Processo n.º 105/23.0T8VRS.E1
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Sumário:
1 – A nulidade da sentença
prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC verifica-se, não só na
hipótese de absoluta
ausência de fundamentação, de facto ou de direito, mas também na de tal
fundamentação ser de tal modo incompleta, que não permita a percepção das
razões de facto e de direito que determinaram o tribunal a decidir como
decidiu.
2 – Se o saneador-sentença tiver conhecido uma
questão sem considerar um facto que devesse ter considerado, nomeadamente por
não ter havido oportunidade para sobre ele se produzir prova, ter-se-á
verificado um erro de julgamento, mas não a nulidade prevista na 1.ª parte da d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
3 – O erro de julgamento, de facto ou de direito,
não gera a nulidade da sentença.
4 – Atento o princípio da limitação dos actos,
consagrado no artigo 130.º do CPC, a reapreciação da prova, pelo tribunal de
2.ª instância, com vista a sindicar o acerto da decisão do tribunal de 1.ª
instância sobre determinado ponto da matéria de facto, não deverá ter lugar
quando for, logo à partida, evidente que a alteração pretendida pelo recorrente
não influiria na decisão do recurso.
5 – A prolação de saneador-sentença, nos
termos do artigo 595.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil, tem
carácter excepcional, só devendo ter lugar se, logo nessa fase, o processo
contiver todos os elementos que possibilitem a tomada de decisão de acordo com as
várias soluções jurídicas plausíveis. Mas, se o processo contiver tais
elementos, o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador constitui um
dever.
6 – Até à entrada em vigor do NRAU, a
posição contratual do arrendatário não se comunicava ao cônjuge deste, qualquer
que fosse o regime de bens do casamento.
7 – Tendo o primitivo arrendatário
morrido em 24.12.2005, no estado de casado, a sua posição em contrato de
arrendamento habitacional transmitiu-se para o seu cônjuge, nos termos do
artigo 85.º, n.º 1, al. a), do RAU.
8 – Daí que o cônjuge beneficiário da
transmissão referida em 7, falecido em 21.05.2022, não possa ser qualificado
como primitivo arrendatário para o efeito previsto no artigo 57.º, n.º 1, al.
e), do NRAU, na redacção em vigor naquela data.
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Autores: António Ferreira e
mulher, Sónia Ferreira, Carlos Ferreira, Idalina Ferreira, Célia Ferreira, Laura
Ferreira e Rui Ferreira.
Réu: Alfredo Cerqueira.
Pedidos:
1 – Ser reconhecido o direito de
propriedade dos autores, em regime de compropriedade, sobre o imóvel descrito e
melhor identificado no artigo 1.º da petição inicial, ocupado e detido
abusivamente pelo réu;
2 – Ser reconhecida e declarada a
caducidade do contrato de arrendamento celebrado a 28.02.1962, por óbito do
cônjuge do primitivo arrendatário ocorrido a 21.05.2022;
3 – Ser o réu condenado a restituir
imediatamente o imóvel que detém, livre de pessoas e bens, descrito no artigo
1.º por cessação do contrato de arrendamento, por caducidade, entrega que já
deveria ter ocorrido até 21 de Novembro de 2022;
4 – Ser o réu condenado a pagar o valor
de € 101,30 mensal, desde 01.06.2022 até entrega efectiva do imóvel, como
compensação pelo seu uso e fruição.
Sentença: Julgou a acção
totalmente procedente. Consequentemente:
a) Declarou extinto o contrato de
arrendamento objecto dos presentes autos, celebrado em 28.02.1962, condenando o
réu a entregar imediatamente, aos autores, livre e desocupado de pessoas e
bens, o prédio urbano, térreo, afecto para habitação, de um piso, com 6
divisões, sito na Praia de Monte Gordo, Rua (…), n.º (…), da freguesia de Monte
Gordo, concelho de Vila Real de Santo António, inscrito na matriz sob o artigo
n.º (…), anterior artigo de matriz n.º (…) da anterior freguesia de Vila Real
de Santo António, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Real de
Santo António sob o n.º (…) da freguesia de Monte Gordo.
b) Condenou o réu a pagar, aos autores,
a título de indemnização pelo uso do referido imóvel, o montante equivalente ao
valor da contrapartida monetária mensal acordada pelos outorgantes do contrato
de arrendamento agora extinto, à razão de 101,30 €/mês, desde a data da sua
extinção (21.05.2022) até à sua efectiva entrega.
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O réu interpôs recurso de
apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:
a) A douta decisão recorrida, salvo
melhor opinião, não apreciou nem decidiu de forma correta a matéria de facto
alegada pelas partes e em especial os factos alegados pelo recorrente em sede
da contestação que apresentou.
b) A douta decisão, ao decidir de forma
errada e incompleta os factos alegados e trazidos pelas partes em juízo para
apreciação e julgamento, fez também, em consequência errada interpretação e
aplicação do direito aos factos alegados e constantes dos autos.
c) A douta decisão recorrida, entendeu,
mal em nossa opinião, ter condições para decidir os autos, sem proceder à
apreciação em sede de produção de prova de todos os elementos probatórios
indicados pelas partes, designadamente, ao não permitir a produção de prova
testemunhal, da prova por declarações e depoimentos de parte tql como
requeridos e indicados pelo Réu, aqui recorrente.
d) A ausência da produção de prova
determinou que a douta decisão recorrida, com a sentença proferida, não
decidisse corretamente a matéria de facto dada por provada e por não provada.
e) Ao não realizar a audiência final,
com a consequente produção de prova, o tribunal decidiu a presente causa, em
prejuízo do Réu, aqui recorrente, sem atender, sem proceder à apreciação dos
factos por este alegados, que entendeu nem sequer considerar na decisão
proferida.
f) A douta decisão recorrida, não
apreciou nem julgou factos essenciais para a decisão da causa submetida à sua
apreciação, em prejuízo dos direitos do recorrente, em violação da lei e dos
direitos do recorrente, decidindo erradamente e mal as questões que tinha que
apreciar nos autos.
g) O tribunal recorrido ao não realizar
a audiência final, proferindo sentença, impediu assim que fosse produzida prova
essencial tal como indicada pelo aqui recorrente, o que salvo o devido respeito
por opinião diferente, torna a douta sentença recorrida nula, nos termos e para
os efeitos a que alude o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 615.º
do C.P.C., que o recorrente desde já se requer que seja apreciada e declarada
com todos os efeitos dai decorrentes.
h) Ao não realizar a audiência final,
injustificadamente, e a consequente não produção de prova arrolada pelo réu e
pelos autores nos autos, a decisão recorrida, não apreciou convenientemente
todos os factos alegados e, erradamente, não considerou como deveria factos
essenciais alegados pelos autores, que a serem tidos em consideração,
determinaria que a sentença a proferir fosse outra que não a sentença recorrida.
Pois,
i) A douta sentença recorrida, não
respondeu e também nem apreciou corretamente os factos alegados pelo reu em
articulados 16.; 17.; 18.; e seguintes da sua contestação, como poderia e
deveria ter apreciado por tal facto ter sido alegado pelos recorridos em sede
de sua contestação.
j) Em rigor a douta decisão não
considerou ou sequer apreciou o alegado pelo recorrente, no que respeita aos
factos alegados de que após óbito de seu pai em 24.12.2005, designadamente se:
“16.
Em rigor, dir-se-á que, em 24.12.2005, data do falecimento de Pedro Cerqueira, sobreviveu-lhe
a esposa Ana Cerqueira, com que estava caso sob o regime da comunhão de adquiridos,
e os dois filhos, tendo todos desde 01 de março de 1962, residência habitual e permanente
no locado que corresponde ao imóvel identificado na PI dos Autores. – Doc. n.º
1 e Doc. n.º 2 ambos da P.I dos AA.
17.
Dessa forma, Ana Cerqueira, passou após 24-12-2005, a ser reconhecida e aceite
por todos os AA., como arrendatária,
18.
