declaração confessória da dívida, persiste. O réu/confitente continua a poder discutir a relação causal, apenas vendo a sua situação agravada em matéria de ónus da prova. O autor continua onerado com o ónus de alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir, nos termos gerais estabelecidos nos artigos 5.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, al. d), ou 724.º, n.º 1, al. e), consoante se esteja em sede de processo declarativo ou executivo. Nesta última hipótese, aquele ónus de alegação considerar-se-á cumprido se os factos em causa constarem do título executivo.

Sendo assim no domínio de uma acção entre o emitente e o beneficiário da confissão de dívida, por maioria de razão o será numa acção que envolva um terceiro, como é o caso do exequente, a quem seja oposta a reclamação de um crédito com base num título executivo recognitivo. Se o reclamante não alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, ou seja, os factos constitutivos do direito de crédito que invoca, o exequente ficará, na prática, impossibilitado de exercer o contraditório, nos termos do artigo 789.º, n.º 2.

Concluindo este ponto, a resposta à questão colocada é afirmativa: o reclamante/recorrido tinha o ónus de alegar, na petição inicial, os factos constitutivos do direito de crédito reclamado.

2 – Se o ónus de alegar os factos constitutivos do direito de crédito reclamado podia ser cumprido mediante a simples junção de documentos:

Na petição inicial, o reclamante/recorrido alegou a causa de pedir de forma muito incipiente. No que concerne à causa do crédito reclamado, limitou-se a alegar que este último “resultou de um negócio celebrado e incumprido entre a pessoa do ora reclamante e a firma executada”. Não obstante, o tribunal a quo incluiu, no elenco dos factos provados, a celebração de sucessivos contratos, descritos nos n.ºs 2 a 6, fundando a sua convicção, nomeadamente, no teor dos documentos juntos com a petição inicial. A recorrente sustenta que o tribunal a quo não podia fazê-lo porquanto se trata de factos essenciais constitutivos da causa de pedir que não foram alegados.

O artigo 552.º, n.º 1, al. d), estabelece que, na petição inicial, o autor deve expor, além do mais, os factos essenciais que constituem a causa de pedir. Nessa exposição, o autor poderá remeter pontualmente para o teor de documento que apresente, desde que identifique com precisão o documento para que remete, bem como o segmento do mesmo que tem em vista, o que será particularmente importante quando se trate de documentos extensos. Constituiria um excesso de formalismo exigir-se, por exemplo, que o autor reproduzisse, na petição inicial, os bens ou serviços constantes de facturas em cujos valores pretende ver o réu condenado, ou a totalidade do conteúdo de contratos ou mensagens escritas por si invocados. Contudo, contrariaria o disposto no referido artigo 552.º, n.º 1, al. d), prejudicando inadmissivelmente o exercício do contraditório por parte do réu, que se caísse no extremo oposto, admitindo-se a alegação através da remissão genérica para o teor de documentos ou, pior ainda, através da simples junção desses documentos à petição, sem mais, como aconteceu no caso dos autos. O local próprio para o autor alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir é a petição, sendo os documentos meios de prova dessa alegação.

Sendo assim, impõe-se responder negativamente à questão acima enunciada: o ónus de alegação dos factos constitutivos do direito de crédito reclamado não podia ser cumprido mediante a simples junção de documentos. Ao invés, o reclamante/ recorrido tinha o ónus de alegar todos esses factos na petição inicial.

3 – Se o tribunal a quo podia conhecer de factos constitutivos do direito de crédito reclamado não alegados:

Resulta de quanto afirmámos no ponto anterior que o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, al. d), e 608.º, n.º 2, 2.ª parte, ao dar como provados os factos n.ºs 2 a 6. O tribunal a quo não os podia conhecer, por serem factos essenciais que constituem a causa de pedir e não terem sido alegados, não valendo como tal a mera junção de documentos de que os mesmos pudessem resultar.

Porém, o tribunal a quo foi mais longe, ao julgar provado o facto n.º 7, também ele essencial porque, de acordo com a convicção do tribunal a quo, foi nele que se traduziu o incumprimento do contrato-promessa, sem que o mesmo tenha sido alegado, nem resulte de prova documental. Tal facto foi julgado provado unicamente com base nos depoimentos de parte do legal representante da executada e do reclamante/recorrido. Ou seja, ainda que se admitisse a alegação de factos essenciais mediante a simples junção de documentos, estaria vedado, ao tribunal a quo, conhecer do facto n.º 7.

