Processo n.º 3667/19.2T8FAR.E1
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Sumário:
O indeferimento liminar de um
procedimento cautelar comum com fundamento em manifesta improcedência apenas se
justifica se, perante o alegado no requerimento inicial, for, desde logo,
evidente que, independentemente da prova oferecida e daquela que pudesse vir a
ser produzida, a providência nunca poderia ser decretada.
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VC e OL instauraram, contra MC e
CN, procedimento cautelar comum, pedindo que seja ordenada a manutenção do
prédio urbano onde residem na sua posse,
com o pleno usufruto do mesmo, até ao trânsito em julgado da acção principal, e
que os requeridos sejam obrigados a abster-se da prática de qualquer acto que
possa colocar em causa aquela posse e usufruto, designadamente da venda,
doação, arrendamento ou oneração, por qualquer forma, do prédio em questão, bem
como de procederem ao cancelamento dos contratos de fornecimento de água e luz
em vigor. Requereram ainda que as providências descritas sejam decretadas sem
audiência prévia dos requeridos. Como fundamento, alegaram, em síntese, o
seguinte:
1 – Os requerentes eram
proprietários do prédio urbano onde residem desde 15.11.2003;
2 – Esse prédio foi penhorado,
em 12.07.2016, no âmbito de uma execução instaurada contra os requerentes;
3 – Os requerentes não tinham
dinheiro suficiente para o pagamento dos créditos exequendo e reclamados na
execução, cujo montante global era de cerca de € 63.910;
4 – O activo dos requerentes era
constituído apenas pelo prédio onde residem, que tem o valor patrimonial de €
107.210;
5 – Os rendimentos dos
requerentes são constituídos apenas pelas suas pensões, que perfazem o montante
anual de € 6.080,50;
6 – Os requerentes não
conseguiram obter crédito bancário para pagarem as suas dívidas;
7 – Os requerentes tinham o
prédio à venda numa imobiliária pelo valor de € 280.000;
8 – Neste contexto, os
requerentes pediram ajuda aos requeridos, respectivamente seus filho e nora, no
sentido de evitarem a venda judicial do prédio e continuarem a residir no
mesmo;
9 – Requerentes e requeridos
acordaram que os primeiros continuariam a residir no prédio até ao final das
suas vidas e, como contrapartida, pagariam aos segundos o valor da prestação do
empréstimo bancário que estes contraíssem com vista à compra do prédio;
10 – Em 17.07.2019, os
requerentes venderam o prédio aos requeridos, pelo preço de € 65.000;
11 – No mesmo acto, os
requeridos celebraram um contrato de crédito à habitação mediante o qual
obtiveram o empréstimo da quantia de € 58.500, pelo prazo de 26 anos, para
pagarem o preço do prédio; para garantia do pagamento dessa dívida, foi
constituída hipoteca sobre o prédio;
12 – Porém, na realidade,
requerentes e requeridos não quiseram fazer uma verdadeira compra e venda do
prédio, tendo acordado que este sairia da esfera patrimonial dos primeiros
apenas como forma de evitar a sua venda judicial; assim, os requerentes
continuariam sempre a usufruir do prédio e a administrá-lo como se continuassem
a ser os seus proprietários, pagando as respectivas despesas;
13 – Após a venda do prédio e
tal como ficara acordado, os requerentes pagaram aos requeridos os montantes
correspondentes às prestações pagas por estes ao banco mutuante;
14 – Assim, através do contrato
de compra e venda realizado, requerentes e requeridos, em conluio, enganaram o
banco mutuante, levando-o a emprestar, aos segundos, em condições
particularmente favoráveis, uma quantia que, na realidade, se destinava ao
pagamento das dívidas dos primeiros que estavam a ser exigidas no processo
executivo;
15 – Também os credores dos
requerentes foram enganados, na medida em que não foi constituído um usufruto
sobre o prédio a favor dos requerentes para evitar que esse direito fosse
penhorado em eventuais acções de cobrança das suas dívidas;
16 – O contrato de compra e
venda celebrado entre requerentes e requeridos é nulo, por simulação, sendo
propósito dos primeiros instaurar a correspondente acção judicial;
17 – Em Julho de 2019,
desrespeitando o acordado, os requeridos interpelaram os requerentes para
abandonarem o prédio no prazo de oito dias;
18 – Em 30.08.2019, os
requeridos comunicaram que, se os requerentes não abandonassem o prédio até
30.09.2019, iriam pedir, na qualidade de proprietários, o cancelamento dos
contratos de fornecimento de água e electricidade;
19 – No início de Novembro de
2019, os requeridos interpelaram novamente os requerentes para estes lhes
entregarem o prédio;
20 – Os requerentes não têm outra
casa para residir, ou qualquer pessoa que os possa acolher, pelo que, se forem
expulsos do prédio onde residem, ficarão sem um local para viver e guardar os
seus pertences;
21 – Se o prédio for entregue
aos requeridos, estes poderão proceder de imediato à sua venda ou arrendamento
a terceiros;
22 – Daí a necessidade da
providência solicitada.