Sendo eu nesse sentido, os AA., passaram a emitir os competentes recibos
mensais referentes ao pagamento da renda em nome de Ana Cerqueira. – Doc. n.º 6
e Doc. n.º 7 – juntos à PI dos AA.”
k) A douta decisão ao não apreciar e
decidir os factos alegados O Recorrente, alegou em articulados 20. a 26. e em
articulados 45. a 50. todos da sua contestação e que o recorrente tencionava
provar em audiência final, de que após o óbito de seu pai, em 24-12-2005, O
recorrente e a sua falecida mãe Ana Cerqueira passará a residir no locado propriedade
dos AA., ao abrigo de uma novo contrato que se produziu de forma verbal entre
esta e os AA., e não a título de qualquer transmissão do arrendamento de contrato
anterior, pois, a regra como alegou o recorrente em 24. Da sua contestação era de
que: “24. Esse mesmo diploma legal, que
vigorava à data do óbito de Pedro Cerqueira, em 24-12-2005, tinha como regra a
não transmissibilidade do arrendamento para o cônjuge.”, e articulado em “25. E apesar de se considerar durante mais
de 44 anos que desde 28-02-1962 até ao dia 27-06-2006 (NRAU) que o direito do
arrendatário não se comunicava ao cônjuge.” sendo que por tal facto, a
permanência de sua mulher (Ana Cerqueira – mãe do recorrente) no locado e dos
filhos, incluindo o aqui recorrente, se devia a novo contrato de arrendamento
verbalmente celebrado entre estes e os AA. e não a qualquer uma
transmissibilidade entre cônjuges do anterior contrato de 1962.
l) O tribunal recorrido, com a douta
decisão recorrida, por um lado, ao não realizar a audiência final, impedindo a
produção de prova, também não apreciou como devia e podia os factos alegados em
51. a 53. da contestação do recorrente, parcialmente provados, e,
consequentemente errou no julgamento da matéria de facto.
m) A douta decisão recorrida, salvo o
devido respeito, bem sabia ter de apreciar, como alegado pelo Recorrente, se
após 24-12-2005, entre a falecida Ana Cerqueira e os AA., foi ou não celebrado
um contrato de arrendamento verbal, destinto do contrato anteriormente
celebrado em 1962, como é alegado pelo recorrente.
n) A douta sentença recorrida, em
violação da lei e em prejuízo dos direitos do recorrente, decidiu erradamente a
matéria de facto provada e não provada, não apreciando todas as questões
trazidas pelas partes a julgamento e consequentemente, não apreciou factos
essenciais para a boa decisão da causa e fez errada aplicação o direito aos
factos alegados e provados.
o) A douta decisão recorrida, ignorou
por completo os factos alegados pelo recorrente em sede de sua contestação, não
os considerou, em violação do direito, e em erro clamoroso de julgamento, o
que, salvo o devido respeito, torna nula a douta decisão recorrida.
p) E deveria a douta decisão recorrida,
ter decidido em sentido contrário ao que decidiu, designadamente, deveria em
concreto ter absolvido o recorrente do peticionado pelos AA. e ter em
contrário, decidido a manutenção do arrendamento na pessoa do recorrente por
ter direito à transmissão do arrendamento em vigor.
q) Em rigor, a douta decisão recorrida
fez uma vez mais uma errada interpretação dos factos aos quais foi chamada a
decidir e a pronunciar-se, porque não equacionou nem considerou ter que
decidir, e dessa forma não decidiu, nem apreciou, os factos alegados pelo
recorrente em sede de sua contestação, designadamente, se passou a existir após
24-12-2005, entre os AA. e a falecida mãe do recorrente um novo contrato de
arrendamento verbal, e se esse contrato se transmitiu ao recorrente após a sua
morte.
r) Assim a douta decisão recorrida não
fez apreciação das questões de direito e de facto que tinha que decidir e
apreciar, o que determina a sua nulidade.
s) Contudo a douta decisão recorrida,
fez errada interpretação dos factos, quando decidiu o ponto 13. dos factos
provados, pois, não foi o Recorrente o autor de tal missiva, que remeteu tal
missiva aos AA. e não foi o recorrente, aqui Réu, Alfredo Cerqueira, foi isso
sim, como resulta do cabeçalho da própria missiva que constitui o Doc. n.º 6
junto pelos AA. à sua Petição Inicial, o seu irmão, Sr. Óscar Cerqueira.
t) Facto provado em ponto 13. Da douta
decisão recorrida, que atento ao que se disse atrás, resulta mal e erradamente
julgado, em contrário aos documentos – Doc. n.º 6 – da PI dos AA., juntos aos
autos, e que determina que não tivesse sido dado por provado, como erradamente
o foi, em erro sobre a apreciação das provas documentais juntas aos autos.
u) Em rigor, estando este facto o
constante da decisão de facto dada por provada em ponto 13., dos factos
provados, erradamente julgado e apreciado, então forçoso será de concluir
também que, todos os factos que estão dependentes deste facto dados erradamente
por provado estão também apreciados em erro, sendo o caso dos factos dados por
provados em 14. A 20. Dos factos dados por provados. e em violação de lei.
v) Os factos dados por provados e
constantes dos pontos 14. A 20 dos factos dados por provados na douta decisão
recorrida, enfermam de erro na sua apreciação, pois, a troca de correspondência
não é com o R., aqui recorrente, Alfredo Cerqueira, mas sim com o seu irmão, Óscar
Cerqueira.
w) E de facto, esse mesmo erro de
julgamento da matéria de facto, em confusão da pessoa do Recorrente e Réu na
ação, por parte da douta decisão recorrida, determina erro de julgamento dessa
mesma decisão de facto.
x) O que irremediavelmente, conduz a
erro na apreciação de tais elementos probatório e consequentemente em erro de
julgamento da matéria de facto, erro esse, com influência na douta decisão
recorrida.
y) Erro de julgamento dos elementos
probatórios e dos factos de que padece a douta decisão recorrida que faz a
aplicação do direito aos factos dados erradamente por provados, em rigor,
determina a ausência de fundamentação e de motivação da matéria de facto, o que
salvo o devido respeito, determina a nulidade da douta sentença recorrida por
erro de julgamento e violação de lei.
z) No que se reporta à análise da
questão de direito, também salvo o devido respeito, não andou bem a douta
decisão recorrida pois, a douta sentença recorrida, apenas, analisa a questão
do ponto de vista do direito à transmissibilidade do contrato de arrendamento
inicial de 1962, para a mãe do recorrente e posteriormente para o recorrente, o
que faz em nossa opinião mal e infundadamente, tudo porque,
aa) O recorrente, em sede de
contestação, alegou factos que implicavam, uma interpretação para apreciação de
eventual aplicação de outras regras e normas legais, que a douta decisão,
erradamente, ao não considerar, como podia e deveria ter considerado, em face
aos factos alegados pelo recorrente, que após 24-12-2005, Ana Cerqueira, mãe do
recorrente, celebrou com os AA., um novo arrendamento verbal, sendo nesse mesmo
contrato arrendatária primitiva, tal “inquinou” a aplicação do direito pela
douta decisão recorrida, que a não considera nessa qualidade por partir da
errada apreciação da matéria de facto de que esta (Ana Cerqueira) detinha o
contrato de arrendamento por transmissão do seu cônjuge., o que implica o
culminar de uma decisão compreendida num raciocínio premeditado de que ao
Recorrente, já não assiste direito ao arrendamento por não o receber do
primitivo arrendatário seu pai.
bb) O que apenas ocorre, salvo o devido
respeito por opinião contrária, atenta a falta de produção da prova, em sede de
audiência final, que não se realizou, com o consequente erro de julgamento da
matéria de facto, e conduziu necessariamente a que o tribunal errasse também na
aplicabilidade do direito, por nem sequer apreciar, como lhe havia sido pedido,
da existência de um contrato verbal novo estabelecido entre os AA. e a falecida
Ana Cerqueira, com inicio após 24-12-2005., e a sua consequente transmissão
para o aqui recorrente, o que resultou em errada aplicação do direito por violação
da lei, o que conduz à nulidade da decisão.
cc) A douta decisão recorrida fez errada
aplicação do direito pois apenas considerou essa solução jurídica, da visão do
tribunal, desprendida dos factos alegados pelo recorrente, e por referência
apenas aos factos erradamente e insuficientemente dados por provados, por
ausência de produção de prova em sede de audiência final que não se realizou. E
por isso, julgou e aplicou mal o direito e decidiu em erro.
dd) Ora salvo o devido respeito por
diferente opinião, se tivesse sido produzida prova como peticionado em sede de
contestação, como requerido pelo recorrente, e tivesse a douta decisão
recorrida apreciado de forma correta a prova documental junta aos autos, a
decisão a proferir teria forçosamente de ser distinta, e desta forma,
ee) Não pode salvo o devido respeito por
opinião contrária, por erro de apreciação da matéria de facto e
consequentemente errada aplicação do direito a esses mesmos factos erradamente
julgados, não pode o recorrente concordar com a douta decisão recorrida e desta
forma, requer que seja a mesma declarada nula por violação de lei, com todos os
efeitos dai decorrentes.
