sexta-feira, 1 de março de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 20.02.2024

Processo n.º 90/21.2T8STR.E1

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Sumário:

1 – Apenas faz sentido a parte invocar aquilo que considera ser um vício da decisão de que recorre se, com isso, visar determinado efeito útil. E só em tal hipótese deverá o tribunal ad quem desenvolver a actividade necessária ao conhecimento desse alegado vício.

2 – Não deve conhecer-se da impugnação da decisão do tribunal a quo sobre determinado ponto da matéria de facto se a alteração pretendida pelo recorrente em nada o beneficiar.

3 – A credibilidade da prova testemunhal tem de ser avaliada à luz das regras da experiência comum, que se baseiam em critérios de normalidade cujas fronteiras não são delimitadas pelo binómio licitude/ilicitude, no sentido de ter de ser considerado normal, para o efeito de valoração daquela prova, tudo aquilo que não seja ilícito. 

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Autores/recorridos:

- Leonor Castelo;

- Germano Silva.

Ré/recorrente:

- Amélia Castelo.

Pedidos:

- Ser declarado que os autores são únicos donos e legítimos proprietários, com exclusão de outrem, da fracção autónoma, para habitação, designada pela letra L, correspondente ao rés-do-chão D, com três divisões assoalhadas, uma cozinha, uma casa de banho, uma despensa e uma marquise, do prédio em regime de propriedade horizontal, sito no Largo Luís de Camões, n.º 1, freguesia de Santiago, concelho de Tomar, inscrita na matriz predial urbana da respectiva freguesia sob o artigo (…), descrita na conservatória do registo predial de Tomar sob o numero (…) da Freguesia de Santiago;

- Ser a ré condenada a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre a totalidade da fracção descrita e identificada no precedente número;

- Ser declarado que a ré ocupa o prédio em causa sem qualquer título;

- Ser a ré condenada a desocupar a fracção e a restituí-la aos autores, livre e desocupada de pessoas e com todo o recheio que aí existia que se encontrava data em que os seus pais a ocupavam em 2008; bem como a abster-se, no futuro, da prática de quaisquer actos que afectem, diminuam, perturbem ou lesem tal direito e impeçam a respectiva utilização;

- Ser a ré condenada no pagamento de uma indemnização pela privação do uso do imóvel, correspondente ao valor locativo da fracção, e que desde Novembro de 2019 até Janeiro de 2021 ascende a € 5.200,00, e ainda ser condenada a pagar aos autores todos os valores que se vencerem, contados desde Fevereiro de 2021 até efectiva desocupação e entrega da fracção;

- Ser a ré condenada a pagar uma sanção pecuniária compulsória no montante de € 100,00 por cada dia de atraso na desocupação e entrega da fracção, decorrido que seja o prazo de 10 dias após o trânsito em julgado desta decisão;

- Ser a ré condenada a pagar os juros devidos, contados à taxa legal de 4% sobre a data de vencimento dos valores acima.

Sentença recorrida:

- Julgou a acção parcialmente procedente;

- Declarou que os autores são os únicos donos e legítimos proprietários da fracção autónoma, para habitação, designada pela letra L, correspondente ao rés-do-chão D, com três divisões assoalhadas, uma cozinha, uma casa de banho, uma despensa e uma marquise, do prédio em regime de propriedade horizontal, sito no Largo Luís de Camões, n.º 1, freguesia de Santiago, concelho de Tomar, inscrita na matriz predial urbana da respectiva freguesia sob o artigo (…), descrita na conservatória do registo predial de Tomar sob o numero (…) da Freguesia de Santiago;

- Condenou a ré a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre aquela fracção;

- Condenou a ré a desocupar tal fracção e a restituí-la aos autores livre e desocupada de pessoas e com todo o recheio que aí existia e que aí se encontrava na data em que os seus pais a ocupavam em 2008;

- Condenou a ré a abster-se da prática de quaisquer actos que afectem, diminuam, perturbem ou lesem tal direito de propriedade e impeçam a utilização da fracção;

- Condenou a ré a pagar aos autores uma indemnização, pela privação do uso do imóvel, desde Novembro de 2019 e até Julho de 2023, no valor de € 16.510,00, acrescida de juros moratórios vencidos desde a citação e até integral pagamento, calculados à taxa legal;

- Condenou a ré a pagar aos autores a quantia de € 370,00 mensais por cada mês que ocupe a fracção, a contar de Agosto do corrente ano e até efectiva desocupação e entrega, acrescida de juros moratórios vincendos até integral pagamento, calculados à taxa legal;

- Condenou a ré a pagar aos autores uma sanção pecuniária compulsória no montante de € 50,00 por cada dia de atraso na desocupação e entrega da fracção, decorrido que seja o prazo de 10 (dez) dias após o trânsito em julgado desta decisão;

- Condenou a ré, por litigância de má-fé, em multa equivalente a 50 UC;

- Condenou a ré no reembolso, aos autores, das despesas provocadas pela litigância de má-fé, incluindo os honorários da Mandatária, cujo montante será fixado em momento ulterior e na sequência do cumprimento, após o trânsito em julgado desta sentença, do disposto no art. 543.º, n.º 3, do CPC;

- Absolveu os autores do pedido de condenação como litigantes de má-fé.

Conclusões do recurso:

1 – O tribunal a quo deu como provada parte substancial da matéria do petitório, a qual se encontra em nítida contradição com alguns factos que provam exactamente o contrário, como infra se demonstrará.

2 – Assim, não se encontra minimamente fundamentada a convicção que o tribunal formou sobre a matéria de facto provada nos n.ºs 1 a 10, limitando-se, o Mmº Juiz a quo, a mencionar que os factos aí descritos foram considerados provados no despacho de 18-04-2022 (despacho saneador).

3 – Por outro lado, o tribunal recorrido estribou a sua convicção quanto à factologia considerada não provada, na «produção de prova no sentido contrário a tal factualidade», bem como na «total falta de credibilidade probatória da prova pessoal apresentada pela ré».

4 – Desde já se impugna, por incorretamente julgado, o ponto 10 da factologia dada como provada, onde se considera provado que a ocupação da fracção por parte da ré/recorrente ocorria, pelo menos, desde a aceitação da proposta de aquisição feita pela autora, ora recorrida, no dia 11 de Novembro de 2019.

5 – Acontece, porém que, tal facto não podia ter sido dado como provado; uma vez que, existem, no processo, provas documentais inilidíveis não só de que antes dessa data a recorrente já se encontrava a residir na dita fracção, tal como os autores tinham perfeito conhecimento disso; pois que, quando a autora intentou a acção de divisão de coisa comum (cuja autuação ocorreu em 20-02-2018 – cfr. item 5 da douta sentença de que se recorre) já indicou que a ali requerida (ora recorrente) residia naquela fração, tanto mais que foi essa a morada indicada, para a sua citação e onde o foi, efetivamente – cfr. se infere dos docs. n.ºs 1 e 2, juntos com a contestação deduzida, pela ré/recorrente, no presente pleito.

6 – Até porque, os recorridos sabiam perfeitamente qual tinha sido a morada anterior desta, uma vez que a referem no art. 24.º da petição inicial, deduzida nos presentes autos e faltaram à verdade, ao mencionarem que não sabiam precisar até que data a recorrente viveu nessa morada anterior, tendo referido que a situam no ano 2018/2019.

7 – Contudo e apesar da forma temerária com que a autora afirma factos que, não só sabe serem falsos, como resultam de prova, impossível de ilidir, como supra se demonstrou, da respetiva falsidade; mas, não é, por tal motivo, condenada como litigante de má-fé!... Enfim!...

8 – O tribunal a quo, salvo o devido respeito, julgou incorretamente os factos constantes dos itens b), c) e d) da sentença, porquanto, os mesmos, devidamente conjugados com a factologia descrita pelas testemunhas, declarações de parte e prova documental, deveriam ter sido tidos como provados.

9 – Logo, não pode deixar de se impugnar a decisão que recaiu sobre a matéria de facto, por incorretamente julgada; pois que, como supra vem demonstrado, a prova produzida impunha, àquele tribunal, uma decisão diversa da que resulta da sentença recorrida, admitindo-se, apenas, que, tal decisão só foi proferida, nos termos em que o foi, em virtude de erro grosseiro na apreciação da prova – cfr. preceitua o art. 640.º, n.º 1, als. a) e b) e nº 2, do C. P. Civil.

10 – Ora, foi dado como não provado que tenha sido acordado, entre os 3 irmãos que a ré/recorrente, passasse a ocupar a fracção supramencionada, desde Fevereiro de 2017, sem qualquer contrapartida económica, encarregando-se, apenas, da sua manutenção e conservação.

11 – Sendo que, diz-se, na sentença que, a convicção do tribunal assentou na produção de prova em sentido contrário a tal factualidade e na total falta de credibilidade probatória da prova pessoal apresentada pela ré, ora recorrente.