O tribunal a quo indeferiu liminarmente o requerimento inicial por entender,
em síntese, que, de acordo com a alegação que naquele é feita:
1 – Após a celebração do
contrato de compra e venda que os requerentes afirmam ter sido simulado, o
direito de que estes são titulares relativamente ao prédio é aquele que decorre
de um contrato de comodato, pelo que os requeridos podem exigir-lhes a restituição
do mesmo prédio quando entenderem;
2 – Excede os limites da boa-fé
os requerentes pretenderem a restituição do prédio quando foram eles, em
conluio com os requeridos, que quiseram retirar o mesmo do seu património para
que não respondesse pelo pagamento das suas dívidas;
3 – Até ao desfecho da acção que
os requerentes se propõem intentar a título principal, tendo em vista a
obtenção da declaração de nulidade do contrato de compra e venda por simulação,
a probabilidade da existência do direito dos requerentes será igual à da
existência do direito actual dos requeridos;
4 – Os requerentes não são
titulares de qualquer direito de usufruto, nem a acção que eles afirmam ir
propor terá a virtualidade de constituir tal direito, pelo que, no presente
procedimento, o tribunal não poderá declarar constituído o usufruto;
5 – Não se verifica um fundado
receio de que o comportamento dos requeridos antes da prolação da decisão final
da acção principal cause lesão grave e dificilmente reparável aos requerentes,
pois estes, ao invocarem que pagam as prestações do empréstimo bancário por
aqueles contraído, demonstram capacidade económica para tomarem de arrendamento
outro imóvel; por outro lado, se o direito de propriedade sobre o prédio
reingressar no património dos requerentes, poderá voltar a ser penhorado e
correrá novamente o risco de ser vendido, pois não se alega que todas as
dívidas daqueles tenham sido pagas;
6 – Deve ponderar-se a
necessidade de obtenção da posse do prédio pelos requeridos, para aquisição do
qual contraíram empréstimo bancário.
Os requerentes recorreram da decisão
de indeferimento liminar, tendo formulado as seguintes conclusões:
1 – O tribunal a quo pôs em causa a provável existência
do direito, sem permitir aos recorrentes realizar qualquer prova sobre os
factos alegados.
2 – No seu requerimento inicial,
os recorrentes confessaram que celebraram, na qualidade de vendedores, um
negócio simulado de compra e venda do imóvel onde actualmente habitam.
3 – Os recorrentes alegaram que
pretendem requerer, em acção a intentar, a declaração de nulidade do referido
negócio, por simulação, nos termos dos artigos 240.º e 242.º do Código Civil.
4 – Dessa declaração de nulidade
decorrerá necessariamente a restituição do prestado entre as partes no referido
negócio, nomeadamente a devolução do imóvel à esfera jurídica dos recorrentes –
direito este cuja existência alegaram e pretendem acautelar.
