quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Acórdão da Relação de Évora de 07.12.2023

Processo n.º 1463/22.9T8STB-A.E1

*

Sumário:

1 – A decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido de indemnização civil, constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis.

2 – Para aquilatar da verificação da excepção de caso julgado, nomeadamente da identidade entre o pedido e a causa de pedir da acção, proposta no tribunal cível, onde aquela excepção se suscita, e o pedido e a causa de pedir da acção civil enxertada no processo criminal em que já foi proferida sentença transitada em julgado, a comparação deve ser feita, não entre a petição inicial da acção cível e a sentença criminal, mas sim entre a petição inicial da acção cível e a petição inicial apresentada no processo criminal.

3 – A apreciação, feita na sentença proferida no processo criminal, sobre a forma como o demandante alegou os factos que constituíam a causa de pedir e formulou o pedido na petição inicial aí apresentada, não vincula o tribunal civil em que seja proposta a acção na qual a excepção de caso julgado se suscite. Só a decisão final, proferida pelo tribunal criminal, sobre o pedido de indemnização civil, se impõe com força de caso julgado material.

4 – O direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais previsto no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição não impõe que, após o trânsito em julgado de sentença, proferida em processo criminal, que julgue improcedente o pedido de indemnização civil, se permita, ao ali demandante, propor acção idêntica na jurisdição civil.

*

Autores: SC, FC e RC.

Réu: JR.

Pedido: Condenação do réu no pagamento das seguintes quantias:

a) € 10.000 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela autora SC em consequência da violação dos deveres conjugais que sobre o réu impendiam, bem como em consequência da violação dos seus direitos de personalidade, acrescido de juros vencidos e vincendos desde a data da citação para a presente acção até integral pagamento;

b) € 5.877 a título de indemnização pelos danos patrimoniais causados pelo réu à autora SC, acrescido de juros vencidos e vincendos desde a data da citação para a presente acção até integral pagamento;

c) € 5.000 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela autora RC em consequência da violação dos deveres parentais que sobre o réu impendiam, bem como em consequência da violação dos seus direitos de personalidade por parte do réu, acrescido de juros vencidos e vincendos desde a data da citação para a presente acção até integral pagamento.

d) € 7.000 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo autor FC em consequência da violação dos deveres parentais que sobre o réu impendiam, bem como em consequência da violação dos seus direitos de personalidade por parte do réu, acrescido de juros vencidos e vincendos desde a data da citação para a presente acção até integral pagamento;

e) De todas despesas médicas e medicamentosas que os autores venham a incorrer, em resultado das agressões perpetradas pelo réu em relação aos autores FC e RC e da violação reiterada dos deveres conjugais e da violação dos seus direitos de personalidade quanto à autora SC, a apurar em sede de execução de sentença.

Despacho saneador: Julgou “verificada a excepção de caso julgado referente à matéria objecto de apreciação e decisão no proc. n.º 281/19.6T9STB, igualmente fundamentadora da causa de pedir nesta acção, que corresponde e abrange a seguinte matéria:

- Ao invocado controlo, pelo Réu, da economia doméstica e seus reflexos na estabilidade da vida conjugal, assim como da vida da própria 1.ª Autora (arts. 20.º a 48.º, 56.º a 63.º e 113.º a 121.º da P.I.);

- Às legadas agressões físicas e verbais de que a 1.ª Autora foi vítima, na presença dos 2.º e 3.º Autores, e clima tenso que se vivia no seio do agregado familiar (arts. 88.º a 91.º da P.I.);

- Narradas agressões físicas aos 2.ª e 3.º Autores (arts. 64.º a 86.º e 97.º a 110.º da P.I.);

- Invocada perturbação emocional causada aos Autores (arts. 128.º a 134.º da P.I.).”

Em consequência, o tribunal a quo absolveu o réu da instância nesta parte, nos termos dos artigos 278.º, n.º 1, al. e), 577.º, al. i), 576.º, n.º 2, e 578.º, do CPC.

*

A autora SC, em nome próprio e no dos autores FC e RC, invocando a qualidade de representante legal destes, interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

A. Vem o presente recurso interposto do despacho saneador proferido pelo douto Tribunal a quo, no qual se julgou verificada a exceção de caso julgado, absolvendo-se, em consequência, o Réu da instância.

B. O despacho saneador referido na conclusão que precede preceitua que a matéria abaixo indicada já havia sido objeto de apreciação e decisão no processo com o n.º 281/19.6T9STB (certidão de cuja sentença consta dos autos), tudo conforme página 9 do despacho saneador ora recorrido:

“- Ao invocado controlo, pelo Réu, da economia doméstica e seus reflexos na estabilidade da vida conjugal, assim como da vida da própria 1.ª Autora (arts. 20.º a 48.º, 56.º a 63.º e 113.º a 121.º da P.I.);

- Às legadas agressões físicas e verbais de que a 1.ª Autora foi vítima, na presença dos 2.º e 3.º Autores, e clima tenso que se vivia no seio do agregado familiar (arts. 88.º a 91.º da P.I.);

- Narradas agressões físicas aos 2.ª e 3.º Autores (arts. 64.º a 86.º e 97.º a 110.º da P.I.);

- Invocada perturbação emocional causada aos Autores (arts. 128.º a 134.º da P.I.);”

C. Tal decisão, porém, não poderá manter-se no ordenamento jurídico, porquanto o douto Tribunal a quo não apreciou corretamente os factos aduzidos no presente processo e, bem assim, os que resultam das peças dos autos do processo n.º 281/19.6T9STB.

D. Para que se verifique a exceção de caso julgado é necessário que exista uma tripla identidade de pedido, causa de pedir e sujeitos processuais.

E. Da análise da sentença proferida nos autos do processo n.º 281/19.6T9STB e da petição apresentada nos presentes autos só poderá concluir-se que não se encontram reunidos tais requisitos, pelo que, salvo melhor opinião, não estarão reunidos os requisitos impostos pelo artigo 581.º do CPC.

F. Desde logo, porque não existe identidade de pedidos. Vejamos:

G. No processo com o n.º 281/19.6T9STB, no que tange com a apreciação do pedido de indemnização civil formulado (pois que tal processo é processo crime onde foi enxertado pedido de indemnização civil), lê-se o seguinte (cf. pp. 51 do referido aresto):

“[…] Significa isto e não se descurando que o Tribunal está vinculado ao princípio do pedido, não podendo, assim, atribuir indemnização a respeito de pedido não formulado.