ff) A douta decisão ao não apreciar e
julgar todos os factos alegados pelo recorrente, impediu a descoberta da
verdade material, e resultou em ser uma decisão materialmente injusta e
contrária à verdade.
gg) A douta decisão recorrida ao não
apreciar e julgar todos os factos alegados pelo recorrente, produziu uma
decisão, não fundamentada e deficientemente motivada, que é consequentemente
contrária ao direito e viola direitos liberdades e garantias do recorrente.
hh) A douta decisão recorrida ao não
apreciar e julgar todos os factos alegados pelo recorrente, produziu uma
decisão nula.
ii) Razão pela qual não pode o
recorrente concordar com a douta decisão recorrida, pretendendo que a mesma
seja declarada nula e de nenhum efeito ou caso assim se não entenda,
jj) Seja a douta decisão recorrida
revogada e consequentemente seja substituída por outra que em função do pedido
e contestação apresentado nos autos pelo recorrente, faça a apreciação de todos
os factos alegados pelo recorrente e que faça a correta interpretação da prova
produzida e a produzir em sede de audiência final, e que julgue e aplique o
direito em função da prova produzida e a produzir nos autos.
Os recorridos apresentaram
contra-alegações, com as seguintes conclusões:
1 – A sentença proferida pelo tribunal
“a quo” não merece qualquer reparo ou censura, fazendo uma brilhante e correcta
apreciação da matéria de facto dada como provada, atento os factos alegados
pelos AA., não impugnados pelo R., aqui Apelante, e, bem assim, a prova
documental junta aos autos não impugnada.
2 – Pela leitura das suas alegações e
conclusões de recurso, este incide sobre apreciação da matéria de facto dada
como provada e aplicação do direito.
3 – Quanto à matéria de facto, defende o
Apelante que a dispensa de realização de audiência de julgamento, passando-se
de imediato, após articulados à decisão de mérito da causa no despacho
saneador, foi determinante para o erro na apreciação e decisão da matéria de
facto, e como tal deveria ter havido lugar a produção de prova.
4 – Findos os articulados, foi proferido
despacho em 31/05/2023 com a Ref: 128422108 notificado às partes:
“Preparava-se
este Tribunal para proferir despacho saneador, com dispensa de realização de
audiência prévia, nos termos do art. 593º, n.º 1, do CPC, quando constatou, da
leitura atenta dos articulados, que a discussão em causa nos presentes autos se
resume a questões de direito. Ou seja, as partes mostram-se consentâneas quanto
à matéria de facto apresentada, simplesmente discordam na interpretação
jurídica que cada uma faz da mesma. Nessa medida, entende este Tribunal que os
elementos constantes do processo facultam a apreciação imediata da viabilidade
ou não da presente acção declarativa, bem como do conhecimento imediato do
mérito da causa, sem necessidade de produção de prova, de acordo com o art.
595º, n.º 1, al. b), do CPC. Assim, e antes de mais, em respeito pelo princípio
do contraditório previsto no art. 3º, n.º 3, do CPC, determino que se
notifiquem as partes para, querendo, se pronunciarem, no prazo de 10 dias, bem
como, querendo, apresentarem as suas alegações de direito por escrito.”
5 – Notificado deste despacho o Apelante
nada veio dizer ao processo, mantendo-se em silêncio, o que denuncia estar de
acordo com a posição da M.ª Juiz “a quo” na apreciação que expôs no seu
despacho que precede, isto é, de estar em condições de decidir do mérito da
causa, com dispensa de audiência de julgamento.
6 – Esta seria a altura processualmente
adequada para o Apelante se opor à dispensa da realização de audiência de
julgamento, e nesse sentido, se assim era o seu entendimento pugnar pela
necessidade de produção de prova.
7 – Ficando em silêncio, o Apelante
conformou-se e aceitou o entendimento constante do despacho, de que haveria
condições para, de imediato conhecer do mérito da causa.
8 – Sendo reprovável e desrespeitoso,
vir agora em sede de alegações de recurso invocar que andou mal o tribunal “a
quo” ao ter dispensado a realização da audiência de julgamento, alegando que
tal omissão interferiu de forma decisiva na decisão proferida, designadamente
da matéria de facto que veio a ser dada como provada e
9 – Concretamente invoca o Apelante erro
na apreciação da matéria de facto dada como provada em consequência da não
realização de audiência de julgamento, os factos por si alegados na sua
contestação art.ºs 16, 17º, 18º, 20º a 26º, 45º a 50ª, 51º a 53º – Ver
alegações a fls. 4 e 5, sendo tais factos, na sua generalidade conclusivos, questões
de direito e apreciação e interpretação da lei que o Apelante entende ser a correcta
ao caso em crise.
10 – À parte disso, defende que à data
do óbito de Pedro Cerqueira, primitivo arrendatário, ocorrido a 24/12/2005,
terá sido alegadamente celebrado um novo contrato de arrendamento, verbal, com
a viúva deste que permaneceu sempre no imóvel.
11 – Ou seja, na versão do Apelante não
estaríamos perante uma transmissão de arrendamento do primitivo arrendatário
para o cônjuge sobrevivo aquando da morte daquele em 24/12/2005, mas sim,
perante um novo contrato de arrendamento celebrado com Ana Cerqueira e como tal
o mesmo seria à data da morte desta, em 21/05/2022, transmissível ao seu filho.
12 – Não assiste qualquer fundamento
neste particular!
13 – Toda a prova documental existente
no processo foi apresentada pelos Apelados e é constituída por 22 documentos
juntos com a sua PI, documentos estes não impugnados pelo Apelante, e aliás fez
“seus” os mesmos documentos, todos eles, como prova dos factos alegados na sua
contestação.
14 – Contestação - meios de prova:
“c)
Documental:
-
Todos os documentos juntos pelos AA. na sua Petição Inicial que aqui se dão integralmente
também todos por reproduzidos…”
15 – Desses documentos integram cartas
trocadas entre Apelante e Apelados na pessoa da apelada Idalina Ferreira,
documentos n.ºs 8, 9,15, 19 e 22 da PI.
16 – Destes releva o documento n.º 15
para demonstrar que o Apelante, ele próprio, admitiu sem reservas estarmos
perante um único contrato de arrendamento celebrado com o seu pai Pedro
Cerqueira, que à morte deste se transmitiu ao cônjuge sobrevivo.
17 – Nesta carta endereçada pelo
Apelante aos Apelados – Doc n.º 15 da PI – refere o seguinte:
“Ex.mos
Senhores,
Com
os nossos melhores cumprimentos, serve a presente carta para lhe comunicar que
na sequência do contrato de arrendamento celebrado em 01-03-1962, com o nosso
pai, Pedro Cerqueira, falecido a 24-12-2005, que se transmitiu em consequência
do seu óbito para a cônjuge sobrevivo, D. Ana Cerqueira, esse mesmo contrato,
por óbito da nossa mãe, ocorrido a 21 de maio de 2022, transmitiu-se para o
filho maior de ambos, Alfredo Cerqueira, solteiro, maior…, e residente no
locado sito na morada Rua (…), n.º (…), 8900 – 447 Monte Gordo …nos termos do
disposto no artigo 57º n.º 1 alínea e)do D.L. 6/2006 de 27 de Fevereiro
(NRAU)…” – 1.º
parágrafo.
18 – Mais refere:
“O
referido Alfredo Cerqueira, desde que nasceu em 30-09-1963, e atenta a data da
celebração do arrendamento, em 01-03-1962, já nasceu com a morada de sua
residência no locado e ininterruptamente, sempre viveu com os seus pais, na
morada do locado, sita em Rua (…), n.º (…) em Monte Gordo, vivendo assim,
enquanto filhos do primitivos arrendatários…” – parágrafo 3.º.
19 – Na carta do Apelante endereçada aos
Apelados, que constitui o documento n.º 22 da PI, este reitera:
“…
se atendermos ao disposto no n.º 1 alínea f)do artigo 57º (NRAU), o mesmo não
refere, nem tácita, nem expressamente que o arrendamento não se possa transmitir
para a esposa ou para o filho do primitivo arrendatário , e bem assim que essa
transmissão só possa ocorrer uma única e só vez.” – 2.º parágrafo.
“…
é do vosso inteiro e perfeito conhecimento, que à data do óbito do primitivo arrendatário
residiam no locado, a sua esposa e o filho de ambos Alfredo Cerqueira…” – 3.º parágrafo.