12 – Se a prova produzida em sentido contrário – tal como se infere da, aliás, douta sentença – se baseia, apenas e tão somente, nos depoimentos das testemunhas apresentadas pelos autores/recorridos, bem como nas declarações de parte do autor marido, em nosso modesto entendimento, tais depoimentos e declarações foram de tal ordem inconsistentes e débeis, que não poderiam ser aptos a deles extrair conclusões seguras que pudessem infirmar a versão da recorrente, quanto à existência daquele acordo, entre irmãos.

13 – Ora, com base nos depoimentos das testemunhas arroladas pelos autores, nunca poderia, o Mmº Juiz a quo, criar, com total certeza, a convicção que o levou a considerar como não provados os factos constantes dos itens b), c) e d) da sentença.

14 – Isto porque, o que resulta destes testemunhos não são mais do que suposições, baseadas em factologia da qual tiveram conhecimento indireto, por, supostamente, ouvirem dizer aos autores, sobretudo e principalmente, à autora.

15 – Assim, as testemunhas AA e BB nunca presenciaram qualquer conversa, telefónica ou não, entre aquelas, em relação ao dito acordo.

16 – A testemunha CC prestou um depoimento completamente contraditório e, ainda por cima, no seu depoimento faltou, escandalosamente, à verdade.

17 – Isto porque, inicialmente, refere não ter havido qualquer acordo, entre irmãos, dizendo nunca ter sido contactado, pela irmã para, logo a seguir, acabar por afirmar que a irmã lhe havia telefonado a dizer que tinha uns problemas e já lá se encontrava a viver (na fracção).

18 – Tendo também referido que «as despesas com água e luz eram suportadas, quase na totalidade pela irmã Leonor; a Amélia nunca pagou nada.» e, mais à frente que, «A Amélia mudou os contratos da água e do gás».

19 – Mas, não se queda por aqui, a antedita testemunha, com as contradições; pois ainda afirmou: «Penso que a Amélia pediu qualquer coisa à Leonor, mas isso são coisas que se passaram entre elas; não faz ideia dos valores, nem do auxílio que foi…»; isto para, ao minuto 16:00, dizer «penso que a Leonor a terá ajudado economicamente.»

20 – Com efeito, partindo do pressuposto de que era a recorrida quem suportava todas as despesas, nomeadamente, as de consumo, como água, electricidade e gás, é impensável dizer-se que se desconhecia estar a casa a ser habitada (fosse por quem fosse), se as respectivas facturas de água, luz e gás apresentavam consumos, que evidenciavam estar alguém lá a residir.

21 – Por outro lado, também tal argumento não pode colher, quando se afirma que a recorrente, a certa altura, terá mudado os referidos contratos (ao que se depreende, passando a titularidade dos mesmos para seu nome); pois, nesse caso, também seria, por demais evidente, que lá se encontraria a residir!... E, mais: que, tanto a recorrida como o irmão, ora testemunha, sabiam, perfeitamente, disso.

22 – Aliás, se a recorrente – como afirma esta testemunha – mudou aqueles contratos (foi a única verdade dita pela testemunha, embora tenha omitido em que data esta mudou a titularidade de tais contratos, para seu nome) era ela quem recepcionava as facturas dos respectivos consumos (e não a irmã, que vive em Leiria) e quem, obviamente, os pagava. Cfr. docs. nº 1 a 3.

23 – Portanto, não se consegue vislumbrar a ideia de que esta testemunha terá sido convincente, tendo prestado um depoimento isento, uma vez que, as suas contradições (inverdades, melhor dizendo), bem como a sua postura hesitante e insegura e até, atrevemo-nos a dizer, comprometida, só deixam transparecer que, efectivamente, algo terá sido, de facto, acordado.

24 – Aliás, esta testemunha tão «convincente» e «isenta», faltou despudoradamente à verdade, ao afirmar, que «as despesas com água e luz eram suportadas, quase na totalidade pela irmã Leonor; a Amélia nunca pagou nada»; e ainda: «A Leonor manteve tudo como antes e tem pago as coisas…»; sendo que, logo de seguida, ao minuto 09:25, afirma que «A Amélia mudou os contratos da água e do gás, depois… porque antes estavam em nome dos meus pais.»

25 – Acontece que, com tais afirmações, não só confirma que, tanto a testemunha, como a recorrida, sabiam que a recorrente se encontrava a residir na casa que havia sido dos pais e desde quando; uma vez que sabiam que esta tinha mudado a titularidade dos contratos para seu nome. Portanto, é mais do que evidente que, ao terem disso conhecimento, concordaram com tal situação. Vide docs. n.ºs 1 a 3, em conjugação com os docs. n.ºs 1 e 2, juntos com a contestação deduzida, pela ré/recorrente e ante mencionados.

26 – Ademais, nenhuma das testemunhas arroladas pelos autores teve a capacidade de, de forma clara e inequívoca, provar que o antedito acordo nunca existiu; pelo que, não foi produzida qualquer prova em sentido contrário, ao alegado, pela recorrente, em relação a tal facto.

27 – Por seu turno, em declarações de parte, o autor/recorrido, referiu: «tivemos conhecimento de lá estar a Amélia, na altura da venda».

28 – E, mais à frente: «só na altura de estar para venda judicial é que soube que ela lá estava» - reitera, portanto, o que sabe ser inverdadeiro; mas, pretende manter e reafirmar.

29 – Mais uma vez se lança mão dos docs. n.ºs 1 e 2, que a recorrente juntou com a sua contestação, nos presentes autos, nada mais sendo necessário para, com total segurança, se afirmar que as declarações que antecedem são absolutamente falsas.

30 – Porém, ainda reforça a ideia, desenvolvendo-a: «só na divisão de coisa comum é que ficamos a saber que a Amélia lá estava; antes pensavam que estava em casa dela, pois tinha um apartamento arrendado em Tomar; só souberam que ela lá estava, porque foi adicionado um requerimento da parte da Amélia a dizer que estava a ocupar o apartamento» – onde, pela terceira vez consecutiva, pretende impor a mesma falsidade. É absurdamente inacreditável!!!...

31 – E estes é que foram considerados depoimentos credíveis, isentos e convincentes!!!... Depoimentos contraditados por provas documentais completamente irrefutáveis!!!...

32 – A testemunha DD, afirmou: «a Amélia vive lá desde 2017» e que, sabia disso, pois lembra-se que a sua filha tinha, nessa altura, cerca de um ano de idade (o que é totalmente corroborado pelos docs. n.ºs 1 e 2, juntos com a contestação, referidos supra – o que é totalmente verdadeiro, pelo confronto com os docs. n.ºs 1 a 3, ora juntos).

33 – Esta testemunha fez ainda referência ao facto de ter presenciado vários telefonemas entre as irmãs (a recorrente e a recorrida), em que falaram da Amélia se mudar para o apartamento; logo houve autorização, para tal. Mais referiu que, tais telefonemas foram só entre elas, pois nunca ouviu a Amélia a falar com o irmão. Além disso, afirma «nunca ter ouvido a Leonor dizer que queria vender o apartamento».

34 – Refere, ainda, que, estando no café com a Amélia, a irmã Leonor lhe terá ligado e a Amélia colocou até o telefone em alta voz para que esta também pudesse ouvir, estando lá igualmente uns senhores, que frequentavam também aquele café/pastelaria, que também ouviram a conversa.

35 – Aquela testemunha reitera que já outras vezes, as irmãs, tinham estado a falar da questão de a recorrente ir viver para o apartamento, o que presenciou.

36 – Talqualmente a testemunha anterior, também a testemunha EE diz ter ouvido o antedito telefonema, naquele café/pastelaria, em alta voz.

37 – Referindo também ter ouvido, no contexto daquele telefonema, que: «o telefone da D. Amélia tocou, ligando uma Senhora a dizer que ela não tinha necessidade de estar a pagar uma renda, havendo uma casa da família, abandonada, que necessitava de umas obras, que ela poderia fazer». Também ouviu a D. Amélia tratar essa senhora por Leonor.

38 – A dita testemunha refere, ainda, que a recorrente terá dito não ter possibilidades financeiras para fazer a mudança. Então, a própria testemunha se ofereceu para ajudar, dizendo ter uma carrinha, para o efeito.

39 – Mais refere que, tal conversa terá ocorrido talvez em finais de 2016, inícios de 2017 e que, a mudança se realizou duas a três semanas após esta conversa. Esclarece que o dito café se localiza perto do Centro Comercial, em Tomar.

40 – Para além dessa, também a testemunha FF afirma ter ido beber um café à dita pastelaria, em Tomar, na companhia do seu amigo, EE e, enquanto lá estavam, ouviu um telefonema que essa senhora (a D. Amélia) estava a atender em voz alta. Isto ocorreu na esplanada daquela pastelaria.

41 – Na sequência desse telefonema, apercebeu-se que a senhora precisava de ajuda de um transporte, para fazer uma mudança de casa e estava a dizer que não tinha posses para fazer a mudança de casa, à senhora que estava do outro lado do telefone. Também ouviu a D. Amélia (recorrente) tratar quem estava do outro lado, ao telefone, por « Leonor».

