Processo n.º 14902/22.0T8PRT.E1
*
Sumário:
1 – Numa acção com processo
especial de prestação de contas, se o réu admitir a existência do facto que
constitui a causa de pedir e que deste resultou uma obrigação de prestação de
contas nos termos alegados pelo autor, mas sustentar que tal obrigação se
encontra extinta, total ou parcialmente, mormente por cumprimento, estará a
contestar, pelo que será aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 942.º do
Código de Processo Civil.
2 – A obrigação de prestação de contas tem natureza
substantiva, sendo, estruturalmente, uma obrigação de informação, tal como o
artigo 573.º do Código Civil a configura. Logo, é a lei substantiva a sede
própria para a definição dos seus pressupostos. A lei adjectiva deveria
limitar-se a regular os termos em que deve ser judicialmente exercido o direito
à prestação de contas e cumprida a correspondente obrigação.
3 – Diversas normas
substantivas estabelecem obrigações
de prestação de contas. Estas também podem resultar de contrato ou do princípio
da boa-fé.
4 – Não
cabendo, ao caso, um processo especialíssimo de prestação de contas, não poderá
ser negada a tutela jurisdicional de um direito à prestação de contas através
do processo especial-geral de prestação de contas regulado nos artigos 941.º e
seguintes do Código de Processo Civil, sob pena de violação do princípio
constitucional da tutela jurisdicional efectiva.
5 – Nos contratos legalmente
atípicos, atenta a inexistência de um tipo contratual que para eles forneça um
modelo regulativo, o clausulado reveste-se de uma importância central para a sua
interpretação. Na concretização do regime jurídico desses contratos, é de primordial importância
a cláusula geral da boa fé.
6 – Num contrato de “parceria
comercial” mediante o qual uma parte autorizou a outra a usar a imagem de
uma nutricionista com notoriedade pública para comercializar determinados
produtos por si fabricados, contra o pagamento de 7% do preço de venda ao
retalho desses produtos em cada mês, e no qual não foi estipulado que a parte
que se obrigou a este pagamento prestasse contas à outra, contrariaria o
princípio da boa-fé que tal obrigação não existisse.
7 – Deverá aplicar-se, a um contrato como o descrito em 6,
por analogia e com as necessárias adaptações, o regime estabelecido, para o
contrato de associação em participação, nos artigos 26.º, n.º 1, al. d), e 31.º, n.ºs 1 a 4,
do Decreto-Lei n.º 231/81, de 28.07.
8 – Assim, a parte credora
do pagamento referido em 6 tem o direito de exigir da outra a prestação de
contas sobre as vendas, por esta efectuadas, de produtos abrangidos pelo
contrato, sendo, para esse efeito, admissível o recurso ao processo regulado
nos artigos 941.º e seguintes do Código de Processo Civil.
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Autora: HC, Unipessoal, Lda.
Ré: Sociedade 2, Lda.
Pedido: Prestação de contas
à autora, sob a forma de conta corrente, com entrega dos mapas de vendas em
falta e de cópia das facturas contabilísticas e balancete referentes à
comercialização dos produtos vendidos com a designação “by HC Nutrição com
Coração” até à data de hoje, nos termos do n.º 3 do artigo 944.º do CPC.
Sentença: Considerando que, do
contrato celebrado entre autora e ré, não resultou uma situação de administração
de bens pertencentes à primeira por parte da segunda, julgou a acção
improcedente.
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A autora interpôs recurso de
apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. A acção de prestação de contas é uma
acção especial tendo uma tramitação processual própria definida pelos artigos
941.º a 952.º do CPC.
2. A primeira fase processual da acção
de prestação de contas, consiste na citação do réu para apresentar as contas ou
contestar a obrigação de prestar contas – artigo 942.º do CPC.
3. Na falta de oposição quanto à
referida obrigação, existem duas hipóteses: o réu apresenta contas e se o autor
eventualmente contestar o juiz (artigo 945.º do CPC); ou o réu não apresentar
contas, sujeita-se à apresentação de contas por parte do autor, tendo juiz de
julgar de acordo com o seu prudente arbítrio (artigo 943.º do CPC).
4. Desta feita, não bastará o réu
apresentar um articulado designado por “contestação” para se considerar que o
mesmo contesta a obrigação de prestação de contas, havendo de ser apreciado
todo o articulado, pois, compulsada a contestação apresentada, o recorrido
limita-se essencialmente a impugnar documentos, a alegar que não decorre do
contrato uma obrigação de fornecer relatórios e mapas de venda completos e
precisos, bem como as faturas contabilísticas, que a “a autora faz confusão
entre o que é preço de venda a retalho e preço de venda ao público”, que “é
falso que após a cessação do contrato a ré continue a disponibilizar produtos
com tais referências a retalhistas” e “é igualmente falso que a ré não tenha
querido pagar à autora, pois apresentou-lhe um valor a facturar, que a autora
nem resposta deu” (artigos 21.º a 29.º da contestação).
5. A recorrida prestou contas entre os
períodos de julho de 2018 a junho de 2020 e julho de 2020 a fevereiro de 2022,
alegando, no entanto, que já tinha cumprido com aquela obrigação: no primeiro
período através da apresentação mensal de vendas (artigo 2.º do requerimento de
17-03-2023 e documentos juntos n.ºs 1 a 19), e, no segundo período através
carta registada (artigo 5.º do requerimento de 17-03-2023 e documento n.º 20),
além disso, apresentou agora em juízo a conta corrente relativamente a julho de
2020 e fevereiro de 2022 (documento n.º 21), alegando ainda que, quanto às
datas entre setembro de 2018 e junho de 2020, “à data as contas foram prestadas
e aceites pela autora” e que “as contas prestadas, do período temporal
01/07/2020 e 04/02/2022 se encontram prestadas” (artigos 10.º e 11.º do
requerimento de 17-03-2023).
6. É inequívoco que a recorrida não
contestou a obrigação de prestar contas, tendo até assumido que cumpriu com
aquela obrigação extrajudicialmente, pelo que a Mmª Juiz não poderia ter
apreciado sobre a existência daquele dever.
7. Os termos a seguir nos presentes
autos, deveriam ter sido os descritos nos artigos 944.º e 945.º do CPC, com a
notificação da autora para contestar as contas apresentadas (artigo 945.º, n.º
1 do CPC) e não os termos do artigo 942.º, n.º 3 e 4 do CPC, conforme ocorreu.
8. A decisão sob censura encontra-se
ferida pelo vício da nulidade por excesso de pronúncia, previsto na alínea d)
do n.º 1 do artigo 615.º do CPC - a sentença é nula quando o juiz deixe de
pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que
não podia tomar conhecimento”.
