quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 20.02.2024

Processo n.º 2524/21.7T8PTM-F.E1

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Sumário:

1 – Se o detentor de um documento cuja apresentação seja ordenada pelo tribunal pretender recusar-se a fazê-lo, ou pretender fazê-lo com ocultação de parte do conteúdo do documento, mediante a invocação de justa causa – sigilo bancário, protecção de dados pessoais ou outra –, tem o ónus de o fazer até ao momento processual previsto no artigo 417.º, n.º 3, do CPC.

2 – Não o fazendo, fica precludida a possibilidade de o detentor do documento recusar a apresentação do documento, ou de o apresentar ocultando parte do conteúdo deste, mediante a invocação da referida justa causa.

3 – Tendo o detentor do documento recusado a apresentação deste no momento processual previsto no artigo 417.º, n.º 3, do CPC, mediante a invocação de que o mesmo se encontra sujeito a sigilo bancário, e decidindo o tribunal previsto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP no sentido da quebra do sigilo, está vedado, àquele, apresentar o documento ocultando parte do seu conteúdo, ainda que invocando que o faz em cumprimento do regime jurídico da protecção de dados pessoais.

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Autora/recorrente:

- Banco 1, S.A..

Réus/recorridos:

- Sociedade 1, S.A.;

- Sociedade 2, Lda.;

- João Matos.

Antecedentes do despacho recorrido:

- Na audiência prévia, os réus requereram a notificação da autora, nos termos do artigo 429.º do CPC, para juntar aos autos as deliberações do seu conselho de administração que recaíram sobre as propostas apresentadas pela ré e pela sociedade «Pureza», bem como eventuais informações/avaliações que instruíram e fundamentaram tais deliberações.

- Pronunciando-se sobre o requerimento dos réus, a autora pugnou pelo seu indeferimento, com os seguintes fundamentos: a) Os documentos cuja junção aos autos os réus pretendem não são idóneos para a prova dos factos por estes indicados; b) Os documentos relativos à apreciação e à decisão da proposta de compra do imóvel apresentada pela «Pureza» encontram-se abrangidos por sigilo bancário, nos termos do artigo 78.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.

- Foi proferido despacho ordenando a notificação da autora para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos os documentos mencionados no requerimento dos réus.

- Na sequência da sua notificação, a autora declarou não existirem deliberações do seu conselho de administração sobre as propostas apresentadas pela ré, juntou uma cadeia de emails com apreciação e decisão dos termos da resposta à proposta apresentada pela ré e recusou a junção das deliberações do seu conselho de administração sobre a proposta apresentada pela «Pureza», bem como de outras informações e elementos respeitantes à apreciação e decisão de tal proposta, invocando que os mesmos se encontram abrangidos por sigilo bancário, nos termos do artigo 78.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF).

- O tribunal de 1.ª instância julgou legítima a recusa da autora e determinou a abertura do incidente de levantamento do sigilo bancário.

- O tribunal de 2.ª instância julgou o incidente procedente, tendo ordenado o levantamento do segredo bancário e que, consequentemente, a autora juntasse aos autos a deliberação do seu conselho de administração que recaiu sobre a proposta apresentada pela sociedade «Pureza» para compra de um prédio misto e eventuais informações/avaliações que instruíram e fundamentaram tal deliberação.

- A autora juntou aos autos os referidos documentos, mas truncados de forma a ocultar toda a informação respeitante à sociedade proponente e aos sócios desta; a autora fundamentou a truncagem alegando que esta incidiu sobre informação sem conexão com o objecto do processo e visou compatibilizar o seu dever de junção dos documentos aos autos com as suas obrigações em matéria de protecção de dados pessoais.

Despacho recorrido:

- Considerando ser lícito o tratamento dos dados pessoais no âmbito desta acção, determinou, além do mais, que a autora juntasse aos autos, em 10 dias, uma versão não truncada dos documentos.

Conclusões do recurso:

1 – Vem o presente recurso interposto, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 631.º, n.º 1, 637.º, 638.º, n.º 1, 644.º, n.º 2, al. d) e h), 645.º, n.º 2 e 647.º, n.º 2 do CPC, na parte em que ordenou a junção em versão não truncada dos documentos juntos pelo autor, ora recorrente, com o seu requerimento com a ref. CITIUS n.º 45803124, por julgar «ser lícito o tratamento de dados pessoais no âmbito da presente ação».

2 – Tal decisão encerra a quo errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 5.º, n.º 1, al. c) e 6.º, n.º 1, als. c) e f) do RGPD.

3 – Ainda que a existência de uma decisão judicial possa ser fundamento bastante para permitir o tratamento – aqui consubstanciado na revelação pública, por via da sua junção aos autos – de dados pessoais, assim permitindo genericamente essa revelação, a concreta amplitude dessa revelação carecerá de ser modelada pelo âmbito e propósito dessa decisão judicial e implementada com respeito pelo princípio da minimização, que é basilar em matéria de protecção de dados.

4 – Na situação sub judice, os excertos truncados assumem um absoluto desinteresse para a matéria dos presentes autos, por contraponto com a informação pessoal que contêm a respeito de terceiros, pessoas colectivas e singulares que não são parte nesta acção.

5 – Adicionalmente, os documentos juntos com os excertos truncados já têm, em si mesmos, uma natureza sigilosa, que foi excepcionalmente afastada, com vista à (putativa) demonstração de factos na presente lide que nada se relacionam com as pessoas colectivas e singulares cujos dados o autor truncou naquela junção.

6 – Neste contexto, a sua revelação redunda numa clara violação do princípio de minimização que regem a aplicação das normas em matéria de protecção de dados, sendo desnecessária e desproporcional, e por isso ilícita.

7 – Haveria o douto tribunal de ter admitido a junção dos documentos em apreço, tal como truncados, impondo-se, assim, revogar o despacho a quo, por violador das supra-citadas disposições legais.

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A recorrente suscita a questão da conformidade da apresentação de uma versão não truncada dos documentos que corporizam a deliberação do seu conselho de administração que recaiu sobre uma proposta apresentada por determinada sociedade para a compra de um prédio e as informações/avaliações que instruíram e fundamentaram tal deliberação com o regime jurídico da protecção de dados pessoais.

Coloca-se, contudo, uma questão logicamente prévia a essa: a da admissibilidade de a recorrente suscitar a questão descrita no momento processual em que o fez.

A recorrente teve a possibilidade de invocar que os documentos cuja apresentação foi requerida pela recorrida contêm matéria abrangida pelo regime jurídico da protecção de dados pessoais em dois momentos processuais anteriores àquele em que o fez: quando se pronunciou sobre o requerimento dos recorridos e quando, após ser notificada do despacho do tribunal a quo que deferiu esse requerimento e ordenou a apresentação dos documentos, invocou que parte deles se encontram abrangidos por sigilo bancário, nos termos do artigo 78.º do RGICSF, e, com esse fundamento e ao abrigo do disposto no artigo 417.º, n.º 3, al. c), do CPC, recusou a sua apresentação. Todavia, não o fez. Em vez disso, em qualquer dos referidos momentos, limitou-se a invocar o sigilo bancário.

Deve, por isso, entender-se que ficou precludida a possibilidade de invocação do regime jurídico da protecção de dados pessoais, fosse como fundamento de recusa de apresentação dos documentos que a recorrente considera que por ele se encontram abrangidos, fosse como justificação para a apresentação dos mesmos documentos com ocultação de parte do seu conteúdo. O momento em que o detentor do documento recusa a apresentação deste invocando justa causa – seja esta o sigilo bancário ou outra – tem de ser considerado o terminus ad quem é admissível a invocação do regime jurídico da protecção de dados. Só assim o tribunal onde o incidente se suscitou e o pelo tribunal competente para a prolação da decisão prevista no artigo 135.º, n.º 3, do CPP, aplicável ex vi artigo 417.º, n.º 4, do CPC, poderão apreciar as concretas questões que, à luz desse regime, o detentor do documento suscite.

Aquilo que não pode considerar-se admissível é, após o tribunal competente para autorizar a quebra do sigilo o fazer, ordenando a apresentação de um documento, o detentor deste invocar um novo fundamento, seja ele o regime jurídico da protecção de dados pessoais ou outro, para não proceder a essa apresentação, ou para ocultar, segundo o seu próprio critério, parte do conteúdo do documento antes de o apresentar. Fazem-se sentir, nesta matéria, as razões que justificam o princípio da preclusão no direito processual. Por um lado, a necessidade de garantir «que os actos só podem ser praticados no prazo fixado pela lei ou pelo juiz»[1]. Por outro, a necessidade de estabilização do processo: «uma vez inobservado o ónus de praticar o acto, estabiliza-se a situação processual decorrente da omissão do acto, não mais podendo esta situação ser alterada ou só podendo ser alterada com um fundamento específico»[2]. Estão em causa, respectivamente, as funções ordenatória e de estabilização do princípio da preclusão.

Daí entendermos que o detentor do documento tem o ónus de, até ao momento processual previsto no artigo 417.º, n.º 3, do CPC, invocar todas as razões que possam constituir justa causa de recusa da apresentação daquele, ou de apresentação com ocultação de parte do seu conteúdo. Entendimento diverso implicaria admitir que, invocando novo fundamento, o detentor do documento pudesse recusar o cumprimento (total ou parcial) de decisão anterior que ordenasse a apresentação daquele, renovando o incidente e protelando a decisão da causa.