[…]”

H. Neste sentido, e ao contrário do que vem expresso no douto despacho-saneador de que ora se recorre, não poderá concluir-se pela existência da tripla identidade (pedido, causa de pedir e sujeitos) a que alude o artigo 581.º do CPC, desde logo, porque não poderá existir identidade de um pedido que, de acordo com a sentença proferida no âmbito do processo n.º 281/19.6T9STB, não foi formulado.

I. Da sentença proferida no âmbito do processo n.º 281/19.6T9STB, poder-se-á ainda retirar que não existe tampouco identidade da causa de pedir, relativamente àquilo que seria o objeto de ambas as ações (o PIC apresentado naqueloutro processo e a petição apresentada na presente ação).

J. Sendo a causa de pedir o “conjunto dos factos que integram a previsão da norma ou das normas materiais que estatuem o efeito jurídico pretendido” e tendo a sentença proferida no processo n.º 281/19.6T9STB decidido que [naquele processo] não é reclamado “[…] qualquer montante que se adstrinja a dano não patrimonial determinado pelo demandado […]”, baseando-se, ao invés, a causa de pedir na presente ação nos factos que foram dados como provados naquele processo, sempre teremos de concluir que não existe tampouco identidade quanto à causa de pedir em ambas as ações.

K. Também aqui soçobrando os requisitos necessários para a verificação da exceção de caso julgado.

L. Mais ainda, contrariando a tese propugnada pelo douto Tribunal a quo, a ofensa ao caso julgado material não se verifica no presente processo na sua vertente negativa, através da exceção do caso julgado, mas, pelo contrário, através da sua vertente positiva, por via da autoridade do caso julgado:

M. O “caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objecto da segunda acção mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o Tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objecto da acção, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objecto da primeira decisão).” (cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no âmbito do processo n.º 1545/19.4T8LRA.C1.S1). Ora,

N. O despacho saneador proferido nos presentes autos não poderá vigorar no ordenamento jurídico na parte em que ofende aquilo que vem decidido na sentença proferida (já transitada em julgado, conforme se atesta pelas certidões juntas ao processo) nos autos do processo n.º 281/19.6T9STB, nomeadamente naquilo que diz respeito à inexistência de concreta formulação de pedido naquele processo,

O. Sendo certo que, no que revela para a verificação da autoridade do caso julgado, é dispensada a identidade de pedido e de causa de pedir, pelo que não existe qualquer contradição entre o que é agora alegado e o que se veio de dizer quanto à não verificação da exceção de caso julgado.

P. Mas não fica por aqui a contradição existente entre o despacho saneador ora recorrido e a decisão anterior (com ofensa ao caso julgado formado na sentença proferida no processo já abundantemente referenciado com o n.º 281/19.6T9STB):

Q. No despacho saneador de que ora se recorre enuncia-se o “fundamento fático do pedido cível feito no proc. n.º 281/19.6T9STB”, referindo-se aos artigos 1.º a 19.º, 31.º a 39.º, 20.º a 30.º, 40.º a 55.º e 56.º a 60.º dessa peça processual. Porém,

R. Na sentença proferida à margem do referido processo n.º 281/19.6T9STB diz-se precisamente que tais artigos não contêm “alegação fáctica”, limitam-se a reiterar “os termos da acusação”, têm carácter “conclusivo/genérico/ ambíguo”, “sendo que a demais matéria reveste carácter jurídico”.

S. Com efeito, e sempre com o devido respeito, não poderá vir agora o doutro Tribunal a quo vir querer decidir diferentemente aquilo que já foi decidido antes, a respeito da qualificação da narração aduzida pelos Recorrentes naqueloutros autos.

T. Por um lado, o douto Tribunal a quo estriba-se na sentença proferida nos autos do processo n.º 281/19.6T9STB para concluir pela existência da exceção de caso julgado quando, na verdade, aquilo que faz é efetivamente retirar todo o alcance que o caso julgado material tem relativamente à qualificação da matéria de facto (que foi tida – a articulada no PIC, pela sentença proferida nesses autos – como irrelevante e que, portanto, não poderá constituir uma causa de pedir, pois que dela não se extrai uma relação material de onde o autor faz [fez] derivar o correspondente direito, parafraseando o Acórdão da Relação de Coimbra, 17/05/2005, proc. nº 3904/04, referido na nota de rodapé n.º 8 do despacho recorrido), com efetivo prejuízo para a segurança jurídica,

U. Culminando com uma decisão que, a transitar em julgado, sempre geraria uma contradição explícita com a sentença proferida nos autos do processo n.º 281/19.6T9STB.

V. Mais ainda, tendo em consideração o teor da decisão proferida no âmbito do processo 281/19.6T9STB – que refere não ter sido alegada factualidade e não ter sido formulado qualquer pedido – e o teor do despacho saneador – que refere ter existido repetição do pedido e da causa de pedir –, os Recorrentes vêm perante uma situação clara de denegação de justiça e de impedimento de acesso à tutela jurisdicional efetiva, o que consubstancia uma violação clara do disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, expressamente se alegando aqui a inconstitucionalidade da decisão tomada pelo douto Tribunal a quo.

O recorrido apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:

A. Os Autores FC e RC, nos presentes, autos, enquanto Menores, encontram-se representados pelo Ministério Público, na qualidade de Curador Ad Litem.

B. Veio a Autora SC interpor Recurso em representação dos filhos menores FC e RC, os quais se encontram representados pelo Ministério Público.

C. E, pese embora o Despacho Saneador recorrido faça cessar intervenção do Ministério Público em representação dos Menores, a verdade é que ainda àquele cabia interpor Recurso, caso assim o entendesse.

D. Temos que a Autora ora Recorrente SC não tem a legitimidade para representar os Menores com a interposição Recurso.

E. Em face do exposto, por Falta de Legitimidade da Autora SC para representar os Menores FC e RC – que, desde já, se invoca – deverá, pelo menos no que aos Menores respeita o Recurso Interposto, ser julgado totalmente improcedente.