9. O artigo 608.º, nº 2, do CPC,
estipula que, “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido
à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela
solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas
partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de
outras”.
10. Por isso, estamos perante a nulidade
da decisão por excesso de pronúncia, contemplada na alínea d) do n.º 1 do
artigo 615.º do CPC, ocorre quando o tribunal se pronuncia sobre questões
jurídicas de que não poderia legalmente conhecer, o que sucedeu no presente
caso e se invoca para todos os efeitos.
11. A apreciação rigorosa dos meios
probatórios é inquestionavelmente a função primordial de qualquer juiz, tanto
daquele que na primeira instância preside à audiência e que decide da prova
quanto à matéria de facto, como daquele que, em instância de recurso, tem por
missão a reapreciação de tal decisão, depois de reponderados os meios de prova.
12. O tribunal, ao expressar a sua
convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para
que, através das regras da lógica e da experiência, se possa controlar a
razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não
provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num
sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o
esclarecimento de que …), de modo a possibilitar a reapreciação da respetiva
decisão da matéria de facto pelo tribunal de 2.ª instância.
13. Cabe ao juiz do processo tomar em
consideração “os factos que estão admitidos por acordo, provados por documento
ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda da matéria de facto
adquirida e extraindo dos atos apurados as presunções impostas pela lei ou
regras de experiência” (artigo 607.º, n.º 4, in fine do CPC).
14. A ré estava obrigada à prestação de
contas, quer pela natureza da relação contratual que estabeleceu com a autora,
concretamente tendo em conta a forma de remuneração pelo uso da imagem da Dra. HC.
– artigo 22.º da petição inicial, pelo que, encontrando-se a ré, ilicitamente,
a explorar os direitos de utilização de imagem de que a autora é titular,
torna-se evidente que deve prestar contas, apresentando comprovativos idóneos,
quanto ao volume de vendas – artigo 27.º da petição inicial.
15. O objecto do contrato, encontra-se
perfeitamente definido, pois, a autora assumiu a obrigação de ceder o uso e
gestão da sua imagem e marca “by HC Nutrição com Coração” para comércio de
produtos alimentares, contra o direito a receber uma percentagem das vendas dos
produtos com a representação daqueles bens dos quais era titular.
16. A recorrida nunca impugnou tais
factos cumprindo com o ónus que lhe impendia segundo o artigo 574.º n.º 1 do
CPC – “Ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que
constituem a causa de pedir invocada pelo autor.”.
17. A recorrida tinha interesse em usar
a marca e imagem da recorrente para promover os seus produtos, atendendo à sua
notoriedade no mercado, o que conseguiu com a venda dos produtos associados
àqueles elementos, e a autora tinha interesse em divulgar o seu trabalho e
promover a sua imagem como nutricionista, e, por isso, dúvidas não existem que
o contrato celebrado entre as partes, implicava as seguintes obrigações:
autorizar a recorrida para usar e gerir a imagem e marca da recorrente nas
embalagens dos seus produtos e pagar uma comissão de 7% sobre o preço da venda
a retalho.
18. A falta de impugnação, leva à prova
plena dos factos (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-10-2019,
Processo: 617/14.6YIPRT.L1.S1), pelo que, tendo em conta a prova por confissão
e a prova documental apresentada (documento n.º 1 junto com a petição inicial)
que andou mal o tribunal a quo, impondo-se
o aditamento aos factos provados do seguinte enunciado:
“Nos
termos do contrato celebrado a 10.07.2018, com a autorização da autora, a ré
passou a usar e gerir a imagem e marca da autora no âmbito do comércio
alimentar de produtos saudáveis e dietéticos.”
19. Quem administra bens ou interesses
alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses
bens ou interesses. Assim, vezes há em que a obrigação de prestar contas
decorre directamente da lei, mas não é forçoso que assim seja: a referida
obrigação pode derivar de negócio jurídico ou mesmo do princípio geral da
boa-fé.”
20. A decisão sob recurso partiu de uma
das hipóteses a considerar a existência da obrigação de prestação de contas,
recorrente aos ensinamentos da doutrina – “quem administra bens ou interesses
alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses
bens ou interesses” (ALBERTO REIS in Processos especiais, vol. I, pág. 303) – a
verdade é que ignorou parte do conceito que admite administração de
“interesses” de outrem e não apenas bens ou coisas em sentido formal.
21. É indiscutível que a obrigação tem
lugar todas as vezes que alguém trate no geral de negócios alheios ou de
negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios (Acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa de 24/05/1990, in CJ, III, pp. 125/ a 127) e Acórdãos do STJ de 28-1-75,
publicado no BMJ nº 243, p. 265, e de 1-7-2003 ao qual se pode aceder em
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, processo 03A1913).
22. O tribunal a quo assumiu que, pode decorrer do princípio da boa fé:
“A
obrigação de prestar contas é uma obrigação de informação. Esta existe sempre
que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do
seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias
(artigo 573º do CC).” -
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-01-2006, Processo: 10895/2005-6
e, no mesmo sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-02-2019,
Processo: 309/15.9T8FND.C1.
23. Segundo a melhor doutrina e
jurisprudência, a prestação de contas é uma das formas de exercício do direito
à informação, afirmando-se, designadamente que a obrigação de prestação de
contas é estruturalmente uma obrigação de informação, que existe sempre que o
titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu
conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias
(artigo 573.º do Código Civil) e cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas
cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo
e a determinar a situação de crédito ou de débito (v.g. Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 03-02-2005 e de 09-02-2006 e Luís Pires de Sousa, in
Processos especiais de divisão de coisa comum e de prestação de coisas, p.
119).
24. “O
princípio da boa-fé revela determinadas exigências objectivas de comportamento
– de correcção, honestidade e lealdade – impostas pela ordem jurídica,
exigências essas de razoabilidade, probidade e equilíbrio de conduta, em campos
normativos onde podem operar subprincípios, regras e ditames ou limites objetivos,
postulando certos modos de atuação em relação, seja na fase pré-contratual,
seja ao longo de toda a execução do contrato” (Acórdão do Tribunal da
Relação de Coimbra de 04-04-2017, Processo: 896/13.6TBCTB.C1) (sublinhado
nosso).