20 – Portanto, o próprio Apelante de
forma espontânea e instintiva, refere nas suas missivas a existência de um só
contrato de arrendamento celebrado com o seu pai, que se transmitiu à sua mãe,
cônjuge sobrevivo.
21 – Em nenhum momento, nas suas
missivas, alega a celebração de um novo contrato de arrendamento com a sua mãe
após óbito do pai, primitivo arrendatário, bem pelo contrário, é referido
expressamente por aquele:
“…na
sequência do contrato de arrendamento celebrado em 01-03-1962, com o nosso pai,
Pedro Cerqueira, falecido a 24-12-2005, que se transmitiu em consequência do
seu óbito para a cônjuge sobrevivo, D. Ana Cerqueira..,”
22 – É o próprio Apelante que é
peremptório em dizer que não houve outro contrato de arrendamento para além do
celebrado com Pedro Cerqueira em 01/03/1962 por escrito e que corresponde ao
documento n.º 4 junto com a PI, que se transmitiu à sua morte ao cônjuge
sobrevivo.
23 – Assim sendo, qual seria a
mais-valia a obter com a produção de prova inquirindo testemunhas, quando o
Apelando não tem dúvidas e afirma-o expressamente que só está em causa um único
contrato de arrendamento?
24 – A posição do Apelando neste
particular é claramente assumida por escrito nas missivas trocadas com os
Apelados sobre o contrato de arrendamento, um único celebrado em 01/03/1962 que
se transmitira à sua mãe, cônjuge sobrevivo aquando do falecimento do primitivo
arrendatário seu pai, o Apelante não deixou margens para dúvidas quanto à
certeza de que o contrato era um único e que fora esse mesmo que se transmitira
para a sua mãe.
25 – Assim, está demonstrado não
assistir qualquer razão ao Apelante quando questiona erro na decisão sobre a
matéria de facto neste particular, pugnando pela prejudicialidade de decisão
por não ter havido audiência de julgamento com a produção da demais prova
testemunhal, porquanto esta nada viria a alterar quanto a esta factualidade,
após confissão expressa do Apelante nas cartas por si endereçadas, de que
houvera transmissão do contrato de arrendamento do seu pai para a sua mãe.
26 – Suscita também o apelante má
interpretação dos factos quanto ao facto dado como provado descrito na sentença
n.º 13:
“Em
23.06.2022, o Réu enviou uma carta registada, com aviso de recepção, à 3.ª
Autora, que foi quem sempre tratou e geriu o imóvel descrito em 2),
intitulando-se cabeça de casal da Herança de Ana Cerqueira, comunicando o óbito
desta e solicitando que os recibos de renda passassem a ser emitidos em nome
de: “Ana Cerqueira – cabeça de casal da herança de NIF: 748.963.030”.
27 – Defende que errou o tribunal “a
quo” pois quem endereçou a carta de 23/06/2022 não foi o Réu aqui Apelante mas Óscar
Cerqueira irmão deste.
28 – Efectivamente a 1ª missiva é
enviada ou pelo menos assinada por este irmão do Apelante que o faz, segundo
descreve na qualidade de cabeça-de-casal por óbito de sua mãe, mas na verdade,
a carta é endereçada no interesse e em nome do Apelante.
29 – Tal lapso em nada, absolutamente
nada, melindra a apreciação da causa e aplicação do direito e consequentemente
não interfere/belisca minimamente a decisão proferida.
30 – É falso o constante no ponto 35 das
alegações, que:
“Pois
os factos dados por provados em 14. a 20 dos factos dados por provados, enfermam
de erro na sua apreciação, pois, a troca de correspondência não é com o R.,
aqui recorrente, Alfredo Cerqueira, mas sim com o seu irmão, Óscar Cerqueira.”
31 – E no ponto 39 das alegações, que:
“Ora
como atrás se disse, e resulta da motivação da matéria de facto, constante da
douta decisão recorrida que esta fez a apreciação dos documentos juntos pelos AA.
na sua P.I., contudo, não se apercebeu a douta decisão recorrida que as referidas
cartas não haviam sido remetidas nem recebidas pelo R., aqui recorrente.”
32 – Analisando e lendo as cartas
trocadas entre Apelante e Apelados, verifica-se que só a 1ª missiva de
23/06/2022 (Doc n.º 8) é que foi alegadamente enviada pelo irmão do Apelante,
mas em nome e no interesse directo deste.
33 – Todas as demais missivas de
resposta, datadas de 26/10/2022 e 21/11/2022 documentos n.ºs 15 e 22 da PI,
foram enviadas e assinadas também pelo próprio Apelante Alfredo Cerqueira.
34 – Basta ler as respectivas missivas!
35 – Concluindo, que o tribunal” a quo”
tinha todas as condições para decidir de mérito no despacho saneador como fez,
condições essas a que anuiu o Apelante ao manter-se em silêncio quando
convidado a exercer o princípio do contraditório sobre a imediata apreciação do
mérito da causa.
36 – Conclui-se que o tribunal apreciou
correctamente a matéria de facto dada como provada e relevante à decisão, que
se sustentou quer na matéria que se mostrou assente por aceite na generalidade
pelo Apelante, o que determina considerar-se tais factos admitidos por acordo
e, bem assim, nos documentos juntos com a PI.
37 – Conclui-se que o tribunal “a quo”
apreciou todas as questões de facto suscitadas pelo Apelante na sua
contestação, e fê-lo desde logo com base nas suas missivas, donde resulta
confissão expressa e conhecimento directo quanto ao entendimento de existência
de um único contrato de arrendamento celebrado a 01/03/1962 que foi transmitido
ao cônjuge sobrevivo aquando do falecimento do primitivo arrendatário, contrato
este que atento as normas legais aplicáveis caducou com o falecimento daquela
em 21/05/2022.
38 – Pelo que, mostra-se a sentença
recorrida irrepreensível, quer na decisão da matéria de facto, quer na decisão
de direito que se lhe segue, não merecendo qualquer reparo!
39 – Devendo assim, ser negado
provimento ao recurso apresentado pelo Apelante, mantendo-se integralmente a
sentença proferida pelo tribunal “a quo”.
O recurso foi admitido.
*
Questões a decidir:
1 – Nulidade da sentença recorrida;
2 – Impugnação da decisão sobre a
matéria de facto;
3 – Verificação dos pressupostos da
prolação de saneador-sentença;
4 – Transmissão da posição contratual do
primitivo arrendatário.
*
Na sentença recorrida, foram
julgados provados os seguintes factos:
1 – Por óbito de José Ferreira, ocorrido
em 11.10.1960, no estado de casado com Lucinda Lobo no regime de comunhão geral
de bens, procedeu-se a inventário orfanológico, que correu termos na 2.ª Secção
de Processos do Sexto Juízo da Comarca do Porto.
2 – A herança aberta por óbito de José
Ferreira integrava, entre outros, o prédio urbano, térreo, afecto para
habitação, de um piso, com 6 divisões sito na Praia de Monte Gordo, Rua (…),
n.º (…) da freguesia de Monte Gordo, concelho de Vila Real de Santo António,
inscrito na matriz sob o artigo n.º (…), anterior artigo de matriz n.º (…) da
anterior freguesia de Vila Real de Santo António, descrito na Conservatória do
Registo Predial de Vila Real de Santo António sob o n.º (…) da freguesia de
Monte Gordo.
3 – O prédio urbano descrito em 2) foi
adjudicado aos filhos do casal, à data todos menores de idade: António Ferreira,
Carlos Ferreira, Idalina Ferreira, Dário Ferreira e Óscar Ferreira.
4 – Pela Ap. 4 de 19.08.1982, foi
registada a aquisição, por adjudicação em inventário obrigatório, a favor do
Autor António Ferreira, na proporção de 1/5, do Autor Carlos Ferreira, na
proporção de 1/5, de Dário Ferreira, na proporção de 1/5, de Óscar Ferreira, na
proporção de 1/5 e da Autora Idalina Ferreira na proporção de 1/5, do imóvel
referido em 2).
5 – Dos cinco filhos de José Ferreira,
entretanto, faleceram Dário Ferreira, em 19.09.1985, tendo-lhe sucedido a sua
mãe, Lucinda Lobo, esta também falecida em 21.07.2009 e Óscar Ferreira, em
04.03.2005, tendo-lhe sucedido a sua mulher Célia Ferreira e os seus filhos Laura
Ferreira e Rui Ferreira.