Como já referimos, a recorrente não cumpriu o ónus de invocar que os documentos cuja apresentação recusou por se encontrarem abrangidos por sigilo bancário também o estavam por restrições decorrentes do regime jurídico da protecção de dados. Daí que esta matéria não tenha sido ponderada no acórdão que determinou a quebra do sigilo. Este acórdão ordenou a apresentação dos documentos em causa sem qualquer restrição e transitou em julgado. Sendo assim, a recorrente tem de o cumprir, apresentando a versão não truncada dos mesmos documentos. 

Decorre do exposto que o tribunal a quo decidiu correctamente a questão suscitada pela forma como a recorrente pretendeu cumprir o acórdão que determinou a quebra do sigilo. Tal cumprimento terá de se traduzir na apresentação da versão integral de todos os documentos, sendo inadmissível essa apresentação com ocultação, feita pelo apresentante de acordo com o seu próprio entendimento, de parte do conteúdo dos mesmos documentos.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.

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Évora, 20.02.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.ª adjunta)

(2.º adjunto)



[1] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Preclusão e caso julgado, página 2, disponível no seguinte endereço: 

https://drive.google.com/file/d/10YjwyJoi8OqyxhXbOU-svi_fF8rkWvBz/view

[2] Idem.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 08.02.2024

Processo n.º 105/23.0T8VRS.E1

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Sumário:

1 – A nulidade da sentença prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC verifica-se, não só na hipótese de absoluta ausência de fundamentação, de facto ou de direito, mas também na de tal fundamentação ser de tal modo incompleta, que não permita a percepção das razões de facto e de direito que determinaram o tribunal a decidir como decidiu.

2 – Se o saneador-sentença tiver conhecido uma questão sem considerar um facto que devesse ter considerado, nomeadamente por não ter havido oportunidade para sobre ele se produzir prova, ter-se-á verificado um erro de julgamento, mas não a nulidade prevista na 1.ª parte da d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

3 – O erro de julgamento, de facto ou de direito, não gera a nulidade da sentença.

4 – Atento o princípio da limitação dos actos, consagrado no artigo 130.º do CPC, a reapreciação da prova, pelo tribunal de 2.ª instância, com vista a sindicar o acerto da decisão do tribunal de 1.ª instância sobre determinado ponto da matéria de facto, não deverá ter lugar quando for, logo à partida, evidente que a alteração pretendida pelo recorrente não influiria na decisão do recurso.

5 – A prolação de saneador-sentença, nos termos do artigo 595.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil, tem carácter excepcional, só devendo ter lugar se, logo nessa fase, o processo contiver todos os elementos que possibilitem a tomada de decisão de acordo com as várias soluções jurídicas plausíveis. Mas, se o processo contiver tais elementos, o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador constitui um dever.

6 – Até à entrada em vigor do NRAU, a posição contratual do arrendatário não se comunicava ao cônjuge deste, qualquer que fosse o regime de bens do casamento.

7 – Tendo o primitivo arrendatário morrido em 24.12.2005, no estado de casado, a sua posição em contrato de arrendamento habitacional transmitiu-se para o seu cônjuge, nos termos do artigo 85.º, n.º 1, al. a), do RAU.

8 – Daí que o cônjuge beneficiário da transmissão referida em 7, falecido em 21.05.2022, não possa ser qualificado como primitivo arrendatário para o efeito previsto no artigo 57.º, n.º 1, al. e), do NRAU, na redacção em vigor naquela data.

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Autores: António Ferreira e mulher, Sónia Ferreira, Carlos Ferreira, Idalina Ferreira, Célia Ferreira, Laura Ferreira e Rui Ferreira.

Réu: Alfredo Cerqueira.

Pedidos:

1 – Ser reconhecido o direito de propriedade dos autores, em regime de compropriedade, sobre o imóvel descrito e melhor identificado no artigo 1.º da petição inicial, ocupado e detido abusivamente pelo réu;

2 – Ser reconhecida e declarada a caducidade do contrato de arrendamento celebrado a 28.02.1962, por óbito do cônjuge do primitivo arrendatário ocorrido a 21.05.2022;

3 – Ser o réu condenado a restituir imediatamente o imóvel que detém, livre de pessoas e bens, descrito no artigo 1.º por cessação do contrato de arrendamento, por caducidade, entrega que já deveria ter ocorrido até 21 de Novembro de 2022;

4 – Ser o réu condenado a pagar o valor de € 101,30 mensal, desde 01.06.2022 até entrega efectiva do imóvel, como compensação pelo seu uso e fruição.

Sentença: Julgou a acção totalmente procedente. Consequentemente:

a) Declarou extinto o contrato de arrendamento objecto dos presentes autos, celebrado em 28.02.1962, condenando o réu a entregar imediatamente, aos autores, livre e desocupado de pessoas e bens, o prédio urbano, térreo, afecto para habitação, de um piso, com 6 divisões, sito na Praia de Monte Gordo, Rua (…), n.º (…), da freguesia de Monte Gordo, concelho de Vila Real de Santo António, inscrito na matriz sob o artigo n.º (…), anterior artigo de matriz n.º (…) da anterior freguesia de Vila Real de Santo António, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Real de Santo António sob o n.º (…) da freguesia de Monte Gordo.

b) Condenou o réu a pagar, aos autores, a título de indemnização pelo uso do referido imóvel, o montante equivalente ao valor da contrapartida monetária mensal acordada pelos outorgantes do contrato de arrendamento agora extinto, à razão de 101,30 €/mês, desde a data da sua extinção (21.05.2022) até à sua efectiva entrega.

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O réu interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

a) A douta decisão recorrida, salvo melhor opinião, não apreciou nem decidiu de forma correta a matéria de facto alegada pelas partes e em especial os factos alegados pelo recorrente em sede da contestação que apresentou.

b) A douta decisão, ao decidir de forma errada e incompleta os factos alegados e trazidos pelas partes em juízo para apreciação e julgamento, fez também, em consequência errada interpretação e aplicação do direito aos factos alegados e constantes dos autos.

c) A douta decisão recorrida, entendeu, mal em nossa opinião, ter condições para decidir os autos, sem proceder à apreciação em sede de produção de prova de todos os elementos probatórios indicados pelas partes, designadamente, ao não permitir a produção de prova testemunhal, da prova por declarações e depoimentos de parte tql como requeridos e indicados pelo Réu, aqui recorrente.

d) A ausência da produção de prova determinou que a douta decisão recorrida, com a sentença proferida, não decidisse corretamente a matéria de facto dada por provada e por não provada.

e) Ao não realizar a audiência final, com a consequente produção de prova, o tribunal decidiu a presente causa, em prejuízo do Réu, aqui recorrente, sem atender, sem proceder à apreciação dos factos por este alegados, que entendeu nem sequer considerar na decisão proferida.

f) A douta decisão recorrida, não apreciou nem julgou factos essenciais para a decisão da causa submetida à sua apreciação, em prejuízo dos direitos do recorrente, em violação da lei e dos direitos do recorrente, decidindo erradamente e mal as questões que tinha que apreciar nos autos.

g) O tribunal recorrido ao não realizar a audiência final, proferindo sentença, impediu assim que fosse produzida prova essencial tal como indicada pelo aqui recorrente, o que salvo o devido respeito por opinião diferente, torna a douta sentença recorrida nula, nos termos e para os efeitos a que alude o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C., que o recorrente desde já se requer que seja apreciada e declarada com todos os efeitos dai decorrentes.

h) Ao não realizar a audiência final, injustificadamente, e a consequente não produção de prova arrolada pelo réu e pelos autores nos autos, a decisão recorrida, não apreciou convenientemente todos os factos alegados e, erradamente, não considerou como deveria factos essenciais alegados pelos autores, que a serem tidos em consideração, determinaria que a sentença a proferir fosse outra que não a sentença recorrida. Pois,

i) A douta sentença recorrida, não respondeu e também nem apreciou corretamente os factos alegados pelo reu em articulados 16.; 17.; 18.; e seguintes da sua contestação, como poderia e deveria ter apreciado por tal facto ter sido alegado pelos recorridos em sede de sua contestação.

j) Em rigor a douta decisão não considerou ou sequer apreciou o alegado pelo recorrente, no que respeita aos factos alegados de que após óbito de seu pai em 24.12.2005, designadamente se:

“16. Em rigor, dir-se-á que, em 24.12.2005, data do falecimento de Pedro Cerqueira, sobreviveu-lhe a esposa Ana Cerqueira, com que estava caso sob o regime da comunhão de adquiridos, e os dois filhos, tendo todos desde 01 de março de 1962, residência habitual e permanente no locado que corresponde ao imóvel identificado na PI dos Autores. – Doc. n.º 1 e Doc. n.º 2 ambos da P.I dos AA.