25. O mesmo princípio dá igualmente
sentido e existência, a princípios constitucionais como a igualdade material de
ambas as partes, o princípio da transparência, o princípio da confiança, a
dignidade da pessoa humana, cuja realização estaria limitada sem este
princípio, tal como foi estabelecido no Ac. do STJ de 17-05-2012, proferido no
Proc. nº 2841/03.8TCSNT.L1.S1, “O
conceito normativo de boa fé é utilizado pelo legislador em dois sentidos
distintos: no sentido de boa fé objetiva, enquanto norma de conduta, ou seja, no
plano dos princípios normativos, como base orientadora e fundamento de efetivas
soluções reguladoras dos conflitos de interesses, alcançadas através da
densificação, concretização e preenchimento pelos Tribunais desta cláusula
geral; e no sentido de boa fé subjetiva ou psicológica, isto é, como
consciência ou convicção justificada de se adotar um comportamento conforme ao
direito e respetivas exigências éticas”.
26. A boa fé ilumina e reflete-se em
toda a economia do contrato e durante todo o período da sua execução vinculando
os contraentes não ao mero cumprimento formal dos deveres da prestação que recaem
sobre eles, mas à observância do comportamento que não destoe da ideia
fundamental da leal cooperação que está na base do contrato (ANTUNES VARELA,
Obrigações, 187, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20.ª Edição, Ediforum p.
767) e refere-se tanto aos deveres principais ou típicos da prestação e aos
deveres secundários ou acidentais, como também aos deveres acessórios de
conduta quer do lado do devedor quer do credor (CUNHA DE SÁ, Abuso de Direito,
173, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20.ª Edição, Ediforum pág. 767).
27. A recorrente autorizou o réu a usar
o seu direito de imagem e uso de marca em seu benefício, como forma de
publicidade, comprometendo-se a pagar uma retribuição cujo montante era de um
cálculo aritmético dependente do preço das vendas de produtos a retalho
efetuadas pela recorrida com utilização daqueles elementos, é inadmissível e
fortemente atentatório da boa fé considerar que a recorrida não se encontra
vinculado ao dever de prestar contas sobre o volume de venda a retalho do qual
depende a remuneração da recorrente.
28. A recorrente não tem forma de saber
se as receitas obtidas com a venda dos produtos comercializados pela recorrida
com a sua imagem e marca correspondem à realidade, sendo que tais informações
apenas poderão ser prestadas pela recorrida.
29. A recorrida, durante a vigência do
contrato teve na sua disponibilidade o uso da imagem e da marca “by HC Nutrição
com Coração” para publicitar os seus produtos e difundir aquela marca, tendo obtido
proventos daquela gestão, sobre os quais ficou acordado se definiu a fixação de
uma comissão em favor da recorrente.
30. O Tribunal a quo não pode negar a existência da obrigação de prestação de
contas absolvendo a recorrida do pedido, pois isso, significaria, pelo trânsito
em julgado da decisão sob censura, barrar a possibilidade de a recorrente
aferir se lhe foi pago o que era devido, em violação da garantia constitucional
do acesso aos Tribunais para fazer valer a sua posição jurídica enquanto
titular de um direito de crédito (artigo 2.º do CPC)!
31. A decisão sob censura na sua
fundamentação e dispositivo violou as seguintes disposições: artigos 2.º, 574.º,
n.º 1 e 2, 607.º, n.º 4, 608.º, n.º 2, 615.º, n.º 1, aliena d), 941.º do CPC,
artigo 573.º do CC e artigo 20.º, n.º 1 da CRP.
A recorrida apresentou
contra-alegações, com as seguintes conclusões:
A) O tribunal a quo não está sujeito às alegações das partes quanto a aplicação
de questões de direito, nos termos do art. 5.º n.º 3 do C.P.Civil;
B) O tribunal é soberano na aplicação do
Direito;
C) Não sendo o art. 615 nº1 d) do
C.P.Civil, referente à aplicação do Direito e de argumentos/razões das partes,
pois não se pode confundir as questões que são submetidas à apreciação do tribunal
com as razões de facto ou de Direito, alegadas pelas partes e que servem de alicerce
a tais questões;
D) E assim nenhuma nulidade existe na
aliás douta sentença proferida pelo tribunal a quo, devendo a invocada nulidade ser julgada improcedente por não
provada;
E) A apelante alega, grosso modo, que por a apelada utilizar
o seu direito de imagem, nos termos contratuais a obrigaria a prestar contas de
tal utilização;
F) Não está previsto no contrato
qualquer cláusula de prestação de contas pela apelada à apelante;
G) Atento o disposto no art. 79 do C.
Civil cada indivíduo tem o direito à sua imagem, não podendo o seu retrato ser
exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o seu consentimento;
H) O nº 1 do art. 79 do C. Civil prevê
não só o consentimento do próprio para a exposição, reprodução ou lançamento no
mercado da sua imagem;
I) Como é o caso dos autos, em que a
apelante contratou com a apelada a utilização do seu nome em embalagens de produtos
alimentares;
J) A autorização aludida no art. 79 do
C. Civil poderá surgir como um acto unilateral ou surgir no âmbito de um
contrato, havendo neste caso que observar o que resulta das respectivas
cláusulas;
L) Consoante acordado pela cláusula terceira
do contrato a apelante, tinha direito a receber 7% sobre o preço de venda ao
retalho dos produtos alimentares com a designação “by HC nutrição com coração”,
apenas sendo referido que os pagamentos seriam mensais, nada mais;
M) A apelada não se obrigou a vender um
número determinado de bens alimentares; o que foi acordado foi que procedendo a
apelada à sua venda – e quando o fizesse – entregava uma percentagem do preço
de venda dos produtos alimentares que contivessem tal designação, nos termos
estabelecidos;
Ora;
N) A obrigação de prestar contas decorre
de uma outra obrigação de carácter mais geral, a obrigação de informação
prevista no art. 573 do C.Civil – esta existe sempre que o titular de um
direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência e do seu conteúdo e outrem
esteja em condições de prestar as informações necessárias;
O) Tendo lugar a obrigação de prestar
contas sempre que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo
tempo, alheios e próprios, logo se verifica que esta última obrigação tem um
âmbito mais restrito que aquela primeira;
P) Pois nem sempre que exista obrigação
de informação existe obrigação de prestação de contas: a prestação de contas é
um caso corrente da prestação de informações;
Q) Não se vê como decorre do art. 79 do
C. Civil uma obrigação de prestação de contas, sendo de salientar que,
contrariando o que a apelante parece pressupor, à apelada não foi entregue a
gestão e administração do «bem alheio» imagem da Sr.ª HC – apenas lhe foi
permitido, com as contrapartidas económicas acordadas, comercializar produtos
alimentares contendo a expressão “by HC nutrição com coração”;
R) O que a apelante pretende com estes
autos não se reporta directamente ao «direito à imagem» da Sra. HC, pessoa humana
e sócia única da apelante, tratado no art. 79 do C. Civil, mas antes tem a ver
com os concretos direitos de crédito que advêm do contrato por ela apelante,
celebrado com a apelada;
S) O que nos levanta outro problema, é
que a apelante é uma sociedade, não estando demonstrado que a Sra. HC tenha transmitido
os seus direitos de imagem à apelante a fim de legitimamente esta ter
contratado a utilização da imagem daquela com a apelada.
