sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Acórdão da Relação de Évora de 16.01.2020

Processo n.º 299/19.9T8MRA.E1

*

Sumário:

Não há lugar a indeferimento liminar do requerimento inicial de procedimento cautelar de restituição provisória da posse se o requerente, ainda que como causa de pedir subsidiária, invocar os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.

*

Manuel, Maria João e António instauraram, contra Pedro e Cátia, providência cautelar de restituição provisória da posse, pedindo a condenação dos requeridos a reconhecerem o seu direito de passagem pelo caminho identificado no requerimento inicial, para poderem aceder ao seu prédio, a reporem o caminho nas dimensões e condições anteriormente existentes, nomeadamente acamando o terreno, colocando pedra com saibro, estabilizando o caminho com cilindro e ladeando-o com duas linhas de água, a removerem a vedação colocada no extremo do caminho que confina com a EM 1080, a entregarem o caminho livre e desobstruído no prazo de 15 dias, a executarem obras de reposição do caminho, fixando-se o prazo de 15 dias para a sua conclusão, e a uma sanção pecuniária de € 100 por cada dia de atraso na conclusão dos trabalhos. Os requerentes pediram ainda que, na eventualidade de os requeridos não concluírem ou, sequer, iniciarem a execução da obra no prazo de 15 dias, lhes seja deferida a possibilidade de realizarem a obra a expensas daqueles. Foi requerido, finalmente, que a providência seja decretada sem audiência dos requeridos, bem como a inversão do contencioso.

O tribunal a quo indeferiu liminarmente a providência, por entender que os factos alegados pelos requerentes levam a concluir que estes qualificam o caminho em questão como público, pelo que, de acordo com a sua própria alegação, nunca lhes poderia ser reconhecida a qualidade de possuidores do mesmo caminho.

Os requerentes recorreram da decisão de indeferimento liminar, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – Os recorrentes não se conformam com a decisão proferida pelo tribunal a quo que indeferiu liminarmente a sua pretensão;

2 – O tribunal lavrou em erro quando extraiu da alegação dos recorrentes que o caminho em causa era público;

3 – Os recorrentes invocaram factos demonstrativos da posse em todos os seus pressupostos;

4 – O tribunal não se achava habilitado para proferir decisão em que qualificou o caminho como público;

5 – Dos autos não resultam quaisquer elementos que permitam, sem mais, atribuir-se ao caminho qualquer função para além de servir os recorrentes no acesso à sua propriedade e a utilização por pessoas para acederem ao rio Guadiana;

6 – Para que se pudesse definir tal caminho como público, não bastava que o mesmo fosse usado por qualquer pessoa, mesmo desde tempos imemoriais;

7 – O caminho é utilizado, desde tempos imemoriais, por pessoas que visassem aceder à propriedade dos recorrentes, sendo também utilizado por quem acedia ao rio Guadiana; aplicando estes comandos legais e ensinamentos doutrinários e jurisprudenciais, forçosamente concluímos que a matéria alegada, para além de carecer de prova, não permite classificar o caminho como público, apesar da utilização que lhe vem sendo dada;

8 – Falta-lhe a afectação a utilidade pública, antes resultando que a sua utilização se faz no interesse dos recorrentes, que veem aquele como único caminho para aceder à sua propriedade, e de alguns populares que pretendam aceder ao rio Guadiana;

9 – Face ao alegado, jamais poderia o tribunal a quo, sem produção de prova e atendendo apenas ao alegado, decidir, como decidiu, que o caminho em crise era público;

10 – Deste modo, o tribunal deveria ter ordenado a instrução e a posterior discussão para, depois sim, proferir decisão;

11 – O erro do tribunal radicou na qualificação do caminho como público, em postura divorciada daquilo que foi alegado; como se viu, a alegação foi no sentido de que aquele caminho se destinava a dar passagem aos recorrentes e também a quem se deslocasse ao rio Guadiana;

12 – Foi por tal facto que os recorrentes pretenderam e requereram que os recorridos fossem condenados a reconhecerem o seu direito de passagem, a reporem o caminho nas mesmas condições em que se encontrava anteriormente aos actos de esbulho e a removerem a vedação que ali colocaram;

13 – Assim e de acordo com as soluções plausíveis da questão de direito, ter-se-ia de produzir prova acerca da materialidade invocada e somente depois se poderia proferir decisão;

14 – Assim sendo, ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou, por erro de interpretação e aplicação, o vertido nos artigos 377.º e 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, e 1251.º e 1278.º do Código Civil.