42 – Durante essa conversa, esta testemunha, também se apercebeu de que a senhora estava a dizer à D. Amélia que havia uma casa para onde podia ir morar. Refere ainda que tal aconteceu no ano de 2017.

43 – Dos preditos depoimentos podemos, desde logo, inferir que, entre eles não existe qualquer contradição, nem hesitação, no relato dos factos a que assistiram, tais testemunhas - sendo alguns deles, reitere-se, atestados pelos preditos documentos.

44 – Na verdade, todas elas confirmam ter ouvido um ou mais telefonemas, entre a recorrente e a recorrida, nos quais era abordado o assunto da mudança de casa da recorrente – da casa de que era arrendatária, para a casa da família (que havia sido dos seus pais) e, de tais telefonemas resulta ser muito claro e evidente que houve consentimento, pelo menos por parte da recorrida, nessa mudança.

45 – Contudo, o Mmº Juiz a quo, resolveu desconsiderar totalmente a prova produzida, por tais testemunhas, referindo-se mesmo à «falta de credibilidade probatória», dessa prova, apresentada pela ré/recorrente.

46 – Mas, o mais extraordinário é que, o tribunal a quo, fundamentou tal descrédito na circunstância de terem as três testemunhas confirmado terem presenciado aquela conversa telefónica em alta voz, num café de Tomar!...

47 – Tendo, até, opinado que: o remédio usado por uma pessoa normal, colocada nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar não é «ouvir alto e falar alto», mas «procurar um local mais recatado».

48 – Ora, com o mais profundo respeito por contrario opinio, sempre se dirá que, tudo isto são tão somente considerações de caráter pessoal, sobre a forma de agir em sociedade, nomeadamente utilizando um equipamento tão vulgarizado como é o caso do telemóvel.

49 – Com efeito, o conceito de «normalidade» é demasiadamente vasto para se poder afirmar, categoricamente, que «uma pessoa normal não fala, ao telemóvel, em alta voz, numa esplanada».

50 – Portanto, se a dita «falta de credibilidade probatória», através da qual, o Mmº Juiz a quo, fundamentou a sua convicção, desconsiderando aqueles meios de prova, se estribou no facto de não achar normal, em tais circunstâncias, as pessoas falarem, em alta voz, ao telemóvel (seja numa esplanada ou onde quer que seja), fê-lo através de um juízo de valor subjetivo, que nada tem a ver com o princípio da livre apreciação da prova, nem com o princípio da imediação.

51 – E a reforçar tal ideia, secundamos o que vem exposto no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo n.º 3/07.4GAVGS.C2, onde pode ler-se: «O julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório».

52 – Portanto, «a livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador…», devendo as provas ser «avaliadas com sentido de responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência.»

53 – A recorrente, em declarações de parte, explicou que foi morar para aquela casa em 25-02-2017, tendo sido celebrado o acordo, em apreço, em finais de 2016 – o que está coincidente com os docs. n.ºs 1 a 3.

54 – Mais referiu que pediu ajuda aos irmãos e eles disseram que não podiam ajudar. Afirmou, ainda, que eles lhe propuseram que ela fosse lá para casa, que podia lá ficar, para não ter de pagar renda, porque o único rendimento (RSI) de que dispunha mal dava para sobreviver, quanto mais pagar uma renda; a casa estava vazia há muitos anos e os irmãos optaram por essa solução, como forma de a ajudar.

55 – Durante a prestação das suas declarações, diz também que «o acordo foi feito na casa dos pais; eles vieram a Tomar de propósito».

56 – Continuando as suas declarações, explica que, tinha o problema da mudança e não a podia pagar e quando surgiu a oportunidade, comunicou-lhes que, finalmente, ia mudar, o que aconteceu em 25-02-2017, ou seja, mais ou menos passados dois meses sobre o acordado.

57 – Posteriormente, conta que se encontrava na esplanada do Pic-Nic, com a DD (sua testemunha) a falar da mudança e esta dizia que não conhecia ninguém que lha pudesse fazer. Relata que «eles (referindo-se às testemunhas EE e FF) eram pessoas que conhecia de vista e disponibilizaram-se. Eles estavam lá na esplanada e ouviram a conversa com a DD e disseram que se eu precisasse, ajudavam» - «depois ligou para a irmã e disse-lhe: finalmente, consegui, vou entregar as chaves no final do mês de Fevereiro».

58 – O Tribunal a quo considerou, igualmente, como não provado, o facto invocado, pela recorrente, de que esta poderia ficar a residir, na dita casa, até, pelo menos, 2023, altura em que poderia ser necessário vender a casa para custear os estudos das filhas da autora e do irmão, CC.

59 – Também em relação a esta factologia, s. m. o., se considera ter havido erro na apreciação da prova, pois que foi produzida, nos autos prova bastante a comprovar tal factualidade, como infra se demonstrará.

60 – Desde logo, a testemunha DD, no respectivo depoimento, admite ter ouvido, nos vários telefonemas a que assistiu, a autora falar que a irmã poderia ficar naquela casa, pelo menos, até 2023.

61 – A testemunha EE, também faz alusão a esse facto; pois, refere, durante o seu depoimento que ouviu a D. Leonor a dizer «que poderia lá ficar, em princípio, até 2023 e que, se houvesse alguma coisa em contrário entraria em contacto com ela»; e que, «se precisasse da casa, avisava».

62 – Além destas, também a testemunha FF terá ouvido, que «ela podia ir para lá e estar descansada até 2023».

63 – Finalmente, a recorrente, durante as declarações que prestou, também aludiu a tal facto: «eles disseram: em princípio até 2023».

64 – Aquela perguntou porquê 2023, ao que lhe responderam que, se as filhas fossem estudar para fora de Leiria e precisassem de vender a casa, nessa altura, teriam de a vender. Mais à frente, nas suas declarações, refere: «estava a fazer conta de poder ali ficar até 2023» e ainda: «eles nem sequer deram a certeza se seria em 2023, disseram apenas que, se as filhas fossem estudar para fora de Leiria e precisassem de dinheiro, teriam de vender a casa».

65 – Expôs ainda que, «nem sabia que as filhas já estavam a estudar» e que «até pensava entregar a chave em Setembro/2023, que é quando começam as aulas, pois pensava que era este ano que elas iam para a faculdade».

66 – Ora, quanto a este assunto, é bem possível que tenha havido lapso por parte da autora, quando, em 2017, afirma que as meninas iriam para a faculdade em 2023 e não em 2022, como, efectivamente, aconteceu (pode ter-se dado o caso de ter sido, essa discrepância, resultado de um erro de cálculo, relativamente aos anos que faltariam para a entrada no ensino superior daquelas).

67 – Nessa conformidade, poderá estar a explicação lógica para o facto de, tanto a recorrente, como as testemunhas que indicou, terem ouvido sempre 2023.

68 – O Mmº Juiz a quo dá como não provada a matéria referente ao motivo de a recorrente ter ido morar na casa que fora dos pais, ou seja, por não poder pagar uma renda, em virtude de se encontrar numa situação de desemprego.

69 – Assim desde logo, se infere do próprio depoimento do irmão da autora/recorrida e da recorrente, CC, que não se recorda da data em que a irmã, aqui recorrente, terá ficado desempregada; sendo que, esta terá solicitado apoio, esclarecendo o seguinte: «penso que a Amélia pediu qualquer coisa à Leonor, mas isso são coisas que se passaram entre elas, não faz ideia dos valores, nem do auxílio que foi dado; penso que a Leonor a terá ajudado economicamente» - o que faz pressupor que, efectivamente, a recorrente estaria com dificuldades económicas.

70 – A testemunha DD também afirma que a Amélia deixou de poder pagar a renda.

71 – Sendo que, a testemunha EE também se apercebeu de tais dificuldades, tendo esclarecido que esta havia comentado não ter possibilidades de pagar a mudança e, por esse motivo, ofereceu-se para a fazer, uma vez que tinha uma carrinha, que servia para tal efeito.

72 – Por seu turno, a testemunha FF, expõe que, quando se encontravam na esplanada da referida pastelaria, ouviu a D. Amélia a dizer que não tinha posses para fazer/pagar a mudança e que foi ele quem lhe fez a mudança com o EE.

73 – Como pode verificar-se, resulta, efectivamente, do confronto dos depoimentos prestados pelas testemunhas da recorrente, com as declarações desta que, a única contradição existente foi entre as declarações desta e os depoimentos daquelas, no que tange ao facto de as ditas testemunhas terem afirmado (as três) que, na esplanada, quem tinha telefonado havia sido a autora; sendo que a recorrente afirmou ter sido ela a ligar à irmã.

74 – No entanto, contrariamente ao que se lê na sentença recorrida, onde se refere que, nas declarações de parte da recorrente, esta terá referido que «a conversa entre a sua pessoa e a irmã…, ocorreu, não no café, mas na própria casa que vem habitando», é evidente o erro em relação à prova produzida, pois aquela também mencionou ter existido uma conversa, ao telefone, com a irmã no café.