6 – Pela Ap. 495 de 14.11.2011, foi
registada a aquisição, da quota de 1/5 do imóvel descrito em 2 ), em comum e
sem determinação de parte ou direito, por dissolução da comunhão conjugal e por
sucessão por óbito de Óscar Ferreira, a favor dos Autores Célia Ferreira, Laura
Ferreira e Rui Ferreira e da quota de 1/5 do mesmo imóvel, em comum e sem
determinação de parte ou direito, por sucessão por óbito de Lucinda Lobo, a
favor dos Autores Idalina Ferreira, António Ferreira, Carlos Ferreira, Laura
Ferreira e Rui Ferreira.
7 – Por documento pré-elaborado, em
impresso, denominado de “contrato de arrendamento”, datado de 28.02.1962, Lucinda
Lobo, viúva de José Ferreira, na qualidade de tutora dos filhos menores, cedeu
a Pedro Cerqueira, o uso e fruição, para habitação, do prédio urbano descrito
em 2).
8 – O contrato de arrendamento referido
em 7 foi celebrado pelo prazo de um ano, a iniciar em 01.03.1962, e a findar em
28.02.1963, “devendo considerar-se prorrogado
por períodos sucessivos de um ano enquanto por qualquer das partes não houver
despedida com a antecipação legal.”
9 – Pedro Cerqueira faleceu em 24.12.2005,
no estado de casado com Ana Cerqueira, sob o regime de comunhão geral de bens.
10 – Ana Cerqueira permaneceu a habitar
o imóvel descrito em 2), até à data do seu falecimento, ocorrido em 21.05.2022,
o que fez juntamente com o seu filho, Alfredo Cerqueira, aqui réu, nascido em
1963, sendo essa a casa de morada da família.
11 – Desde o falecimento do seu marido
em 24.12.2005 e até à data do seu próprio óbito, Ana Cerqueira procedeu ao
pagamento da renda fixada, a qual era recebida pelos Autores, que lhe emitiam
os respectivos recibos em seu nome.
12 – Em Abril de 2022 o valor da renda
mensal ascendia a € 101,30.
13 – Em 23.06.2022, o Réu enviou uma
carta registada, com aviso de recepção, à 3.ª Autora, que foi quem sempre
tratou e geriu o imóvel descrito em 2), intitulando-se cabeça de casal da
Herança de Ana Cerqueira, comunicando o óbito desta e solicitando que os
recibos de renda passassem a ser emitidos em nome de Ana Cerqueira cabeça de casal
da herança de NIF: 748.963.030.
14 – A carta referida em 13) não estava
acompanhada do assento de óbito de Ana Cerqueira.
15 – Em resposta, a 3.ª Autora enviou ao
Réu, carta registada com aviso de recepção, em 13.07.2022, a qual foi recebida
a 14.07.2022, com o seguinte teor: “Acuso
a recepção da carta enviada com data de 23/06/2022 que mereceu a nossa melhor atenção!
Considerando a data de início do contrato de arrendamento em causa, em
01/03/1962, em nome de Pedro Cerqueira, falecido em 24/12/2005, data em que o
arrendamento se transmitiu à cônjuge sobreviva D. Ana Cerqueira, e atento a sua
informação do falecimento desta, em data que desconhecemos, em princípio e com
grande certeza de raciocínio, com base nas normas legais aplicáveis, não haverá
lugar à transmissão do arrendamento. Assim sendo, deve o cabeça de casal entregar/restituir
o imóvel livre de pessoas e bens no prazo máximo de 6 meses, a contar da data
do facto que determina a caducidade, ou seja, a contar da data do óbito da D. Ana
Cerqueira. Atento a falta de informação facultada na sua missiva precedente,
interpela se V.ª Ex.ª nos termos e para os efeitos do art.º 1107º do código
civil, a juntar cópia do Assento de Óbito da D. Ana Cerqueira, sem prejuízo de
ficar já devidamente informado, que se desconhecem factos que determinem a
transmissão do arrendamento, ao invés sim, a caducidade do contrato de
arrendamento face ao óbito comunicado, e desta feita, estarem cientes da
obrigatoriedade de restituição do imóvel no prazo de 6 meses, a contar da data do
óbito. Aguarda-se assim, envio da cópia do assento de óbito.”
16 – Não tendo recebido resposta à carta
referida em 15), a 3.ª Autora enviou ao Réu, nova carta registada com aviso de
recepção, em 22.09.2022, a qual foi recepcionada a 23.09.2022, com o seguinte
teor: “Tendo-lhe sido enviada carta registada
em 13/07/2022, que foi por V.ª Ex.ª recepcionada a 14/07/2022, na sequência da
vossa missiva de 23/06/2022 dando conhecimento do falecimento de sua mãe,
arrendatária do locado sito na Praia de Monte Gordo em Vila Real de Santo
António, até ao momento não foi recepcionada a documentação solicitada e à qual
está obrigado a apresentar, a saber o Assento de Óbito de sua mãe, arrendatária
D. Ana Cerqueira, ao abrigo do art.º 1107º do código civil. Assim, faculta-se o
prazo definitivo de 8 dias para apresentação do Assento de Óbito. Caso assim
não proceda, será instaurada a competente Notificação Judicial Avulsa para o
interpelar judicialmente para o efeito, alertando que, nos termos do n.º 2 do
artigo referido, a inobservância desta obrigação, origina indemnização pelo
faltoso por todos os danos derivados desta omissão legal.”
17 – Em resposta, o Réu enviou à 3.ª
Autora, uma carta registada com aviso de recepção, datada de 26.10.2022, com o
seguinte assunto: “Transmissão do Arrendamento
por morte do arrendatário. Para filho Alfredo Cerqueira portador de
deficiência/incapacidade superior a 60%, que convivia com o falecido há mais de
um ano artigo 57º, n.º 1, alínea e) do DL n.º 6/2006 (NRAU)”, e com o
seguinte teor: “… serve a presente carta
para lhe comunicar que na sequência do contrato de arrendamento celebrado em 01.03.1962
com o nosso pai, Pedro Cerqueira, falecido em 24.12.2005, que se transmitiu em
consequência do seu óbito para o cônjuge sobrevivo, nossa mãe, D. Ana Cerqueira,
esse mesmo contrato, por óbito da nossa mãe, ocorrido no passado dia 21 de Maio
de 2022, transmitiu-se para o filho maior de ambos, Alfredo Cerqueira,
solteiro, maior,…onde nasceu em 30/06/1963..., e residente no locado sito na
morada Rua (…), n.º (…), 800 447 Monte Gordo…, nos termos do disposto no art.º
57º n.º 1 alínea e) do D.L. n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU).” (…) “…o referido Alfredo Cerqueira, desde que
nasceu em 30/09/1963, e atenta a data da celebração do arrendamento, em 01/0/1962,
já nasceu com a morada de sua residência no locado e ininterruptamente, sempre
viveu com os seus pais, no amorada do locado, sita….., vivendo assim enquanto
filhos do primitivo arrendatários, há muito mais de um ano no locado, como
resulta do teor do atestado de residência emitido pela Junta de freguesia de
Monte Gordo em 21.07.2022.” (…) “….é
portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%, no
caso a incapacidade definitiva que padece é de 75%...como se demostra e resulta
do teor do atestado médico de incapacidade multiuso, emitido pela ARSAlgarve
ACES em 12.09.2013 que se junta…” (…) “solicita-se…
o reconhecimento do direito à transmissão do arrendamento e nessa sequência se requer
que o recibo das rendas mensais passe a ser emitido em nome de Alfredo
Cerqueira, solteiro, maior, natural da freguesia e concelho de Caldas da
Rainha…”.
18 – Com a carta referida em 17), o Réu
procedeu à junção do assento de óbito de Ana Cerqueira, bem como o atestado de
residência emitido pela Junta de Freguesia de Monte Gordo e Atestado médico de incapacidade.
