Processo n.º 299/19.9T8MRA.E1
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Sumário:
Não há lugar a indeferimento liminar do
requerimento inicial de procedimento cautelar de restituição provisória da
posse se o requerente, ainda que como causa de pedir subsidiária, invocar os
factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.
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Manuel, Maria João e António
instauraram, contra Pedro e Cátia, providência cautelar de restituição
provisória da posse, pedindo a condenação dos requeridos a reconhecerem o seu direito
de passagem pelo caminho identificado no requerimento inicial, para poderem
aceder ao seu prédio, a reporem o caminho nas dimensões e condições
anteriormente existentes, nomeadamente acamando o terreno, colocando pedra com
saibro, estabilizando o caminho com cilindro e ladeando-o com duas linhas de
água, a removerem a vedação colocada no extremo do caminho que confina com a EM
1080, a entregarem o caminho livre e desobstruído no prazo de 15 dias, a
executarem obras de reposição do caminho, fixando-se o prazo de 15 dias para a
sua conclusão, e a uma sanção pecuniária de € 100 por cada dia de atraso na
conclusão dos trabalhos. Os requerentes pediram ainda que, na eventualidade de
os requeridos não concluírem ou, sequer, iniciarem a execução da obra no prazo
de 15 dias, lhes seja deferida a possibilidade de realizarem a obra a expensas
daqueles. Foi requerido, finalmente, que a providência seja decretada sem
audiência dos requeridos, bem como a inversão do contencioso.
O tribunal a quo indeferiu liminarmente a providência, por entender que os
factos alegados pelos requerentes levam a concluir que estes qualificam o
caminho em questão como público, pelo que, de acordo com a sua própria
alegação, nunca lhes poderia ser reconhecida a qualidade de possuidores do
mesmo caminho.
Os requerentes recorreram da decisão
de indeferimento liminar, tendo formulado as seguintes conclusões:
1 – Os recorrentes não se
conformam com a decisão proferida pelo tribunal a quo que indeferiu liminarmente a sua pretensão;
2 – O tribunal lavrou em erro
quando extraiu da alegação dos recorrentes que o caminho em causa era público;
3 – Os recorrentes invocaram
factos demonstrativos da posse em todos os seus pressupostos;
4 – O tribunal não se achava
habilitado para proferir decisão em que qualificou o caminho como público;
5 – Dos autos não resultam
quaisquer elementos que permitam, sem mais, atribuir-se ao caminho qualquer
função para além de servir os recorrentes no acesso à sua propriedade e a
utilização por pessoas para acederem ao rio Guadiana;
6 – Para que se pudesse definir
tal caminho como público, não bastava que o mesmo fosse usado por qualquer
pessoa, mesmo desde tempos imemoriais;
7 – O caminho é utilizado, desde
tempos imemoriais, por pessoas que visassem aceder à propriedade dos
recorrentes, sendo também utilizado por quem acedia ao rio Guadiana; aplicando
estes comandos legais e ensinamentos doutrinários e jurisprudenciais,
forçosamente concluímos que a matéria alegada, para além de carecer de prova,
não permite classificar o caminho como público, apesar da utilização que lhe
vem sendo dada;
8 – Falta-lhe a afectação a
utilidade pública, antes resultando que a sua utilização se faz no interesse
dos recorrentes, que veem aquele como único caminho para aceder à sua
propriedade, e de alguns populares que pretendam aceder ao rio Guadiana;
9 – Face ao alegado, jamais
poderia o tribunal a quo, sem
produção de prova e atendendo apenas ao alegado, decidir, como decidiu, que o
caminho em crise era público;
10 – Deste modo, o tribunal
deveria ter ordenado a instrução e a posterior discussão para, depois sim,
proferir decisão;
11 – O erro do tribunal radicou
na qualificação do caminho como público, em postura divorciada daquilo que foi
alegado; como se viu, a alegação foi no sentido de que aquele caminho se
destinava a dar passagem aos recorrentes e também a quem se deslocasse ao rio
Guadiana;
12 – Foi por tal facto que os
recorrentes pretenderam e requereram que os recorridos fossem condenados a
reconhecerem o seu direito de passagem, a reporem o caminho nas mesmas condições
em que se encontrava anteriormente aos actos de esbulho e a removerem a vedação
que ali colocaram;
13 – Assim e de acordo com as
soluções plausíveis da questão de direito, ter-se-ia de produzir prova acerca
da materialidade invocada e somente depois se poderia proferir decisão;
14 – Assim sendo, ao decidir
como decidiu, o tribunal a quo
violou, por erro de interpretação e aplicação, o vertido nos artigos 377.º e
615.º, n.º 1, al. d), do CPC, e 1251.º e 1278.º do Código Civil.