75 – Até porque, contraditoriamente, um pouco mais à frente, poderá ler-se, na sentença recorrida que, «a ré referiu que foi ela quem estabeleceu a comunicação telefónica com a sua irmã, ao passo que as testemunhas… mencionaram que foi a ré quem atendeu o telefone.»

76 – Com efeito, daquelas declarações se infere, exactamente que, houve, efectivamente, a conversa que deu origem ao acordo, na dita casa; mas, também é certo que é referida uma conversa telefónica, precisamente, com a irmã, onde lhe terá dito que já tinha quem lhe fizesse a mudança e que iria entregar as chaves (supostamente, da outra casa) no final desse mês.

77 – Contudo, a desconformidade entre os depoimentos, não pode, tout court, conduzir a que se forme, no julgador, a convicção de se estar em presença da prática, pelos respectivos intervenientes, de um crime de falsas declarações ou, melhor dizendo, de falsidade de testemunho – como infra se demonstrará.

78 – Acontece que – cfr. atestado médico de incapacidade, junto aos autos, em 31-01-2022, com a refª electrónica 8399093 e doc. n.º 4, que ora se junta – a recorrente sofre de patologia oncológica grave, desde 2017 (ano em que foi sujeita a intervenção cirúrgica), com recidiva em 2019, que a sujeitou a outra intervenção, bem como a inúmeras sessões de radioterapia e quimioterapia; além de problemas genitais graves, até ao presente momento, o que lhe originou uma incapacidade de 80%, como se infere do atestado de incapacidade supramencionado.

79 – Ora, em consequência de tais patologias, sofre de depressão com marcada ansiedade e insónias, que lhe condicionam o seu quotidiano, de modo grave. Vide doc. nº 4.

80 – Como é consabido – genericamente e não apenas pela comunidade médico-científica – a depressão e a ansiedade são a principal causa de perda de memória em todas as faixas etárias.

81 – Por esse motivo, é comum haver uma perda de memória repentina em situações como uma apresentação oral, uma prova ou após um acontecimento indutor de grande stress.

82 – Mas, há ainda a considerar, relativamente à matéria probatória sobre a qual o Mmº Juiz a quo criou a sua convicção, o que vem exposto, na sentença ora recorrida, com referência a um e-mail, com data de 26-01-2020, enviado pela aqui signatária, à Mandatária da recorrida.

83 – Assim, pode ler-se na douta sentença recorrida que, no dito e-mail «nada é referido quanto à existência de um acordo para a ocupação do imóvel, tal como ele foi referido na contestação, sendo certo que esse era o momento idóneo para a sua invocação, uma vez que os autores o haviam adquirido em sede de acção de divisão de coisa comum.»

84 – Argumenta-se, ainda, na sentença recorrida, que «quem… tem um título de ocupação legítimo… que ainda não se esgotou no tempo…, não sugeriria, em Janeiro de 2020… a realização de um arrendamento, ainda que bonificado, ou um usufruto vitalício, mas não necessariamente gratuito.»

85 – Através destas suposições, entendeu, o tribunal recorrido, que os termos daquela comunicação, retirava total credibilidade aos fundamentos alegados, pela recorrente, que justificavam o acordo havido entre si e os irmãos.

86 – Ora, o Mmº Juiz a quo, mais uma vez, sem considerar outros dados objectivos, interpreta o teor de tal comunicação de forma superficial e, porventura, sem atentar, nem no seu conteúdo, na globalidade, nem na explicação que é dada, para tal teor, no requerimento, apresentado, pela ré/recorrente, em 31-01-2022, com a refª eletrónica 8399093 (item II – da resposta à excepção), no qual se explica que a dita proposta mais não era do que uma «alternativa ao acordado anteriormente, uma vez que, com a dedução da acção de divisão de coisa comum era, por demais, evidente que, o antedito acordo já não iria ser cumprido pela A.», uma vez que, tinha decidido adjudicar o imóvel.

87 – Ademais, se não tivesse sido celebrado o referido acordo e a recorrente não tivesse consciência de que possuía um título válido que lhe permitia deter a posse do imóvel, jamais admitiria a possibilidade de pedir uma indemnização; pois, como é óbvio, não teria qualquer fundamento jurídico-legal para a deduzir – cfr. se infere do dito e-mail.

88 – Precisamente, em alternativa a deduzir um pedido de indemnização civil, por via da quebra desse acordo – e, também, pensando em termos de futuro, pois com os graves problemas de saúde de que enferma, a verdade é que, não acreditava ter, daí a 3 (três) anos, grandes condições físicas e anímicas para suportar o desgaste, a todos os níveis, de uma mudança de casa – é que tentou obter da irmã uma alternativa mais definitiva (ou vitalícia), ao dito acordo.

89 – Portanto, a interpretação que foi dada ao conteúdo de tal comunicação, via e-mail, não poderia estar mais longe da realidade, nem da intencionalidade do mesmo.

90 – Por tudo quanto vem exposto supra, nunca deveriam ter sido dadas como não provadas as matérias constantes dos itens b), c) e d), referentes aos factos considerados, na sentença, como não provados.

91 – Isto porque, a convicção do tribunal a quo, resultou – como supra demonstravimus – de um erro manifesto na apreciação da prova, pois há uma flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis (até mesmo documentais, note-se!...) e a decisão do tribunal recorrido, sobre a matéria de facto.

92 – Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova nunca atribui ao julgador «o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas», isto é, a livre apreciação da prova não pode confundir-se «com uma qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios”, sendo antes «uma conscienciosa ponderação desses elementos e das circunstâncias que os envolvem”.

93 – Logo, não pode deixar de se impugnar a decisão que recaiu sobre a matéria de facto, por incorrectamente julgada; pois que, como supra vem demonstrado, a prova produzida impunha, àquele tribunal, uma decisão diversa da que resulta da sentença recorrida, admitindo-se, apenas, que, tal decisão só foi proferida, nos termos em que o foi, em virtude de erro grosseiro na apreciação da prova – cfr. preceitua o art. 640.º, n.º 1, als. a) e b), e n.º 2, do C. P. Civil.

94 – Na fundamentação jurídica da sentença recorrida, o tribunal a quo, em primeira linha, vem fazer alusão ao facto de não existirem quaisquer dúvidas em relação ao facto de os recorridos serem os legítimos proprietários da fracção autónoma, que melhor vem identificada nos autos.

95 – Pelo que, vem a recorrente condenada a reconhecer o direito de propriedade dos autores, sobre a fracção objecto dos presentes autos.

96 – Ora, nunca, jamais, em tempo algum, a recorrente contestou tal facto!!!... Apenas, e tão só, afirmou que havia um acordo entre ela e os irmãos que lhe permitia habitar a dita fracção, pelo menos, até 2023 e que, por via desse acordo, passou a habitá-la a partir de Fevereiro de 2017.

97 – Pelo que, tal condenação não faz qualquer sentido.

98 – Acontece que, contrariamente ao que se encontra provado documentalmente (docs. n.ºs 1 e 2, apresentados com a contestação e docs. n.ºs 1 a 3, ora juntos), vem, na mesma sequência, considerado provado, na antedita sentença, que a recorrente se encontra a residir, naquele imóvel, desde, pelo menos, a aceitação da proposta de aquisição, feita pela autora, no dia 11 de Novembro de 2019 (relembre-se que, nos primeiros dois documentos se prova, cabalmente, que na data de entrada em juízo da acção de divisão de coisa comum (em 19-02-2018), proposta pela recorrida, esta indicou como morada da ora recorrente, precisamente, essa casa e não a sua residência anterior – logo, existe um erro grosseiro na apreciação da prova, quanto a esta matéria, a qual se formou, através dos falsos relatos, quer dos autores/recorridos, quer das testemunhas, por estes oferecidas) – cfr., aliás, já foi referido supra.

99 – Por outro lado, na sentença recorrida, encontra-se plasmado, ainda, o argumento de que, mesmo que a recorrente tivesse demonstrado a existência de um contrato de comodato, a seu favor, na qualidade de comodatária, esse título estaria extinto, por dois motivos.

100 – O primeiro deles aponta no sentido de ter havido renúncia da ré/recorrente aos seus direitos; referindo-se, ali, que essa renúncia advém do conteúdo do predito e-mail, de Janeiro/2020, no qual aquela «se predispôs a passar a usufruir do bem com base noutro título e mediante uma contrapartida económica.»

101 – Ora, cfr. se expôs supra, a recorrente não renunciou a qualquer direito; apenas sugeriu a substituição desse por outro, mais duradouro. Desse e-mail não pode, jamais, extrair-se algo que lá não consta. Na verdade, nem da mais rebuscada interpretação se pode inferir que ali se diz que a recorrente renuncia ao seu direito; pelo contrário, sugere-se que a mesma poderá lançar mão de um pedido de indemnização, caso o seu direito seja postergado.

102 – Em segundo lugar, argumenta-se que «o acordo foi celebrado pelos irmãos, na qualidade de herdeiros (…), acordo esse que se extinguiu quando se deu a transmissão do direito de propriedade para os AA., no decurso de uma ação de divisão de coisa comum.»