F. SEM PREJUÍZO, Vem o presente recurso interposto do despacho saneador proferido pelo douto Tribunal a quo, no qual se julgou verificada a exceção de caso julgado e, em consequência, foi o Réu, aqui Recorrido, absolvido da instância quanto à matéria que, no entender daquele douto Tribunal a quo, foi objecto de apreciação e decisão no processo n.º 281/19.6T9STB, abrangendo a seguinte matéria (cf. despacho saneador de que ora se recorre, p. 9):

- “Ao invocado controlo, pelo Réu, da economia doméstica e seus reflexos na estabilidade da vida conjugal, assim como da vida da própria 1.ª Autora (arts. 20.º a 48.º, 56.º a 63.º e 113.º a 121.º da P.I.);

- Às legadas agressões físicas e verbais de que a 1.a Autora foi vítima, na presença dos 2.º e 3.º Autores, e clima tenso que se vivia no seio do agregado familiar (arts. 88.º a 91.º da P.I.);

- Narradas agressões físicas aos 2.ª e 3.º Autores (arts. 64.º a 86.º e 97.º a 110.º da P.I.);

- Invocada perturbação emocional causada aos Autores (arts. 128.º a 134.º da P.I.);”

G. Não concordando com o Teor do Despacho Saneador, nomeadamente com a posição do douto Tribunal a quo na medida em que considerou verificada a referida exceção de caso julgado, nos termos do artigo 581.º do Código de Processo Civil, vieram os Autores interpor Recurso, pretendendo anular tal decisão;

H. Porquanto, alegadamente não se encontram reunidos/preenchidos todos os requisitos, designadamente a Identidade de Pedidos e Identidade de Causa de Pedir.

I. No âmbito da presente acção, vieram os Autores SC, FC e RC, pedir a condenação do Réu JR, nos seguintes termos:

- € 10.000,00 (quinze mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela 1.ª Autora, em consequência da violação dos deveres conjugais que sobre o Réu impendiam, bem como em consequência da violação dos seus direitos de personalidade, acrescido de juros vencidos e vincendos desde a data da citação para a presente acção até integral pagamento;

- € 5.877,00 (cinco mil, oitocentos e setenta e sete euros) a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos pela 1.ª Autora, acrescido de juros vencidos e vincendos desde a data da citação para a presente acção até integral pagamento;

- € 5.000,00 (cinco mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela 3.ª Autora em consequência da violação dos deveres parentais que sobre o Réu impendiam, bem como em consequência da violação dos direitos de personalidade por parte do Réu, acrescido de juros vencidos e vincendos desde a data da citação para a presente acção até integral pagamento;

- € 7.000,00 (sete mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo 2.º Autor em consequência da violação dos deveres parentais que sobre o Réu impendiam, bem como em consequência da violação dos direitos de personalidade por parte do Réu, acrescido de juros vencidos e vincendos desde a data da citação para a presente acção até integral pagamento;

- De todas as despesas médicas e medicamentosas que os Autores venham a incorrer em resultado das agressões perpetradas pelo Réu em relação aos 2.o e 3.o Autores e da violação reiterada dos deveres conjugais e da violação dos direitos de personalidade quanto à 1.ª Autora, a apurar em sede de execução de sentença.

J. Da certidão junta sobre o pedido cível formulado no proc. n.º 281/19.6T9STB, resulta que a demandante, aqui 1.ª Autora (em nome próprio e no dos filhos, aqui 2.º e 3.ª Autores), formulou contra o aqui Recorrido, os seguintes pedidos:

- € 10.000,00 (dez mil euros) a título de danos não patrimoniais sofridos pela 1.ª Autora;

- € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais sofridos pelo 2.º Autor;

- € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais sofridos pela 3.ª Autora;

- € 5.801,55 (cinco mil, oitocentos e um euros e cinquenta e cinco cêntimos) a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos pela 1.ª Autora.

K. Dispõe ainda o art. 581º do CP Civil:

“1 - Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido”.

L. A verdade é que, no tocante à Identidade de Sujeitos, in casu, não é sequer questionável: As partes são as mesmas - as partes são as mesmas sob o aspecto jurídico desde que sejam portadoras do mesmo interesse substancial!

M. No tocante à Identidade de Pedidos cumpre-nos mencionar que identidade de pedidos ocorrerá “se existir coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objecto do direito a tutelar, na concretização do efeito que, com a acção, se pretende obter” - Cf. Acórdão do STJ de 08/03/2007, CJ, STJ, Tomo I, p. 98 ss.

N. Nos presentes autos é peticionada a condenação do Réu, ao pagamento à Autora de valores indemnizatórios com base em danos patrimoniais e não patrimoniais por si ocasionados à 1.ª Autora, e por danos não patrimoniais ocasionados aos 2.º e 3.ª Autores;

O. O mesmo sucede no caso do Processo n.º 281/19.6T9STB, já julgado e há muito transitado em julgado!

P. Quanto à Identidade da Causa de Pedir também não vislumbramos qualquer dúvida ou forma de entender em sentido diverso.

Q. No caso em análise, ressalta que o fundamento fático do pedido cível feito no proc. n.º 281/19.6T9STB, prendeu-se, sumariamente, com:

- O invocado controlo, pelo Réu, da economia doméstica e seus reflexos na estabilidade da vida conjugal, assim como da vida da própria 1.ª Autora (arts. 1.º a 19.º e 31.º a 39.º desse pedido cível);

- Alegadas agressões físicas e verbais de que a 1.ª Autora foi vítima, na presença dos 2.º e 3.ª Autores, e clima tenso que se vivia no seio do agregado familiar – em especial, discussões de 01/12/2018 e de 02/01/2019 – (arts. 20.º a 30.º do pedido cível);

- Narradas agressões físicas aos 2.º e 3.ª Autores (arts. 40.º a 55.º do pedido cível, incluindo a adesão à acusação pública);

- Invocada perturbação emocional causada à Autora (arts. 56.º a 60.º do pedido cível).

R. Nos presentes autos, os fundamentos fácticos dos pedidos feitos, prendem- se, sumariamente, com:

- O invocado controlo, pelo Réu, da economia doméstica e seus reflexos na estabilidade da vida conjugal, assim como da vida da própria 1.ª Autora (arts. 20.º a 48.º, 56.º a 63.º e 113.º a 121.º da P.I.);

- Alegadas agressões físicas e verbais de que a 1.ª Autora foi vítima, na presença dos 2.º e 3.ª Autores, e clima tenso que se vivia no seio do agregado familiar (arts. 88.º a 91.º da P.I.);

- Narradas agressões físicas aos 2.º e 3.ª Autores (arts. 64.º a 86.º e 97.º a 110.º da P.I.);

- Invocada perturbação emocional causada aos Autores (arts. 128.º a 134.º da P.I.).