17. Dessa forma, Ana Cerqueira, passou após 24-12-2005, a ser reconhecida e aceite por todos os AA., como arrendatária,

18. Sendo eu nesse sentido, os AA., passaram a emitir os competentes recibos mensais referentes ao pagamento da renda em nome de Ana Cerqueira. – Doc. n.º 6 e Doc. n.º 7 – juntos à PI dos AA.”

k) A douta decisão ao não apreciar e decidir os factos alegados O Recorrente, alegou em articulados 20. a 26. e em articulados 45. a 50. todos da sua contestação e que o recorrente tencionava provar em audiência final, de que após o óbito de seu pai, em 24-12-2005, O recorrente e a sua falecida mãe Ana Cerqueira passará a residir no locado propriedade dos AA., ao abrigo de uma novo contrato que se produziu de forma verbal entre esta e os AA., e não a título de qualquer transmissão do arrendamento de contrato anterior, pois, a regra como alegou o recorrente em 24. Da sua contestação era de que: “24. Esse mesmo diploma legal, que vigorava à data do óbito de Pedro Cerqueira, em 24-12-2005, tinha como regra a não transmissibilidade do arrendamento para o cônjuge.”, e articulado em “25. E apesar de se considerar durante mais de 44 anos que desde 28-02-1962 até ao dia 27-06-2006 (NRAU) que o direito do arrendatário não se comunicava ao cônjuge.” sendo que por tal facto, a permanência de sua mulher (Ana Cerqueira – mãe do recorrente) no locado e dos filhos, incluindo o aqui recorrente, se devia a novo contrato de arrendamento verbalmente celebrado entre estes e os AA. e não a qualquer uma transmissibilidade entre cônjuges do anterior contrato de 1962.

l) O tribunal recorrido, com a douta decisão recorrida, por um lado, ao não realizar a audiência final, impedindo a produção de prova, também não apreciou como devia e podia os factos alegados em 51. a 53. da contestação do recorrente, parcialmente provados, e, consequentemente errou no julgamento da matéria de facto.

m) A douta decisão recorrida, salvo o devido respeito, bem sabia ter de apreciar, como alegado pelo Recorrente, se após 24-12-2005, entre a falecida Ana Cerqueira e os AA., foi ou não celebrado um contrato de arrendamento verbal, destinto do contrato anteriormente celebrado em 1962, como é alegado pelo recorrente.

n) A douta sentença recorrida, em violação da lei e em prejuízo dos direitos do recorrente, decidiu erradamente a matéria de facto provada e não provada, não apreciando todas as questões trazidas pelas partes a julgamento e consequentemente, não apreciou factos essenciais para a boa decisão da causa e fez errada aplicação o direito aos factos alegados e provados.

o) A douta decisão recorrida, ignorou por completo os factos alegados pelo recorrente em sede de sua contestação, não os considerou, em violação do direito, e em erro clamoroso de julgamento, o que, salvo o devido respeito, torna nula a douta decisão recorrida.

p) E deveria a douta decisão recorrida, ter decidido em sentido contrário ao que decidiu, designadamente, deveria em concreto ter absolvido o recorrente do peticionado pelos AA. e ter em contrário, decidido a manutenção do arrendamento na pessoa do recorrente por ter direito à transmissão do arrendamento em vigor.

q) Em rigor, a douta decisão recorrida fez uma vez mais uma errada interpretação dos factos aos quais foi chamada a decidir e a pronunciar-se, porque não equacionou nem considerou ter que decidir, e dessa forma não decidiu, nem apreciou, os factos alegados pelo recorrente em sede de sua contestação, designadamente, se passou a existir após 24-12-2005, entre os AA. e a falecida mãe do recorrente um novo contrato de arrendamento verbal, e se esse contrato se transmitiu ao recorrente após a sua morte.

r) Assim a douta decisão recorrida não fez apreciação das questões de direito e de facto que tinha que decidir e apreciar, o que determina a sua nulidade.

s) Contudo a douta decisão recorrida, fez errada interpretação dos factos, quando decidiu o ponto 13. dos factos provados, pois, não foi o Recorrente o autor de tal missiva, que remeteu tal missiva aos AA. e não foi o recorrente, aqui Réu, Alfredo Cerqueira, foi isso sim, como resulta do cabeçalho da própria missiva que constitui o Doc. n.º 6 junto pelos AA. à sua Petição Inicial, o seu irmão, Sr. Óscar Cerqueira.

t) Facto provado em ponto 13. Da douta decisão recorrida, que atento ao que se disse atrás, resulta mal e erradamente julgado, em contrário aos documentos – Doc. n.º 6 – da PI dos AA., juntos aos autos, e que determina que não tivesse sido dado por provado, como erradamente o foi, em erro sobre a apreciação das provas documentais juntas aos autos.

u) Em rigor, estando este facto o constante da decisão de facto dada por provada em ponto 13., dos factos provados, erradamente julgado e apreciado, então forçoso será de concluir também que, todos os factos que estão dependentes deste facto dados erradamente por provado estão também apreciados em erro, sendo o caso dos factos dados por provados em 14. A 20. Dos factos dados por provados. e em violação de lei.

v) Os factos dados por provados e constantes dos pontos 14. A 20 dos factos dados por provados na douta decisão recorrida, enfermam de erro na sua apreciação, pois, a troca de correspondência não é com o R., aqui recorrente, Alfredo Cerqueira, mas sim com o seu irmão, Óscar Cerqueira.

w) E de facto, esse mesmo erro de julgamento da matéria de facto, em confusão da pessoa do Recorrente e Réu na ação, por parte da douta decisão recorrida, determina erro de julgamento dessa mesma decisão de facto.

x) O que irremediavelmente, conduz a erro na apreciação de tais elementos probatório e consequentemente em erro de julgamento da matéria de facto, erro esse, com influência na douta decisão recorrida.

y) Erro de julgamento dos elementos probatórios e dos factos de que padece a douta decisão recorrida que faz a aplicação do direito aos factos dados erradamente por provados, em rigor, determina a ausência de fundamentação e de motivação da matéria de facto, o que salvo o devido respeito, determina a nulidade da douta sentença recorrida por erro de julgamento e violação de lei.

z) No que se reporta à análise da questão de direito, também salvo o devido respeito, não andou bem a douta decisão recorrida pois, a douta sentença recorrida, apenas, analisa a questão do ponto de vista do direito à transmissibilidade do contrato de arrendamento inicial de 1962, para a mãe do recorrente e posteriormente para o recorrente, o que faz em nossa opinião mal e infundadamente, tudo porque,

aa) O recorrente, em sede de contestação, alegou factos que implicavam, uma interpretação para apreciação de eventual aplicação de outras regras e normas legais, que a douta decisão, erradamente, ao não considerar, como podia e deveria ter considerado, em face aos factos alegados pelo recorrente, que após 24-12-2005, Ana Cerqueira, mãe do recorrente, celebrou com os AA., um novo arrendamento verbal, sendo nesse mesmo contrato arrendatária primitiva, tal “inquinou” a aplicação do direito pela douta decisão recorrida, que a não considera nessa qualidade por partir da errada apreciação da matéria de facto de que esta (Ana Cerqueira) detinha o contrato de arrendamento por transmissão do seu cônjuge., o que implica o culminar de uma decisão compreendida num raciocínio premeditado de que ao Recorrente, já não assiste direito ao arrendamento por não o receber do primitivo arrendatário seu pai.

bb) O que apenas ocorre, salvo o devido respeito por opinião contrária, atenta a falta de produção da prova, em sede de audiência final, que não se realizou, com o consequente erro de julgamento da matéria de facto, e conduziu necessariamente a que o tribunal errasse também na aplicabilidade do direito, por nem sequer apreciar, como lhe havia sido pedido, da existência de um contrato verbal novo estabelecido entre os AA. e a falecida Ana Cerqueira, com inicio após 24-12-2005., e a sua consequente transmissão para o aqui recorrente, o que resultou em errada aplicação do direito por violação da lei, o que conduz à nulidade da decisão.

cc) A douta decisão recorrida fez errada aplicação do direito pois apenas considerou essa solução jurídica, da visão do tribunal, desprendida dos factos alegados pelo recorrente, e por referência apenas aos factos erradamente e insuficientemente dados por provados, por ausência de produção de prova em sede de audiência final que não se realizou. E por isso, julgou e aplicou mal o direito e decidiu em erro.

dd) Ora salvo o devido respeito por diferente opinião, se tivesse sido produzida prova como peticionado em sede de contestação, como requerido pelo recorrente, e tivesse a douta decisão recorrida apreciado de forma correta a prova documental junta aos autos, a decisão a proferir teria forçosamente de ser distinta, e desta forma,

ee) Não pode salvo o devido respeito por opinião contrária, por erro de apreciação da matéria de facto e consequentemente errada aplicação do direito a esses mesmos factos erradamente julgados, não pode o recorrente concordar com a douta decisão recorrida e desta forma, requer que seja a mesma declarada nula por violação de lei, com todos os efeitos dai decorrentes.

ff) A douta decisão ao não apreciar e julgar todos os factos alegados pelo recorrente, impediu a descoberta da verdade material, e resultou em ser uma decisão materialmente injusta e contrária à verdade.

gg) A douta decisão recorrida ao não apreciar e julgar todos os factos alegados pelo recorrente, produziu uma decisão, não fundamentada e deficientemente motivada, que é consequentemente contrária ao direito e viola direitos liberdades e garantias do recorrente.

hh) A douta decisão recorrida ao não apreciar e julgar todos os factos alegados pelo recorrente, produziu uma decisão nula.

ii) Razão pela qual não pode o recorrente concordar com a douta decisão recorrida, pretendendo que a mesma seja declarada nula e de nenhum efeito ou caso assim se não entenda,

jj) Seja a douta decisão recorrida revogada e consequentemente seja substituída por outra que em função do pedido e contestação apresentado nos autos pelo recorrente, faça a apreciação de todos os factos alegados pelo recorrente e que faça a correta interpretação da prova produzida e a produzir em sede de audiência final, e que julgue e aplique o direito em função da prova produzida e a produzir nos autos.