5 – Não podia o tribunal a quo considerar não demonstrada a
provável existência do direito quando nem sequer deu aos requerentes a
possibilidade de comprovar sumariamente esse direito, nomeadamente através da
prova da simulação do negócio.
6 – Demonstrada a simulação,
fica por inerência demonstrado o direito de os recorrentes requererem a
declaração de nulidade do negócio e pedirem a consequente restituição do imóvel
à sua esfera jurídica.
7 – No que diz respeito ao periculum in mora, o tribunal a quo considera que o comportamento dos requeridos
(exigência de entrega imediata do imóvel e ameaça de cancelamentos dos
contratos de água e luz) não provocará prejuízo sério e irremediável aos recorrentes.
8 – Ora, como se encontra
alegado, o imóvel em causa corresponde à habitação dos recorrentes.
9 – Se os requeridos levarem a
cabo a sua ameaça de cortar água e luz (como poderão fazer a qualquer momento,
se não houver uma ordem judicial que os impeça), o imóvel tornar-se-á
imediatamente inabitável, forçando os recorrentes a abandoná-lo.
10 – Os recorrentes alegaram (e
de novo foram impedidos de demonstrar) que não possuem familiares e amigos com
possibilidades de os acolher ou de lhes emprestar uma casa.
11 – Além disso, actualmente não
conseguirão arrendar um apartamento para duas pessoas, com condições mínimas de
habitabilidade, por preço inferior a 500 euros (valor que não podem pagar).
12 – Se os recorrentes forem
despejados à força (como pretendem os requeridos), os mesmos não terão
possibilidade de encontrar abrigo ou habitação, em pleno inverno, nem terão
local onde guardar os seus pertences, que poderão ficar danificados, serem
furtados ou destruídos para sempre.
13 – Ademais, assim que os requeridos
ficarem na posse do imóvel, poderão proceder à venda imediata do mesmo,
nomeadamente a terceiros a quem a nulidade do negócio poderá não ser oponível
nos termos do artigo 291.º do Código Civil.
14 – Os recorrentes pretendem o
decretamento de uma providência que mantenha o imóvel na sua posse e lhes
permita usufruir plenamente do mesmo, até decisão final na acção para
declaração de nulidade do negócio simulado e restituição do que foi prestado
(acção onde, reitere-se, pedirão, como efeito daquela declaração de nulidade,
que o imóvel regresse à sua esfera jurídica).
15 – Ao decidir pelo
indeferimento liminar do procedimento cautelar, o tribunal a quo violou o n.º 1 do artigo 362.º, os artigos 367.º e 368.º, e o
n.º 3 do artigo 376.º, todos do Código de Processo Civil, bem como o n.º 5 do
artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
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A questão a resolver consiste em
saber se se verifica uma situação de manifesta improcedência da pretensão dos
requerentes, pois foi esse o fundamento da decisão de indeferimento liminar.
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Comecemos por traçar o quadro
legal directamente relevante para a decisão do recurso.
O n.º 1 do artigo 362.º do CPC
estabelece que sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause
lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a
providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a
efectividade do direito ameaçado. O n.º 2 do mesmo artigo dispõe que o
interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito
emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor.
O n.º 1 do artigo 365.º do CPC estabelece
que, com a petição, o requerente da providência oferece prova sumária do
direito ameaçado e justifica o receio da lesão.
O n.º 1 do artigo 368.º do CPC
estabelece que a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da
existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua
lesão. O n.º 2 do mesmo artigo ressalva que a providência pode ser recusada
pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda
consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.
O n.º 1 do artigo 590.º do CPC
estabelece, na parte que nos interessa, que, nos casos em que, por determinação
legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida
quando o pedido seja manifestamente improcedente.