S. PORTANTO, Factualidade coincidente, que fundamenta a acção!

T. Conforme bem se denota da factualidade provada e não provada da sentença de 01/07/2020, proferida no proc. n.o 281/19.6T9STB, a matéria objeto dos presentes autos – ou, pelo menos, uma parte - foi ali considerada e culminou com a Absolvição do Pedido.

U. A absolvição do pedido implica a prévia apreciação do mérito da causa – como sucedeu no proc. n.º 281/19.6T9STB –, o que implica a formação de caso julgado material dentro dos factos que constituem a causa de pedir (arts. 5º, n.º 1, 580º, 581º, 619º e 620ºdo Código de Processo Civil), impedindo a sua repetição.

V. Neste ensejo, não podem os Autores vir exercer o mesmo direito, derivado da mesma factualidade, submetendo à apreciação do Tribunal questões já antes debatidas e definitivamente resolvidas;

W. Razão pela qual se encontra verificada a excepção de caso julgado referente à matéria objecto de apreciação e decisão no proc. n.º 281/19.6T9STB, igualmente fundamentadora da causa de pedir nesta acção.

O requerimento de interposição do recurso foi indeferido na parte em que este foi interposto em nome dos autores FC e RC, por a autora SC não os representar em juízo, e admitido na parte restante.

*

Questão a decidir: Se se verifica a excepção de caso julgado nos termos em que o tribunal a quo decidiu.

*

O n.º 1 do artigo 580.º do Código de Processo Civil (CPC) estabelece que as excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado. O n.º 2 do mesmo artigo estabelece que tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.

O artigo 581.º do CPC estabelece que se repete a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (n.º 1); que há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (n.º 2); que há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (n.º 3); e que há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico (n.º 4). O n.º 4 estabelece ainda que, nas acções reais, a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real, e que, nas acções constitutivas e de anulação, a causa de pedir é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.

O artigo 84.º do Código de Processo Penal (CPP) estabelece que a decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil, constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis.

O tribunal a quo julgou verificada a excepção de caso julgado relativamente à seguinte matéria:

- Ao invocado controlo, pelo recorrido, da economia doméstica e seus reflexos na estabilidade da vida conjugal, assim como da vida da recorrente (artigos 20.º a 48.º, 56.º a 63.º e 113.º a 121.º da petição inicial);

- Às legadas agressões físicas e verbais de que a recorrente foi vítima, na presença dos filhos, e clima tenso que se vivia no seio do agregado familiar (artigos 88.º a 91.º da petição inicial);

- Às alegadas agressões físicas aos autores FC e RC (artigos 64.º a 86.º e 97.º a 110.º da petição inicial);

- À invocada perturbação emocional causada à recorrente e aos autores FC e RC (artigos 128.º a 134.º da P.I.).

A argumentação apresentada pela recorrente é, sucintamente, a seguinte:

- Resulta da análise da sentença proferida no processo criminal n.º 281/19.6T9STB (doravante “sentença”) e da petição inicial destes autos (doravante “petição inicial”) que não há identidade dos pedidos e das causas de pedir nos dois processos;

- Diz-se na sentença que a alegação feita no pedido de indemnização civil era, ou conclusiva, ou fundada em factualidade que não se provou; referindo a vinculação do tribunal ao princípio do pedido, concluiu-se não se poder atribuir indemnização a respeito de pedido não formulado; sendo assim, não pode existir identidade entre o pedido formulado nestes autos e um pedido que, de acordo com aquela sentença, não foi formulado;

- Na sentença, apesar de se ter reconhecido que os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana se verificaram, entendeu-se que os demandantes não reclamaram “qualquer montante que se adstrinja a dano não patrimonial determinado pelo demandado na parte em que a conduta deste se consolidou”, antes tendo fundado “a sua pretensão indemnizatória (…) em alegação de natureza conclusiva ou em factualidade que não se provou”;

- Os factos alegados na petição inicial estão intimamente ligados com aqueles que foram julgados provados na sentença, não havendo, por isso, identidade entre estes últimos e os alegados no pedido de indemnização civil, os quais foram julgados não provados ou qualificados como conclusivos;

- Pelo que só poderá concluir-se que os factos alegados no pedido de indemnização civil (dos quais não se extraíram quaisquer efeitos jurídicos) não correspondem aos que foram alegados na petição inicial, inexistindo, portanto, identidade de causas de pedir;

- A decisão recorrida ofende a autoridade de caso julgado resultante da sentença, na medida em que, nesta, se decidiu que o pedido de indemnização civil não continha, nem alegação fáctica, nem um pedido concretamente formulado;

- A decisão recorrida deixa a recorrente e os autores FC e RC perante uma situação de denegação de justiça e de impedimento de acesso à tutela jurisdicional efetiva, o que viola o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

Esta argumentação assenta num equívoco: o de que, para aquilatar da verificação da excepção de caso julgado, nomeadamente da identidade entre o pedido e a causa de pedir da acção onde aquela excepção se suscita e o pedido e a causa de pedir daquela em que já foi proferida sentença transitada em julgado, a comparação deve ser feita entre a petição inicial daquela acção e esta sentença. É a esta operação que a recorrente propõe que o tribunal ad quem proceda e é com fundamento nos resultados que a mesma operação, por si feita, alegadamente lhe proporcionou, que desenvolve a sua argumentação. Por se basear em tal equívoco, toda essa argumentação se encontra, logo à partida, inquinada.

A comparação a que se tem de proceder para aquilatar da verificação da excepção de caso julgado é entre a petição inicial desta acção e o correspondente articulado, apresentado no processo criminal, mediante o qual foi deduzido pedido de indemnização civil. Isto porque foi nestas duas peças processuais que os autores, além de se identificarem, alegaram os factos que constituem as causas de pedir e formularam os pedidos, em cumprimento do disposto no artigo 552.º, n.º 1, als. a), d) e e) do CPC, aplicável ao pedido de indemnização civil deduzido no processo criminal ex vi artigo 4.º do CPP. Não faz sentido apurar quais foram o pedido e a causa de pedir no processo criminal por intermédio da sentença aí proferida, quando os mesmos resultam directamente da petição inicial. Ou seja, não há razão válida para deixar de ir à fonte, sem a mediação, absolutamente desnecessária, de outra peça processual, máxime da sentença. Mais, se a sentença criminal padecer de vícios como a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, als. a) e c), do CPP, ou a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, al. a), do mesmo código – vícios esses que, a existirem, se consolidaram, uma vez que já se verificou o trânsito em julgado –, poderá proporcionar uma imagem distorcida do objecto do processo, nomeadamente da vertente cível deste.