*

A única questão a resolver consiste em saber se os recorrentes alegaram factos que integrem o conceito de posse, nos termos do direito real de servidão de passagem, sobre o caminho em questão.

*

Como acima referimos, o tribunal a quo indeferiu liminarmente a providência com base no entendimento de que os factos alegados pelos requerentes levam a concluir que estes qualificam o caminho como público, pelo que, de acordo com a sua própria alegação, nunca lhes poderia ser reconhecida a qualidade de possuidores do mesmo caminho.

Como é evidente, o tribunal a quo não decidiu no sentido de o caminho ter natureza pública, nem poderia fazê-lo, pois não chegou a ser produzida prova. O juízo que o tribunal a quo fez foi meramente hipotético: alegando os recorrentes factos de que resulta a natureza pública do caminho, a providência está, logo à partida, votada ao fracasso, pois, ainda que aqueles factos se provassem, não ficaria demonstrado que os requerentes são possuidores do caminho nos termos do direito real de servidão de passagem, sendo certo que, nos termos dos artigos 377.º e 378.º do CPC, a posse constitui o primeiro pressuposto da providência de restituição provisória da posse. Não faz, por isso, sentido a crítica que, nessa perspectiva, os recorrentes dirigem à decisão recorrida (cfr. as conclusões 4, 5, 7, 9, 10 e 13).

Como é próprio da fase de apreciação liminar do requerimento inicial, aquilo que está em discussão é se, considerando a alegação de facto deste constante, é, desde já, seguro que, fosse qual fosse a prova que viesse a ser produzida, nunca a providência poderia ser decretada (cfr. artigo 590.º, n.º 1, do CPC). O acerto da decisão recorrida depende de esta questão merecer resposta positiva.

A alegação de facto constante do requerimento inicial do presente procedimento cautelar contém duas partes distintas. Mais precisamente, são alegadas duas causas de pedir.

Por um lado, os recorrentes alegaram, em síntese, que o seu prédio sempre teve o caminho em questão como único acesso à estrada municipal; que, desde tempos imemoriais, de forma ininterrupta e à vista de todos, sempre os recorrentes e os seus antecessores na posse do prédio usaram esse caminho para acederem à estrada municipal, o mesmo fazendo os seus familiares, amigos, trabalhadores, fornecedores, trabalhadores e outros; que nunca alguém se opôs a que isso acontecesse ou afirmasse que o caminho “fosse terra pertença de alguém”; que eles, recorrentes, sempre actuaram “na convicção de exercerem direito próprio, nomeadamente de uso de bem comum, como seja um caminho de uso em geral (…) na convicção do exercício do direito próprio, como qualquer outro transeunte que ali poderia passar sem que fosse impedido de o fazer”; que o caminho era o único que permitia o acesso da população ao rio Guadiana; que “a população percorria o descrito caminho e, posteriormente, contornava a propriedade dos aqui AA. até acederem ao rio Guadiana”; que eles, recorrentes, “nunca se interrogaram sequer sobre qual a origem do caminho, sendo que sempre o assumiram e aceitaram como caminho de uso geral da população, já que perseguia a satisfazia necessidades comuns e colectivas da população e de todos quantos por ali queriam livremente usar”; e que nunca tiveram conhecimento de que o caminho fosse pertença de alguém (os sublinhados são da nossa autoria).