Ao nível substantivo, importa
considerar o disposto nos artigos 240.º, 242.º, n.º 1, 405.º, n.º 1, e 1129.º do
Código Civil.
O n.º 1 do artigo 240.º
estabelece que se, por acordo entre declarante e declaratário e no intuito de
enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade
real do declarante, o negócio diz-se simulado. O n.º 2 do mesmo artigo
estabelece que o negócio simulado é nulo.
O n.º 1 do artigo 242.º dispõe que,
sem prejuízo do disposto no artigo 286.º, a nulidade do negócio simulado pode
ser arguida pelos próprios simuladores entre si, ainda que a simulação seja
fraudulenta.
O artigo 405.º consagra o
princípio da liberdade contratual, estabelecendo o seu n.º 1 que, dentro dos
limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos
contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos na lei ou incluir nos
mesmos contratos as cláusulas que lhes aprouver.
O artigo 1129.º define o
comodato como o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra
certa coisa, móvel ou imóvel, para que dela se sirva, com a obrigação de a
restituir.
Analisemos a fundamentação da
decisão recorrida à luz deste quadro legal. Ao fazê-lo, tenhamos especialmente
em conta que estamos perante um indeferimento liminar fundado na manifesta
improcedência do requerimento inicial. Ou seja, logo perante o conteúdo deste
requerimento, o tribunal a quo
concluiu, com segurança e sem necessidade de produção de prova, que, fosse qual
fosse o resultado desta última, a providência nunca seria decretada.
O tribunal a quo começou por qualificar o contrato descrito nos artigos 15.º,
21.º, 22.º e 23.º do requerimento inicial como de comodato, daí retirando, como
consequência, que os requeridos podem exigir dos recorrentes a restituição do
prédio quando entenderem. Tal qualificação não é correcta, pois contraria o
teor da alegação dos recorrentes sobre o conteúdo do contrato que alegaram
terem celebrado com os requeridos sobre a utilização do prédio. Segundo a
versão dos recorrentes, foi estipulado que eles permaneceriam no gozo do prédio
até ao final das suas vidas, pagando, em contrapartida, o valor da prestação do
empréstimo bancário contraído pelos requeridos. Logo, o contrato relativo ao
gozo do prédio que os recorrentes alegaram não se enquadra na definição legal
constante do artigo 1129.º do Código Civil. Por um lado, não foi um contrato
gratuito, mas oneroso. Por outro, em vez da obrigação de restituir, foi
estipulado um direito de gozo vitalício do prédio por parte dos recorrentes. Independentemente
de a alegação dos recorrentes corresponder, ou não, à verdade, nada obsta, em
abstracto, à validade desse hipotético contrato, considerando o disposto no
artigo 405.º do Código Civil. Por tudo isto, não é correcta a conclusão, a que
o tribunal a quo chegou, de que,
mesmo de acordo com a versão factual alegada pelos recorrentes, os requeridos
podem exigir destes a restituição do prédio quando entenderem. Muito pelo
contrário, aquilo que resulta do requerimento inicial é que os requeridos não o
podem fazer.
O tribunal a quo considera, em seguida, que excede os limites da boa-fé os recorrentes
pretenderem a restituição do prédio quando foram eles, em conluio com os
requeridos, que quiseram retirar o mesmo do seu património para que não
respondesse pelo pagamento das suas dívidas. O tribunal a quo não justificou esta conclusão, como era seu dever. Independentemente
disso, resulta de norma legal expressa, concretamente do n.º 1 do artigo 242.º
do Código Civil, que a nulidade do negócio simulado pode ser arguida pelos
próprios simuladores entre si, ainda que a simulação seja fraudulenta. Não há,
pois, qualquer violação do princípio da boa-fé. Portanto, de acordo com o
alegado no requerimento inicial, nada parece impedir, à partida, a viabilidade
da acção principal que os recorrentes anunciam que irão propor.