Cotejando a petição inicial desta acção com aquela em que foi formulado o pedido de indemnização civil no processo criminal, verificamos que a causa de pedir da primeira coincide parcialmente com a da segunda, nos exactos termos indicados na decisão recorrida. Inúmeros artigos da petição inicial desta acção reproduzem, ipsis verbis, outros tantos artigos do articulado mediante o qual o pedido de indemnização civil foi deduzido no processo criminal. Outros artigos daquela petição apenas divergem dos correspondentes artigos deste último articulado numa ou noutra palavra, substituída por sinónimo. Globalmente, é evidente a identidade dos factos alegados no articulado mediante o qual o pedido de indemnização civil foi deduzido no processo criminal e a parte dos factos alegados na petição inicial desta acção relativamente aos quais o tribunal a quo considerou verificar-se a excepção de caso julgado. A exposição feita pelo tribunal a quo é muito clara, pelo que nos limitamos a transcrevê-la:

“(…) o fundamento fático do pedido cível feito no proc. n.º 281/19.6T9STB, prendeu-se, sumariamente, com:

- O invocado controlo, pelo Réu, da economia doméstica e seus reflexos na estabilidade da vida conjugal, assim como da vida da própria 1.ª Autora (arts. 1.º a 19.º e 31.º a 39.º desse pedido cível);

- Alegadas agressões físicas e verbais de que a 1.ª Autora foi vítima, na presença dos 2.º e 3.º Autores, e clima tenso que se vivia no seio do agregado familiar – em especial, discussões de 01/12/2018 e de 02/01/2019 – (arts. 20.º a 30.º do pedido cível);

- Narradas agressões físicas aos 2.ª e 3.º Autores (arts. 40.º a 55.º do pedido cível, incluindo a adesão à acusação pública);

- Invocada perturbação emocional causada à Autora (arts. 56.º a 60.º do pedido cível);

Já no âmbito da presente acção, os fundamentos fácticos dos pedidos feitos, prendem-se, sumariamente, com:

- O invocado controlo, pelo Réu, da economia doméstica e seus reflexos na estabilidade da vida conjugal, assim como da vida da própria 1.ª Autora (arts. 20.º a 48.º, 56.º a 63.º e 113.º a 121.º da P.I.);

- Alegadas agressões físicas e verbais de que a 1.ª Autora foi vítima, na presença dos 2.º e 3.º Autores, e clima tenso que se vivia no seio do agregado familiar (arts. 88.º a 91.º da P.I.);

- Narradas agressões físicas aos 2.ª e 3.º Autores (arts. 64.º a 86.º e 97.º a 110.º da P.I.);

- Invocada perturbação emocional causada aos Autores (arts. 128.º a 134.º da P.I.);”.

Portanto, cotejando a petição inicial desta acção com a do pedido de indemnização civil deduzido no processo criminal, é manifesta a identidade acabada de assinalar. A causa de pedir desta acção é, na medida acima referida, idêntica à daquele pedido. A parte em que o não é também se encontra devidamente delimitada na decisão recorrida. 

Os pedidos formulados nesta acção e no processo criminal são idênticos, ainda que a sua redacção não seja inteiramente coincidente. Em ambos os processos, é pedida a condenação do recorrido a pagar uma indemnização à recorrente e aos restantes autores, nos seguintes termos:

- Neste processo:

a) € 10.000 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela autora SC em consequência da violação dos deveres conjugais que sobre o réu impendiam, bem como em consequência da violação dos seus direitos de personalidade, acrescido de juros vencidos e vincendos desde a data da citação para a presente acção até integral pagamento;

b) € 5.877 a título de indemnização pelos danos patrimoniais causados pelo réu à autora SC, acrescido de juros vencidos e vincendos desde a data da citação para a presente acção até integral pagamento;

c) € 5.000 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela autora RC em consequência da violação dos deveres parentais que sobre o réu impendiam, bem como em consequência da violação dos seus direitos de personalidade por parte do réu, acrescido de juros vencidos e vincendos desde a data da citação para a presente acção até integral pagamento.

d) € 7.000 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo autor FC em consequência da violação dos deveres parentais que sobre o réu impendiam, bem como em consequência da violação dos seus direitos de personalidade por parte do réu, acrescido de juros vencidos e vincendos desde a data da citação para a presente acção até integral pagamento;

e) De todas despesas médicas e medicamentosas que os autores venham a incorrer, em resultado das agressões perpetradas pelo réu em relação aos autores FC e RC e da violação reiterada dos deveres conjugais e da violação dos seus direitos de personalidade quanto à autora SC, a apurar em sede de execução de sentença.

- No processo criminal:

a) € 10.000 à lesada a título de danos não patrimoniais;

b) € 2.500 ao menor FC a título de danos não patrimoniais;

c) € 2.500 à menor RC a título de danos não patrimoniais;

d) € 5.801,55 à lesada a título de danos patrimoniais, a que acrescerão os valores de honorários a ser apurados até final;

A título de ressarcimento pelos danos morais e patrimoniais que a sua conduta ilícita lhe causou, tal como custas e demais encargos legais.

Em qualquer dos processos, a recorrente e os restantes autores pedem a condenação do recorrido a pagar-lhes uma indemnização com fundamento em responsabilidade civil aquiliana, decorrente dos factos que constituem a causa de pedir.

A sentença proferida no processo criminal, já transitada em julgado, conheceu do mérito da causa, quer na vertente criminal, quer na vertente cível. Nesta última, que é a que nos interessa, a sentença absolveu o recorrido do pedido.

Sendo assim, concluímos que se verifica a excepção de caso julgado relativamente aos factos indicados na decisão recorrida, a qual não merece, pois, censura.

Não obstante a conclusão acabada de enunciar, prossigamos a análise da argumentação da recorrente, para que dúvidas não restem acerca da falta de razão desta.