O recurso foi admitido.
*
Questões a decidir:
1 – Nulidade da sentença;
2 – Impugnação da decisão sobre a
matéria de facto;
3 – Existência de uma obrigação de
prestação de contas a cargo da recorrida e admissibilidade do recurso ao
processo especial de prestação de contas para exercer judicialmente a pretensão
da recorrente.
*
1 – Nulidade da sentença:
A recorrente sustenta que a
sentença é nula, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1,
al. d), 2.ª parte, do CPC. Fundamenta esta tese em termos que assim se resumem:
- Embora tenha apresentado contestação
na sequência da sua citação nos termos do n.º 1 do artigo 942.º do CPC, a
recorrida admitiu, nesse articulado, que, do contrato que celebrou com a
recorrente (doravante designado por “contrato”), resultou, para si, a obrigação
de prestar contas a esta;
- Não tendo a recorrida contestado a
obrigação de prestar contas, estava vedado, ao tribunal, apreciar se esta
obrigação existe;
- Em vez disso, deviam ter sido seguidos
os termos dos artigos 944.º e 945.º do CPC, com a notificação da recorrente
para contestar as contas apresentadas (artigo 945.º, n.º 1, do CPC), e não os
termos do artigo 942.º, n.ºs 3 e 4, do CPC.
Esta tese assenta num equívoco:
o de que a contestação da obrigação de prestação de contas se restrinja à
hipótese de o réu negar que o facto invocado como causa de pedir gere aquela
obrigação ou, eventualmente (a recorrente não se pronuncia sobre ela, mas
resulta, por maioria de razão, da sua argumentação), também à de o réu impugnar
o próprio facto invocado como causa de pedir; daí a errada conclusão de que
qualquer outra tomada de posição por parte do réu equivalha a admissão da
obrigação de prestação de contas.
Não é assim.
A contestação da obrigação
de prestação de contas pode assumir várias modalidades. Além das anteriormente
referidas, ocorrem-nos as seguintes:
1 – O réu admite a existência do facto
invocado como causa de pedir e que dele resulte uma obrigação de prestação de
contas, mas circunscreve este efeito a uma dimensão (por exemplo, temporal)
menor que a afirmada pelo autor;
2 – O réu admite a existência do facto
referido em 1 e que dele resultou uma obrigação de prestação de contas nos
termos alegados pelo autor, mas sustenta que esta obrigação se encontra
extinta, total ou parcialmente, mormente por cumprimento.
Também nestas hipóteses, o
réu contesta a obrigação de prestação de contas, suscitando a questão prévia da
existência desta, seja na sua totalidade, seja apenas em parte, tendo por
referência a forma como o autor a configurou. Daí que se esteja em pleno
domínio de aplicação do n.º 3 do artigo 942.º do CPC. Aquela questão prévia
terá de ser decidida pelo juiz antes de o processo passar à fase seguinte. O
juiz tem a opção de decidir sumariamente a questão, nos termos da 1.ª parte
daquela norma, ou de mandar seguir os termos subsequentes do processo comum
adequados ao valor da causa, nos termos da 2.ª parte da mesma norma.
Na decisão da referida
questão prévia, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à
indagação, interpretação e aplicação das regras de Direito, em conformidade com
a regra geral do artigo 5.º, n.º 3, do CPC. Poderá, pois, concluir pela
inexistência da obrigação de prestação de contas com fundamento jurídico
diverso daquele(s) que o réu invocou.
Na sentença recorrida,
entendeu-se, acertadamente, que a recorrida contestou, pelo que era aplicável a
tramitação prevista no n.º 3 do artigo 942.º do CPC. Na verdade, a recorrida,
embora admitindo que para si resultava, do contrato, uma obrigação de prestação
de contas à recorrente, negou a subsistência dessa obrigação relativamente ao
período de 10.07.2018 a 30.06.2020, por já a ter cumprido. Relativamente ao
período de 01.07.2020 a 04.02.2022, a recorrida declarou apresentar as contas
juntamente com a contestação à petição inicial aperfeiçoada.
A questão decidida pela
sentença recorrida é precisamente aquela que a recorrida suscitou: a existência
actual da obrigação de prestação de contas. Fê-lo foi com argumentação jurídica
diversa da proposta pela recorrida. É sobejamente conhecida a distinção entre
questão e argumento, essencial para ajuizar acerca da verificação das nulidades
da sentença previstas no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC. Só se verifica
nulidade por omissão de pronúncia se o juiz deixar de se pronunciar sobre uma
questão que devesse apreciar, não se se limitar a não analisar um argumento
apresentado por uma parte para sustentar a sua tese sobre uma questão apreciada.
E só se verifica nulidade por excesso de pronúncia se o juiz se pronunciar
sobre uma questão cujo conhecimento lhe estivesse vedado, não se decidir uma
questão de que devesse conhecer com base em argumentação jurídica diversa
daquela que as partes apresentaram.
No entendimento do tribunal a quo, o contrato não teve por efeito a
criação de uma situação de administração de bens pertencentes à recorrente por
parte da recorrida, pelo que “a tutela do
direito da autora não passa pelo cumprimento pela ré do dever de prestar
contas”. Daí que não tenha sentido a necessidade de analisar a argumentação
apresentada pela recorrida, que pressupunha que o contrato tivesse gerado uma
obrigação de prestação de contas. Não transpôs, portanto, os limites da questão
que tinha de decidir. Apenas a resolveu com base em argumentação jurídica
diversa daquela que a recorrida apresentou.
Resulta do exposto que o tribunal
a quo não conheceu de questão de que
não pudesse tomar conhecimento, pelo que a sentença recorrida não padece da
nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC.
2 – Impugnação da decisão
sobre a matéria de facto:
A sentença recorrida
baseou-se exclusivamente no conteúdo do contrato celebrado entre recorrente e
recorrida, que deu como integralmente reproduzido, embora destacando o
seguinte: “A autora e a ré outorgaram
documento escrito, intitulado “Contrato”, em 10-07-2018, nos termos do qual
acordaram que a ré fabricaria e comercializaria produtos alimentares com a
designação “by HC Nutrição com Coração” e, ainda, que pagaria à autora uma
percentagem de 7% sobre o preço de venda a retalho (PVR) dos produtos
alimentares com a designação “by HC Nutrição com Coração”, incluindo vendas nas
máquinas de vending e nas plataformas on line.”