Nesta parte, chegamos a conclusão idêntica à do tribunal a quo. A forma como os recorrentes descreveram o caminho em causa inculca que o mesmo merece, à luz dessa descrição, a qualificação jurídica de caminho público. Ao contrário daquilo que os recorrentes afirmam nas suas alegações, nem sequer faltou a alegação da afectação a fins de utilidade pública, como acabamos de ver. Consequentemente, se a alegação de facto constante do requerimento inicial fosse apenas aquela que resumimos e parcialmente transcrevemos, a decisão recorrida seria correcta. Invocando os recorrentes, como causa de pedir, a natureza pública do caminho em questão, que lhes permitiria, à semelhança da restante população, utilizá-lo livremente, nunca eles poderiam ser considerados possuidores do mesmo fosse nos termos de que direito real fosse, porquanto, como acertadamente se afirma na decisão recorrida, resulta dos artigos 1267.º, n.º 1, alínea b), e 202.º, n.º 2, do Código Civil, que a posse só é admissível relativamente a coisas que possam ser objecto de direitos privados, com exclusão, portanto, daquelas que se encontrem no domínio público.

Porém, é invocada no requerimento inicial, a título subsidiário (cfr. o ponto 27), uma outra causa de pedir. A correspondente alegação de facto resume-se assim: há mais de 40 anos, ininterruptamente, que os recorrentes e seus antecessores estão no uso directo e imediato do caminho, à vista de todos, incluindo dos requeridos, e sem oposição de quem quer que seja; fazem-no na convicção de exercerem um direito próprio, sem lesar terceiros, pelo que sempre se teria constituído um direito de servidão de passagem a onerar o prédio dos requeridos por via da usucapião; o caminho sempre esteve clara e inequivocamente bem trilhado no solo do prédio dos requeridos, ao longo de todo o seu percurso, sendo a sua utilização necessária ou obrigatória para aceder ao prédio dos recorrentes; era por esse caminho que os abastecimentos necessários à exploração económica do prédio dos recorrentes se faziam, o que implicava, nomeadamente, o trânsito de veículos pesados de mercadorias; também os trabalhadores, veterinários e demais pessoas que se deslocavam ao prédio dos recorrentes utilizavam o caminho.

Através desta alegação de facto, os recorrentes invocam uma posse própria, nos termos do direito real de servidão de passagem, tendo por objecto o caminho que atravessava o prédio dos requeridos.

É certo que há contradição entre esta última alegação e aquela, sintetizada e parcialmente transcrita em primeiro lugar, que inculca que os recorrentes qualificam o caminho como público. Todavia, esta circunstância não torna inepto o requerimento inicial nos termos do artigo 186.º, n.º 2, al. c), do CPC, porquanto as duas causas de pedir não estão no mesmo plano, não se cumulam, antes existindo uma relação de subsidiariedade entre elas[1].

Objectar-se-á também ser desde já evidente que, a provar-se a causa de pedir principal, a providência requerida não poderá ser decretada. Assim é, efectivamente, e é bizarro que assim seja. Não obstante, é insofismável que, ainda que a título subsidiário, foi invocada uma causa de pedir que integra a alegação de uma posse, nos termos do direito real de servidão de passagem, sobre o caminho em causa. É o suficiente para que o requerimento inicial não possa ser liminarmente indeferido com fundamento na falta de alegação da posse.

A decisão recorrida não chegou a debruçar-se sobre a suficiência da alegação de factos que integrem os restantes pressupostos da restituição provisória da posse, a saber, a existência de esbulho e a violência deste último (artigo 377.º do CPC), pelo que se trata de matéria estranha ao objecto do presente recurso.

Concluindo, o recurso merece provimento, devendo ser revogada a decisão recorrida.

*

Decisão:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida.

Não são devidas custas.

Notifique.

*

Évora, 16 de Janeiro de 2020

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.º adjunto



[1] Cfr., sobre esta matéria, JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, p. 58, e ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, p. 221, anotação 12, al. f), ao artigo 186.º.

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

Processo n.º 135/22.9T8BNV.E1 * Sumário: 1 – Um pedido de demarcação deve fundar-se na existência de uma situação de incerteza sobre a...