Os recorridos apresentaram contra-alegações, com as seguintes conclusões:

1 – A sentença proferida pelo tribunal “a quo” não merece qualquer reparo ou censura, fazendo uma brilhante e correcta apreciação da matéria de facto dada como provada, atento os factos alegados pelos AA., não impugnados pelo R., aqui Apelante, e, bem assim, a prova documental junta aos autos não impugnada.

2 – Pela leitura das suas alegações e conclusões de recurso, este incide sobre apreciação da matéria de facto dada como provada e aplicação do direito.

3 – Quanto à matéria de facto, defende o Apelante que a dispensa de realização de audiência de julgamento, passando-se de imediato, após articulados à decisão de mérito da causa no despacho saneador, foi determinante para o erro na apreciação e decisão da matéria de facto, e como tal deveria ter havido lugar a produção de prova.

4 – Findos os articulados, foi proferido despacho em 31/05/2023 com a Ref: 128422108 notificado às partes:

“Preparava-se este Tribunal para proferir despacho saneador, com dispensa de realização de audiência prévia, nos termos do art. 593º, n.º 1, do CPC, quando constatou, da leitura atenta dos articulados, que a discussão em causa nos presentes autos se resume a questões de direito. Ou seja, as partes mostram-se consentâneas quanto à matéria de facto apresentada, simplesmente discordam na interpretação jurídica que cada uma faz da mesma. Nessa medida, entende este Tribunal que os elementos constantes do processo facultam a apreciação imediata da viabilidade ou não da presente acção declarativa, bem como do conhecimento imediato do mérito da causa, sem necessidade de produção de prova, de acordo com o art. 595º, n.º 1, al. b), do CPC. Assim, e antes de mais, em respeito pelo princípio do contraditório previsto no art. 3º, n.º 3, do CPC, determino que se notifiquem as partes para, querendo, se pronunciarem, no prazo de 10 dias, bem como, querendo, apresentarem as suas alegações de direito por escrito.”

5 – Notificado deste despacho o Apelante nada veio dizer ao processo, mantendo-se em silêncio, o que denuncia estar de acordo com a posição da M.ª Juiz “a quo” na apreciação que expôs no seu despacho que precede, isto é, de estar em condições de decidir do mérito da causa, com dispensa de audiência de julgamento.

6 – Esta seria a altura processualmente adequada para o Apelante se opor à dispensa da realização de audiência de julgamento, e nesse sentido, se assim era o seu entendimento pugnar pela necessidade de produção de prova.

7 – Ficando em silêncio, o Apelante conformou-se e aceitou o entendimento constante do despacho, de que haveria condições para, de imediato conhecer do mérito da causa.

8 – Sendo reprovável e desrespeitoso, vir agora em sede de alegações de recurso invocar que andou mal o tribunal “a quo” ao ter dispensado a realização da audiência de julgamento, alegando que tal omissão interferiu de forma decisiva na decisão proferida, designadamente da matéria de facto que veio a ser dada como provada e

9 – Concretamente invoca o Apelante erro na apreciação da matéria de facto dada como provada em consequência da não realização de audiência de julgamento, os factos por si alegados na sua contestação art.ºs 16, 17º, 18º, 20º a 26º, 45º a 50ª, 51º a 53º – Ver alegações a fls. 4 e 5, sendo tais factos, na sua generalidade conclusivos, questões de direito e apreciação e interpretação da lei que o Apelante entende ser a correcta ao caso em crise.

10 – À parte disso, defende que à data do óbito de Pedro Cerqueira, primitivo arrendatário, ocorrido a 24/12/2005, terá sido alegadamente celebrado um novo contrato de arrendamento, verbal, com a viúva deste que permaneceu sempre no imóvel.

11 – Ou seja, na versão do Apelante não estaríamos perante uma transmissão de arrendamento do primitivo arrendatário para o cônjuge sobrevivo aquando da morte daquele em 24/12/2005, mas sim, perante um novo contrato de arrendamento celebrado com Ana Cerqueira e como tal o mesmo seria à data da morte desta, em 21/05/2022, transmissível ao seu filho.

12 – Não assiste qualquer fundamento neste particular!

13 – Toda a prova documental existente no processo foi apresentada pelos Apelados e é constituída por 22 documentos juntos com a sua PI, documentos estes não impugnados pelo Apelante, e aliás fez “seus” os mesmos documentos, todos eles, como prova dos factos alegados na sua contestação.

14 – Contestação - meios de prova:

“c) Documental:

- Todos os documentos juntos pelos AA. na sua Petição Inicial que aqui se dão integralmente também todos por reproduzidos…”

15 – Desses documentos integram cartas trocadas entre Apelante e Apelados na pessoa da apelada Idalina Ferreira, documentos n.ºs 8, 9,15, 19 e 22 da PI.

16 – Destes releva o documento n.º 15 para demonstrar que o Apelante, ele próprio, admitiu sem reservas estarmos perante um único contrato de arrendamento celebrado com o seu pai Pedro Cerqueira, que à morte deste se transmitiu ao cônjuge sobrevivo.

17 – Nesta carta endereçada pelo Apelante aos Apelados – Doc n.º 15 da PI – refere o seguinte:

“Ex.mos Senhores,

Com os nossos melhores cumprimentos, serve a presente carta para lhe comunicar que na sequência do contrato de arrendamento celebrado em 01-03-1962, com o nosso pai, Pedro Cerqueira, falecido a 24-12-2005, que se transmitiu em consequência do seu óbito para a cônjuge sobrevivo, D. Ana Cerqueira, esse mesmo contrato, por óbito da nossa mãe, ocorrido a 21 de maio de 2022, transmitiu-se para o filho maior de ambos, Alfredo Cerqueira, solteiro, maior…, e residente no locado sito na morada Rua (…), n.º (…), 8900 – 447 Monte Gordo …nos termos do disposto no artigo 57º n.º 1 alínea e)do D.L. 6/2006 de 27 de Fevereiro (NRAU)…” – 1.º parágrafo.

18 – Mais refere:

“O referido Alfredo Cerqueira, desde que nasceu em 30-09-1963, e atenta a data da celebração do arrendamento, em 01-03-1962, já nasceu com a morada de sua residência no locado e ininterruptamente, sempre viveu com os seus pais, na morada do locado, sita em Rua (…), n.º (…) em Monte Gordo, vivendo assim, enquanto filhos do primitivos arrendatários…” – parágrafo 3.º.

19 – Na carta do Apelante endereçada aos Apelados, que constitui o documento n.º 22 da PI, este reitera:

“… se atendermos ao disposto no n.º 1 alínea f)do artigo 57º (NRAU), o mesmo não refere, nem tácita, nem expressamente que o arrendamento não se possa transmitir para a esposa ou para o filho do primitivo arrendatário , e bem assim que essa transmissão só possa ocorrer uma única e só vez.” – 2.º parágrafo.

“… é do vosso inteiro e perfeito conhecimento, que à data do óbito do primitivo arrendatário residiam no locado, a sua esposa e o filho de ambos Alfredo Cerqueira…” – 3.º parágrafo.

20 – Portanto, o próprio Apelante de forma espontânea e instintiva, refere nas suas missivas a existência de um só contrato de arrendamento celebrado com o seu pai, que se transmitiu à sua mãe, cônjuge sobrevivo.

21 – Em nenhum momento, nas suas missivas, alega a celebração de um novo contrato de arrendamento com a sua mãe após óbito do pai, primitivo arrendatário, bem pelo contrário, é referido expressamente por aquele:

“…na sequência do contrato de arrendamento celebrado em 01-03-1962, com o nosso pai, Pedro Cerqueira, falecido a 24-12-2005, que se transmitiu em consequência do seu óbito para a cônjuge sobrevivo, D. Ana Cerqueira..,”

22 – É o próprio Apelante que é peremptório em dizer que não houve outro contrato de arrendamento para além do celebrado com Pedro Cerqueira em 01/03/1962 por escrito e que corresponde ao documento n.º 4 junto com a PI, que se transmitiu à sua morte ao cônjuge sobrevivo.

23 – Assim sendo, qual seria a mais-valia a obter com a produção de prova inquirindo testemunhas, quando o Apelando não tem dúvidas e afirma-o expressamente que só está em causa um único contrato de arrendamento?

24 – A posição do Apelando neste particular é claramente assumida por escrito nas missivas trocadas com os Apelados sobre o contrato de arrendamento, um único celebrado em 01/03/1962 que se transmitira à sua mãe, cônjuge sobrevivo aquando do falecimento do primitivo arrendatário seu pai, o Apelante não deixou margens para dúvidas quanto à certeza de que o contrato era um único e que fora esse mesmo que se transmitira para a sua mãe.

25 – Assim, está demonstrado não assistir qualquer razão ao Apelante quando questiona erro na decisão sobre a matéria de facto neste particular, pugnando pela prejudicialidade de decisão por não ter havido audiência de julgamento com a produção da demais prova testemunhal, porquanto esta nada viria a alterar quanto a esta factualidade, após confissão expressa do Apelante nas cartas por si endereçadas, de que houvera transmissão do contrato de arrendamento do seu pai para a sua mãe.

26 – Suscita também o apelante má interpretação dos factos quanto ao facto dado como provado descrito na sentença n.º 13:

“Em 23.06.2022, o Réu enviou uma carta registada, com aviso de recepção, à 3.ª Autora, que foi quem sempre tratou e geriu o imóvel descrito em 2), intitulando-se cabeça de casal da Herança de Ana Cerqueira, comunicando o óbito desta e solicitando que os recibos de renda passassem a ser emitidos em nome de: “Ana Cerqueira – cabeça de casal da herança de NIF: 748.963.030”.