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A única questão a resolver
consiste em saber se os recorrentes alegaram factos que integrem o conceito de
posse, nos termos do direito real de servidão de passagem, sobre o caminho em
questão.
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Como acima referimos, o tribunal
a quo indeferiu liminarmente a
providência com base no entendimento de que os factos alegados pelos
requerentes levam a concluir que estes qualificam o caminho como público, pelo
que, de acordo com a sua própria alegação, nunca lhes poderia ser reconhecida a
qualidade de possuidores do mesmo caminho.
Como é evidente, o tribunal a quo não decidiu no sentido de o
caminho ter natureza pública, nem poderia fazê-lo, pois não chegou a ser
produzida prova. O juízo que o tribunal a
quo fez foi meramente hipotético: alegando os recorrentes factos de que
resulta a natureza pública do caminho, a providência está, logo à partida,
votada ao fracasso, pois, ainda que aqueles factos se provassem, não ficaria
demonstrado que os requerentes são possuidores do caminho nos termos do direito
real de servidão de passagem, sendo certo que, nos termos dos artigos 377.º e
378.º do CPC, a posse constitui o primeiro pressuposto da providência de
restituição provisória da posse. Não faz, por isso, sentido a crítica que,
nessa perspectiva, os recorrentes dirigem à decisão recorrida (cfr. as
conclusões 4, 5, 7, 9, 10 e 13).
Como é próprio da fase de
apreciação liminar do requerimento inicial, aquilo que está em discussão é se,
considerando a alegação de facto deste constante, é, desde já, seguro que, fosse
qual fosse a prova que viesse a ser produzida, nunca a providência poderia ser
decretada (cfr. artigo 590.º, n.º 1, do CPC). O acerto da decisão recorrida
depende de esta questão merecer resposta positiva.
A alegação de facto constante do
requerimento inicial do presente procedimento cautelar contém duas partes
distintas. Mais precisamente, são alegadas duas causas de pedir.
Por um lado, os recorrentes
alegaram, em síntese, que o seu prédio sempre teve o caminho em questão como
único acesso à estrada municipal; que, desde tempos imemoriais, de forma
ininterrupta e à vista de todos, sempre os recorrentes e os seus antecessores
na posse do prédio usaram esse caminho para acederem à estrada municipal, o
mesmo fazendo os seus familiares, amigos, trabalhadores, fornecedores,
trabalhadores e outros; que nunca alguém se opôs a que isso acontecesse ou
afirmasse que o caminho “fosse terra pertença de alguém”; que eles, recorrentes,
sempre actuaram “na convicção de exercerem direito próprio, nomeadamente de uso
de bem comum, como seja um caminho de uso em geral (…) na convicção do
exercício do direito próprio, como qualquer outro transeunte que ali
poderia passar sem que fosse impedido de o fazer”; que o caminho era o único
que permitia o acesso da população ao rio Guadiana; que “a população percorria
o descrito caminho e, posteriormente, contornava a propriedade dos aqui AA. até
acederem ao rio Guadiana”; que eles, recorrentes, “nunca se interrogaram sequer
sobre qual a origem do caminho, sendo que sempre o assumiram e aceitaram
como caminho de uso geral da população, já que perseguia a satisfazia
necessidades comuns e colectivas da população e de todos quantos por ali
queriam livremente usar”; e que nunca tiveram conhecimento de que o caminho
fosse pertença de alguém (os sublinhados são da nossa autoria).
Nesta parte, chegamos a
conclusão idêntica à do tribunal a quo.