Concluindo este ponto, o tribunal a quo não podia conhecer dos factos constantes dos n.ºs 2 a 7 da matéria de facto provada, por se tratar de factos essenciais, integrantes da causa de pedir, que não foram alegados pelo reclamante/ recorrido.

4 – Como devia o tribunal a quo ter actuado em face do teor da petição inicial:

No despacho, proferido anteriormente ao saneador, mediante o qual julgou não verificada a excepção dilatória da nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial (do qual não foi interposto recurso), o tribunal a quo considerou que a alegação da causa de pedir contém “algumas imprecisões”. Estamos perante um eufemismo, pois, na realidade, aquela alegação contém múltiplas e patentes insuficiências e imprecisões, como resulta da exposição anterior.

Seja como for, em face das referidas insuficiências e imprecisões na alegação da causa de pedir, impunha-se que o tribunal a quo, em cumprimento do disposto no artigo 590.º, n.º 2, al. b), e 4, convidasse o reclamante/recorrido a supri-las, fixando prazo para a apresentação de nova petição em que o mesmo completasse a alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir, concretizando o negócio que celebrou com a executada e descrevendo os factos que, no seu entendimento, determinaram a situação de incumprimento que constitui a causa do crédito reclamado.

5 – Consequências da omissão, pelo tribunal a quo, da actuação processual que era devida:

Não tendo o tribunal a quo cumprido o seu dever de convidar o reclamante/ recorrido a aperfeiçoar a petição inicial, nos termos expostos, cometeu uma nulidade processual, nos termos do artigo 195.º, n.º 1.

Objectar-se-á que o caso dos autos apresenta a particularidade de o tribunal a quo, não obstante a notória insuficiência e imprecisão da alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir, acabou por conhecer tais factos com base nos documentos juntos aos autos e na restante prova produzida, pelo que a omissão do convite ao aperfeiçoamento não influiu na decisão da causa. Com efeito, não estamos perante a habitual hipótese de, após a omissão do convite ao aperfeiçoamento, o tribunal só conhecer dos factos essenciais alegados e, dada a insuficiência e/ou imprecisão destes, julgar a acção improcedente. No caso dos autos, o tribunal reconheceu o crédito reclamado e graduou-o com prioridade relativamente ao crédito exequente – o que se traduz na procedência da pretensão do reclamante/ recorrido – sem convidar ao aperfeiçoamento da petição inicial, conhecendo de factos essenciais que nesta não foram alegados.

É evidente o vício deste raciocínio. O tribunal a quo errou duas vezes – ao não convidar o reclamante/recorrido a aperfeiçoar a petição inicial e, depois, ao conhecer, na sentença, de factos essenciais que constituem a causa de pedir mas não foram alegados – e ao segundo erro não pode ser atribuído o efeito de suprimento do primeiro. É que, pelo meio, foi violado o direito da recorrente ao contraditório (artigos 3.º e 789.º). Uma das finalidades fundamentais do ónus de alegação, na petição inicial, dos factos essenciais que constituem a causa de pedir, é permitir, ao réu, exercer devidamente o contraditório, dando-lhe a possibilidade de se defender, ponto por ponto, da alegação do autor. E isso apenas será possível perante uma petição inicial que, em obediência ao disposto nos artigos 5.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, al. d), contenha uma alegação completa dos factos essenciais que constituem a causa de pedir.

O enquadramento jurídico-processual da situação criada pelo tribunal a quo terá de ser outro.

Em consequência de quanto referimos no ponto 3, a sentença recorrida padece da nulidade estabelecida no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte: conheceu questões de que, por falta de alegação dos factos essenciais que dela constituíam fundamento, não podia tomar conhecimento.

Logo, poderia parecer que, por via do disposto no artigo 665.º, n.º 1, aquilo que o tribunal ad quem teria de fazer seria conhecer do objecto da apelação com base nos factos julgados provados de que lhe é lícito conhecer, ou seja, após expurgar a sentença recorrida daqueles que constam dos n.ºs 2 a 7 da matéria de facto provada.

