Processo n.º 2524/21.7T8PTM-F.E1
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Sumário:
1 – Se o detentor de um
documento cuja apresentação seja ordenada pelo tribunal pretender recusar-se a
fazê-lo, ou pretender fazê-lo com ocultação de parte do conteúdo do documento, mediante
a invocação de justa causa – sigilo bancário, protecção de dados pessoais ou
outra –, tem o ónus de o fazer até ao momento processual previsto no artigo
417.º, n.º 3, do CPC.
2 – Não o fazendo, fica
precludida a possibilidade de o detentor do documento recusar a apresentação do
documento, ou de o apresentar ocultando parte do conteúdo deste, mediante a
invocação da referida justa causa.
3 – Tendo o detentor do
documento recusado a apresentação deste no momento processual previsto no
artigo 417.º, n.º 3, do CPC, mediante a invocação de que o mesmo se encontra
sujeito a sigilo bancário, e decidindo o tribunal previsto no artigo 135.º, n.º
3, do CPP no sentido da quebra do sigilo, está vedado, àquele, apresentar o
documento ocultando parte do seu conteúdo, ainda que invocando que o faz em
cumprimento do regime jurídico da protecção de dados pessoais.
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Autora/recorrente:
- Banco 1, S.A..
Réus/recorridos:
- Sociedade 1, S.A.;
- Sociedade 2, Lda.;
- João Matos.
Antecedentes do despacho
recorrido:
- Na audiência prévia, os réus
requereram a notificação da autora, nos termos do artigo 429.º do CPC, para juntar
aos autos as deliberações do seu conselho de administração que recaíram sobre
as propostas apresentadas pela ré e pela sociedade «Pureza», bem como eventuais
informações/avaliações que instruíram e fundamentaram tais deliberações.
- Pronunciando-se sobre o requerimento
dos réus, a autora pugnou pelo seu indeferimento, com os seguintes fundamentos:
a) Os documentos cuja junção aos autos os réus pretendem não são idóneos para a
prova dos factos por estes indicados; b) Os documentos relativos à apreciação e
à decisão da proposta de compra do imóvel apresentada pela «Pureza»
encontram-se abrangidos por sigilo bancário, nos termos do artigo 78.º do
Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.
- Foi proferido despacho ordenando a
notificação da autora para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos os documentos
mencionados no requerimento dos réus.
- Na sequência da sua notificação, a
autora declarou não existirem deliberações do seu conselho de administração
sobre as propostas apresentadas pela ré, juntou uma cadeia de emails com
apreciação e decisão dos termos da resposta à proposta apresentada pela ré e
recusou a junção das deliberações do seu conselho de administração sobre a
proposta apresentada pela «Pureza», bem como de outras informações e elementos respeitantes
à apreciação e decisão de tal proposta, invocando que os mesmos se encontram
abrangidos por sigilo bancário, nos termos do artigo 78.º do Regime Geral das
Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF).
- O tribunal de 1.ª instância julgou
legítima a recusa da autora e determinou a abertura do incidente de levantamento
do sigilo bancário.
- O tribunal de 2.ª instância julgou o
incidente procedente, tendo ordenado o levantamento do segredo bancário e que,
consequentemente, a autora juntasse aos autos a deliberação do seu conselho de administração
que recaiu sobre a proposta apresentada pela sociedade «Pureza» para compra de
um prédio misto e eventuais informações/avaliações que instruíram e
fundamentaram tal deliberação.
- A autora juntou aos autos os referidos
documentos, mas truncados de forma a ocultar toda a informação respeitante à
sociedade proponente e aos sócios desta; a autora fundamentou a truncagem
alegando que esta incidiu sobre informação sem conexão com o objecto do
processo e visou compatibilizar o seu dever de junção dos documentos aos autos
com as suas obrigações em matéria de protecção de dados pessoais.
Despacho recorrido:
- Considerando ser lícito o tratamento
dos dados pessoais no âmbito desta acção, determinou, além do mais, que a autora
juntasse aos autos, em 10 dias, uma versão não truncada dos documentos.
Conclusões do recurso:
1 – Vem o presente recurso interposto,
nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 631.º, n.º 1, 637.º,
638.º, n.º 1, 644.º, n.º 2, al. d) e h), 645.º, n.º 2 e 647.º, n.º 2 do CPC, na
parte em que ordenou a junção em versão não truncada dos documentos juntos pelo
autor, ora recorrente, com o seu requerimento com a ref. CITIUS n.º 45803124,
por julgar «ser lícito o tratamento de
dados pessoais no âmbito da presente ação».
2 – Tal decisão encerra a quo errada interpretação e aplicação
do disposto nos artigos 5.º, n.º 1, al. c) e 6.º, n.º 1, als. c) e f) do RGPD.
3 – Ainda que a existência de uma
decisão judicial possa ser fundamento bastante para permitir o tratamento – aqui consubstanciado na
revelação pública, por via da sua junção aos autos – de dados pessoais, assim
permitindo genericamente essa revelação, a concreta amplitude dessa revelação
carecerá de ser modelada pelo âmbito e propósito dessa decisão judicial e
implementada com respeito pelo princípio da minimização,
que é basilar em matéria de protecção de dados.
4 – Na situação sub judice, os excertos truncados assumem um absoluto desinteresse
para a matéria dos presentes autos, por contraponto com a informação pessoal
que contêm a respeito de terceiros, pessoas colectivas e singulares que não são
parte nesta acção.
5 – Adicionalmente, os documentos juntos
com os excertos truncados já têm, em si mesmos, uma natureza sigilosa, que foi
excepcionalmente afastada, com vista à (putativa) demonstração de factos na
presente lide que nada se relacionam com as pessoas colectivas e singulares
cujos dados o autor truncou naquela junção.