Atento o fundamento pelo
qual o tribunal a quo julgou a acção
improcedente – inexistência, face ao conteúdo do contrato, de uma situação de
administração de bens da recorrente por parte da recorrida e, consequentemente,
da obrigação de a segunda prestar contas à primeira –, é admissível a forma
como aquele enunciou a matéria de facto que julgou provada. A descrição
exaustiva do conteúdo do contrato constituiria uma formalidade inútil. A
totalidade desse conteúdo deve considerar-se recebida na sentença recorrida.
Analisemos, à luz do que
acabámos de afirmar, a pretensão da recorrente de aditamento do seguinte
enunciado à matéria de facto provada:
“Nos termos do contrato celebrado a 10.07.2018, com a autorização da autora, a
ré passou a usar e gerir a imagem e marca da autora no âmbito do comércio
alimentar de produtos saudáveis e dietéticos.”
Se este enunciado se
limitasse a reproduzir uma cláusula do contrato, o seu aditamento à matéria de
facto provada seria inútil, dada a recepção da totalidade do conteúdo desse
contrato na sentença recorrida. Todavia, não é o caso. Na realidade, como aliás
resulta da fundamentação do recurso, trata-se, não de um facto, mas de uma
conclusão que a recorrente propõe, com base na interpretação do contrato. Com
efeito, em parte alguma do contrato se encontra estipulado que a recorrida “passou a usar e gerir a imagem e marca da
autora no âmbito do comércio alimentar de produtos saudáveis e dietéticos.”
Poderá é concluir-se, com base na interpretação do contrato, que a utilização
que, por efeito deste, a recorrida passou a fazer da imagem e do nome da
nutricionista HC, envolvia o uso e a gestão dessa imagem e desse nome no âmbito
dos produtos abrangidos pela parceria.
Sendo assim, não há razão
para aditar o referido enunciado à matéria de facto provada. Se o conteúdo do
contrato nos legitimar a concluir nos termos expostos, não deixaremos de o
fazer.
3 – Existência de uma
obrigação de prestação de contas a cargo da recorrida e admissibilidade do
recurso ao processo especial de prestação de contas para exercer judicialmente
a pretensão da recorrente:
O CPC de 1939 não se
imiscuiu na tarefa de determinar quem deve ser obrigado a prestar contas a
outrem, que cabe ao Direito substantivo. Os seus artigos 1012.º a 1022.º contêm
normas puramente processuais.
Com base nas normas substantivas
que, ao tempo, impunham obrigações de prestação de contas, JOSÉ ALBERTO DOS
REIS concluiu que poderia formular-se o princípio geral de que quem administra
bens ou interesses alheios estava obrigado a prestar contas da sua
administração ao titular desses bens ou interesses.
O CPC de 1961 manteve a boa
prática do CPC de 1939. Na sua redacção originária, os artigos 1013.º a 1023.º regulam
exclusivamente matéria processual.
Porém, a reforma desse
código levada a cabo pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12.12, alterou a
redacção do artigo 1014.º, posteriormente reproduzida no artigo 941.º do CPC de
2013. Essa redacção é a seguinte: “A acção de
prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou
por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação
das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios
e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.”
Assim se consagrou legislativamente um princípio até
então meramente doutrinário e que assim se deveria ter mantido. Tal recepção é
criticável por duas ordens de razão.
Por um lado, como já referimos, a obrigação de
prestação de contas tem natureza substantiva. Estruturalmente, é uma obrigação
de informação, tal como o artigo 573.º do Código Civil a configura. Logo, é a
lei substantiva a sede própria para a definição dos seus pressupostos. A lei
adjectiva deveria limitar-se a regular os termos em que deve ser judicialmente
exercido o direito à prestação de contas e cumprida a correspondente obrigação,
como acontecia antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12.12.
Por outro lado, além de ser deslocada, a referida recepção
gerou um factor de perturbação no sistema. A introdução, no artigo 1014.º do
CPC de 1961, da referência à administração de bens alheios pelo réu como
aparente pressuposto de admissibilidade da acção especial de prestação de
contas, não determinou o desaparecimento das normas de Direito substantivo que
oneravam quem se encontrasse em determinadas situações com uma obrigação de
prestação de contas a outrem. Ainda hoje, apesar da redacção do artigo 941.º do
CPC, tais regimes substantivos avulsos subsistem.
Assim surgiu um problema novo: como articular o
disposto no artigo 941.º do CPC com os regimes substantivos que, de forma
avulsa, estabelecem obrigações de prestação de contas? Mais, podendo uma
obrigação de prestação de contas resultar de um contrato, nos termos do artigo
405.º, n.º 1, do Código Civil,
ou constituir, inclusivamente, uma directa concretização do princípio da boa
fé, em que medida o disposto no artigo 941.º do CPC poderá condicionar a
liberdade contratual ou a actuação deste princípio?
Poderia responder-se a estas questões cindindo a
vertente substantiva da processual. A referência do artigo 941.º do CPC à
administração de bens alheios por parte do réu da acção de prestação de contas
apenas delimitaria o âmbito de aplicação deste processo especial, não
prejudicando a vigência de regimes substantivos que impusessem uma obrigação de
prestação de contas.
Porém, tal solução redundaria em negar tutela
jurisdicional a pretensões de prestação de contas juridicamente fundadas, com
ofensa do disposto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, segundo o qual, na
parte que nos interessa, a todos é assegurado o acesso ao Direito e aos
tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
Não se argumente, contra isto, que o credor da
prestação de contas (ou o obrigado que quisesse prestá-las espontaneamente) que
visse vedado o acesso à acção especial de prestação de contas, poderia exercer
a sua pretensão através do processo comum declarativo. Seria absurdo a lei
vedar o meio processualmente adequado, que é a acção especial de prestação de
contas, a quem pretende a prestação destas, mas admitir o exercício desta
pretensão através de um meio processualmente inadequado, como é a acção
declarativa comum. Uma tutela efectiva do direito à prestação de contas depende
de a lei admitir o seu titular a recorrer, ou a um processo especialíssimo de
prestação de contas que a lei estabeleça para a particular situação daquele, ou
ao processo especial-geral de prestação de contas regulado nos artigos 941.º e
seguintes do CPC.