27 – Defende que errou o tribunal “a quo” pois quem endereçou a carta de 23/06/2022 não foi o Réu aqui Apelante mas Óscar Cerqueira irmão deste.

28 – Efectivamente a 1ª missiva é enviada ou pelo menos assinada por este irmão do Apelante que o faz, segundo descreve na qualidade de cabeça-de-casal por óbito de sua mãe, mas na verdade, a carta é endereçada no interesse e em nome do Apelante.

29 – Tal lapso em nada, absolutamente nada, melindra a apreciação da causa e aplicação do direito e consequentemente não interfere/belisca minimamente a decisão proferida.

30 – É falso o constante no ponto 35 das alegações, que:

“Pois os factos dados por provados em 14. a 20 dos factos dados por provados, enfermam de erro na sua apreciação, pois, a troca de correspondência não é com o R., aqui recorrente, Alfredo Cerqueira, mas sim com o seu irmão, Óscar Cerqueira.”

31 – E no ponto 39 das alegações, que:

“Ora como atrás se disse, e resulta da motivação da matéria de facto, constante da douta decisão recorrida que esta fez a apreciação dos documentos juntos pelos AA. na sua P.I., contudo, não se apercebeu a douta decisão recorrida que as referidas cartas não haviam sido remetidas nem recebidas pelo R., aqui recorrente.”

32 – Analisando e lendo as cartas trocadas entre Apelante e Apelados, verifica-se que só a 1ª missiva de 23/06/2022 (Doc n.º 8) é que foi alegadamente enviada pelo irmão do Apelante, mas em nome e no interesse directo deste.

33 – Todas as demais missivas de resposta, datadas de 26/10/2022 e 21/11/2022 documentos n.ºs 15 e 22 da PI, foram enviadas e assinadas também pelo próprio Apelante Alfredo Cerqueira.

34 – Basta ler as respectivas missivas!

35 – Concluindo, que o tribunal” a quo” tinha todas as condições para decidir de mérito no despacho saneador como fez, condições essas a que anuiu o Apelante ao manter-se em silêncio quando convidado a exercer o princípio do contraditório sobre a imediata apreciação do mérito da causa.

36 – Conclui-se que o tribunal apreciou correctamente a matéria de facto dada como provada e relevante à decisão, que se sustentou quer na matéria que se mostrou assente por aceite na generalidade pelo Apelante, o que determina considerar-se tais factos admitidos por acordo e, bem assim, nos documentos juntos com a PI.

37 – Conclui-se que o tribunal “a quo” apreciou todas as questões de facto suscitadas pelo Apelante na sua contestação, e fê-lo desde logo com base nas suas missivas, donde resulta confissão expressa e conhecimento directo quanto ao entendimento de existência de um único contrato de arrendamento celebrado a 01/03/1962 que foi transmitido ao cônjuge sobrevivo aquando do falecimento do primitivo arrendatário, contrato este que atento as normas legais aplicáveis caducou com o falecimento daquela em 21/05/2022.

38 – Pelo que, mostra-se a sentença recorrida irrepreensível, quer na decisão da matéria de facto, quer na decisão de direito que se lhe segue, não merecendo qualquer reparo!

39 – Devendo assim, ser negado provimento ao recurso apresentado pelo Apelante, mantendo-se integralmente a sentença proferida pelo tribunal “a quo”.

O recurso foi admitido.

*

Questões a decidir:

1 – Nulidade da sentença recorrida;

2 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

3 – Verificação dos pressupostos da prolação de saneador-sentença;

4 – Transmissão da posição contratual do primitivo arrendatário.

*

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1 – Por óbito de José Ferreira, ocorrido em 11.10.1960, no estado de casado com Lucinda Lobo no regime de comunhão geral de bens, procedeu-se a inventário orfanológico, que correu termos na 2.ª Secção de Processos do Sexto Juízo da Comarca do Porto.

2 – A herança aberta por óbito de José Ferreira integrava, entre outros, o prédio urbano, térreo, afecto para habitação, de um piso, com 6 divisões sito na Praia de Monte Gordo, Rua (…), n.º (…) da freguesia de Monte Gordo, concelho de Vila Real de Santo António, inscrito na matriz sob o artigo n.º (…), anterior artigo de matriz n.º (…) da anterior freguesia de Vila Real de Santo António, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Real de Santo António sob o n.º (…) da freguesia de Monte Gordo.

3 – O prédio urbano descrito em 2) foi adjudicado aos filhos do casal, à data todos menores de idade: António Ferreira, Carlos Ferreira, Idalina Ferreira, Dário Ferreira e Óscar Ferreira.

4 – Pela Ap. 4 de 19.08.1982, foi registada a aquisição, por adjudicação em inventário obrigatório, a favor do Autor António Ferreira, na proporção de 1/5, do Autor Carlos Ferreira, na proporção de 1/5, de Dário Ferreira, na proporção de 1/5, de Óscar Ferreira, na proporção de 1/5 e da Autora Idalina Ferreira na proporção de 1/5, do imóvel referido em 2).

5 – Dos cinco filhos de José Ferreira, entretanto, faleceram Dário Ferreira, em 19.09.1985, tendo-lhe sucedido a sua mãe, Lucinda Lobo, esta também falecida em 21.07.2009 e Óscar Ferreira, em 04.03.2005, tendo-lhe sucedido a sua mulher Célia Ferreira e os seus filhos Laura Ferreira e Rui Ferreira.

6 – Pela Ap. 495 de 14.11.2011, foi registada a aquisição, da quota de 1/5 do imóvel descrito em 2 ), em comum e sem determinação de parte ou direito, por dissolução da comunhão conjugal e por sucessão por óbito de Óscar Ferreira, a favor dos Autores Célia Ferreira, Laura Ferreira e Rui Ferreira e da quota de 1/5 do mesmo imóvel, em comum e sem determinação de parte ou direito, por sucessão por óbito de Lucinda Lobo, a favor dos Autores Idalina Ferreira, António Ferreira, Carlos Ferreira, Laura Ferreira e Rui Ferreira.

7 – Por documento pré-elaborado, em impresso, denominado de “contrato de arrendamento”, datado de 28.02.1962, Lucinda Lobo, viúva de José Ferreira, na qualidade de tutora dos filhos menores, cedeu a Pedro Cerqueira, o uso e fruição, para habitação, do prédio urbano descrito em 2).

8 – O contrato de arrendamento referido em 7 foi celebrado pelo prazo de um ano, a iniciar em 01.03.1962, e a findar em 28.02.1963, “devendo considerar-se prorrogado por períodos sucessivos de um ano enquanto por qualquer das partes não houver despedida com a antecipação legal.”

9 – Pedro Cerqueira faleceu em 24.12.2005, no estado de casado com Ana Cerqueira, sob o regime de comunhão geral de bens.

10 – Ana Cerqueira permaneceu a habitar o imóvel descrito em 2), até à data do seu falecimento, ocorrido em 21.05.2022, o que fez juntamente com o seu filho, Alfredo Cerqueira, aqui réu, nascido em 1963, sendo essa a casa de morada da família.

11 – Desde o falecimento do seu marido em 24.12.2005 e até à data do seu próprio óbito, Ana Cerqueira procedeu ao pagamento da renda fixada, a qual era recebida pelos Autores, que lhe emitiam os respectivos recibos em seu nome.

12 – Em Abril de 2022 o valor da renda mensal ascendia a € 101,30.

13 – Em 23.06.2022, o Réu enviou uma carta registada, com aviso de recepção, à 3.ª Autora, que foi quem sempre tratou e geriu o imóvel descrito em 2), intitulando-se cabeça de casal da Herança de Ana Cerqueira, comunicando o óbito desta e solicitando que os recibos de renda passassem a ser emitidos em nome de Ana Cerqueira cabeça de casal da herança de NIF: 748.963.030.

14 – A carta referida em 13) não estava acompanhada do assento de óbito de Ana Cerqueira.

15 – Em resposta, a 3.ª Autora enviou ao Réu, carta registada com aviso de recepção, em 13.07.2022, a qual foi recebida a 14.07.2022, com o seguinte teor: “Acuso a recepção da carta enviada com data de 23/06/2022 que mereceu a nossa melhor atenção! Considerando a data de início do contrato de arrendamento em causa, em 01/03/1962, em nome de Pedro Cerqueira, falecido em 24/12/2005, data em que o arrendamento se transmitiu à cônjuge sobreviva D. Ana Cerqueira, e atento a sua informação do falecimento desta, em data que desconhecemos, em princípio e com grande certeza de raciocínio, com base nas normas legais aplicáveis, não haverá lugar à transmissão do arrendamento. Assim sendo, deve o cabeça de casal entregar/restituir o imóvel livre de pessoas e bens no prazo máximo de 6 meses, a contar da data do facto que determina a caducidade, ou seja, a contar da data do óbito da D. Ana Cerqueira. Atento a falta de informação facultada na sua missiva precedente, interpela se V.ª Ex.ª nos termos e para os efeitos do art.º 1107º do código civil, a juntar cópia do Assento de Óbito da D. Ana Cerqueira, sem prejuízo de ficar já devidamente informado, que se desconhecem factos que determinem a transmissão do arrendamento, ao invés sim, a caducidade do contrato de arrendamento face ao óbito comunicado, e desta feita, estarem cientes da obrigatoriedade de restituição do imóvel no prazo de 6 meses, a contar da data do óbito. Aguarda-se assim, envio da cópia do assento de óbito.”