103 – Sucede que, o Mmº Juiz a quo, nem tão pouco fundamentou jurídico-legalmente, tal argumentação!...

104 – Na verdade, não há qualificação jurídica para o que ali vem dito, a propósito.

105 – É que, o comodato termina quando finde o prazo certo por que foi convencionado, ou, não havendo prazo certo, quando finde o uso determinado para que foi concedido, ou, não havendo prazo certo e nem uso determinado, quando o comodante o exija – cfr. dispõe o art. 1137.º do CC.

106 – De resto, existe outra circunstância impeditiva da extinção/resolução do contrato de comodato: é que, o reconhecimento do direito de propriedade não faz cessar o direito do comodatário; até porque, a adquirente interveio directamente naquele contrato, pelo que continua vinculada, nos precisos termos dos anteriores comodantes, em que ela era uma deles. Mas, mesmo que não tivesse tido intervenção no comodato, sabendo da sua existência, ficaria, igualmente, a ele vinculada.

107 – Isto porque, nesse caso, a exigência de desocupação da fracção representaria uma situação de abuso de direito; pois que, nos termos do art. 272.º do CC, ex vi do art. 278.º do mesmo diploma legal, a recorrida estaria obrigada a orientar as suas opções pelos ditames da boa-fé, por forma a não comprometer a integridade do direito da recorrente. Ditames esses que, em termos objectivos, seriam manifestamente postergados, com prejuízo para a situação jurídica da recorrente – nesta senda, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16-05-2006, in Acórdãos do TRL (Bases Jurídico-Documentais; em www.dgsi.pt – jtrl.nsf.

108 – Também o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13-05-2002; em www.dgsi.pt, demonstra que estando provada a titularidade do direito de propriedade, o detentor do bem só pode evitar a restituição da coisa desde que demonstre que tem sobre ela outro qualquer direito real que justifique a sua posse ou que a detém por virtude de direito pessoal bastante – tal como o é o comodato (direito pessoal de gozo).

109 – Desta feita, a sentença recorrida violou os artº 1137º, 272º do CC, ex vi do artº 278º, todos do CC, por não aplicação das ditas normas ao caso concreto em análise.

110 – A decisão recorrida, condena também a Recorrente «a desocupar a fracção e a restituí-la, aos AA., livre e desocupada de pessoas e com todo o recheio que aí existia e que se encontrava à data em que os seus pais a ocupavam em 2008».

111 – Esta parte da decisão mostra-se totalmente extemporânea, uma vez que, na conferência de interessados, do proc. de inventário n.º 1397/20.1T8TMR, do Juízo Local Cível de Leiria - Juiz 2, Comarca de Leiria, foi determinado que, no dia 20 de Fevereiro do ano em curso, pelas 14:00 horas, a interessada Leonor Castelo, irá buscar os referidos bens e que, nessa data, aquando da entrega dos bens, a interessada Leonor Castelo, pagará as tornas devidas à interessada Amélia Castelo, o que sucedeu – cfr. docs. nº 5 e 6, ora juntos.

112 – Vem a ora recorrente também condenada como litigante de má-fé, invocando-se, para tal, na decisão recorrida, que, em síntese, a alegação daquela, bem como os depoimentos das testemunhas que apresentou, «não mereceram qualquer credibilidade», pois formou-se a convicção de que «a mesma alterou, de forma manifesta e com dolo intenso a verdade dos factos, com o objetivo de conseguir um objetivo ilegal, que mais não é do que apresentar um título que justificaria a entrada e a permanência na casa dos autores.»

113 – Na verdade, não foi produzida nenhuma prova directa e credível, de que o acordo firmado entre os irmãos não ocorreu, como, aliás, já bastamente acima se demonstrou.

114 – Contudo, por via de meras conjecturas e juízos de valor de uma imensa subjetividade, em que faltam os critérios objetivos necessários a uma valoração determinada por parâmetros da lógica e das regras da experiência, criou, o Mmº juiz a quo, a convicção da falta de credibilidade tanto das declarações da recorrente, como das testemunhas, por si arroladas.

115 – Mas, uma coisa é não terem sido considerados credíveis os seus depoimentos; outra, muito diferente, é considerar que os mesmos foram prestados com consciência da falsidade da declaração e, portanto, com dolo ou negligência grosseira.

116 – Na realidade, do conteúdo das declarações de parte da recorrente, bem como dos depoimentos das testemunhas que indicou, nada pode permitir afirmar que, como testemunhas ou declarantes, sabiam ser falso o que diziam ou, pelo menos, não completamente coincidente com a realidade dos factos, até porque todos os depoimentos das testemunhas foram coincidentes entre si; apenas se verificou a contradição antedita, entre estes e a recorrente – o que, por sinal, até os torna ainda mais credíveis, pois, dos mesmos se denota que não combinaram, entre si, o que declarar, apesar de terem tido tempo de sobra para o fazer, uma vez que o depoimento das testemunhas ocorreu no dia 14-06-2023 e as declarações de parte da ré/recorrente, no dia 21-06-2023.

117 – Acresce que, é por todos reconhecido que, em todo o fenómeno de aquisição e reprodução do conhecimento humano, ocorrem inúmeros factores de erro. Portanto, a previsão penal do falso testemunho «não está ao serviço de um propósito de natureza gnoseológica: a descoberta da verdade qua tale, mas apenas para proteção de um preciso bem jurídico: a realização da justiça, a qual requer a contribuição de diversas pessoas para o esclarecimento da factualidade relevante, em ordem à correcta decisão.»

118 – Tanto mais que, não se pode pretender que o declarante haja dos factos, tanto mais se ocorridos há muito tempo, uma perceção sem falhas, perfeita.

119 – Portanto, «a falsidade objectiva não equivale, sem mais, à tipicidade: a declaração pode não ser conforme com a realidade, mas apenas porque o agente se enganou, já não se recorda.» Vide SEIÇA, A. MEDINA DE, em ob. cit., pp. 477.

120 – Crê-se que foi, seguramente, o que aconteceu à recorrente, que, a par dos graves problemas de saúde de que enferma, passados que foram 6 (seis) anos sobre os factos e, ainda, aliado ao facto de a mesma – de acordo com a própria e com o depoimento da testemunha DD – ter falado, com a irmã, ora recorrida, ao telefone, por aquela altura, várias vezes, tanto em casa como fora de casa, se confundiu referindo que, na situação do café/pastelaria, fora ela quem ligou para a irmã, tendo, na realidade, ocorrido o contrário, cfr. o depoimento das testemunhas, por ela indicadas.

121 – A «realidade» a que se refere a «verdade» do depoimento no tipo penal de falso depoimento não pode ser tomada em termos absolutos; não é a verdade aristotélica de correspondência com a realidade, nem é a verdade cientificamente comprovada, a verdade absoluta e cientificamente inatacável – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 13-05-2014; www.dgsi.pt.

122 – Aliás, impõe-se uma questão, deveras, pertinente: de que provas irrefutáveis se socorreu, o Mmº Juiz a quo, para ter concluído, com tanta e exímia certeza, de que todas as pessoas intervenientes, nestes autos – à excepção das que vieram da parte dos autores!... – agiram de má-fé, com uma conduta tão reprovável, cujo dolo ou negligência grave, não deixou margem para dúvidas?!...

123 – Mas, mais grave ainda, é que, na verdade, os intervenientes da parte dos autores, incluindo estes – aliás, principalmente estes e o irmão da recorrente e da recorrida – cuja falsidade, relativamente ao facto de saberem que, aquando da entrada da acção de divisão de coisa comum, já a recorrente vivia naquela casa – e, até, antes disso o sabiam -, o que está cabalmente e irrefutavelmente provado, através dos documentos n.º 1 e 2, que a recorrente juntou à sua contestação e que fazem parte dum processo judicial, conjugados com os docs. nº 1 a 3, que ora se juntam, estas pessoas não foram condenadas como litigantes de má-fé!!!

124 – Pelo contrário, deu-se-lhes toda a razão, mesmo contra as evidências probatórias existentes – e que não são quaisquer documentos, mas documentos que constam de um processo judicial.

125 – Será que, o princípio da igualdade das partes, consagrado no artº 4º do CPC, não tem cabimento nestes autos??... Na realidade, a predita norma é muito clara, ao estatuir que «o tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais.»

126 – É que, uma coisa é certa: em relação aos autores/recorridos há provas de que faltaram à verdade!!!

127 – Quais são as provas, evidentes, claras e objectivas da má-fé da recorrente e das suas testemunhas???... Não existem!... Apenas e tão somente os juízos de valor do Mmº Juiz a quo e a convicção que formou, a partir desses mesmos juízos de valor!!!

128 – Ao decidir da forma como decidiu, o tribunal a quo, violou as normas constantes dos artº 542º, 543º e 545º, todos do CPC; tal como violou ainda, o artº 4º do mesmo diploma legal, por incorrecta interpretação e aplicação das mesmas ao caso concreto em análise.