Que tal conduziria à improcedência da reclamação, é conclusão cuja demonstração que não carece de grande esforço. Ficaria por demonstrar a causa do direito de crédito invocado, ou seja, o incumprimento de um contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o reclamante/recorrido e a executada.

Ora, este resultado é inaceitável. O reclamante/recorrido não pode ficar prejudicado pela circunstância de o incumprimento do dever de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial pelo tribunal a quo ser reconhecido apenas em sede de recurso de apelação. Tenhamos presente que, se aquele incumprimento se tivesse repercutido na sentença do tribunal a quo, julgando este a reclamação improcedente por insuficiência da matéria de facto provada para sustentar a pretensão do reclamante/recorrente, este poderia invocar a nulidade processual decorrente do mesmo incumprimento no recurso que interpusesse da sentença, pois tal nulidade ter-se-ia corporizado nesta última. Não faria sentido que, sendo o tribunal ad quem a considerar que a matéria de facto provada é insuficiente para sustentar a pretensão do reclamante/recorrente, assim contrariando o sentido da sentença proferida pelo tribunal a quo, aquele ficasse privado da possibilidade de aperfeiçoar a petição inicial e, por essa via, alegar factos que, dentro dos limites em que o aperfeiçoamento é admitido, lhe permitissem obter ganho de causa em sede de recurso. O dever de cooperação não existe apenas na 1.ª instância.

Deparamo-nos, contudo, com a dificuldade de saber qual é o meio processual adequado para evitar aquele resultado.

A nulidade processual estabelecida no artigo 195.º, n.º 1, não é de conhecimento oficioso, antes dependendo de arguição do interessado nos termos estabelecidos nos artigos 196.º, 2.ª parte, 197.º, n.º 1, e 199.º, n.º 1. Por outro lado, na hipótese em que a parte que devia ter sido destinatária do convite ao aperfeiçoamento venceu a causa no tribunal a quo, a nulidade processual decorrente da omissão daquele convite não se corporizou na sentença. Sendo assim, está vedado, ao tribunal ad quem, conhecer daquela nulidade processual e, por via do disposto no artigo 195.º, n.º 2, anular todo o processado desde o momento em que o convite ao aperfeiçoamento devia ter sido feito e não o foi, que seria, de acordo com o artigo 590.º, n.º 2, o final da fase dos articulados.

A única solução possível é, mediante a aplicação do regime estabelecido no artigo 662.º, n.º 2, al. c), anular a sentença recorrida com vista à ampliação da matéria de facto, com a particularidade de tal ampliação, a efectuar em nova sentença, dever ser precedida de um convite ao aperfeiçoamento, nos termos expostos, da petição mediante a qual o crédito foi reclamado, bem como, naturalmente, da tramitação processual subsequente.

A lei não prevê a hipótese com que nos vimos defrontando nem, logicamente, a resolve directamente. Daí que a solução tenha de ser encontrada mediante uma interpretação extensiva do artigo 662.º, n.º 2, al. c), nos termos expostos. Na realidade, a ampliação da matéria de facto que iremos ordenar reporta-se a factos que ainda não foram alegados mas, espera-se, venham a sê-lo na sequência do convite ao aperfeiçoamento, o que não é expressamente permitido por aquela norma. Contudo, perante a existência do problema, entendemos, na senda da reflexão, cremos que pioneira, que MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA sobre ele vem fazendo[1], que a única solução possível para o mesmo é a descrita.

Concluindo, deverá proceder-se à anulação da sentença recorrida, nos termos expostos, ficando assim prejudicada a apreciação da decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto:

- Anular a sentença recorrida;

- Ordenar que o tribunal a quo convide o reclamante/recorrido a, nos termos do artigo 590.º, n.ºs 2, al. b), e 4, do CPC, aperfeiçoar a petição inicial nos termos expostos na fundamentação deste acórdão, alegando a totalidade dos factos essenciais que constituem a causa de pedir;

- Ordenar, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, interpretado extensivamente, que o tribunal a quo amplie a matéria de facto em função daquilo que vier a ser alegado pelo reclamante/recorrido na sequência do convite ao aperfeiçoamento da petição inicial e provado na audiência final.

Custas a cargo do reclamante/recorrido.

Notifique.

*

Évora, 28.04.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta

 

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

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