16 – Não tendo recebido resposta à carta referida em 15), a 3.ª Autora enviou ao Réu, nova carta registada com aviso de recepção, em 22.09.2022, a qual foi recepcionada a 23.09.2022, com o seguinte teor: “Tendo-lhe sido enviada carta registada em 13/07/2022, que foi por V.ª Ex.ª recepcionada a 14/07/2022, na sequência da vossa missiva de 23/06/2022 dando conhecimento do falecimento de sua mãe, arrendatária do locado sito na Praia de Monte Gordo em Vila Real de Santo António, até ao momento não foi recepcionada a documentação solicitada e à qual está obrigado a apresentar, a saber o Assento de Óbito de sua mãe, arrendatária D. Ana Cerqueira, ao abrigo do art.º 1107º do código civil. Assim, faculta-se o prazo definitivo de 8 dias para apresentação do Assento de Óbito. Caso assim não proceda, será instaurada a competente Notificação Judicial Avulsa para o interpelar judicialmente para o efeito, alertando que, nos termos do n.º 2 do artigo referido, a inobservância desta obrigação, origina indemnização pelo faltoso por todos os danos derivados desta omissão legal.”

17 – Em resposta, o Réu enviou à 3.ª Autora, uma carta registada com aviso de recepção, datada de 26.10.2022, com o seguinte assunto: “Transmissão do Arrendamento por morte do arrendatário. Para filho Alfredo Cerqueira portador de deficiência/incapacidade superior a 60%, que convivia com o falecido há mais de um ano artigo 57º, n.º 1, alínea e) do DL n.º 6/2006 (NRAU)”, e com o seguinte teor: “… serve a presente carta para lhe comunicar que na sequência do contrato de arrendamento celebrado em 01.03.1962 com o nosso pai, Pedro Cerqueira, falecido em 24.12.2005, que se transmitiu em consequência do seu óbito para o cônjuge sobrevivo, nossa mãe, D. Ana Cerqueira, esse mesmo contrato, por óbito da nossa mãe, ocorrido no passado dia 21 de Maio de 2022, transmitiu-se para o filho maior de ambos, Alfredo Cerqueira, solteiro, maior,…onde nasceu em 30/06/1963..., e residente no locado sito na morada Rua (…), n.º (…), 800 447 Monte Gordo…, nos termos do disposto no art.º 57º n.º 1 alínea e) do D.L. n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU).” (…) “…o referido Alfredo Cerqueira, desde que nasceu em 30/09/1963, e atenta a data da celebração do arrendamento, em 01/0/1962, já nasceu com a morada de sua residência no locado e ininterruptamente, sempre viveu com os seus pais, no amorada do locado, sita….., vivendo assim enquanto filhos do primitivo arrendatários, há muito mais de um ano no locado, como resulta do teor do atestado de residência emitido pela Junta de freguesia de Monte Gordo em 21.07.2022.” (…) “….é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%, no caso a incapacidade definitiva que padece é de 75%...como se demostra e resulta do teor do atestado médico de incapacidade multiuso, emitido pela ARSAlgarve ACES em 12.09.2013 que se junta…” (…) “solicita-se… o reconhecimento do direito à transmissão do arrendamento e nessa sequência se requer que o recibo das rendas mensais passe a ser emitido em nome de Alfredo Cerqueira, solteiro, maior, natural da freguesia e concelho de Caldas da Rainha…”.

18 – Com a carta referida em 17), o Réu procedeu à junção do assento de óbito de Ana Cerqueira, bem como o atestado de residência emitido pela Junta de Freguesia de Monte Gordo e Atestado médico de incapacidade.

19 – A esta carta, respondeu a 3.ª Autora, com aviso de recepção enviada ao Réu, em 15.11.2022 e por si recepcionada a 21.11. 2022, com o seguinte teor: “Acuso a recepção da vossa carta de 26/10/2022 recepcionada a 03/11/2022 a qual mereceu a melhor atenção, e sobre o seu teor, cumpre-me transmitir o seguinte: Antes de mais, lamenta-se o tempo decorrido até que fosse facultado o assento de óbito da Sr.ª D. Ana Cerqueira para se aferir da sua data de falecimento que nunca foi indicada, nem este documento foi junto como se impunha por V.ªs Exªs, desde logo na carta de comunicação do falecimento em Junho passado, continuou esta imposição legal ignorada com a interpelação da minha 1ª carta enviada em 13/07/2022 e mesmo com uma 2ª interpelação por carta de 23/09/2022, V.ªs Ex.ºs arrogam se “no direito” de responder, juntando finalmente o imperativo assento de óbito, por carta agora recebida a 03/11/2022. Posto isto, e no que à transmissão do arrendamento diz respeito, agora munida de todos os documentos necessários, sou a informar que não reconheço o direito à transmissão do arrendamento ao filho da falecida arrendatária, Sr. Alfredo Cerqueira, atento as normas legais aplicáveis ao caso concreto. Assim, e de forma muito objectiva, esclarece-se, que: O contrato de arrendamento em questão referente ao imóvel sito na Rua (…), nr.(…) em Monte Gordo, Algarve, foi celebrado pela inventariada Sr.ª D. Lucinda Lobo em 28/02/1962 ao Sr. Pedro Cerqueira, que faleceu em 24 12 2005, dando-se nesta data a transmissão do mesmo a favor da sua esposa, Sr.ª D. Ana Cerqueira, falecida a 21/05/2022. Trata se de um contrato de arrendamento habitacional celebrado antes da entrada em vigor do RAU (Regime do Arrendamento Urbano) Decreto Lei nº 321 B /90 de 15/10, que entrou em vigor a 19/11/1990. A este contrato de arrendamento, no que concerne à transmissão por morte, aplica-se o regime do NRAU (Novo Regime do Arrendamento Urbano) previsto na Lei n.º 06/2006 de 07/02 na sua versão actual, concretamente a norma prevista no art.º 57º por força do estatuído nos artºs 26º n.º 2º e 28.º n.º 1 do mesmo diploma. E este art.º 57º regula a não caducidade do contrato de arrendamento por morte do primitivo arrendatário, e aqui interprete-se, pela morte da pessoa que originalmente celebrou o contrato de arrendamento com a senhoria, o pai de V.ªs Ex.ªs portanto, o Sr. Pedro Cerqueira. Ora, tendo já ocorrido a transmissão do primitivo arrendatário para o respectivo cônjuge, perante a norma legal aplicável ao caso concreto, não é possível nova transmissão a partir da transmissária da posição contratual, isto independentemente dos motivos invocados, de se tratar de um filho que sempre viveu no imóvel arrendado com os seus pais, e de padecer de um grau de incapacidade superior a 60%. A norma legal do art.º 57º n.º 1 al. e) do NRAU (Lei n.º 06/2006 versão actual) estaria bem indicada, não fosse o teor do n.º 1 que dispõe: “O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva: Ora, conforme já referido e é uma constatação factual, a transmissão já não vem do primitivo arrendatário, mas sim da transmissária deste direito, e terminam aqui as transmissões, com o falecimento da cônjuge a quem se transmitiu já o direito ao arrendamento! Pelo exposto, não havendo lugar à transmissão do arrendamento por falecimento da Sr.ª D. Ana Cerqueira, recorda se V.ªs Ex.ªs que o imóvel deverá ser entregue livre de pessoas e bens pelo cabeça de casal, no prazo máximo de 6 meses a contar da data do óbito 21/05/2022, facto que determina a caducidade do contrato de arrendamento. Assim, espera-se e solicita-se que o imóvel seja entregue/restituído através da entrega de todas as suas chaves, até ao dia 21/11/2022, sob pena, de serem accionadas a partir desta data, as diligências necessárias para a libertação e entrega do imóvel.”

20 – O Réu respondeu por carta registada com A/R enviada à 3.ª Autora, datada de 21.11.2022, onde resumidamente reitera os argumentos já invocados nas cartas anteriores, e o pedido de reconhecimento do direito à transmissão do arrendamento e emissão das rendas em seu nome.

21 – Não houve mais troca de correspondência entre as partes até à data.

22 – Até à data, o Réu não procedeu à entrega aos Autores do imóvel, continuando a habitá-lo.

*

1 – Nulidade da sentença recorrida:

O recorrente sustenta que a sentença recorrida padece de várias nulidades.

1.1. A primeira nulidade resultaria de a sentença recorrida ter sido proferida sem a produção e a apreciação da prova indicada pelas partes, o que teria determinado uma incorrecta decisão da matéria de facto, com omissão de pronúncia sobre factos essenciais alegados pelo recorrente. Segundo este, o vício descrito preenche a previsão das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

A al. b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC estabelece que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. É recorrente a afirmação de que esta nulidade só se verifica na hipótese de absoluta ausência de fundamentação, de facto ou de direito. Esta tomada de posição encontra amparo na sempre imprescindível lição de JOSÉ ALBERTO DOS REIS[1]. A essa hipótese, vem a melhor jurisprudência equiparando a de a fundamentação, de facto ou de direito, ser de tal modo incompleta que torne a decisão incompreensível, isto é, que não permita, aos seus destinatários, a percepção das razões de facto e de direito que determinaram o tribunal a decidir como decidiu.[2]

Todavia, nem sequer à luz desta concepção mais ampla se verifica a nulidade em questão. A sentença recorrida encontra-se fundamentada, quer de facto, quer de direito. As consequências da prolação de saneador-sentença sem que se verifiquem os pressupostos para o efeito exigidos pela lei são de outra natureza. Analisaremos esta questão no ponto 3.