Questões a resolver:

1 – Admissibilidade da junção de documentos na fase de recurso;

2 – Cumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º, n.º 1, do CPC;

3 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

4 – Reconhecimento do direito de propriedade dos recorridos sobre a fracção autónoma;

5 – Extinção do contrato de comodato;

6 – Restituição da fracção autónoma e do seu recheio;

7 – Litigância de má-fé por parte da recorrente.

Factos julgados provados pelo tribunal a quo:

1. Os autores são, respectivamente, irmã e cunhado da ré.

2. Por óbito da mãe da autora e da ré, Maria da Graça, ocorrido em 11 de Fevereiro de 2010, no estado de casada em primeiras e únicas núpcias com Manuel Castelo, foi instaurado processo de inventário, que correu termos pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar sob o nº 440/10.7TBTMR.

3. O qual terminou por transacção, nos termos da qual os bens imóveis constantes da relação de bens foram adjudicados, na sua nua propriedade, aos filhos da inventariada, aqui autora e ré e ao irmão destas, CC, na proporção de um terço indiviso para cada um, ficando o cônjuge sobrevivo e cabeça de casal, Manuel Castelo, com o usufruto vitalício sobre tais bens.

5. No ano de 2018 intentou a autora instaurou acção de divisão de coisa comum, que correu termos pelo Juízo Local Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém sob o n.º 290/18.2T8TMR.

6. Nesse processo a autora apresentou, em 11 de Novembro de 2019, uma proposta de aquisição, pelo valor de € 62.900,00, da fracção autónoma, para habitação, designada pela letra L, correspondente ao rés-do-chão D, com três divisões assoalhadas, uma cozinha, uma casa de banho, uma despensa e uma marquise, do prédio em regime de propriedade horizontal, sito no Largo Luís de Camões, n.º 1, freguesia de Santiago, concelho de Tomar, inscrita na matriz predial urbana da respectiva freguesia sob o artigo (…), descrita na conservatória do registo predial de Tomar sob o numero (…) da Freguesia de Santiago.

7. Por despacho proferido no dia 11 de Novembro de 2019, foi esta proposta aceite, tendo sido dispensado o depósito do preço na parte correspondente à quota da autora.

8. Pagos os correspondentes impostos e emitido o auto de adjudicação, foi a totalidade daquela fracção inscrita nas Finanças em nome dos autores e registada a aquisição a seu favor na Conservatória do Registo Predial mediante a AP. 3729, de 4/3/2020.

9. Os autores são os únicos donos e legítimos proprietários da referida fracção.

10. A ré ocupa esta fracção pelo menos desde a aceitação da proposta de aquisição feita pela autora no dia 11 de Novembro de 2019.

11. Sara Castelo, filha do irmão da autora, está inscrita, desde o dia 12 de Setembro de 2022 e para o ano lectivo de 2022/2023, na licenciatura em Engenharia Mecânica da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.

12. Helena Barata, filha da autora, está inscrita desde 1 de Setembro de 2022 na licenciatura em Economia e Administração de Empresas e Relações Comerciais Globais da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade do Sul da Dinamarca.

13. Para os anos de 2019, 2020, 2021 e 2022 o valor da renda mensal da fracção era de € 360,00, € 365,00, € 365,00 e € 370,00, respectivamente.

14. Para o ano de 2023 o valor da renda mensal da fracção é de valor não inferior ao valor de 2022.

Factos julgados não provados pelo tribunal a quo:

A) Que se não fosse a ocupação por parte da ré, os autores poderiam obter no mercado de arrendamento uma renda mensal de, pelo menos, € 400,00.

B) Que foi acordado entre os três irmãos que a ré, a partir de Fevereiro de 2017, passasse a ocupar a fracção sem qualquer contrapartida económica, ficando apenas encarregue da sua manutenção e conservação.

C) Que a ré ali poderia residir até, pelo menos, 2023, altura em que poderia vir a ser necessário vender a casa para custear os estudos das filhas da autora e do irmão CC.

D) Que este acordo sucedeu porque a ré ficou, por motivo de desemprego, sem rendimentos que lhe permitissem pagar a renda do imóvel de que era arrendatária, porque a casa se encontrava devoluta desde a morte dos pais e porque tal foi considerado de plena justiça pelos irmãos, uma vez que o irmão CC tinha estado a viver em casa da ré por um largo período de tempo, totalmente a expensas desta, além de que a frequência universitária da autora havia sido custeada, quase na sua totalidade, pela ré.

*

1 – Admissibilidade da junção de documentos na fase de recurso:

A recorrente junta seis documentos às suas alegações de recurso, declarando que o faz ao abrigo do disposto nos artigos 425.º e 651.º, n.º 1, do CPC, sem outra justificação. Suscita-se a questão da admissibilidade dessa junção.

O n.º 1 do artigo 651.º do CPC estabelece que as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.

A recorrente não invoca a verificação de qualquer destas duas hipóteses. Em vez disso, limita-se a mencionar os artigos 425.º e 651.º, n.º 1, do CPC sem especificar, sequer, qual das referidas hipóteses tem em vista.

Nenhum dos documentos juntos pela recorrente se encontra nas condições previstas nos artigos 425.º e 651.º, n.º 1, do CPC. Consequentemente, a junção de tais documentos na fase de recurso é inadmissível, não podendo o seu conteúdo ser considerado na decisão deste.

2 – Cumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º, n.º 1, do CPC:

Os recorridos afirmam que a recorrente não cumpre qualquer dos ónus previstos no artigo 640.º, n.º 1, do CPC.

Não têm razão.

Como melhor veremos no ponto seguinte, a recorrente especifica os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que, no seu entendimento, impõem decisão diversa sobre esses pontos de facto, e a decisão que consideram dever ser proferida sobre os mesmos pontos de facto. No que concerne à prova gravada, a recorrente indica, com exactidão, as passagens da gravação em que funda o recurso, cumprindo assim o disposto no artigo 640.º, n.º 2, al. a), do CPC.

Daí que a impugnação da decisão proferida pelo tribunal a quo sobre a matéria de facto deva ser apreciada.

3 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

3.1. A recorrente começa por observar que o tribunal a quo não fundamentou a sua convicção sobre os factos descritos nos n.ºs 1 a 10. Assim é, efectivamente. Como resulta da própria sentença recorrida, essa omissão de fundamentação resulta de tais factos terem sido julgados assentes no despacho saneador, não tendo, então, sido apresentada qualquer reclamação.

A recorrente não retira qualquer ilação da referida observação. Que efeito jurídico pretende que o tribunal ad quem retire da omissão, pelo tribunal a quo, de fundamentação da sua convicção sobre os factos descritos nos n.ºs 1 a 10? Não encontramos, nas alegações de recurso, resposta para esta questão. Apenas faz sentido a parte invocar aquilo que considera ser um vício da decisão de que recorre se, com isso, visar determinado efeito útil. E só em tal hipótese deverá o tribunal ad quem desenvolver a actividade necessária ao conhecimento desse alegado vício. O processo serve para atingir determinadas finalidades práticas e não para servir de arena para disputas inconsequentes.

3.2. A recorrente impugna a decisão do tribunal a quo sobre a matéria do ponto 10. A redacção deste ponto é a seguinte: «A ré ocupa esta fracção pelo menos desde a aceitação da proposta de aquisição feita pela autora no dia 11 de Novembro de 2019.» Pretende a recorrente que o tribunal ad quem julgue provado que a referida ocupação se iniciou em data anterior a 11.11.2019 e que os recorridos disso tinham conhecimento.

Esta pretensão da recorrente é desconcertante.

Desde logo, a alteração pretendida pela recorrente em nada a beneficia. A questão fundamental em discussão neste processo é a de saber se a recorrente dispõe de título idóneo para obstar à pretensão dos recorridos de que a fracção lhes seja restituída. Para esse efeito, é absolutamente indiferente que a ocupação da fracção pela recorrente se tenha iniciado em 2019 ou, como esta afirmou nas suas declarações de parte, em 25.02.2017. Se a recorrente não demonstrar que dispõe daquele título, a sua condenação na restituição da fracção será inevitável, independentemente de ter passado a residir nesta em 2019 ou em 2017.

Mais, a ter alguma relevância, a alteração pretendida pela recorrente só poderia desfavorecê-la. A data do início da ocupação da fracção marca o início da produção de danos na esfera jurídica dos recorridos, pelo que a antecipação desse início apenas poderia determinar o aumento do valor desses danos.

Sendo irrelevante para a decisão do recurso, a apreciação da decisão do tribunal a quo sobre o ponto 10 da matéria de facto provada traduzir-se-ia na prática de um acto inútil, proibido pelo artigo 130.º do CPC, que consagra o princípio da limitação dos actos. Deverá, pois, manter-se o decidido pelo tribunal a quo sobre aquele ponto da matéria de facto provada.

3.3. A recorrente pretende que a matéria vertida nas alíneas b), c) e d) seja julgada provada. Essa matéria é a seguinte:

«B) Que foi acordado entre os três irmãos que a ré, a partir de Fevereiro de 2017, passasse a ocupar a fracção sem qualquer contrapartida económica, ficando apenas encarregue da sua manutenção e conservação.