Resta, pois, fazer uma interpretação da referência do
artigo 941.º do CPC à administração de bens alheios em conformidade com a
Constituição, de forma a garantir que, seja qual for a sua fonte, nenhuma
pretensão de prestação de contas fique sem tutela jurisdicional adequada.
A necessidade deste breve enquadramento da questão que
analisamos decorre de a sentença recorrida ter julgado a acção improcedente com
base no entendimento de que
não resultou do contrato uma situação de administração de bens
pertencentes à recorrente por parte da recorrida, sem mais.
A fundamentação da sentença
recorrida é, na parte que agora nos interessa, a seguinte:
“O
processo de prestação de contas está relacionado com a obrigação a que alguém
se encontra vinculado de prestar a terceiro contas dos seus actos. Não existe
norma legal que, genericamente, preveja as situações em que existe tal
obrigação. Na verdade, o que há é um alargado leque de preceitos que, de forma
casuística, impõem essa obrigação. Porém, como refere o senhor professor
Alberto dos Reis, em Processos Especiais, Vol. I, p. 303, pode, a partir desses
normativos que, caso a caso, estabelecem a obrigação de prestar contas,
extrair-se este princípio geral: quem administra bens ou interesses alheios
está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou
interesses. Assim, vezes há em que a obrigação de prestar contas decorre directamente
da lei, mas não é forçoso que assim seja: a referida obrigação pode derivar de
negócio jurídico ou mesmo do princípio geral da boa-fé.
Com
efeito, a obrigação de prestação de contas pode resultar do princípio geral da
boa fé a partir de uma mera administração de facto (não convencionada nem
normatizada); porém, pressuposto essencial de tal obrigação é que esteja em
causa uma administração de bens alheios, o que a nosso ver não sucede in casu.
In
casu, resulta provado que as partes acordaram que a ré fabricaria e
comercializaria produtos alimentares com a designação “by HC Nutrição com
Coração” e, ainda, que pagaria à autora uma percentagem de 7% sobre o preço de
venda a retalho (PVR) dos produtos alimentares com a designação “by HC Nutrição
com Coração”, incluindo vendas nas máquinas de vending e nas plataformas on
line. Na estrutura deste acordo, não se vislumbra quais os bens pertencentes à
autora, cuja administração é atribuída à autora.
Conclui-se,
portanto, que a tutela do direito da autora não passa pelo cumprimento pela ré
do dever de prestar contas, consequentemente impondo-se absolver a ré do pedido
de prestação de contas.”
O ponto de partida desta
fundamentação era promissor. Todavia, na continuação, o tribunal a quo fez referência ao princípio
enunciado por José Alberto dos Reis, na obra que acima mencionámos, e decidiu
com base nele, sem referir que, entretanto, o mesmo foi incorporado na lei
processual, e sem outra sustentação jurídica. O tribunal a quo analisou sumariamente a parte do clausulado do contrato que
considerou relevante e concluiu que dele não resultou a atribuição, à
recorrida, de poderes de administração sobre bens da recorrente, pelo que o
direito desta “não passa pelo cumprimento
pela ré do dever de prestar contas”.
Por um lado, a problemática
em análise não se resolve de forma tão linear, antes reclamando outro tipo de
indagação. Por outro, mesmo à luz da regra em que o tribunal a quo se baseou, não é líquido que a
solução correcta seja a de considerar que a recorrida não está obrigada a
prestar contas à recorrente. Passamos a desenvolver estas duas ideias.
A tarefa de responder à
questão de saber se, por efeito da celebração do contrato, a recorrida se
encontra onerada com uma obrigação de prestação de contas à recorrente, tem de
se iniciar com a análise e qualificação do referido contrato. Só depois de
percorrer esse caminho será possível determinar se o Direito fornece
sustentação para a pretensão da recorrente de que a recorrida lhe preste
contas.
Na al. c) do preâmbulo do
contrato, as partes consignaram ser seu objectivo comum “desenvolver um projeto destinado a promover produtos alimentares para
uma dieta saudável e equilibrada”.
Na cláusula 1.ª, as partes
denominaram o contrato como “parceria
comercial”. Mais precisamente, estipularam que o contrato “tem por objeto
estabelecer as condições da parceria comercial entre a HC e a SOCIEDADE 2, LDA.,
no âmbito dos produtos alimentares fabricados e comercializados pela SOCIEDADE
2, LDA. com a designação by HC Nutrição com Coração”.
Na cláusula 2.ª, as partes
estipularam que o contrato “terá a duração por tempo indeterminado, podendo cada uma
das partes rescindir o mesmo, desde que comunique à outra com 90 dias de
antecedência sobre a data do seu término”.
No
n.º 1 da cláusula 3.ª, as
partes estipularam que “A SOCIEDADE 2, LDA. compromete-se a pagar à HC uma
percentagem de 7% sobre preço sobre o preço de venda ao retalho (PVR) dos
produtos alimentares com a designação by HC Nutrição com Coração, incluindo
vendas nas máquinas de vending e nas plataformas online, como como site e
Amazon”. No n.º 2 da mesma cláusula, foi
estipulado que o pagamento dessa percentagem seria efectuado mensalmente,
mediante transferência bancária.
Na
cláusula 7.ª, as partes estipularam uma cláusula geral de boa fé, nos seguintes
termos: “As partes comprometem-se a
cooperar ao longo de todo o projeto no sentido de melhorias constantes e
estratégias inovadoras, de acordo com os princípios da boa-fé e eficiência,
para que o presente contrato seja executado com o maior sucesso possível”.
As cláusulas transcritas
permitem-nos chegar a algumas conclusões úteis acerca da natureza do contrato.
Como vimos, na cláusula 1.ª
do contrato, as partes designaram a relação dele emergente como “parceria comercial”. Tal parceria
consubstanciava-se, essencialmente, em a recorrente autorizar a recorrida a
comercializar os produtos por ela abrangidos com a designação “By HC Nutrição com Coração”, ficando a segunda
obrigada a pagar, à primeira, 7% sobre o preço de venda ao retalho desses
produtos, através de transferência bancária, com periodicidade mensal. Foram
estes os deveres
principais de cumprimento a que recorrente e recorrida se
vincularam.
Não abrangendo a “parceria comercial” estipulada entre
recorrente e recorrida a globalidade da actividade económica por esta desenvolvida,
mas unicamente a comercialização de uma determinada linha de produtos por ela
fabricados e comercializados, fica, sem necessidade de maior indagação, afastada
a possibilidade de qualificação do contrato como de associação em participação,
atenta a configuração deste tipo contratual resultante dos artigos 21.º a 31.º
do Decreto-Lei n.º 231/81, de 28.07. Como adiante procuraremos demonstrar, é
este o tipo contratual mais próximo, mas, mesmo tendo em conta a sua elasticidade,
a diferença acima evidenciada coloca o contrato para além dos seus limites. Inexiste
outro tipo legal em que o contrato possa ser integrado.