A forma como os recorrentes descreveram o caminho em causa inculca que o mesmo
merece, à luz dessa descrição, a qualificação jurídica de caminho público. Ao
contrário daquilo que os recorrentes afirmam nas suas alegações, nem sequer
faltou a alegação da afectação a fins de utilidade pública, como acabamos de
ver. Consequentemente, se a alegação de facto constante do requerimento inicial
fosse apenas aquela que resumimos e parcialmente transcrevemos, a decisão
recorrida seria correcta. Invocando os recorrentes, como causa de pedir, a
natureza pública do caminho em questão, que lhes permitiria, à semelhança da
restante população, utilizá-lo livremente, nunca eles poderiam ser considerados
possuidores do mesmo fosse nos termos de que direito real fosse, porquanto,
como acertadamente se afirma na decisão recorrida, resulta dos artigos 1267.º,
n.º 1, alínea b), e 202.º, n.º 2, do Código Civil, que a posse só é admissível
relativamente a coisas que possam ser objecto de direitos privados, com
exclusão, portanto, daquelas que se encontrem no domínio público.
Porém, é invocada no
requerimento inicial, a título subsidiário (cfr. o ponto 27), uma outra causa
de pedir. A correspondente alegação de facto resume-se assim: há mais de 40
anos, ininterruptamente, que os recorrentes e seus antecessores estão no uso
directo e imediato do caminho, à vista de todos, incluindo dos requeridos, e
sem oposição de quem quer que seja; fazem-no na convicção de exercerem um
direito próprio, sem lesar terceiros, pelo que sempre se teria constituído um
direito de servidão de passagem a onerar o prédio dos requeridos por via da
usucapião; o caminho sempre esteve clara e inequivocamente bem trilhado no solo
do prédio dos requeridos, ao longo de todo o seu percurso, sendo a sua
utilização necessária ou obrigatória para aceder ao prédio dos recorrentes; era
por esse caminho que os abastecimentos necessários à exploração económica do
prédio dos recorrentes se faziam, o que implicava, nomeadamente, o trânsito de
veículos pesados de mercadorias; também os trabalhadores, veterinários e demais
pessoas que se deslocavam ao prédio dos recorrentes utilizavam o caminho.
Através desta alegação de facto,
os recorrentes invocam uma posse própria, nos termos do direito real de
servidão de passagem, tendo por objecto o caminho que atravessava o prédio dos
requeridos.
É certo que há contradição entre
esta última alegação e aquela, sintetizada e parcialmente transcrita em
primeiro lugar, que inculca que os recorrentes qualificam o caminho como público.
Todavia, esta circunstância não torna inepto o requerimento inicial nos termos
do artigo 186.º, n.º 2, al. c), do CPC, porquanto as duas causas de pedir não
estão no mesmo plano, não se cumulam, antes existindo uma relação de
subsidiariedade entre elas[1].
Objectar-se-á também ser desde
já evidente que, a provar-se a causa de pedir principal, a providência
requerida não poderá ser decretada. Assim é, efectivamente, e é bizarro que
assim seja. Não obstante, é insofismável que, ainda que a título subsidiário,
foi invocada uma causa de pedir que integra a alegação de uma posse, nos termos
do direito real de servidão de passagem, sobre o caminho em causa. É o
suficiente para que o requerimento inicial não possa ser liminarmente
indeferido com fundamento na falta de alegação da posse.
A decisão recorrida não chegou a
debruçar-se sobre a suficiência da alegação de factos que integrem os restantes
pressupostos da restituição provisória da posse, a saber, a existência de
esbulho e a violência deste último (artigo 377.º do CPC), pelo que se trata de
matéria estranha ao objecto do presente recurso.
Concluindo, o recurso merece
provimento, devendo ser revogada a decisão recorrida.
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Decisão:
Delibera-se, pelo
exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida.
Não
são devidas custas.
Notifique.
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Évora, 16 de Janeiro de 2020
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.º adjunto
[1] Cfr., sobre esta matéria, JOSÉ
LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa
Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, p. 58, e ANTÓNIO SANTOS
ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol.
I, p. 221, anotação 12, al. f), ao artigo 186.º.