A al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC estabelece que a sentença é nula quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. O recorrente tem em vista o disposto na 1.ª parte desta norma.

Também esta nulidade não se verifica. A sentença recorrida pronunciou-se sobre todas as questões que se suscitavam, nomeadamente a de saber se a mãe do recorrente adquiriu a posição contratual do seu falecido marido no contrato de arrendamento por efeito da morte deste, questão esta essencial para resolver a de saber se o recorrente, por seu turno, adquiriu essa mesma posição contratual por efeito da morte de sua mãe. Se a sentença recorrida tiver conhecido aquela questão sem considerar um facto que devesse ter considerado, nomeadamente por não ter havido oportunidade para sobre ele se produzir prova, ter-se-á verificado um erro de julgamento, mas não a nulidade prevista na 1.ª parte da d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC. Também analisaremos esta questão no ponto 3.

1.2. Por outro lado, a sentença seria nula pelo seguinte: o tribunal a quo decidiu erradamente no n.º 13 dos factos provados, pois a carta em questão é da autoria, não do recorrente, mas do seu irmão; em consequência, todos os factos deste dependentes (n.ºs 14 a 20) estão também “apreciados em erro”; tal erro de julgamento da matéria de facto, com influência na decisão da causa, determina “a ausência de fundamentação e de motivação da matéria de facto, o que (…) determina a nulidade da (…) sentença recorrida por erro de julgamento e violação de lei”.

Apesar de o recorrente não indicar a alínea do n.º 1 do artigo 615.º do CPC que prevê a nulidade que invoca, resulta da argumentação por aquele expendida que está em causa a al. b). Ora, esta nulidade não se verifica, como concluímos em 1.1. O erro de julgamento não se confunde com a falta de fundamentação da decisão.

1.3. Finalmente, o recorrente considera que, devido a uma “errada aplicação do direito por violação da lei”, a sentença recorrida é nula. Tal como na arguição de nulidade analisada em 1.2, o recorrente não indica que alínea do n.º 1 do artigo 615.º do CPC tem em vista. Porém, agora, não divisamos qual possa ser essa alínea, porquanto nenhuma delas prevê algo que se assemelhe a uma “errada aplicação do direito por violação da lei”.

2 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

O recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto, considerando que o n.º 13 do enunciado dos factos provados contém um erro de julgamento porquanto resulta do documento junto à petição inicial sob o n.º 6 que o autor da carta aí referida não foi ele, mas sim o seu irmão. Considera ainda o recorrente que os factos constantes dos n.ºs 14 a 20, por estarem dependentes daquele, “estão também apreciados em erro (…) e em violação de lei”, “enfermam de erro na sua apreciação”. Segundo o recorrente, a troca de correspondência não foi consigo, mas sim com o seu irmão, tendo este erro de julgamento influenciado a decisão do tribunal a quo.

O recorrente não fundamenta esta última afirmação, ou seja, não explicita a razão pela qual considera que o facto de ser ele próprio ou o irmão o autor das cartas referidas nos n.ºs 13, 14, 17, 18 e 20 (as referidas nos n.ºs 15, 16 e 19 são da recorrida Idalina Ferreira) influencia o sentido da decisão. Limita-se a produzir tal afirmação, no ponto 40 do corpo das alegações e na conclusão x), sem mais.

Não divisamos em que medida a identidade do autor das cartas em questão releve para a decisão da causa. Lendo a fundamentação da sentença recorrida, resulta evidente que a autoria daquelas cartas foi irrelevante para a decisão da causa. E, na realidade, essa autoria é, efectivamente, irrelevante. Relevante é saber se a mãe do recorrente adquiriu a posição contratual do seu falecido marido no contrato de arrendamento por efeito da morte deste e, na hipótese afirmativa, se a lei permite uma segunda transmissão daquela posição contratual, por morte da anterior transmissária, para o recorrente. Para resolver qualquer destas questões, é absolutamente irrelevante que a morte da anterior arrendatária tenha sido comunicada aos recorridos pelo próprio recorrente ou pelo irmão deste, ou quem foi o autor das cartas subsequentes. Não está em causa a autoria, o conteúdo ou a tempestividade de qualquer dessas cartas.

Sendo assim, a reapreciação da prova com vista a ajuizar se a questão da autoria das cartas referidas nos n.ºs 13, 14, 17, 18 e 20 foi bem julgada pelo tribunal a quo seria um acto inútil, proibido pelo artigo 130.º do CPC, que consagra o princípio da limitação dos actos. Qualquer que fosse o resultado dessa reapreciação, a decisão da causa seria a mesma. Deverá, pois, manter-se o decidido pelo tribunal a quo.

3 – Verificação dos pressupostos da prolação de saneador-sentença:

O recorrente sustenta que o tribunal a quo não podia conhecer do mérito da causa no despacho saneador porquanto alegou factos, para o efeito essenciais, que careciam de prova testemunhal, por declarações de parte e por depoimentos de parte, e que, por essa razão, não foram tidos em conta.

Vejamos se o recorrente tem razão.

O artigo 595.º, n.º 1, do CPC, dispõe que o despacho saneador se destina a: a) Conhecer das excepções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente; b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.

Doutrina e jurisprudência convergem quanto à natureza excepcional da possibilidade de conhecer do mérito da causa no despacho saneador e ao grau de exigência no tocante aos respectivos pressupostos legais.

Assim, apenas em situações excepcionais o estado do processo permitirá, sem necessidade de mais provas, conhecer do mérito da causa logo após o final da fase dos articulados, prescindindo-se das fases da instrução e do julgamento. “Normal é que o juiz (não estando ainda realizada a parte fundamental da instrução do processo) não possa conhecer da matéria no momento em que profere o despacho saneador. Excepcional é que, com o encerramento dos articulados, o julgador tenha à sua disposição todos os factos que interessam à resolução da questão de direito exclusivamente suscitada pelas partes, ou encontre nos autos todos os elementos de prova essenciais ao julgamento da matéria de facto envolvida no litígio”[3].

Tal excepcionalidade decorre, nomeadamente, do grau de exigência subjacente ao citado artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC. A possibilidade de conhecimento do mérito da causa na fase de saneamento do processo, embora justificada pelo princípio da economia processual, não pode redundar em práticas processuais que prejudiquem a prova da factualidade relevante alegada pelas partes e o debate das propostas de solução jurídica do litígio por estas apresentadas, diversas daquela que o juiz, no momento do saneador, antevê como sendo a correcta. Mais concretamente, só pode conhecer-se do pedido no saneador se, logo nessa fase, o processo contiver todos os elementos que possibilitem a tomada de decisões de acordo com as várias soluções jurídicas plausíveis. Se, no momento do saneador, o processo apenas contiver elementos idóneos para sustentar uma das diversas soluções possíveis do litígio, o juiz, por muito convicto que esteja do acerto dessa solução, deverá abster-se de proferir saneador-sentença e, em vez disso, deverá fazer prosseguir o processo até à fase de julgamento.

Esta orientação é pacífica na jurisprudência, podendo citar-se, a título de exemplo, os seguintes acórdãos: RP de 10.03.2009 (Canelas Brás), RL de 22.01.2013 (Orlando Nascimento) e 14.11.2013 (Tibério Silva) e RE de 14.11.2013 (José Lúcio). No mesmo sentido se decidiu nos acórdãos da RE de 24.05.2018 e 17.12.2020, cujo relator foi o mesmo deste acórdão.

Segundo o recorrente, os factos para cuja prova o processo devia ter seguido para a fase da audiência final são os alegados nos artigos 16.º a 18.º, 20.º a 26.º e 45.º a 53.º da contestação, que transcrevemos:

“16. Em rigor, dir-se-á que, em 24-12-2005, data do falecimento de Pedro Cerqueira, sobreviveu-lhe a esposa Ana Cerqueira, com que estava caso sob o regime da comunhão de adquiridos, e os dois filhos, tendo todos desde 01 de março de 1962, residência habitual e permanente no locado que corresponde ao imóvel identificado na PI dos Autores.

17. Dessa forma, Ana Cerqueira, passou após 24-12-2005, a ser reconhecida e aceite por todos os AA., como arrendatária,

18. Sendo eu nesse sentido, os AA., passaram a emitir os competentes recibos mensais referentes ao pagamento da renda em nome de Ana Cerqueira. – Doc. n.º 6 e Doc. n.º 7 – juntos à PI dos AA.

20. Como atrás se disse Pedro Cerqueira, faleceu em 24-12-2005, facto que é do inteiro e perfeito conhecimento de todos os AA..

21. Pedro Cerqueira, à data do óbito, residia no locado que se referem os presentes autos, sendo essa a casa de morada da sua família.

22. Pedro Cerqueira, à data do óbito, estava casado sob o regime da comunhão geral de bens com Ana Cerqueira.

23. À data do óbito de Pedro Cerqueira, vigorava o RAU - D.L. n.º n.º 321-B/90 de 15 de Outubro, e,

24. Esse mesmo diploma legal, que vigorava à data do óbito de Pedro Cerqueira, em 24-12-2005, tinha como regra a não transmissibilidade do arrendamento para o cônjuge.

25. E apesar de se considerar durante mais de 44 anos que desde 28-02-1962 até ao dia 27-06-2006 (NRAU) que o direito do arrendatário não se comunicava ao cônjuge.