C) Que a ré ali poderia residir até, pelo menos, 2023, altura em que poderia vir a ser necessário vender a casa para custear os estudos das filhas da autora e do irmão CC.

D) Que este acordo sucedeu porque a ré ficou, por motivo de desemprego, sem rendimentos que lhe permitissem pagar a renda do imóvel de que era arrendatária, porque a casa se encontrava devoluta desde a morte dos pais e porque tal foi considerado de plena justiça pelos irmãos, uma vez que o irmão CC tinha estado a viver em casa da ré por um largo período de tempo, totalmente a expensas desta, além de que a frequência universitária da autora havia sido custeada, quase na sua totalidade, pela ré.»

Como acertadamente se considerou na sentença recorrida e a recorrente não põe em causa, é sobre esta que recai o ónus da prova dos referidos factos, atento o disposto no n.º 2 do artigo 342.º do CC.

A recorrente invoca os depoimentos das testemunhas DD, EE e FF, por si arroladas, com vista à demonstração de que o tribunal a quo cometeu um erro de julgamento ao considerar não provada a matéria das alíneas b), c) e d).

O tribunal a quo considerou que aqueles depoimentos não foram credíveis, quer por não se harmonizarem com as regras da experiência comum, quer porque foram contraditórios com as declarações de parte da recorrente.

A recorrente contra-argumenta em termos que assim se sintetizam:

- Inexiste contradição entre os depoimentos das testemunhas DD, EE e FF;

- As testemunhas DD, EE e FF responderam sem hesitação ao que lhes foi perguntado;

- O conceito de normalidade em que o tribunal a quo se baseou para apreciar os depoimentos das testemunhas DD, EE e FF é demasiadamente restrito;

- A contradição, que se verificou, entre os depoimentos das testemunhas DD, EE e FF e as declarações de parte da recorrente, explicam-se pelo facto de esta, devido aos seus problemas de saúde, sofrer repentinas perdas de memória em situações de grande stress.

Ouvida a totalidade da prova produzida na audiência final, nomeadamente os depoimentos das testemunhas DD, EE e FF e as declarações de parte da recorrente, subscrevemos tudo quanto o tribunal a quo afirmou acerca da credibilidade destes meios de prova.

Tal como a recorrente sustenta, a forma como os depoimentos das testemunhas DD, EE e FF foram prestados não suscita reparos. Também não se verificaram discrepâncias relevantes entre eles. A sua falta de credibilidade decorre, antes, das razões apontadas pelo tribunal a quo: não se harmonizam, nem com as regras da experiência comum, nem com as declarações de parte da recorrente.

O relato que DD, EE e FF fizeram da suposta conversa telefónica em alta voz que a recorrente teria mantido com a recorrida na sua presença contraria frontalmente as regras da experiência comum. Como é óbvio, não é impossível que essa conversa tenha existido e aquelas testemunhas a ela tenham assistido nas circunstâncias que descreveram. Contudo, tratar-se-ia de uma situação inusitada, mesmo caricata, a recorrente tratar um assunto tão pessoal e importante com a recorrida, sua irmã, através de um telefonema em alta voz, na esplanada de um café, que fosse perfeitamente audível por quem estivesse nas mesas em redor. Assunto esse que envolvia aspectos atinentes à privacidade e, mesmo, à intimidade da recorrente, como as graves doenças de que esta padecia, a sua situação de desemprego e as suas dificuldades financeiras, que eram de tal ordem que nem lhe permitiam continuar a pagar a renda da sua casa. Não é normal uma pessoa expor desta forma a sua privacidade e a sua intimidade. Ao contrário, a ter-se efectivamente verificado, a cena descrita por DD, EE e FF seria absolutamente anormal. A generalidade das pessoas não se expõe publicamente da forma descrita.

Mais, EE, que se encontraria sentado a uma mesa ao lado daquela onde a recorrente e DD se encontravam, foi ao ponto de afirmar que se intrometeu na referida conversa telefónica que decorria em alta voz, dizendo à recorrente que a ajudaria a fazer a mudança para o apartamento dos autos e perguntando-lhe quem era a sua interlocutora, ao que ela teria respondido que era a sua irmã. Tudo isto durante a conversa telefónica e apesar de a recorrente e EE apenas se conhecerem de vista por, segundo este afirmou, se terem encontrado casualmente quatro, cinco ou seis vezes naquele café. E tudo isto de forma a que FF também ouvisse a conversa, apesar de, segundo este afirmou, ter visto a recorrente pela primeira vez apenas nesse dia. Nada disto corresponde às regras da experiência comum, à forma como a generalidade das pessoas se comporta em público e interage com quem mal conhece ou não conhece de todo.

A «memória» de DD, EE e FF também é surpreendente. Numa audiência realizada em meados de 2023, não tiveram dificuldade em situar o telefonema em questão no ano de 2017 (EE situou-o em finais de 2016 ou em finais de 2017), nem em descrever pormenorizadamente o seu conteúdo. O mesmo se diga da audição de EE e FF, os quais, apesar de não serem jovens, teriam ouvido distintamente, sem perderem pitada, a conversa alegadamente mantida entre a recorrente e a recorrida. Para mais, encontrando-se eles, tal como a recorrente, na esplanada de um café situado naquela que foi descrita como a rua mais movimentada e, logo, com mais barulho, de Tomar. Tudo isto contraria abertamente aquilo que é a normalidade da vida.

Decorre da exposição que vimos fazendo que partilhamos o critério de apreciação da prova adoptado pelo tribunal a quo e que, consequentemente, a crítica que a recorrente a este dirige também se nos aplica.

Sustenta a recorrida que o conceito de «normalidade» é demasiadamente vasto para se poder afirmar, categoricamente, como o tribunal a quo fez, que «uma pessoa normal não fala, ao telemóvel, em alta voz, numa esplanada». Até porque, continua a recorrente, «afirmar isso é o mesmo que dizer: esta pessoa é anormal, porque fala em alta voz ao telemóvel, numa esplanada!...» E conclui que, «numa sociedade aberta, pluralista, tolerante e democrática, tais afirmações parecem emergir, vagamente, de um passado que todos desejamos esquecer.»

Esta argumentação não faz sentido.

Mesmo numa «sociedade aberta, pluralista, tolerante e democrática», é possível e desejável distinguir entre aquilo que é normal e aquilo que o não é, desde que seja para fins compatíveis com aquele modelo de sociedade. Não, certamente, para proibir e punir o que não for considerado normal, mas para fins socialmente úteis, como é a apreciação da prova pelos tribunais. E um dos critérios fundamentais de apreciação da prova são as regras da experiência comum, que os tribunais da referida «sociedade aberta, pluralista, tolerante e democrática» continuam a seguir, incluindo aqueles cuja jurisprudência a recorrente cita nas suas alegações.

Por outro lado, considerar que determinado comportamento de uma pessoa não é normal não significa chamar «anormal» a essa pessoa, como é por demais óbvio. O comportamento da pessoa é que é anormal, no lídimo sentido do termo: não se enquadra na norma, foge à regra, é invulgar.

Porque é da normalidade enquanto critério de apreciação da prova que falamos, não é a nossa bitola que é demasiadamente estreita, mas sim a da recorrente que é demasiadamente larga. Se, para o referido efeito, só pudesse ser considerado anormal o que fosse proibido, ou o que fosse punível, ficaria proscrito o recurso às regras da experiência comum para a apreciação da prova. Teríamos entrado no domínio do absurdo, evidentemente.

Nada daquilo que o tribunal a quo decidiu e o tribunal ad quem acompanha constitui «intolerância» ou contraria a «globalização», que a recorrente também invoca em abono da tese que sustenta.

A segunda razão invocada pelo tribunal a quo para desconsiderar os depoimentos das testemunhas DD, EE e FF é os mesmos serem contraditórios com as declarações de parte da recorrente.

Que tal contradição se verifica, constitui uma evidência. Nas declarações de parte que prestou na audiência final, a recorrente descreveu as circunstâncias em que teria celebrado o alegado acordo com a recorrida e o irmão de ambas mediante o qual estes a teriam autorizado a residir na fracção até ao ano de 2023 de forma completamente diversa daquela que DD, EE e FF relataram.

Assim, segundo a recorrente, no ano de 2016, por se encontrar numa situação financeira muito precária, pediu auxílio à recorrida e ao irmão de ambas. Estes disseram-lhe que não tinham possibilidade de o fazer, mas marcaram uma reunião, a ter lugar na fracção. Nessa reunião, ocorrida no final de 2016, a recorrente teria chegado a um acordo com os seus irmãos no sentido de ir residir gratuitamente na fracção até finais de 2023, assim deixando de pagar renda pela casa onde então residia. Em execução desse acordo, a recorrente passou a residir na fracção em 25.02.2017. Houve conversas telefónicas entre a recorrente e a recorrida posteriormente entre a data da reunião e a da sua mudança para a fracção, uma das quais presenciada pelas testemunhas DD, EE e FF, mas o acordo que lhe teria permitido ocupar a fracção foi obtido na reunião. Tais conversas telefónicas foram sobre a dificuldade que a recorrente estaria a sentir em fazer a mudança, porquanto nem para isso tinha dinheiro. Ao contrário do que referiram as testemunhas DD, EE e FF (os dois últimos disseram lembrar-se do telemóvel da recorrente tocar…), a chamada telefónica que estas teriam presenciado foi efectuada pela recorrente e não pela recorrida.