A apreciação, feita na sentença proferida no processo criminal, sobre a forma como a recorrente e os restantes autores alegaram os factos que constituíam a causa de pedir e formularam o pedido na petição inicial aí apresentada, não vincula o tribunal a quo. Tal apreciação não passou de uma das operações a que o tribunal criminal procedeu com a finalidade de chegar à decisão final, nem sequer tendo dado origem a uma decisão intermédia autónoma. Teve, pois, um carácter meramente instrumental e intraprocessual, não relevando fora do processo em que teve lugar. Só a decisão final, de improcedência do pedido de indemnização civil, se impõe com força de caso julgado material, nos termos dos artigos 619.º, n.º 1, do CPC, e 84.º do CPP. Daí que, ao contrário do que a recorrente sustenta, a decisão recorrida não ofenda a autoridade de caso julgado decorrente da sentença proferida no processo criminal.

Independentemente do aspecto acabado de referir, a descrição que a recorrente faz da sentença proferida no processo criminal não a retrata fielmente. É certo que a fundamentação desta sentença, no que concerne ao pedido de indemnização civil, é insuficiente e não prima pela clareza. Apesar disso, é seguro que, na mesma sentença, não se afirmou que o pedido de indemnização civil não contivesse, nem alegação fáctica, nem um pedido concretamente formulado. Considerou-se, sim, que os aí demandantes cíveis não reclamaram “qualquer montante que se adstrinja a dano não patrimonial determinado pelo demandado na parte em que a conduta deste se consolidou”, antes tendo fundado “a sua pretensão indemnizatória (…) em alegação de natureza conclusiva ou em factualidade que não se provou (…).” Concluindo-se que, “não se descurando que o Tribunal está vinculado ao princípio do pedido, não podendo, assim, atribuir indemnização a respeito de pedido não formulado, que o pedido de indemnização cível resulta improcedente, com a consequente absolvição do arguido.”

Com isto, certamente o tribunal criminal quis dizer três coisas que podiam ter sido expressas de forma bem mais simples:

1) Os demandantes cíveis não formularam um pedido de indemnização por danos não patrimoniais que tivesse como fundamento os factos julgados provados;

2) O pedido formulado pelos demandantes cíveis tinha como fundamento, ou alegação de natureza conclusiva, ou factos que não se provaram;

3) Por estar vinculado ao princípio do pedido e atento o referido em 1) e 2), o pedido de indemnização civil teria de ser julgado improcedente, com a consequente absolvição do demandado do mesmo pedido.

Não nos compete apreciar o acerto destas asserções. Relativamente à sentença proferida pelo tribunal criminal, a nossa tarefa é meramente interpretativa. Ora, a interpretação daquela sentença leva-nos a concluir que dela não consta aquilo que a recorrente nela diz ler, ou seja, que o pedido de indemnização civil não contivesse, nem alegação fáctica, nem um pedido concretamente formulado. Pelo contrário, afirmou-se que o pedido formulado pelos demandantes cíveis tinha como fundamento, além de alegação de natureza conclusiva, factos que não se provaram. Portanto, o tribunal criminal considerou que foi formulado um pedido e que foram alegados factos. Tanto assim foi, que julgou não provados factos alegados pelos demandantes cíveis e absolveu o demandado do pedido cível, assim proferindo uma decisão de mérito também na vertente cível.

Por fim, a recorrente sustenta que a decisão recorrida a deixa perante uma situação de denegação de justiça e de impedimento de acesso à tutela jurisdicional efectiva, o que viola o artigo 20.º da Constituição.

Sem razão, mais uma vez.

Na acção cível enxertada no processo criminal, a recorrente deduziu os pedidos que quis, com os fundamentos que quis. Formulou um pedido de indemnização contra o aqui recorrido e ali arguido, tendo alegado os factos que considerou pertinentes para a sua fundamentação. O tribunal criminal apreciou esse pedido e proferiu uma decisão de mérito, julgando-o improcedente. A recorrente podia interpor recurso da sentença. Não o fez, permitindo que a mesma transitasse em julgado.

Portanto, em momento algum foi impedido o acesso da recorrente à tutela jurisdicional efectiva. Repetimos, a recorrente formulou um pedido de indemnização civil em processo criminal, perdeu e não recorreu. Foi-lhe, assim, assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos, nos termos do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição. Este direito fundamental não impõe, obviamente, a atribuição, à recorrente, de uma segunda oportunidade para obter a condenação do recorrido na indemnização a que ela considera ter direito, agora na jurisdição civil.

Concluindo, deverá julgar-se o recurso improcedente e confirmar-se a decisão recorrida.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.

*

Évora, 07.12.2023

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.ª adjunta

2.ª adjunta


sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Acórdão da Relação de Évora de 23.11.2023

Processo n.º 1610/21.8T8EVR-A.E1

Recorrente: GVN, LDA.

Recorrida: ARJ, S.A.

*

Sumário:

1 – A rectificação de um acórdão pressupõe que este omita os nomes das partes, seja omisso quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contenha erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto.

2 – Apesar de os critérios indemnizatórios especiais estabelecidos no artigo 1045.º do Código Civil terem como ponto de referência o valor da renda ou do aluguer, não decorre daquele preceito legal que, até à restituição da coisa arrendada, a pessoa obrigada a efectuá-la pague rendas ao credor da entrega. O direito deste último é a uma indemnização, não ao pagamento de rendas.

3 – Pela razão referida em 2 e porque a responsabilidade civil estabelecida no artigo 1045.º do Código Civil tem natureza contratual, o prazo de prescrição do direito a indemnização é de 20 anos, nos termos do artigo 309.º do Código Civil.

*

Ao abrigo do disposto nos artigos 614.º e 666.º, n.º 1, do CPC, a recorrente requereu a rectificação do acórdão proferido por esta Relação em 28.09.2023, que julgou o recurso improcedente, nos seguintes termos:

“1. A Recorrente interpôs recurso do tribunal de primeira instância que julgou não aplicável o prazo de prescrição de 3 anos regulado no artigo 498.º, por entender estarmos diante de uma situação em que, a existir responsabilidade da Ré, «esta emerge da relação contratual que manteve [a Ré] com a autora até 25 de dezembro de 2018, devendo ter aplicação o disposto no artigo 1045.º do Código Civil».