19 – A esta carta, respondeu a 3.ª
Autora, com aviso de recepção enviada ao Réu, em 15.11.2022 e por si
recepcionada a 21.11. 2022, com o seguinte teor: “Acuso a recepção da vossa carta de 26/10/2022 recepcionada a
03/11/2022 a qual mereceu a melhor atenção, e sobre o seu teor, cumpre-me
transmitir o seguinte: Antes de mais, lamenta-se o tempo decorrido até que
fosse facultado o assento de óbito da Sr.ª D. Ana Cerqueira para se aferir da
sua data de falecimento que nunca foi indicada, nem este documento foi junto
como se impunha por V.ªs Exªs, desde logo na carta de comunicação do
falecimento em Junho passado, continuou esta imposição legal ignorada com a
interpelação da minha 1ª carta enviada em 13/07/2022 e mesmo com uma 2ª
interpelação por carta de 23/09/2022, V.ªs Ex.ºs arrogam se “no direito” de
responder, juntando finalmente o imperativo assento de óbito, por carta agora
recebida a 03/11/2022. Posto isto, e no que à transmissão do arrendamento diz
respeito, agora munida de todos os documentos necessários, sou a informar que
não reconheço o direito à transmissão do arrendamento ao filho da falecida
arrendatária, Sr. Alfredo Cerqueira, atento as normas legais aplicáveis ao caso
concreto. Assim, e de forma muito objectiva, esclarece-se, que: O contrato de
arrendamento em questão referente ao imóvel sito na Rua (…), nr.(…) em Monte
Gordo, Algarve, foi celebrado pela inventariada Sr.ª D. Lucinda Lobo em 28/02/1962
ao Sr. Pedro Cerqueira, que faleceu em 24 12 2005, dando-se nesta data a transmissão
do mesmo a favor da sua esposa, Sr.ª D. Ana Cerqueira, falecida a 21/05/2022.
Trata se de um contrato de arrendamento habitacional celebrado antes da entrada
em vigor do RAU (Regime do Arrendamento Urbano) Decreto Lei nº 321 B /90 de
15/10, que entrou em vigor a 19/11/1990. A este contrato de arrendamento, no
que concerne à transmissão por morte, aplica-se o regime do NRAU (Novo Regime
do Arrendamento Urbano) previsto na Lei n.º 06/2006 de 07/02 na sua versão
actual, concretamente a norma prevista no art.º 57º por força do estatuído nos
artºs 26º n.º 2º e 28.º n.º 1 do mesmo diploma. E este art.º 57º regula a não
caducidade do contrato de arrendamento por morte do primitivo arrendatário, e
aqui interprete-se, pela morte da pessoa que originalmente celebrou o contrato
de arrendamento com a senhoria, o pai de V.ªs Ex.ªs portanto, o Sr. Pedro
Cerqueira. Ora, tendo já ocorrido a transmissão do primitivo arrendatário para
o respectivo cônjuge, perante a norma legal aplicável ao caso concreto, não é
possível nova transmissão a partir da transmissária da posição contratual, isto
independentemente dos motivos invocados, de se tratar de um filho que sempre viveu
no imóvel arrendado com os seus pais, e de padecer de um grau de incapacidade
superior a 60%. A norma legal do art.º 57º n.º 1 al. e) do NRAU (Lei n.º
06/2006 versão actual) estaria bem indicada, não fosse o teor do n.º 1 que dispõe:
“O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário
quando lhe sobreviva: Ora, conforme já referido e é uma constatação factual, a
transmissão já não vem do primitivo arrendatário, mas sim da transmissária
deste direito, e terminam aqui as transmissões, com o falecimento da cônjuge a
quem se transmitiu já o direito ao arrendamento! Pelo exposto, não havendo
lugar à transmissão do arrendamento por falecimento da Sr.ª D. Ana Cerqueira,
recorda se V.ªs Ex.ªs que o imóvel deverá ser entregue livre de pessoas e bens
pelo cabeça de casal, no prazo máximo de 6 meses a contar da data do óbito
21/05/2022, facto que determina a caducidade do contrato de arrendamento.
Assim, espera-se e solicita-se que o imóvel seja entregue/restituído através da
entrega de todas as suas chaves, até ao dia 21/11/2022, sob pena, de serem
accionadas a partir desta data, as diligências necessárias para a libertação e
entrega do imóvel.”
20 – O Réu respondeu por carta registada
com A/R enviada à 3.ª Autora, datada de 21.11.2022, onde resumidamente reitera
os argumentos já invocados nas cartas anteriores, e o pedido de reconhecimento
do direito à transmissão do arrendamento e emissão das rendas em seu nome.
21 – Não houve mais troca de
correspondência entre as partes até à data.
22 – Até à data, o Réu não procedeu à
entrega aos Autores do imóvel, continuando a habitá-lo.
*
1 – Nulidade da sentença
recorrida:
O recorrente sustenta que a
sentença recorrida padece de várias nulidades.
1.1. A primeira nulidade
resultaria de a sentença recorrida ter sido proferida sem a produção e a
apreciação da prova indicada pelas partes, o que teria determinado uma incorrecta
decisão da matéria de facto, com omissão de pronúncia sobre factos essenciais
alegados pelo recorrente. Segundo este, o vício descrito preenche a previsão
das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
A al. b) do n.º 1 do artigo
615.º do CPC estabelece que a sentença é nula quando não especifique os
fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. É recorrente a
afirmação de que esta nulidade só se verifica na hipótese de absoluta ausência de
fundamentação, de facto ou de direito. Esta tomada de posição encontra amparo na
sempre imprescindível lição de JOSÉ ALBERTO DOS REIS.
A essa hipótese, vem a melhor jurisprudência equiparando a de a fundamentação,
de facto ou de direito, ser de tal modo incompleta que torne a decisão
incompreensível, isto é, que não permita, aos seus destinatários, a percepção
das razões de facto e de direito que determinaram o tribunal a decidir como
decidiu.
Todavia,
nem sequer à luz desta concepção mais ampla se verifica a nulidade em questão. A
sentença recorrida encontra-se fundamentada, quer de facto, quer de direito. As
consequências da prolação de saneador-sentença sem que se verifiquem os
pressupostos para o efeito exigidos pela lei são de outra natureza.
Analisaremos esta questão no ponto 3.
A al. d) do n.º 1 do artigo
615.º do CPC estabelece que a sentença é nula quando o juiz deixe de se
pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que
não podia tomar conhecimento. O recorrente tem em vista o disposto na 1.ª parte
desta norma.
Também
esta nulidade não se verifica. A sentença recorrida pronunciou-se sobre todas
as questões que se suscitavam, nomeadamente a de saber se a mãe do recorrente
adquiriu a posição contratual do seu falecido marido no contrato de arrendamento
por efeito da morte deste, questão esta essencial para resolver a de saber se o
recorrente, por seu turno, adquiriu essa mesma posição contratual por efeito da
morte de sua mãe. Se a sentença recorrida tiver conhecido aquela questão sem
considerar um facto que devesse ter considerado, nomeadamente por não ter
havido oportunidade para sobre ele se produzir prova, ter-se-á verificado um
erro de julgamento, mas não a nulidade prevista na 1.ª parte da d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC. Também
analisaremos esta questão no ponto 3.
1.2. Por outro lado, a
sentença seria nula pelo seguinte: o tribunal a quo decidiu erradamente no n.º 13 dos factos provados, pois a
carta em questão é da autoria, não do recorrente, mas do seu irmão; em
consequência, todos os factos deste dependentes (n.ºs 14 a 20) estão também “apreciados em erro”; tal erro de
julgamento da matéria de facto, com influência na decisão da causa, determina “a ausência de fundamentação e de motivação
da matéria de facto, o que (…) determina a nulidade da (…) sentença recorrida
por erro de julgamento e violação de lei”.
Apesar de o recorrente não
indicar a alínea do n.º 1 do artigo 615.º do CPC que prevê a nulidade que
invoca, resulta da argumentação por aquele expendida que está em causa a al.
b). Ora, esta nulidade não se verifica, como concluímos em 1.1. O erro de
julgamento não se confunde com a falta de fundamentação da decisão.
1.3. Finalmente, o
recorrente considera que, devido a uma “errada
aplicação do direito por violação da lei”, a sentença recorrida é nula. Tal
como na arguição de nulidade analisada em 1.2, o recorrente não indica que
alínea do n.º 1 do artigo 615.º do CPC tem em vista. Porém, agora, não
divisamos qual possa ser essa alínea, porquanto nenhuma delas prevê algo que se
assemelhe a uma “errada aplicação do
direito por violação da lei”.
2 – Impugnação da decisão
sobre a matéria de facto:
O recorrente impugna a
decisão sobre a matéria de facto, considerando que o n.º 13 do enunciado dos
factos provados contém um erro de julgamento porquanto resulta do documento
junto à petição inicial sob o n.º 6 que o autor da carta aí referida não foi
ele, mas sim o seu irmão. Considera ainda o recorrente que os factos constantes
dos n.ºs 14 a 20, por estarem dependentes daquele, “estão também apreciados em erro (…) e em violação de lei”, “enfermam de erro na sua apreciação”.
