terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Acórdão da Relação de Évora de 16.01.2020

Processo n.º 3667/19.2T8FAR.E1

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Sumário:

O indeferimento liminar de um procedimento cautelar comum com fundamento em manifesta improcedência apenas se justifica se, perante o alegado no requerimento inicial, for, desde logo, evidente que, independentemente da prova oferecida e daquela que pudesse vir a ser produzida, a providência nunca poderia ser decretada.

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VC e OL instauraram, contra MC e CN, procedimento cautelar comum, pedindo que seja ordenada a manutenção do prédio urbano onde residem  na sua posse, com o pleno usufruto do mesmo, até ao trânsito em julgado da acção principal, e que os requeridos sejam obrigados a abster-se da prática de qualquer acto que possa colocar em causa aquela posse e usufruto, designadamente da venda, doação, arrendamento ou oneração, por qualquer forma, do prédio em questão, bem como de procederem ao cancelamento dos contratos de fornecimento de água e luz em vigor. Requereram ainda que as providências descritas sejam decretadas sem audiência prévia dos requeridos. Como fundamento, alegaram, em síntese, o seguinte:

1 – Os requerentes eram proprietários do prédio urbano onde residem desde 15.11.2003;

2 – Esse prédio foi penhorado, em 12.07.2016, no âmbito de uma execução instaurada contra os requerentes;

3 – Os requerentes não tinham dinheiro suficiente para o pagamento dos créditos exequendo e reclamados na execução, cujo montante global era de cerca de € 63.910;

4 – O activo dos requerentes era constituído apenas pelo prédio onde residem, que tem o valor patrimonial de € 107.210;

5 – Os rendimentos dos requerentes são constituídos apenas pelas suas pensões, que perfazem o montante anual de € 6.080,50;

6 – Os requerentes não conseguiram obter crédito bancário para pagarem as suas dívidas;

7 – Os requerentes tinham o prédio à venda numa imobiliária pelo valor de € 280.000;

8 – Neste contexto, os requerentes pediram ajuda aos requeridos, respectivamente seus filho e nora, no sentido de evitarem a venda judicial do prédio e continuarem a residir no mesmo;

9 – Requerentes e requeridos acordaram que os primeiros continuariam a residir no prédio até ao final das suas vidas e, como contrapartida, pagariam aos segundos o valor da prestação do empréstimo bancário que estes contraíssem com vista à compra do prédio;

10 – Em 17.07.2019, os requerentes venderam o prédio aos requeridos, pelo preço de € 65.000;

11 – No mesmo acto, os requeridos celebraram um contrato de crédito à habitação mediante o qual obtiveram o empréstimo da quantia de € 58.500, pelo prazo de 26 anos, para pagarem o preço do prédio; para garantia do pagamento dessa dívida, foi constituída hipoteca sobre o prédio;

12 – Porém, na realidade, requerentes e requeridos não quiseram fazer uma verdadeira compra e venda do prédio, tendo acordado que este sairia da esfera patrimonial dos primeiros apenas como forma de evitar a sua venda judicial; assim, os requerentes continuariam sempre a usufruir do prédio e a administrá-lo como se continuassem a ser os seus proprietários, pagando as respectivas despesas;

13 – Após a venda do prédio e tal como ficara acordado, os requerentes pagaram aos requeridos os montantes correspondentes às prestações pagas por estes ao banco mutuante;

14 – Assim, através do contrato de compra e venda realizado, requerentes e requeridos, em conluio, enganaram o banco mutuante, levando-o a emprestar, aos segundos, em condições particularmente favoráveis, uma quantia que, na realidade, se destinava ao pagamento das dívidas dos primeiros que estavam a ser exigidas no processo executivo;

15 – Também os credores dos requerentes foram enganados, na medida em que não foi constituído um usufruto sobre o prédio a favor dos requerentes para evitar que esse direito fosse penhorado em eventuais acções de cobrança das suas dívidas;

16 – O contrato de compra e venda celebrado entre requerentes e requeridos é nulo, por simulação, sendo propósito dos primeiros instaurar a correspondente acção judicial;

17 – Em Julho de 2019, desrespeitando o acordado, os requeridos interpelaram os requerentes para abandonarem o prédio no prazo de oito dias;

18 – Em 30.08.2019, os requeridos comunicaram que, se os requerentes não abandonassem o prédio até 30.09.2019, iriam pedir, na qualidade de proprietários, o cancelamento dos contratos de fornecimento de água e electricidade;

19 – No início de Novembro de 2019, os requeridos interpelaram novamente os requerentes para estes lhes entregarem o prédio;

20 – Os requerentes não têm outra casa para residir, ou qualquer pessoa que os possa acolher, pelo que, se forem expulsos do prédio onde residem, ficarão sem um local para viver e guardar os seus pertences;

21 – Se o prédio for entregue aos requeridos, estes poderão proceder de imediato à sua venda ou arrendamento a terceiros;

22 – Daí a necessidade da providência solicitada.