26. Tal facto deixou de ser assim, em 2006, com a aplicação da Lei n.º 6/2006, que, regulando para o arrendamento de prédios urbanos, procedeu á reposição do art. 1068.º do CCivil, com a seguinte redação: "O direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente".

46. Sendo que à data do óbito de Pedro Cerqueira, 24-12-2005, estava em vigor o RAU, e que decorrente desse regime, até à Lei n.º 6/2006 (mais propriamente até ao dia 26 de junho de 2006) o arrendamento não se comunicou à Ré., e,

47. Se o contrato de arrendamento outorgado por Joaquim Carolino em 28-02-1962, não se transmitiu a Ana Cerqueira sua mulher, por força da lei em vigor à data do óbito de Pedro Cerqueira, a que título passou ela e a demais família a incluindo o aqui R., a habitar o locado), e ao abrigo de que contrato?, Ora,

48. Os AA., bem sabendo e não ignorando que essa incomunicabilidade do arrendamento celebrado por Pedro Cerqueira em 28-02-1962, não se comunicava a Ana Cerqueira, por força da Lei em vigor RAU, continuaram a receber desta as rendas, emitindo recebidos em seu nome, e,

49. Fizeram-no a que título? se o regime em vigor era o da não transmissibilidade, então só o poderiam ter feito ao abrigo de um novo contrato. Pois,

50. Os AA., ao permitirem a permanência de Ana Cerqueira no locado, após 24-12-2005, dela recebendo as rendas e a ela emitindo os competentes recibos mensais, celebraram com a mesma um novo contrato de arrendamento, que não chegaram a reduzir a escrito, com todas as consequências dai decorrentes.

51. Ora nesse caso, uma vez mais, deparamo-nos novamente com o regime transitório e com o estatuído na no NRAU (lei 6/2006) após 27-06-2006, pelo que considerando a existência de um novo contrato de arrendamento, à data da entrada em vigor do NRAU, a arrendatária no dia 27-06-2006, era inquestionavelmente também a falecida mãe do R., Ana Cerqueira, que à luz do NRAU, era a primitiva arrendatária.

52. Posto isto, também por essa via, existe à luz do NRAU, desde 27-06-2006, a transmissão desse arrendamento para o aqui R., filho de Ana Cerqueira,

53. Que por aplicação do NRAU, também o direito a ver ser transmitido para si o arrendamento, ao abrigo do disposto no artigo 57.º n.º 1 alínea e), da Lei n.º 6/2006, que dispõe “O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:” – “e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 %.”, o que é o caso dos presentes autos como comunicado pelo R. e resulta de todos os documentos juntos aos autos.”

Os artigos 23.º a 26.º e 46.º a 53.º contêm exclusivamente matéria de direito, logo insusceptível de ser objecto de prova. Não compreendemos a pretensão do recorrente de interrogar testemunhas ou as partes sobre qual era o regime do arrendamento urbano que vigorava na data da morte de seu pai, ou sobre o conteúdo desse regime em matéria de comunicabilidade da posição contratual do arrendatário e de transmissão desta por morte do arrendatário. Certamente o recorrente não pretende que, das hipotéticas respostas que dessem, as testemunhas ou as partes retirassem conclusões sobre se a sua mãe devia ser qualificada como primitiva arrendatária ou como mera transmissária da posição contratual do seu falecido marido, e que o tribunal a quo julgasse “provadas” tais conclusões. Tudo isto constitui pura matéria de direito, insusceptível de prova.

Os factos alegados nos artigos 16.º e 20.º e 22.º constam dos n.ºs 9 e 10 do enunciado da matéria de facto provada.

O conteúdo do artigo 17.º é puramente conclusivo.

O facto alegado no artigo 18.º consta do n.º 11 da matéria de facto provada.

O facto alegado no artigo 21.º resulta dos n.ºs 7, 9 e 10 da matéria de facto provada.

Concluímos, assim, que todos os factos relevantes para a decisão da causa se encontravam provados no momento em que o tribunal a quo proferiu o despacho saneador. Consequentemente, o tribunal a quo podia e devia decidir a causa neste despacho. O prosseguimento do processo para a fase de julgamento nessas circunstâncias violaria o disposto no artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC, e não teria qualquer utilidade, antes constituindo uma pura perda de tempo e um desperdício de recursos.

No entanto, para que não restem dúvidas sobre o acerto da conclusão que acabámos de enunciar, foquemos a nossa atenção, especificamente, sobre a pretensão do recorrente de ser produzida prova sobre a alegada celebração de um contrato de arrendamento com sua mãe.

O recorrente não alegou que, em determinadas circunstâncias de tempo e lugar, sua mãe tenha celebrado, com os recorridos, um contrato de arrendamento. A referência que, na contestação, é feita a esse hipotético contrato de arrendamento, tem natureza conclusiva. Em resumo, o recorrente sustenta que, por força do regime legal vigente à data da morte de seu pai, a posição contratual deste no contrato de arrendamento não se transmitiu para sua mãe. Logo, na tese do recorrente, tendo sua mãe passado, a partir da data da morte de seu pai, “a ser reconhecida e aceite”, como arrendatária, por todos os recorridos, os quais passaram a emitir os recibos de renda em seu nome, tem de se considerar celebrado um novo contrato de arrendamento entre sua mãe e os recorridos (artigos 49.º e 50.º da contestação).

Ou seja, a celebração do hipotético contrato de arrendamento entre a mãe do recorrente e os recorridos não é alegada como um facto, mas sim invocada como uma conclusão decorrente da apreciação dos factos da permanência da primeira no locado, da continuação do pagamento da renda e da emissão dos respectivos recibos após a morte do pai do recorrente, à luz daquele que se considera ser o regime jurídico então vigente. Logo, estando provados estes factos (n.ºs 10 e 11 do enunciado dos factos provados), a celebração daquele contrato de arrendamento poderia constituir uma conclusão baseada numa determinada interpretação da lei em vigor à data da morte do pai do recorrente, mas não um facto susceptível de prova directa. No fundo, o recorrente parece pretender alegar que aquele hipotético contrato de arrendamento se formou através de declarações negociais tácitas de sua mãe (ao permanecer no locado e pagar a renda) e dos recorrentes (ao não se oporem àquela permanência, aceitarem o pagamento da renda e emitirem os respectivos recibos). A esse respeito, nada mais é alegado, pelo que nada há a provar.

Sai, assim, reforçada a conclusão de que, no momento da prolação do despacho saneador, o estado do processo permitia o conhecimento do mérito da causa sem necessidade de mais provas. Estando, assim, verificados os pressupostos da prolação de saneador-sentença, o tribunal a quo limitou-se a cumprir o disposto no artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC, não sendo esta opção merecedora de censura.

4 – Transmissão da posição contratual do primitivo arrendatário:

Acerca desta questão, o tribunal a quo expendeu argumentação que assim sintetizamos:

- O pai do recorrente morreu em 24.12.2005;

- Consequentemente, o seu casamento com a mãe do recorrente extinguiu-se nessa mesma data;

- Vigorava, então, o RAU, que estabelecia a regra da não comunicabilidade do direito do arrendatário ao seu cônjuge;

- Daí que a mãe do recorrente não tenha beneficiado do regime estabelecido no artigo 1068.º do CC, na redacção introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27.02 (NRAU), segundo o qual o direito do arrendatário se comunica ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente;

- Não sendo contitular da posição contratual do pai do recorrente, a mãe deste, ao enviuvar, adquiriu essa posição contratual nos termos do artigo 85.º, n.º 1, al. a), do RAU, não podendo, logicamente, ser qualificada como “primitiva arrendatária” para o efeito do disposto no artigo 57.º, n.º 1, al. e), do NRAU, na redacção em vigor à data da sua morte (21.05.2022);

- Consequentemente, a posição de arrendatário não se transmitiu para o recorrido, por morte da mãe deste, nos termos desta última norma legal, tendo o contrato de arrendamento caducado por efeito daquela morte.

A esta argumentação, o recorrido não conseguiu, nas suas alegações de recurso, contrapor outra com um mínimo de sentido.

Claramente afastado, fica o pressuposto jurídico da tese do recorrente segundo a qual, após a morte do pai do recorrente, a mãe deste e os recorridos celebraram um novo contrato de arrendamento. A posição contratual de arrendatário não integrava o património comum dos cônjuges, pelo que, por morte do pai do recorrente, a mãe deste adquiriu aquela posição por transmissão nos termos do artigo 85.º, n.º 1, al. a), do RAU. Foi com base nesse título que a mãe do recorrente permaneceu no locado até à data da sua morte, não num alegado novo contrato de arrendamento, que nunca existiu.

Toda a restante argumentação expendida pelo recorrente nas suas alegações de recurso foi refutada nos pontos anteriores. O tribunal a quo decidiu bem, com base em fundamentação juridicamente irrepreensível, pelo que o saneador-sentença recorrido deverá manter-se, improcedendo o recurso.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o saneador-sentença recorrido.

Custas a cargo do recorrente, sem prejuízo do decidido em matéria de apoio judiciário.

Notifique.

*

Évora, 08.02.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta)



[1] Código de Processo Civil Anotado, volume V (reimpressão), Coimbra Editora, 1981, p. 140.

[2] Acórdãos do STJ de 02.03.2011 (Sérgio Poças) e da RP de 06.09.2021 (Carlos Gil).

[3] ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada, p. 385)

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

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