Portanto, ao contrário do que a recorrente alega, a divergência entre as suas declarações de parte e os depoimentos das testemunhas DD, EE e FF não se cingiu à iniciativa da conversa telefónica, ou seja, a quem ligou a quem. A recorrente declarou que a recorrida e o irmão de ambas a autorizaram a residir na fracção em reunião presencial entre todos. Aquelas testemunhas relataram, não uma mera conversa sobre a concretização da mudança, mas sim que, nesse telefonema, a recorrida (e apenas ela) autorizou a recorrente a residir na fracção, precisando até que essa autorização se estenderia até ao ano de 2023. Assim, DD afirmou que, no referido telefonema, após pôr o telemóvel em alta voz, a recorrente perguntou à recorrida se esta permitia que ela fosse viver para a fracção, ao que a Leonor respondeu que podia, desde que fosse só até a sua filha ir para a universidade, o que previsivelmente aconteceria em 2023. Segundo EE, no telefonema em causa, a recorrida disse à recorrente que esta não precisava de estar a pagar uma renda quando havia uma casa da família onde poderia habitar, que essa casa estava abandonada e a precisar de obras e que a recorrente lá poderia permanecer até 2023. FF, por seu turno, relatou que a recorrente disse, à sua interlocutora, que estava com dificuldades financeiras precisava de auxílio, e que aquela respondeu que podia estar descansada a residir na fracção até 2023. Verifica-se, pois, uma evidente contradição entre, por um lado, a recorrente, e, por outro lado, as testemunhas DD, EE e FF, acerca do conteúdo do telefonema em causa.

Nas suas alegações, a recorrente procura explicar a descrita contradição afirmando que, devido aos seus problemas de saúde, sofre repentinas perdas de memória em situações de grande stress. Ou seja, teria prestado um depoimento desconforme com a realidade – que teria, então, sido relatada pelas testemunhas DD, EE e FF – devido a uma perda de memória.

Esta justificação não convence. A recorrente não evidenciou qualquer perda de memória ao longo das suas declarações de parte. Em vez disso, respondeu pormenorizadamente a todas as perguntas que lhe foram feitas, demonstrando que a sua memória se encontrava em perfeitas condições.

As razões que levaram o tribunal a quo a desconsiderar os depoimentos das testemunhas DD, EE e FF são, pois, válidas. Nenhum desses depoimentos merece qualquer crédito.

O tribunal a quo foi mais longe, considerando ter ficado demonstrada a inexistência do acordo, alegado pela recorrente, que permitiria a esta permanecer na fracção até ao ano de 2023. Mais do que a mera ausência de prova da existência desse acordo, teria sido feita prova da sua inexistência.

Aqui, não acompanhamos o tribunal a quo.

As testemunhas AA e BB apenas demonstraram saber aquilo que os recorridos e o irmão da recorrente e da recorrida lhes disseram, pelo que o seu contributo para a prova dos factos em discussão é nulo.

A testemunha CC, irmão da recorrente e da recorrida, negou a existência de qualquer acordo no sentido de a primeira ficar a residir na fracção. Todavia, importa considerar, na valoração deste depoimento, que CC se encontra de relações cortadas com a recorrente e, em contraponto, é muito próximo da recorrida, pelo que, uma vez que não foi corroborado por qualquer outra testemunha, aconselha a prudência que seja desconsiderado.

Nas suas declarações de parte, o recorrido Germano Silva também negou a existência de qualquer acordo no sentido de a recorrente ficar a residir na fracção. Todavia, atento o interesse directo de Germano Silva no desfecho da acção, tais declarações, apenas corroboradas pelo depoimento da testemunha CC, não podem ser consideradas suficientes para a demonstração, com o grau de segurança necessário para um juízo probatório, de que o referido acordo não existiu.

Relativamente ao email referido na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, sugere, pelas razões ali referidas, a inexistência do acordo em questão. Contudo, a justificação avançada pela recorrente para a omissão da referência ao acordo no email – pretender adquirir um título de detenção da fracção mais sólido e duradouro que o acordo que invocou nesta acção – é plausível. Sendo assim, também não prova a inexistência do referido acordo.

Concluindo este ponto, cabendo à recorrente o ónus da prova da existência do alegado acordo no sentido de lhe permitir ocupar gratuitamente a fracção e não tendo essa prova sido feita, o conteúdo das alíneas b) a d) dos factos não provados deverá manter-se como tal.

Improcede, assim, a totalidade da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, mantendo-se esta última integralmente.

4 – Reconhecimento do direito de propriedade dos recorridos sobre a fracção autónoma:

A recorrente considera que a sua condenação a reconhecer o direito de propriedade dos recorridos sobre a fracção não faz sentido, porquanto nunca contestou tal direito.

Interrogamo-nos sobre o que a recorrente pretende. Ser absolvida daquele pedido porque não o contestou? Seria absurdo. Sendo aquele pedido deduzido contra a recorrente, sendo esta parte legítima e estando demonstrado que os recorridos são proprietários da fracção, é inevitável a condenação no reconhecimento daquele direito. O tribunal a quo decidiu bem.

5 – Extinção do contrato de comodato:

Na sentença recorrida, o tribunal a quo disserta sobre se, na hipótese de se ter provado a existência do acordo alegado pela recorrente, que qualificou como contrato de comodato, o mesmo se encontraria extinto. Após analisar a questão, o tribunal a quo dá-lhe resposta afirmativa, concluindo que tal extinção teria ocorrido. A recorrente contesta esta conclusão.

Não se provou a existência daquele acordo, pelo que a discussão sobre se o mesmo, a ter existido, se teria, entretanto, extinguido, é inútil. Não nos deteremos, pois, na análise desta questão.

6 – Restituição da fracção autónoma e do seu recheio:

A recorrente considera «totalmente extemporânea» a sua condenação «a desocupar a fração e a restituí-la, aos AA., livre e desocupada de pessoas e com todo o recheio que aí existia e que se encontrava à data em que os seus pais a ocupavam em 2008». Invoca, como fundamento para esta afirmação, que, «na Conferência de Interessados, do Proc. de Inventário n.º 1397/20.1T8TMR, do Juízo Local Cível de Leiria - Juiz 2, Comarca de Leiria, foi determinado que, no dia 20 de Fevereiro do ano em curso, pelas 14:00 horas, a interessada Leonor Castelo, irá buscar os referidos bens e que, nessa data, aquando da entrega dos bens, a interessada Leonor Castelo, pagará as tornas devidas à interessada Amélia Castelo, o que sucedeu – cfr. docs. nº 5 e 6, que ora se juntam.»

Nesta parte, o recurso baseia-se no teor de documentos juntos com as respectivas alegações. Como vimos no ponto 1 da presente fundamentação, tais documentos não poderão ser considerados, dada a inadmissibilidade da sua junção nesta fase processual.

7 – Litigância de má-fé por parte da recorrente:

O tribunal a quo condenou a recorrente em multa e indemnização por litigância de má-fé, invocando, como fundamento, o seguinte: «a ré, ao ter alegado que houve um acordo de irmãos que autorizava a sua ida para a fracção e ao ter apresentado três testemunhas, além de ter prestado declarações, nesse mesmo sentido que, como se supra se expôs, não mereceram qualquer credibilidade, alterou de forma manifesta e com dolo intenso a verdade dos factos com o objectivo conseguir um objectivo ilegal, que mais não é do que apresentar um título que justificaria a entrada e a permanência na casa dos autores.»

Subjacente à condenação da recorrente por litigância de má-fé está, evidentemente, a convicção, adquirida pelo tribunal a quo, de que o acordo por aquela alegado nunca existiu. Ora, pelas razões que expusemos na parte final do ponto 3 da presente fundamentação, não partilhamos tal convicção, pois a prova oferecida e produzida nesse sentido não foi suficiente. Não se provou, nem a existência, nem a inexistência desse acordo. Tendo em conta que o ónus da prova deste cabia à recorrente, existe fundamento para a sua condenação a restituir a fracção aos recorridos, por falta de título que a legitime a permanecer nesta, mas não para a sua condenação por litigância de má-fé. Deverá, pois, a sentença recorrida ser revogada nessa parte.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso parcialmente procedente, revogando-se a sentença recorrida na parte em que condenou a recorrente em multa e indemnização por litigância de má-fé e confirmando-se a mesma sentença em tudo o mais.

Custas a cargo da recorrente e dos recorridos na proporção do seu decaimento, que se fixa em 5/6 para a primeira e 1/6 para os segundos.

Notifique.

*

Évora, 20.02.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta)


Despacho de 19.06.2024

Admissibilidade do recurso. Valor da causa. Valor da sucumbência. Legitimidade para recorrer. Efeito do recurso. * O autor suscita a questão...