O tribunal a quo indeferiu liminarmente o requerimento inicial por entender, em síntese, que, de acordo com a alegação que naquele é feita:

1 – Após a celebração do contrato de compra e venda que os requerentes afirmam ter sido simulado, o direito de que estes são titulares relativamente ao prédio é aquele que decorre de um contrato de comodato, pelo que os requeridos podem exigir-lhes a restituição do mesmo prédio quando entenderem;

2 – Excede os limites da boa-fé os requerentes pretenderem a restituição do prédio quando foram eles, em conluio com os requeridos, que quiseram retirar o mesmo do seu património para que não respondesse pelo pagamento das suas dívidas;

3 – Até ao desfecho da acção que os requerentes se propõem intentar a título principal, tendo em vista a obtenção da declaração de nulidade do contrato de compra e venda por simulação, a probabilidade da existência do direito dos requerentes será igual à da existência do direito actual dos requeridos;

4 – Os requerentes não são titulares de qualquer direito de usufruto, nem a acção que eles afirmam ir propor terá a virtualidade de constituir tal direito, pelo que, no presente procedimento, o tribunal não poderá declarar constituído o usufruto;

5 – Não se verifica um fundado receio de que o comportamento dos requeridos antes da prolação da decisão final da acção principal cause lesão grave e dificilmente reparável aos requerentes, pois estes, ao invocarem que pagam as prestações do empréstimo bancário por aqueles contraído, demonstram capacidade económica para tomarem de arrendamento outro imóvel; por outro lado, se o direito de propriedade sobre o prédio reingressar no património dos requerentes, poderá voltar a ser penhorado e correrá novamente o risco de ser vendido, pois não se alega que todas as dívidas daqueles tenham sido pagas;

6 – Deve ponderar-se a necessidade de obtenção da posse do prédio pelos requeridos, para aquisição do qual contraíram empréstimo bancário.

Os requerentes recorreram da decisão de indeferimento liminar, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – O tribunal a quo pôs em causa a provável existência do direito, sem permitir aos recorrentes realizar qualquer prova sobre os factos alegados.

2 – No seu requerimento inicial, os recorrentes confessaram que celebraram, na qualidade de vendedores, um negócio simulado de compra e venda do imóvel onde actualmente habitam.

3 – Os recorrentes alegaram que pretendem requerer, em acção a intentar, a declaração de nulidade do referido negócio, por simulação, nos termos dos artigos 240.º e 242.º do Código Civil.

4 – Dessa declaração de nulidade decorrerá necessariamente a restituição do prestado entre as partes no referido negócio, nomeadamente a devolução do imóvel à esfera jurídica dos recorrentes – direito este cuja existência alegaram e pretendem acautelar.

5 – Não podia o tribunal a quo considerar não demonstrada a provável existência do direito quando nem sequer deu aos requerentes a possibilidade de comprovar sumariamente esse direito, nomeadamente através da prova da simulação do negócio.

6 – Demonstrada a simulação, fica por inerência demonstrado o direito de os recorrentes requererem a declaração de nulidade do negócio e pedirem a consequente restituição do imóvel à sua esfera jurídica.

7 – No que diz respeito ao periculum in mora, o tribunal a quo considera que o comportamento dos requeridos (exigência de entrega imediata do imóvel e ameaça de cancelamentos dos contratos de água e luz) não provocará prejuízo sério e irremediável aos recorrentes.

8 – Ora, como se encontra alegado, o imóvel em causa corresponde à habitação dos recorrentes.

9 – Se os requeridos levarem a cabo a sua ameaça de cortar água e luz (como poderão fazer a qualquer momento, se não houver uma ordem judicial que os impeça), o imóvel tornar-se-á imediatamente inabitável, forçando os recorrentes a abandoná-lo.

10 – Os recorrentes alegaram (e de novo foram impedidos de demonstrar) que não possuem familiares e amigos com possibilidades de os acolher ou de lhes emprestar uma casa.