2. Com efeito, decide assim o tribunal de primeira instância:

«Uma vez que estamos em face de uma indemnização prevista no artigo 1045.º do Código Civil, pelo atraso na restituição da coisa, não estamos perante um caso de responsabilidade extracontratual, mas sim de natureza contratual e, consequentemente, não lhe é aplicável o prazo de prescrição de 3 anos a que alude o artigo 498.º do Código Civil».

3. Não conformada, a Ré Recorrente apelou do referido despacho ao douto Tribunal da Relação de Évora, onde expôs as razões pelas quais julgava que o pedido da Autora se encontra irremediavelmente prescrito. O que fez à luz do artigo 498.º do Código Civil, enquadrando a questão no âmbito da responsabilidade extracontratual.

4. Porém, entendeu este douto tribunal, em acórdão (ora objecto do presente requerimento de retificação), que «porque originária num contrato, a obrigação de indemnizar, a provar-se, tem um prazo prescricional de 5 anos e não de 3 anos como alega a recorrente (artº 310º/b) CC)», julgando a apelação improcedente e mantendo o despacho recorrido.

Pelo que,

5. Este acórdão, ao confirmar o referido despacho do tribunal a quo veio resolver definitivamente, sem hipótese de recurso (à luz da dupla conforme) o enquadramento da eventual responsabilidade civil da Ré, discutida nestes autos, no âmbito do esquema e quadro jurídico da responsabilidade contratual.

Sem prejuízo,

6. Se é verdade que a Ré Recorrente se encontra vencida em relação à alegada verificação do prazo prescricional do artigo 498.º do Código Civil, certo é que a motivação oferecida com o Acórdão abre a porta ao conhecimento da prescrição (parcial) do pedido da Recorrida.

7. Por outras palavras: pese embora o conteúdo decisório do douto Acórdão seja o de julgar a apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida, na sua motivação é possível encontrar argumentos e raciocínio jurídico que apontam para um prazo prescricional de 5 anos (em vez dos 3 anos alegados pela Recorrente) – o que, per se, permitirá ao tribunal a quo julgar verificada a prescrição do pedido da Autora, ainda que parcialmente.

8. É que a aplicação do prazo prescricional de 5 anos, nos termos do supracitado artigo 310.º, alínea b) do Código Civil, conduz à verificação da prescrição de uma parte substancial do pedido da Recorrida.

9. Na medida em que, peticionando a Recorrida nos presentes autos uma indemnização nos termos do 1045.º do Código Civil referente a um contrato com início em 26/11/2011 e fim em 25/12/2018 e tendo movido a respectiva acção judicial a 22 de Setembro de 2021 (com citação a 30/09/2021), é forçoso constatar a prescrição parcial do pedido da Recorrida.

10. De tal modo que, apenas o período compreendido entre 30/09/2016 e 25/12/2018 (26 meses) não se encontra prescrito ao abrigo do artigo 310.º, alínea b) do Código Civil.

Ora,

11. É indiscutível, com a certeza cristalizada no artigo 303.º do Código Civil, que o tribunal não pode suprir, ex officio, a prescrição. Esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, por aquele a quem aproveita.

12. No entanto, não é menos certo que a Recorrente vem alegando a prescrição do pedido da Recorrida desde o momento em que foi chamada a contestar a acção que esta lhe movera, ainda que até agora com uma qualificação jurídica distinta do douto Acórdão.

Assim,

Porque omitido e necessariamente decorrente da motivação e racionalidade jurídica apresentada por este douto tribunal no Acórdão ora objecto de pedido de ratificação, vem a Recorrente pedir a retificação do Acórdão no sentido de, para além da confirmação da decisão do tribunal de primeira instância, incluir no conteúdo decisório do Acórdão a estatuição de que o prazo prescricional do pedido de indemnização do artigo 1045.º do Código Civil é de 5 anos (cfr. art. 310.º/b) CC) e não de 3 anos conforme alega a Recorrente.”

A recorrida respondeu, pugnando pelo indeferimento do pedido de rectificação.

*

A recorrente pretende, em síntese, que passe a constar do dispositivo do acórdão que julgou o recurso improcedente, além da confirmação da decisão recorrida, “a estatuição de que o prazo prescricional do pedido de indemnização do artigo 1045.º do Código Civil é de 5 anos (cfr. art. 310.º/b) CC) e não de 3 anos conforme alega a Recorrente.” A finalidade deste aditamento seria abrir a porta ao conhecimento da prescrição parcial do pedido da recorrida pelo tribunal a quo.

Esta pretensão vai muito além de uma mera rectificação do acórdão e é, a todos os títulos, manifestamente infundada.

O artigo 614.º, n.º 1, do CPC, estabelece que, se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.

O artigo 666.º do CPC estabelece, na parte que nos interessa, que é aplicável à 2.ª instância o que se acha disposto nos artigos 613.º a 617.º (n.º 1) e que a rectificação do acórdão é decidida em conferência (n.º 2).

Resulta destas normas que a rectificação do acórdão que julgou o recurso improcedente pressupõe a verificação de uma das seguintes hipóteses:

1 – O acórdão omitir o nome das partes;

2 – O acórdão ser omisso quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º;

3 – O acórdão conter erros de escrita ou de cálculo;

4 – O acórdão conter quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto.

Nenhuma destas hipóteses se verifica no acórdão cuja rectificação se pretende e não é com fundamento em qualquer delas que a recorrente requer aquela rectificação. O colectivo concluiu pela improcedência do recurso e foi essa a decisão que consignou no dispositivo do acórdão. Não houve qualquer erro de escrita ou de cálculo, nem alguma inexactidão devida a outra omissão ou lapso manifesto. Da leitura do acórdão não resulta qualquer divergência entre o que foi decidido e o que foi escrito, que careça de rectificação.

Aquilo que a recorrente pretende nada tem a ver com uma rectificação do acórdão. Numa primeira abordagem, pareceria que a recorrente pretende uma alteração da decisão, a qual, de improcedência do recurso, passaria a ser de parcial procedência do recurso. Porém, na realidade, aquilo que a recorrente pretende é que, mantendo-se a decisão de improcedência do recurso, passe a constar do dispositivo do acórdão um trecho da fundamentação deste que, no seu entendimento, determina a parcial prescrição do direito invocado pela recorrida. Para quê? Para permitir, à recorrente, voltar a suscitar a questão da prescrição no tribunal a quo, tendo como referência o prazo que, naquele trecho, se diz ser aplicável.