6 – Neste contexto, a sua revelação
redunda numa clara violação do princípio de minimização que regem a aplicação
das normas em matéria de protecção de dados, sendo desnecessária e
desproporcional, e por isso ilícita.
7 – Haveria o douto tribunal de ter
admitido a junção dos documentos em apreço, tal como truncados, impondo-se,
assim, revogar o despacho a quo, por
violador das supra-citadas disposições legais.
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A recorrente suscita a
questão da conformidade da apresentação de uma versão não truncada dos
documentos que corporizam a deliberação do seu conselho de administração que
recaiu sobre uma proposta apresentada por determinada sociedade para a compra
de um prédio e as informações/avaliações que instruíram e fundamentaram tal
deliberação com o regime jurídico da protecção de dados pessoais.
Coloca-se, contudo, uma
questão logicamente prévia a essa: a da admissibilidade de a recorrente
suscitar a questão descrita no momento processual em que o fez.
A recorrente teve a
possibilidade de invocar que os documentos cuja apresentação foi requerida pela
recorrida contêm matéria abrangida pelo regime jurídico da protecção de dados
pessoais em dois momentos processuais anteriores àquele em que o fez: quando se
pronunciou sobre o requerimento dos recorridos e quando, após ser notificada do
despacho do tribunal a quo que
deferiu esse requerimento e ordenou a apresentação dos documentos, invocou que
parte deles se encontram abrangidos por sigilo bancário, nos termos do artigo
78.º do RGICSF, e, com esse fundamento e ao abrigo do disposto no artigo 417.º,
n.º 3, al. c), do CPC, recusou a sua apresentação. Todavia, não o fez. Em vez
disso, em qualquer dos referidos momentos, limitou-se a invocar o sigilo
bancário.
Deve, por isso, entender-se
que ficou precludida a possibilidade de invocação do regime jurídico da
protecção de dados pessoais, fosse como fundamento de recusa de apresentação
dos documentos que a recorrente considera que por ele se encontram abrangidos, fosse
como justificação para a apresentação dos mesmos documentos com ocultação de parte
do seu conteúdo. O momento em que o detentor do documento recusa a apresentação
deste invocando justa causa – seja esta o sigilo bancário ou outra – tem de ser
considerado o terminus ad quem é
admissível a invocação do regime jurídico da protecção de dados. Só assim o
tribunal onde o incidente se suscitou e o pelo tribunal competente para a
prolação da decisão prevista no artigo 135.º, n.º 3, do CPP, aplicável ex vi artigo 417.º, n.º 4, do CPC,
poderão apreciar as concretas questões que, à luz desse regime, o detentor do
documento suscite.
Aquilo que não pode
considerar-se admissível é, após o tribunal competente para autorizar a quebra
do sigilo o fazer, ordenando a apresentação de um documento, o detentor deste
invocar um novo fundamento, seja ele o regime jurídico da protecção de dados pessoais
ou outro, para não proceder a essa apresentação, ou para ocultar, segundo o seu
próprio critério, parte do conteúdo do documento antes de o apresentar. Fazem-se
sentir, nesta matéria, as razões que justificam o princípio da preclusão no
direito processual. Por um lado, a necessidade de garantir «que os actos só podem ser praticados no prazo fixado pela lei ou pelo
juiz»[1].
Por outro, a necessidade de estabilização do processo: «uma vez inobservado o ónus de praticar o acto, estabiliza-se a
situação processual decorrente da omissão do acto, não mais podendo esta
situação ser alterada ou só podendo ser alterada com um fundamento específico»[2].
Estão em causa, respectivamente, as funções ordenatória e de estabilização do
princípio da preclusão.
Daí entendermos que o
detentor do documento tem o ónus de, até ao momento processual previsto no
artigo 417.º, n.º 3, do CPC, invocar todas as razões que possam constituir
justa causa de recusa da apresentação daquele, ou de apresentação com ocultação
de parte do seu conteúdo. Entendimento diverso implicaria admitir que,
invocando novo fundamento, o detentor do documento pudesse recusar o
cumprimento (total ou parcial) de decisão anterior que ordenasse a apresentação
daquele, renovando o incidente e protelando a decisão da causa.
Como já referimos, a
recorrente não cumpriu o ónus de invocar que os documentos cuja apresentação
recusou por se encontrarem abrangidos por sigilo bancário também o estavam por
restrições decorrentes do regime jurídico da protecção de dados. Daí que esta
matéria não tenha sido ponderada no acórdão que determinou a quebra do sigilo.
Este acórdão ordenou a apresentação dos documentos em causa sem qualquer
restrição e transitou em julgado. Sendo assim, a recorrente tem de o cumprir,
apresentando a versão não truncada dos mesmos documentos.
Decorre do exposto que o
tribunal a quo decidiu correctamente
a questão suscitada pela forma como a recorrente pretendeu cumprir o acórdão
que determinou a quebra do sigilo. Tal cumprimento terá de se traduzir na
apresentação da versão integral de todos os documentos, sendo inadmissível essa
apresentação com ocultação, feita pelo apresentante de acordo com o seu próprio
entendimento, de parte do conteúdo dos mesmos documentos.
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Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto,
julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas a cargo da
recorrente.
Notifique.
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Évora, 20.02.2024
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª
adjunta)
(2.º adjunto)
[1] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Preclusão e caso julgado, página 2, disponível no seguinte endereço:
https://drive.google.com/file/d/10YjwyJoi8OqyxhXbOU-svi_fF8rkWvBz/view
[2] Idem.