Observa o tribunal a quo, em terceiro lugar, que, até ao
desfecho da acção que os recorrentes se propõem intentar a título principal,
tendo em vista a obtenção da declaração de nulidade do contrato de compra e
venda por simulação, a probabilidade da existência do direito que invocam será
igual à da existência do direito actual dos requeridos.
Esta asserção é, desde logo,
inócua. Ainda que assim fosse, daí não decorreria a manifesta improcedência da
pretensão dos recorrentes. Se bem interpretamos o pensamento do tribunal a quo, a conclusão a retirar seria
precisamente a oposta: a existência do direito invocado pelos recorrentes seria
tão plausível quanto a dos direitos de que, de acordo com a alegação daqueles,
os requeridos são titulares; logo, fica afastada a ideia de manifesta
inexistência do primeiro, determinante da manifesta improcedência da concreta
pretensão nele fundada.
Por outro lado, a mesma asserção
não é correcta, pois parece ignorar que há produção de prova em sede de
procedimento cautelar (artigos 365.º, n.º 1, e 367.º, n.º 1, do CPC), prova
essa com base na qual o tribunal que julga tal procedimento chegará, com
autonomia e sem qualquer influência no julgamento da acção principal (artigo
364.º, n.º 4, do CPC), à sua própria convicção sobre os factos invocados pelas
partes. Portanto, não é exacto que a probabilidade da existência dos direitos invocados
pelas partes se mantenha idêntica até ao desfecho da acção principal.
O quarto argumento utilizado na
decisão recorrida carece manifestamente de fundamento. Os recorrentes não
invocaram a titularidade de um direito real de usufruto sobre o prédio em
questão (cfr. artigo 1439.º do Código Civil), nem peticionaram a constituição
de tal direito através do presente procedimento cautelar, apenas tendo
utilizado o verbo usufruir nos artigos 21.º e 45.º do requerimento inicial e
nos pedidos que formularam no seu sentido comum, não técnico, de utilizar o
prédio para nele residirem. Mais, no artigo 29.º do requerimento inicial, os
recorrentes excluíram expressamente a viabilidade da interpretação feita pelo
tribunal a quo ao alegarem que, como
forma de enganar os seus credores, decidiram, com os requeridos, não constituir
um usufruto sobre o prédio. Portanto, não está em causa a existência ou a
pretensão de constituir um direito real de usufruto sobre o prédio a favor dos
recorrentes.
Considera o tribunal a quo, em quinto lugar, que não se
verifica um fundado receio de que o comportamento dos requeridos antes da
prolação da decisão final da acção principal cause lesão grave e dificilmente
reparável aos recorrentes, pois estes, ao alegarem que pagam as prestações do
empréstimo bancário por aqueles contraído, admitem possuir capacidade económica
para tomarem de arrendamento outro imóvel.
Discordamos desta argumentação.
A saída compulsiva do local onde
se tem residência permanente, saída essa que abrange, quer as pessoas, quer os
pertences destas, constitui, em si mesma, um mal muito significativo, que não
pode ser menosprezado com base no argumento de que tal residência poderá ser transferida
para outro local. Ao menos para a maioria das pessoas, a perda da residência
permanente nas condições descritas constitui, seguramente, uma das piores
coisas que podem acontecer na vida. Estão em causa valores pessoais de primeira
ordem e não meramente patrimoniais. Daí a protecção que a Constituição (artigo
65.º) e a lei ordinária dispensam ao direito à habitação.