A primeira conclusão a que
chegamos é, pois, a de que nos encontramos perante um contrato legalmente
atípico e inominado.
Trata-se, igualmente, de um
contrato socialmente atípico. Não conhecemos, na prática comercial, um modelo
contratual que seja habitualmente utilizado e se identifique com o núcleo
central do contrato, acima descrito. Daí que não tenhamos ao nosso dispor modelos
regulativos consagrados pela prática comercial que nos auxiliem a enquadrar,
interpretar e, eventualmente, integrar lacunas do contrato.
A qualificação do contrato
como legalmente atípico permite, por si só, chegar a uma outra conclusão.
Atenta a inexistência de um tipo contratual que forneça um modelo regulativo
para o contrato, o clausulado deste assume uma importância central para a sua
interpretação. Como ensina PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, “A importância relativa da estipulação é (…) inversa
nos contratos típicos e nos atípicos. Nos típicos, a declaração negocial serve
para completar ou para alterar o modelo regulativo típico; nos atípicos, serve
para constituir o próprio modelo regulativo. Neste sentido, a estipulação, nos
contratos típicos, tem um
papel relativamente secundário na formação do conteúdo contratual, enquanto que
nos atípicos têm um papel principal. A regulação contratual, nos contratos
típicos, reside principalmente no tipo enquanto que nos atípicos se encontra
principalmente nas estipulações negociais.”
Atenta esta última
conclusão, poderia argumentar-se que, não prevendo o contrato que a recorrida preste
contas sobre as vendas, por si realizadas, dos produtos compreendidos no âmbito
da parceria, tem de se concluir que essa obrigação não existe. A recorrida
deita mão deste argumento nas suas alegações.
Porém, não é assim. Os
contratos atípicos não são ilhas. Integram-se na Ordem Jurídica, sendo-lhes
aplicáveis os princípios gerais desta, com destaque para o da boa fé, que
adquire, neste domínio, um papel reforçado. Recorremos novamente à, nesta
matéria, imprescindível lição de PEDRO PAIS DE VASCONCELOS: “Na concretização da disciplina dos contratos atípicos
é de primordial importância a cláusula geral da boa fé. A falta de acesso
directo aos modelos contratuais da lei ou da prática suscita com mais
frequência e mais importância, nos contratos atípicos, a necessidade de
recorrer à boa fé para determinar em concreto o conteúdo dos comportamentos
devidos.”
Além dos princípios gerais da Ordem Jurídica e, mais
especificamente, do Direito dos contratos, são ainda aplicáveis, aos contratos
atípicos, as normas que regulam as classes de contratos em que os mesmos possam
ser integrados, os
contratos e os negócios jurídicos em geral, bem como normas pertencentes a
tipos contratuais legais com os quais aqueles apresentem maiores semelhanças.
As primeiras são aplicáveis directamente. Já as normas pertencentes a tipos
contratuais legais com os quais aqueles apresentem maiores semelhanças, serão
aplicáveis por analogia.
As cláusulas do contrato que acima transcrevemos
inculcam que o mesmo deve ser integrado na categoria dos contratos de cooperação, definidos como “aqueles acordos negociais, típicos ou atípicos,
celebrados entre duas ou mais empresas jurídica e economicamente autónomas,
(singulares ou colectivas, públicas ou privadas, comerciais ou civis), com
vista ao estabelecimento, organização e regulação de relações jurídicas
duradouras para a realização de um fim económico comum.” Caracterizam-se “pela concertação da atividade das partes
com vista à obtenção de um fim comum”.
Esta qualificação, de
natureza doutrinária, é útil porquanto auxilia o aplicador do Direito na busca
de tipos contratuais com os quais o contrato apresenta maior semelhança, com
vista a, neles, encontrar normas legais susceptíveis de lhe serem aplicáveis
por analogia, nos termos expostos.
Somos, assim, conduzidos a
um contrato de cooperação típico, o contrato de associação em participação.
Os já mencionados artigos
21.º a 31.º do Decreto-Lei n.º 231/81, de 28.07, contêm o regime jurídico do
contrato de associação em participação. Este é definido, pelo n.º 1 do artigo
21.º, como o contrato mediante o qual uma pessoa é associada a uma actividade económica exercida por outra, ficando a
primeira a participar nos lucros ou nos lucros e perdas que desse exercício
resultarem para a segunda.
Tal como no contrato de associação em participação,
recorrente e recorrida acordaram que a primeira ficaria associada, de forma
duradoura, a uma actividade económica exercida pela segunda. Porém, em termos
diversos. A associação não seria à globalidade da actividade económica da
recorrida, mas sim à comercialização de determinados produtos, aos quais a designação “By HC Nutrição com Coração” acrescentaria valor. Por ser esse o
objecto da parceria, a participação da recorrente não era nos lucros e perdas,
nem apenas nos lucros, mas sim no resultado da venda ao retalho dos produtos em
causa.
Existe analogia entre as
situações. Em qualquer delas: 1) É estipulada uma prestação pecuniária a favor
da parte que não exerce a actividade económica de cujo resultado tal
contrapartida depende; 2) Essa parte necessita que aquela que exerce a
actividade económica lhe preste informação sobre o resultado desta para saber
se, em cada período (no caso dos autos, em cada mês), tem direito àquela
prestação pecuniária e, em caso afirmativo, qual é o seu montante.
Na relação contratual de
associação em participação, a lei, concretamente o já referido Decreto-Lei n.º
231/81, de 28.07, tutela expressamente a necessidade de o associado dispor da
referida informação. O n.º 2 do artigo 22.º menciona o direito de informação do
associado. O artigo 26.º, n.º 1, al. d), estabelece que o associante tem o
dever de prestar ao associado as informações justificadas pela natureza e pelo
objecto do contrato. Os n.ºs 1 a 4 do artigo 31.º estabelecem que: O associante deve prestar contas nas épocas legal ou
contratualmente fixadas para a exigibilidade da participação do associado nos
lucros e nas perdas e ainda relativamente a cada ano civil de duração da
associação (n.º 1); As contas devem ser prestadas dentro de prazo razoável
depois de findo o período a que respeitam; sendo associante uma sociedade
comercial, vigorará para este efeito o prazo de apresentação das contas à
assembleia geral (n.º 2); As contas devem fornecer indicação clara e precisa de
todas as operações em que o associado seja interessado e justificar o montante
da participação do associado nos lucros e perdas, se a ela houver lugar nessa
altura (n.º 3); Na falta de apresentação de contas pelo associante, ou não se
conformando o associado com as contas apresentadas, será utilizado o processo
especial de prestação de contas regulado pelos artigos 1014.º e seguintes do
Código de Processo Civil (n.º 4).