Segundo o recorrente, a troca de correspondência não foi consigo, mas sim com o
seu irmão, tendo este erro de julgamento influenciado a decisão do tribunal a quo.
O recorrente não fundamenta
esta última afirmação, ou seja, não explicita a razão pela qual considera que o
facto de ser ele próprio ou o irmão o autor das cartas referidas nos n.ºs 13,
14, 17, 18 e 20 (as referidas nos n.ºs 15, 16 e 19 são da recorrida Idalina
Ferreira) influencia o sentido da decisão. Limita-se a produzir tal afirmação,
no ponto 40 do corpo das alegações e na conclusão x), sem mais.
Não divisamos em que medida
a identidade do autor das cartas em questão releve para a decisão da causa.
Lendo a fundamentação da sentença recorrida, resulta evidente que a autoria
daquelas cartas foi irrelevante para a decisão da causa. E, na realidade, essa
autoria é, efectivamente, irrelevante. Relevante é saber se a mãe do
recorrente adquiriu a posição contratual do seu falecido marido no contrato de
arrendamento por efeito da morte deste e, na hipótese afirmativa, se a lei
permite uma segunda transmissão daquela posição contratual, por morte da
anterior transmissária, para o recorrente. Para resolver qualquer destas
questões, é absolutamente irrelevante que a morte da anterior arrendatária
tenha sido comunicada aos recorridos pelo próprio recorrente ou pelo irmão
deste, ou quem foi o autor das cartas subsequentes. Não está em causa a
autoria, o conteúdo ou a tempestividade de qualquer dessas cartas.
Sendo
assim, a reapreciação da
prova com vista a ajuizar se a questão da autoria das cartas referidas nos n.ºs
13, 14, 17, 18 e 20 foi bem julgada pelo tribunal a quo seria um acto inútil, proibido pelo artigo 130.º do CPC, que
consagra o princípio da limitação dos actos. Qualquer que fosse o resultado
dessa reapreciação, a decisão da causa seria a mesma. Deverá, pois, manter-se o
decidido pelo tribunal a quo.
3 – Verificação dos
pressupostos da prolação de saneador-sentença:
O recorrente sustenta que o
tribunal a quo não podia conhecer do
mérito da causa no despacho saneador porquanto alegou factos, para o efeito
essenciais, que careciam de prova testemunhal, por declarações de parte e por
depoimentos de parte, e que, por essa razão, não foram tidos em conta.
Vejamos se o recorrente tem
razão.
O artigo 595.º, n.º 1, do
CPC, dispõe que o despacho saneador se destina a: a) Conhecer das excepções
dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou
que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente; b) Conhecer
imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem
necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos
deduzidos ou de alguma excepção peremptória.
Doutrina e jurisprudência
convergem quanto à natureza excepcional da possibilidade de conhecer do mérito
da causa no despacho saneador e ao grau de exigência no tocante aos respectivos
pressupostos legais.
Assim, apenas em situações excepcionais
o estado do processo permitirá, sem necessidade de mais provas, conhecer do
mérito da causa logo após o final da fase dos articulados, prescindindo-se das
fases da instrução e do julgamento. “Normal
é que o juiz (não estando ainda realizada a parte fundamental da instrução
do processo) não possa conhecer da matéria no momento em que profere o despacho
saneador. Excepcional é que, com o
encerramento dos articulados, o julgador tenha à sua disposição todos os factos
que interessam à resolução da questão de direito exclusivamente suscitada pelas
partes, ou encontre nos autos todos os elementos de prova essenciais ao
julgamento da matéria de facto envolvida no litígio”.
Tal excepcionalidade decorre,
nomeadamente, do grau de exigência subjacente ao citado artigo 595.º, n.º 1,
al. b), do CPC. A possibilidade de conhecimento do mérito da causa na fase de
saneamento do processo, embora justificada pelo princípio da economia
processual, não pode redundar em práticas processuais que prejudiquem a prova
da factualidade relevante alegada pelas partes e o debate das propostas de
solução jurídica do litígio por estas apresentadas, diversas daquela que o
juiz, no momento do saneador, antevê como sendo a correcta. Mais concretamente,
só pode conhecer-se do pedido no saneador se, logo nessa fase, o processo
contiver todos os elementos que possibilitem a tomada de decisões de acordo com
as várias soluções jurídicas plausíveis. Se, no momento do saneador, o processo
apenas contiver elementos idóneos para sustentar uma das diversas soluções
possíveis do litígio, o juiz, por muito convicto que esteja do acerto dessa
solução, deverá abster-se de proferir saneador-sentença e, em vez disso, deverá
fazer prosseguir o processo até à fase de julgamento.
Esta orientação é pacífica na
jurisprudência, podendo citar-se, a título de exemplo, os seguintes acórdãos:
RP de 10.03.2009 (Canelas
Brás), RL de 22.01.2013 (Orlando Nascimento) e 14.11.2013 (Tibério Silva) e RE
de 14.11.2013 (José Lúcio).
No mesmo sentido se decidiu nos acórdãos da RE de 24.05.2018 e 17.12.2020, cujo
relator foi o mesmo deste acórdão.
Segundo o recorrente, os factos para
cuja prova o processo devia ter seguido para a fase da audiência final são os
alegados nos artigos 16.º a 18.º, 20.º a 26.º e 45.º a 53.º da contestação, que
transcrevemos:
“16.
Em rigor, dir-se-á que, em 24-12-2005, data do falecimento de Pedro Cerqueira,
sobreviveu-lhe a esposa Ana Cerqueira, com que estava caso sob o regime da
comunhão de adquiridos, e os dois filhos, tendo todos desde 01 de março de
1962, residência habitual e permanente no locado que corresponde ao imóvel
identificado na PI dos Autores.
17.
Dessa forma, Ana Cerqueira, passou após 24-12-2005, a ser reconhecida e aceite
por todos os AA., como arrendatária,
18.
Sendo eu nesse sentido, os AA., passaram a emitir os competentes recibos
mensais referentes ao pagamento da renda em nome de Ana Cerqueira. – Doc. n.º 6
e Doc. n.º 7 – juntos à PI dos AA.
20.
Como atrás se disse Pedro Cerqueira, faleceu em 24-12-2005, facto que é do
inteiro e perfeito conhecimento de todos os AA..
21.
Pedro Cerqueira, à data do óbito, residia no locado que se referem os presentes
autos, sendo essa a casa de morada da sua família.
22.
Pedro Cerqueira, à data do óbito, estava casado sob o regime da comunhão geral
de bens com Ana Cerqueira.
23.
À data do óbito de Pedro Cerqueira, vigorava o RAU - D.L. n.º n.º 321-B/90 de
15 de Outubro, e,
24.
Esse mesmo diploma legal, que vigorava à data do óbito de Pedro Cerqueira, em
24-12-2005, tinha como regra a não transmissibilidade do arrendamento para o
cônjuge.
25.
E apesar de se considerar durante mais de 44 anos que desde 28-02-1962 até ao
dia 27-06-2006 (NRAU) que o direito do arrendatário não se comunicava ao
cônjuge.
26.
Tal facto deixou de ser assim, em 2006, com a aplicação da Lei n.º 6/2006, que,
regulando para o arrendamento de prédios urbanos, procedeu á reposição do art.
1068.º do CCivil, com a seguinte redação: "O direito do arrendatário
comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens
vigente".
46.
Sendo que à data do óbito de Pedro Cerqueira, 24-12-2005, estava em vigor o
RAU, e que decorrente desse regime, até à Lei n.º 6/2006 (mais propriamente até
ao dia 26 de junho de 2006) o arrendamento não se comunicou à Ré., e,
47.
Se o contrato de arrendamento outorgado por Joaquim Carolino em 28-02-1962, não
se transmitiu a Ana Cerqueira sua mulher, por força da lei em vigor à data do
óbito de Pedro Cerqueira, a que título passou ela e a demais família a
incluindo o aqui R., a habitar o locado), e ao abrigo de que contrato?, Ora,
48.
Os AA., bem sabendo e não ignorando que essa incomunicabilidade do arrendamento
celebrado por Pedro Cerqueira em 28-02-1962, não se comunicava a Ana Cerqueira,
por força da Lei em vigor RAU, continuaram a receber desta as rendas, emitindo
recebidos em seu nome, e,
49.
Fizeram-no a que título? se o regime em vigor era o da não transmissibilidade,
então só o poderiam ter feito ao abrigo de um novo contrato. Pois,
50.