11 – Além disso, actualmente não conseguirão arrendar um apartamento para duas pessoas, com condições mínimas de habitabilidade, por preço inferior a 500 euros (valor que não podem pagar).

12 – Se os recorrentes forem despejados à força (como pretendem os requeridos), os mesmos não terão possibilidade de encontrar abrigo ou habitação, em pleno inverno, nem terão local onde guardar os seus pertences, que poderão ficar danificados, serem furtados ou destruídos para sempre.

13 – Ademais, assim que os requeridos ficarem na posse do imóvel, poderão proceder à venda imediata do mesmo, nomeadamente a terceiros a quem a nulidade do negócio poderá não ser oponível nos termos do artigo 291.º do Código Civil.

14 – Os recorrentes pretendem o decretamento de uma providência que mantenha o imóvel na sua posse e lhes permita usufruir plenamente do mesmo, até decisão final na acção para declaração de nulidade do negócio simulado e restituição do que foi prestado (acção onde, reitere-se, pedirão, como efeito daquela declaração de nulidade, que o imóvel regresse à sua esfera jurídica).

15 – Ao decidir pelo indeferimento liminar do procedimento cautelar, o tribunal a quo violou o n.º 1 do artigo 362.º, os artigos 367.º e 368.º, e o n.º 3 do artigo 376.º, todos do Código de Processo Civil, bem como o n.º 5 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

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A questão a resolver consiste em saber se se verifica uma situação de manifesta improcedência da pretensão dos requerentes, pois foi esse o fundamento da decisão de indeferimento liminar.

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Comecemos por traçar o quadro legal directamente relevante para a decisão do recurso.

O n.º 1 do artigo 362.º do CPC estabelece que sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado. O n.º 2 do mesmo artigo dispõe que o interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor.

O n.º 1 do artigo 365.º do CPC estabelece que, com a petição, o requerente da providência oferece prova sumária do direito ameaçado e justifica o receio da lesão.

O n.º 1 do artigo 368.º do CPC estabelece que a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão. O n.º 2 do mesmo artigo ressalva que a providência pode ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.

O n.º 1 do artigo 590.º do CPC estabelece, na parte que nos interessa, que, nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente.

Ao nível substantivo, importa considerar o disposto nos artigos 240.º, 242.º, n.º 1, 405.º, n.º 1, e 1129.º do Código Civil.

O n.º 1 do artigo 240.º estabelece que se, por acordo entre declarante e declaratário e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. O n.º 2 do mesmo artigo estabelece que o negócio simulado é nulo.

O n.º 1 do artigo 242.º dispõe que, sem prejuízo do disposto no artigo 286.º, a nulidade do negócio simulado pode ser arguida pelos próprios simuladores entre si, ainda que a simulação seja fraudulenta.

O artigo 405.º consagra o princípio da liberdade contratual, estabelecendo o seu n.º 1 que, dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos na lei ou incluir nos mesmos contratos as cláusulas que lhes aprouver.

O artigo 1129.º define o comodato como o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que dela se sirva, com a obrigação de a restituir.

Analisemos a fundamentação da decisão recorrida à luz deste quadro legal. Ao fazê-lo, tenhamos especialmente em conta que estamos perante um indeferimento liminar fundado na manifesta improcedência do requerimento inicial. Ou seja, logo perante o conteúdo deste requerimento, o tribunal a quo concluiu, com segurança e sem necessidade de produção de prova, que, fosse qual fosse o resultado desta última, a providência nunca seria decretada.

O tribunal a quo começou por qualificar o contrato descrito nos artigos 15.º, 21.º, 22.º e 23.º do requerimento inicial como de comodato, daí retirando, como consequência, que os requeridos podem exigir dos recorrentes a restituição do prédio quando entenderem. Tal qualificação não é correcta, pois contraria o teor da alegação dos recorrentes sobre o conteúdo do contrato que alegaram terem celebrado com os requeridos sobre a utilização do prédio. Segundo a versão dos recorrentes, foi estipulado que eles permaneceriam no gozo do prédio até ao final das suas vidas, pagando, em contrapartida, o valor da prestação do empréstimo bancário contraído pelos requeridos. Logo, o contrato relativo ao gozo do prédio que os recorrentes alegaram não se enquadra na definição legal constante do artigo 1129.º do Código Civil. Por um lado, não foi um contrato gratuito, mas oneroso. Por outro, em vez da obrigação de restituir, foi estipulado um direito de gozo vitalício do prédio por parte dos recorrentes. Independentemente de a alegação dos recorrentes corresponder, ou não, à verdade, nada obsta, em abstracto, à validade desse hipotético contrato, considerando o disposto no artigo 405.º do Código Civil. Por tudo isto, não é correcta a conclusão, a que o tribunal a quo chegou, de que, mesmo de acordo com a versão factual alegada pelos recorrentes, os requeridos podem exigir destes a restituição do prédio quando entenderem. Muito pelo contrário, aquilo que resulta do requerimento inicial é que os requeridos não o podem fazer.