Por outro lado, considerando a
situação económica dos recorrentes tal como estes a descrevem no requerimento
inicial (o prédio era o seu único activo patrimonial e têm, como única fonte de
rendimento, as suas pensões, no montante global anual de € 6.080,50), não pode,
como fez o tribunal a quo,
concluir-se que eles têm capacidade económica para tomarem de arrendamento
outro imóvel. O facto de os recorrentes terem vindo a conseguir pagar a quantia
de € 300 mensais aos requeridos, correspondente ao valor da prestação por estes
paga ao banco, não contraria aquilo que acabámos de afirmar. Na actual
conjuntura do mercado de arrendamento, o valor de € 300 está sensivelmente
abaixo das rendas habitualmente praticadas, nomeadamente na região onde os
recorrentes residem (Algarve), para imóveis como o dos autos (habitação de dois
pisos, de tipologia T-3) e até mesmo de tipologia inferior, o que constitui um facto
notório. A isto acresce, segundo os recorrentes alegam, que eles não têm
qualquer pessoa que os possa acolher. Sendo assim, se os recorrentes forem
expulsos da casa onde residem ou, como eles alegam ser intenção dos requeridos,
se for interrompido o fornecimento dos serviços básicos de água e electricidade
àquela, o que tornaria impossível viver com um mínimo de dignidade e conforto
na referida casa, estaremos perante, não um acontecimento banal e desprezível,
mas, muito pelo contrário, uma lesão grave e dificilmente reparável dos
direitos que os recorrentes invocam.
A observação, feita pelo
tribunal a quo, segundo a qual, se o
direito de propriedade sobre o prédio reingressar no património dos
requerentes, poderá voltar a ser penhorado e correrá novamente o risco de ser
vendido, pois não se alega que todas as dívidas daqueles tenham sido pagas,
situa-se no domínio da pura especulação. Não se alega que todas as dívidas dos
recorrentes estão pagas, mas também não se alega o contrário. Nem isso é
relevante neste contexto. No actual momento, relevante para os recorrentes é a
alegada iminência da perda da sua habitação, por acção dos requeridos, com
fundamento num contrato de compra e venda que consideram nulo por simulação.
São a realidade dessa alegada ameaça e a legitimidade da oposição dos
recorrentes a que a mesma se concretize que estão em discussão neste
procedimento cautelar.
Por último, o tribunal a quo considera que se deve ponderar a
necessidade de obtenção da posse do prédio pelos requeridos, para aquisição do
qual contraíram empréstimo bancário. Mais uma vez, discordamos da oportunidade
de tal ponderação. O tribunal encontra-se apenas perante o requerimento
inicial, no qual se alega, além do mais, que o contrato de compra e venda
celebrado entre os recorrentes e os requeridos foi simulado e que, até momento
posterior a essa celebração, nunca esteve em causa a saída dos primeiros do
prédio objecto daquele contrato e, logicamente, a ocupação do mesmo prédio
pelos segundos. Nestas circunstâncias, a existência da necessidade de obtenção
da posse do prédio pelos requeridos constitui matéria controvertida. Mais, os
requeridos ainda nem sequer tiveram oportunidade de virem ao processo invocar
tal necessidade. Não faz, pois, sentido o indeferimento liminar do requerimento
inicial com fundamento na ponderação da mesma necessidade.
Aqui chegados, podemos concluir
que as razões pelas quais o tribunal a
quo indeferiu liminarmente o requerimento inicial não colhem. Mais, há
factos, não considerados na decisão recorrida, que foram alegados pelos
recorrentes e se encontram sustentados por prova documental (fls. 11 a 16), que
inculcam que algo anormal e, logo, a requerer a devida indagação na perspectiva
em que os recorrentes configuraram o presente procedimento, se passou na
situação dos autos. Temos em vista o facto de o prédio em questão ter sido
vendido aos requeridos pelo preço de € 65.000 quando o seu valor patrimonial é
de € 107.210 e chegou a estar à venda, através de uma empresa de mediação
imobiliária, pelo preço de € 280.000.
Por tudo isto, a pretensão dos
recorrentes não pode ser julgada manifestamente improcedente e liminarmente
indeferida com esse fundamento. Deve, pois, o recurso ser julgado procedente, revogando-se
a decisão recorrida.
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Decisão:
Delibera-se, pelo
exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida.
Não
são devidas custas.
Notifique.
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Évora, 16 de Janeiro de 2020
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.º adjunto