Os AA., ao permitirem a permanência de Ana Cerqueira no locado, após
24-12-2005, dela recebendo as rendas e a ela emitindo os competentes recibos
mensais, celebraram com a mesma um novo contrato de arrendamento, que não
chegaram a reduzir a escrito, com todas as consequências dai decorrentes.
51.
Ora nesse caso, uma vez mais, deparamo-nos novamente com o regime transitório e
com o estatuído na no NRAU (lei 6/2006) após 27-06-2006, pelo que considerando
a existência de um novo contrato de arrendamento, à data da entrada em vigor do
NRAU, a arrendatária no dia 27-06-2006, era inquestionavelmente também a
falecida mãe do R., Ana Cerqueira, que à luz do NRAU, era a primitiva
arrendatária.
52.
Posto isto, também por essa via, existe à luz do NRAU, desde 27-06-2006, a
transmissão desse arrendamento para o aqui R., filho de Ana Cerqueira,
53.
Que por aplicação do NRAU, também o direito a ver ser transmitido para si o
arrendamento, ao abrigo do disposto no artigo 57.º n.º 1 alínea e), da Lei n.º
6/2006, que dispõe “O arrendamento para habitação não caduca por morte do
primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:” – “e) Filho ou enteado, que com
ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de
incapacidade igual ou superior a 60 %.”, o que é o caso dos presentes autos
como comunicado pelo R. e resulta de todos os documentos juntos aos autos.”
Os artigos 23.º a 26.º e
46.º a 53.º contêm exclusivamente matéria de direito, logo insusceptível de ser
objecto de prova. Não compreendemos a pretensão do recorrente de interrogar
testemunhas ou as partes sobre qual era o regime do arrendamento urbano que
vigorava na data da morte de seu pai, ou sobre o conteúdo desse regime em
matéria de comunicabilidade da posição contratual do arrendatário e de
transmissão desta por morte do arrendatário. Certamente o recorrente não
pretende que, das hipotéticas respostas que dessem, as testemunhas ou as partes
retirassem conclusões sobre se a sua mãe devia ser qualificada como primitiva
arrendatária ou como mera transmissária da posição contratual do seu falecido
marido, e que o tribunal a quo
julgasse “provadas” tais conclusões. Tudo isto constitui pura matéria de
direito, insusceptível de prova.
Os factos alegados nos
artigos 16.º e 20.º e 22.º constam dos n.ºs 9 e 10 do enunciado da matéria de
facto provada.
O conteúdo do artigo 17.º é
puramente conclusivo.
O facto alegado no artigo
18.º consta do n.º 11 da matéria de facto provada.
O facto alegado no artigo 21.º
resulta dos n.ºs 7, 9 e 10 da matéria de facto provada.
Concluímos, assim, que todos
os factos relevantes para a decisão da causa se encontravam provados no momento
em que o tribunal a quo proferiu o
despacho saneador. Consequentemente, o tribunal a quo podia e devia decidir a causa neste despacho. O
prosseguimento do processo para a fase de julgamento nessas circunstâncias
violaria o disposto no artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC, e não teria
qualquer utilidade, antes constituindo uma pura perda de tempo e um desperdício
de recursos.
No entanto, para que não
restem dúvidas sobre o acerto da conclusão que acabámos de enunciar, foquemos a
nossa atenção, especificamente, sobre a pretensão do recorrente de ser
produzida prova sobre a alegada celebração de um contrato de arrendamento com
sua mãe.
O recorrente não alegou que,
em determinadas circunstâncias de tempo e lugar, sua mãe tenha celebrado, com
os recorridos, um contrato de arrendamento. A referência que, na contestação, é
feita a esse hipotético contrato de arrendamento, tem natureza conclusiva. Em
resumo, o recorrente sustenta que, por força do regime legal vigente à data da
morte de seu pai, a posição contratual deste no contrato de arrendamento não se
transmitiu para sua mãe. Logo, na tese do recorrente, tendo sua mãe passado, a
partir da data da morte de seu pai, “a
ser reconhecida e aceite”, como arrendatária, por todos os recorridos, os
quais passaram a emitir os recibos de renda em seu nome, tem de se considerar
celebrado um novo contrato de arrendamento entre sua mãe e os recorridos
(artigos 49.º e 50.º da contestação).
Ou seja, a celebração do
hipotético contrato de arrendamento entre a mãe do recorrente e os recorridos
não é alegada como um facto, mas sim invocada como uma conclusão decorrente da
apreciação dos factos da permanência da primeira no locado, da continuação do
pagamento da renda e da emissão dos respectivos recibos após a morte do pai do
recorrente, à luz daquele que se considera ser o regime jurídico então vigente.
Logo, estando provados estes factos (n.ºs 10 e 11 do enunciado dos factos
provados), a celebração daquele contrato de arrendamento poderia constituir uma
conclusão baseada numa determinada interpretação da lei em vigor à data da
morte do pai do recorrente, mas não um facto susceptível de prova directa. No
fundo, o recorrente parece pretender alegar que aquele hipotético contrato de
arrendamento se formou através de declarações negociais tácitas de sua mãe (ao
permanecer no locado e pagar a renda) e dos recorrentes (ao não se oporem
àquela permanência, aceitarem o pagamento da renda e emitirem os respectivos
recibos). A esse respeito, nada mais é alegado, pelo que nada há a provar.
Sai, assim, reforçada a
conclusão de que, no momento da prolação do despacho saneador, o estado do
processo permitia o conhecimento do mérito da causa sem necessidade de mais
provas. Estando, assim, verificados os pressupostos da prolação de
saneador-sentença, o tribunal a quo
limitou-se a cumprir o disposto no artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC, não
sendo esta opção merecedora de censura.
4 – Transmissão da
posição contratual do primitivo arrendatário:
Acerca desta questão, o
tribunal a quo expendeu argumentação
que assim sintetizamos:
- O pai do recorrente morreu em
24.12.2005;
- Consequentemente, o seu casamento com
a mãe do recorrente extinguiu-se nessa mesma data;
- Vigorava, então, o RAU, que
estabelecia a regra da não comunicabilidade do direito do arrendatário ao seu
cônjuge;
- Daí que a mãe do recorrente não tenha
beneficiado do regime estabelecido no artigo 1068.º do CC, na redacção
introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27.02 (NRAU), segundo o qual o direito do
arrendatário se comunica ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o
regime de bens vigente;
- Não sendo contitular da posição
contratual do pai do recorrente, a mãe deste, ao enviuvar, adquiriu essa
posição contratual nos termos do artigo 85.º, n.º 1, al. a), do RAU, não
podendo, logicamente, ser qualificada como “primitiva arrendatária” para o
efeito do disposto no artigo 57.º, n.º 1, al. e), do NRAU, na redacção em vigor
à data da sua morte (21.05.2022);
- Consequentemente, a posição de
arrendatário não se transmitiu para o recorrido, por morte da mãe deste, nos
termos desta última norma legal, tendo o contrato de arrendamento caducado por
efeito daquela morte.
A esta argumentação, o
recorrido não conseguiu, nas suas alegações de recurso, contrapor outra com um
mínimo de sentido.
Claramente afastado, fica o
pressuposto jurídico da tese do recorrente segundo a qual, após a morte do pai
do recorrente, a mãe deste e os recorridos celebraram um novo contrato de
arrendamento. A posição contratual de arrendatário não integrava o património
comum dos cônjuges, pelo que, por morte do pai do recorrente, a mãe deste
adquiriu aquela posição por transmissão nos termos do artigo 85.º, n.º 1, al.
a), do RAU. Foi com base nesse título que a mãe do recorrente permaneceu no
locado até à data da sua morte, não num alegado novo contrato de arrendamento,
que nunca existiu.
Toda a restante argumentação
expendida pelo recorrente nas suas alegações de recurso foi refutada nos pontos
anteriores. O tribunal a quo decidiu
bem, com base em fundamentação juridicamente irrepreensível, pelo que o
saneador-sentença recorrido deverá manter-se, improcedendo o recurso.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto,
julgar o recurso improcedente, confirmando-se o saneador-sentença recorrido.
Custas a cargo do recorrente,
sem prejuízo do decidido em matéria de apoio judiciário.
Notifique.
*
Évora, 08.02.2024
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
(1.º
adjunto)
(2.ª
adjunta)
Código de Processo Civil Anotado, volume
V (reimpressão), Coimbra Editora, 1981, p. 140.