O tribunal a quo considera, em seguida, que excede os limites da boa-fé os recorrentes pretenderem a restituição do prédio quando foram eles, em conluio com os requeridos, que quiseram retirar o mesmo do seu património para que não respondesse pelo pagamento das suas dívidas. O tribunal a quo não justificou esta conclusão, como era seu dever. Independentemente disso, resulta de norma legal expressa, concretamente do n.º 1 do artigo 242.º do Código Civil, que a nulidade do negócio simulado pode ser arguida pelos próprios simuladores entre si, ainda que a simulação seja fraudulenta. Não há, pois, qualquer violação do princípio da boa-fé. Portanto, de acordo com o alegado no requerimento inicial, nada parece impedir, à partida, a viabilidade da acção principal que os recorrentes anunciam que irão propor.

Observa o tribunal a quo, em terceiro lugar, que, até ao desfecho da acção que os recorrentes se propõem intentar a título principal, tendo em vista a obtenção da declaração de nulidade do contrato de compra e venda por simulação, a probabilidade da existência do direito que invocam será igual à da existência do direito actual dos requeridos.

Esta asserção é, desde logo, inócua. Ainda que assim fosse, daí não decorreria a manifesta improcedência da pretensão dos recorrentes. Se bem interpretamos o pensamento do tribunal a quo, a conclusão a retirar seria precisamente a oposta: a existência do direito invocado pelos recorrentes seria tão plausível quanto a dos direitos de que, de acordo com a alegação daqueles, os requeridos são titulares; logo, fica afastada a ideia de manifesta inexistência do primeiro, determinante da manifesta improcedência da concreta pretensão nele fundada.

Por outro lado, a mesma asserção não é correcta, pois parece ignorar que há produção de prova em sede de procedimento cautelar (artigos 365.º, n.º 1, e 367.º, n.º 1, do CPC), prova essa com base na qual o tribunal que julga tal procedimento chegará, com autonomia e sem qualquer influência no julgamento da acção principal (artigo 364.º, n.º 4, do CPC), à sua própria convicção sobre os factos invocados pelas partes. Portanto, não é exacto que a probabilidade da existência dos direitos invocados pelas partes se mantenha idêntica até ao desfecho da acção principal.

O quarto argumento utilizado na decisão recorrida carece manifestamente de fundamento. Os recorrentes não invocaram a titularidade de um direito real de usufruto sobre o prédio em questão (cfr. artigo 1439.º do Código Civil), nem peticionaram a constituição de tal direito através do presente procedimento cautelar, apenas tendo utilizado o verbo usufruir nos artigos 21.º e 45.º do requerimento inicial e nos pedidos que formularam no seu sentido comum, não técnico, de utilizar o prédio para nele residirem. Mais, no artigo 29.º do requerimento inicial, os recorrentes excluíram expressamente a viabilidade da interpretação feita pelo tribunal a quo ao alegarem que, como forma de enganar os seus credores, decidiram, com os requeridos, não constituir um usufruto sobre o prédio. Portanto, não está em causa a existência ou a pretensão de constituir um direito real de usufruto sobre o prédio a favor dos recorrentes.

Considera o tribunal a quo, em quinto lugar, que não se verifica um fundado receio de que o comportamento dos requeridos antes da prolação da decisão final da acção principal cause lesão grave e dificilmente reparável aos recorrentes, pois estes, ao alegarem que pagam as prestações do empréstimo bancário por aqueles contraído, admitem possuir capacidade económica para tomarem de arrendamento outro imóvel.

Discordamos desta argumentação.

A saída compulsiva do local onde se tem residência permanente, saída essa que abrange, quer as pessoas, quer os pertences destas, constitui, em si mesma, um mal muito significativo, que não pode ser menosprezado com base no argumento de que tal residência poderá ser transferida para outro local. Ao menos para a maioria das pessoas, a perda da residência permanente nas condições descritas constitui, seguramente, uma das piores coisas que podem acontecer na vida. Estão em causa valores pessoais de primeira ordem e não meramente patrimoniais. Daí a protecção que a Constituição (artigo 65.º) e a lei ordinária dispensam ao direito à habitação.