A mera constatação de que estamos fora do âmbito de aplicação do artigo 614.º, n.º 1, do CPC, é suficiente para determinar o indeferimento do requerimento de rectificação do acórdão. Não obstante, diremos ainda o que se segue.

Ainda que tivesse sido requerida a alteração do dispositivo, no sentido de transformar a decisão de improcedência numa decisão de parcial procedência do recurso, a pretensão da recorrente não poderia proceder.

Não porque a lei vede a rectificação do dispositivo da sentença ou do acórdão. Se o lapso tiver ocorrido no dispositivo, este poderá ser rectificado, como qualquer outra parte da sentença ou do acórdão. Porém, para que isso seja possível, terá de se concluir, com base na fundamentação, noutros segmentos do dispositivo (como o respeitante à responsabilidade pelas custas) e/ou noutras peças processuais, que, na redacção do dispositivo, o juiz cometeu um lapso material, escrevendo, por exemplo, a palavra “procedente” quando tudo indica que queria escrever a palavra “improcedente”. Numa hipótese desta natureza, é “lícito ao juiz ajustar, mediante rectificação, a vontade declarada à vontade real.”[1] Note-se que esta hipótese não se confunde com a nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC (oposição entre os fundamentos e a decisão), que pressupõe a existência de um vício lógico e não de um mero erro de escrita[2].

A pretensão da recorrente não poderia proceder porque nada no acórdão permite concluir que o colectivo pretendesse decidir coisa diversa da improcedência do recurso. Toda a fundamentação do acórdão antecipa esse desfecho. No dispositivo, o relator escreveu aquilo que pretendia. Logo, a alteração do dispositivo no sentido de julgar o recurso parcialmente procedente constituiria, não uma rectificação de um lapso de escrita, mas sim uma alteração do julgado. Tal alteração pressuporia uma reapreciação do aspecto jurídico da causa, que o artigo 614.º, n.º 1, do CPC, não legitima.

Todavia, não é a transformação da decisão de improcedência numa decisão de parcial procedência do recurso que a recorrente pretende, mas sim a manutenção da decisão de improcedência com o aditamento de que o prazo de prescrição do direito invocado pela recorrida é de 5 anos, nos termos do artigo 310.º, al. b), do Código Civil, e não de 3 anos. Isto apesar de a recorrente entender que, sendo o prazo de prescrição de 5 anos, parte do direito invocado pela recorrida estaria prescrito.

Esta pretensão é absurda, pois, se fosse atendida e o entendimento da recorrente sobre o efeito de um prazo de prescrição de 5 anos sobre o direito invocado pela recorrida fosse correcto, o dispositivo do acórdão tornar-se-ia contraditório. Estar-se-ia a decidir, em simultâneo, que o recurso improcede e que o direito invocado pela recorrida se encontra parcialmente prescrito. Ou seja, que o recurso improcede apesar de dever ser julgado parcialmente procedente. É óbvio que isto não é possível. A ser admissível uma reapreciação da questão da prescrição e acolhendo-se a tese da recorrente sobre o efeito de um prazo de prescrição de 5 anos sobre o direito invocado pela recorrida, a decisão de improcedência teria de se transformar numa decisão de parcial procedência.

A finalidade indicada pela recorrente para a alteração que pretende está na linha da pretensão que acabámos de analisar. Essa finalidade seria abrir a porta ao conhecimento da prescrição parcial do direito invocado pela recorrida por parte do tribunal a quo. Ou seja, o tribunal ad quem consignaria, no dispositivo do acórdão, que o recurso improcedia e que o prazo de prescrição era de 5 anos; em seguida, a recorrente suscitaria novamente a questão da prescrição no tribunal a quo, tendo em vista que este declarasse o direito invocado pela recorrida parcialmente prescrito. É evidente a impossibilidade legal de isto acontecer. A questão da prescrição ficou definitivamente decidida no acórdão que julgou o recurso improcedente, nada mais podendo ser decidido sobre essa matéria.

Importa notar, por outro lado, que a recorrida pretende que a recorrente a indemnize por danos que alega ter sofrido, não que lhe pague rendas em atraso. O artigo 1045.º do Código Civil prevê a indemnização pelo atraso na restituição da coisa locada e estabelece critérios indemnizatórios especiais. Apesar de tais critérios terem como ponto de referência o valor da renda ou do aluguer, não decorre daquele preceito legal que, até à restituição da coisa arrendada, a pessoa obrigada a efectuá-la pague rendas ao credor da entrega. O direito deste último é a uma indemnização, não ao pagamento de rendas.

Daqui resultam dois corolários.

O primeiro é o de que o direito invocado pela recorrida é unitário. Consequentemente, a contagem do prazo de prescrição só se iniciou no momento em que cessou a produção do dano na esfera jurídica da recorrida que gerou esse direito. Daí que, ainda que o prazo de prescrição fosse de 5 anos, não se encontrasse expirado à data da citação da recorrida.

O segundo é o de que, a corrigir-se o acórdão que julgou o recurso improcedente, seria na parte em que nele se afirma que o prazo de prescrição do direito invocado pela recorrida é de 5 anos. O prazo de prescrição é de 20 anos, nos termos do artigo 309.º do Código Civil, e não de 5 anos. É a fundamentação do acórdão que contém um erro de direito, que não se repercutiu no acerto da decisão. Esta última está correcta.

Concluímos, assim, que o pedido de rectificação do acórdão que decidiu o recurso é manifestamente improcedente, devendo ser indeferido.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, indeferir o pedido de rectificação do acórdão que julgou o recurso improcedente.

Custas do incidente a cargo da recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça (Regulamento das Custas Processuais, artigo 7.º, n.º 4).

Notifique.

*

Évora, 23.11.2023

Vítor Sequinho dos Santos

(relator, na sequência da redistribuição do processo decorrente da jubilação do relator do acórdão que julgou o recurso improcedente)

1.ª adjunta

2.ª adjunta



[1] JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume V (reimpressão), Coimbra Editora, 1981, p. 130.

[2] Idem, p. 131.

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

Processo n.º 135/22.9T8BNV.E1 * Sumário: 1 – Um pedido de demarcação deve fundar-se na existência de uma situação de incerteza sobre a...