Coloca-se a questão de saber se estas normas legais
deverão ser aplicadas, por analogia, ao contrato celebrado entre recorrente e
recorrida. Impõe-se responder afirmativamente. Parece-nos evidente que o funcionamento da relação
contratual dele emergente pressupõe a existência, a cargo da recorrida, de um
dever de prestação de informação, à recorrente, sobre as vendas dos produtos
abrangidos pela “parceria comercial” que
efectue, nomeadamente de prestação de contas sobre os valores daí resultantes. Sem
o reconhecimento desse direito, a recorrente ficaria destituída de meios para
controlar o cumprimento da obrigação principal da recorrida, que é a de lhe
pagar, mensalmente, um valor correspondente a 7% do preço de venda ao retalho daqueles
produtos, donde decorreria que a recorrida só cumpriria essa obrigação se e na
medida que quisesse.
Tal interpretação do
contrato seria inaceitável, atento o seu resultado. Numa relação contratual em
que uma parte fica com direito a receber da outra, periodicamente, uma
percentagem de um valor que é apenas do conhecimento desta, tem de ser
reconhecido, àquela, o direito a ser informada, com uma cadência adequada,
desse valor, através da prestação de contas relativas aos factos que o
determinam. Esse dever é imposto, desde logo, pelo princípio da boa-fé, que não
é compatível com soluções que deixem a possibilidade de exercício dos direitos de
uma parte à mercê do arbítrio da outra.
Atenta a referida necessidade de tutelar o interesse
da recorrente em obter informação acerca dos valores de que depende a
existência e o montante da prestação estipulada na cláusula 3.ª do contrato e a
similitude, quanto a este aspecto, entre a relação contratual que existiu entre
recorrente e recorrida e aquela que decorre de um contrato de associação em
participação, deverá, pois, ser aplicado, por analogia e com as necessárias
adaptações, o
disposto nos artigos 26.º,
n.º 1, al. d), e 31.º, n.ºs 1 a 4, do Decreto-Lei n.º 231/81, de 28.07.
Assim se conclui que a
recorrida tinha o dever acessório de prestar, à recorrente, a informação
necessária para que esta pudesse conhecer qual era a quantia que tinha direito
a receber em cada mês. Não prestando a recorrida espontaneamente tal
informação, ou se a recorrente não se
conformasse com aquela que lhe fosse prestada, poderia esta utilizar o processo
especial de prestação de contas, hoje regulado pelos artigos 941.º e seguintes
do CPC, por aplicação analógica do artigo
31.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 231/81.
Nada mais é necessário para
a demonstração da existência de uma obrigação de prestação de contas a cargo da
recorrida e da admissibilidade do recurso ao processo especial de prestação de
contas para exercer judicialmente a pretensão da recorrente. Contudo, não deixaremos de abordar a questão de saber
se se pode considerar que, por efeito do contrato, a recorrida administrava
bens da recorrente.
É verdade que não nos encontramos perante uma situação
típica de administração de bens alheios. A recorrente não entregou, à
recorrente, nem no momento da celebração do contrato, nem no decurso da
execução deste, uma coisa para que ela a administrasse. Concedeu, sim, autorização
para que a recorrida utilizasse, em regime de não exclusividade (cfr. a
cláusula 6.ª do contrato), o nome e a imagem de uma nutricionista com
notoriedade pública na comercialização de determinados produtos por si
fabricados, subentendendo-se que, para o efeito, tinha legitimidade.
A recorrente sustenta que,
por efeito do contrato, a recorrida passou a usar e a gerir o nome e a imagem da referida nutricionista no âmbito
da sua actividade comercial, nisso se traduzindo a administração de bem alheio.
É fora de dúvida que a utilização do nome e da imagem
da nutricionista em causa no comércio de produtos dietéticos tem valor
pecuniário. Tanto assim é, que a recorrida pagou por essa utilização. Estamos,
pois, perante um bem, cuja utilização pela recorrida gerava rendimentos, que
entravam no património desta. Uma parte desse rendimento devia ser
posteriormente transferido para o património da recorrente.
Isto consubstanciava uma situação de administração de
bens da recorrente por parte da recorrida. Esta utilizava um bem da recorrente
no seu comércio, obtinha receitas com isso e tinha a obrigação de entregar
parte destas à recorrente. A gestão desta fonte de rendimento da recorrente
estava, por efeito do contrato, sob o domínio da recorrida. A recorrente tinha
um interesse directo nesse segmento do negócio da recorrida, o qual, nessa
medida, era gerido ou administrado pela recorrida no interesse comum de ambas.
Sendo assim, ainda que analisássemos a questão da
admissibilidade de recurso ao processo especial de prestação de contas por
parte da recorrente somente à luz do disposto no artigo 941.º do CPC (o que,
repetimos, é incorrecto, pois a complexidade da questão obsta à sua resolução
através de uma mera operação de subsunção no conceito de “administração de bens alheios”), a resposta a dar teria de ser
positiva.
Concluindo, a sentença recorrida deverá ser revogada,
procedendo o recurso. Fica,
assim, assente que o processo especial de prestação de contas constitui o meio
adequado para a recorrente exercer judicialmente o direito que invoca. Após a
descida do processo, deverá o tribunal a
quo ajuizar se se encontra em condições de proferir imediatamente a decisão
referida na 1.ª parte do n.º 3 do artigo 942.º do CPC, com ou sem a prévia
produção de prova, ou se é caso para se desencadear a tramitação referida na
2.ª parte do mesmo preceito legal.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto,
julgar o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida e
determinando-se o cumprimento, pelo tribunal a quo, do disposto no n.º 3 do artigo 942.º do CPC, nos termos
descritos na fundamentação deste acórdão.
Custas a cargo da recorrida.
Notifique.
*
Évora, 11.01.2024
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.ª
adjunta
2.ª
adjunta
JOSÉ A. ENGRÁCIA ANTUNES, Direito dos
Contratos Comerciais, 5.ª Reimpressão da edição de Outubro de 2009,
Almedina, p. 389.
CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos
III, Contratos de Liberalidade, de Cooperação e de Risco, 3.ª edição,
Almedina, p. 79.