Por outro lado, considerando a situação económica dos recorrentes tal como estes a descrevem no requerimento inicial (o prédio era o seu único activo patrimonial e têm, como única fonte de rendimento, as suas pensões, no montante global anual de € 6.080,50), não pode, como fez o tribunal a quo, concluir-se que eles têm capacidade económica para tomarem de arrendamento outro imóvel. O facto de os recorrentes terem vindo a conseguir pagar a quantia de € 300 mensais aos requeridos, correspondente ao valor da prestação por estes paga ao banco, não contraria aquilo que acabámos de afirmar. Na actual conjuntura do mercado de arrendamento, o valor de € 300 está sensivelmente abaixo das rendas habitualmente praticadas, nomeadamente na região onde os recorrentes residem (Algarve), para imóveis como o dos autos (habitação de dois pisos, de tipologia T-3) e até mesmo de tipologia inferior, o que constitui um facto notório. A isto acresce, segundo os recorrentes alegam, que eles não têm qualquer pessoa que os possa acolher. Sendo assim, se os recorrentes forem expulsos da casa onde residem ou, como eles alegam ser intenção dos requeridos, se for interrompido o fornecimento dos serviços básicos de água e electricidade àquela, o que tornaria impossível viver com um mínimo de dignidade e conforto na referida casa, estaremos perante, não um acontecimento banal e desprezível, mas, muito pelo contrário, uma lesão grave e dificilmente reparável dos direitos que os recorrentes invocam.

A observação, feita pelo tribunal a quo, segundo a qual, se o direito de propriedade sobre o prédio reingressar no património dos requerentes, poderá voltar a ser penhorado e correrá novamente o risco de ser vendido, pois não se alega que todas as dívidas daqueles tenham sido pagas, situa-se no domínio da pura especulação. Não se alega que todas as dívidas dos recorrentes estão pagas, mas também não se alega o contrário. Nem isso é relevante neste contexto. No actual momento, relevante para os recorrentes é a alegada iminência da perda da sua habitação, por acção dos requeridos, com fundamento num contrato de compra e venda que consideram nulo por simulação. São a realidade dessa alegada ameaça e a legitimidade da oposição dos recorrentes a que a mesma se concretize que estão em discussão neste procedimento cautelar.

Por último, o tribunal a quo considera que se deve ponderar a necessidade de obtenção da posse do prédio pelos requeridos, para aquisição do qual contraíram empréstimo bancário. Mais uma vez, discordamos da oportunidade de tal ponderação. O tribunal encontra-se apenas perante o requerimento inicial, no qual se alega, além do mais, que o contrato de compra e venda celebrado entre os recorrentes e os requeridos foi simulado e que, até momento posterior a essa celebração, nunca esteve em causa a saída dos primeiros do prédio objecto daquele contrato e, logicamente, a ocupação do mesmo prédio pelos segundos. Nestas circunstâncias, a existência da necessidade de obtenção da posse do prédio pelos requeridos constitui matéria controvertida. Mais, os requeridos ainda nem sequer tiveram oportunidade de virem ao processo invocar tal necessidade. Não faz, pois, sentido o indeferimento liminar do requerimento inicial com fundamento na ponderação da mesma necessidade.

Aqui chegados, podemos concluir que as razões pelas quais o tribunal a quo indeferiu liminarmente o requerimento inicial não colhem. Mais, há factos, não considerados na decisão recorrida, que foram alegados pelos recorrentes e se encontram sustentados por prova documental (fls. 11 a 16), que inculcam que algo anormal e, logo, a requerer a devida indagação na perspectiva em que os recorrentes configuraram o presente procedimento, se passou na situação dos autos. Temos em vista o facto de o prédio em questão ter sido vendido aos requeridos pelo preço de € 65.000 quando o seu valor patrimonial é de € 107.210 e chegou a estar à venda, através de uma empresa de mediação imobiliária, pelo preço de € 280.000.

Por tudo isto, a pretensão dos recorrentes não pode ser julgada manifestamente improcedente e liminarmente indeferida com esse fundamento. Deve, pois, o recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida.

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Decisão:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida.

Não são devidas custas.

Notifique.

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Évora, 16 de Janeiro de 2020

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.º adjunto


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