Processo n.º 135/22.9T8BNV.E1
*
Sumário:
1 – Um pedido de demarcação
deve fundar-se na existência de uma situação de incerteza sobre a linha
divisória entre dois prédios confinantes pertencentes a pessoas diversas.
2 – Para o efeito referido em
1, o conceito de incerteza abrange, nomeadamente, a hipótese de os
proprietários dos prédios confinantes manifestarem vontades divergentes sobre a
localização da linha que os divide, assim gerando um conflito sobre essa
localização.
3 – Tal incerteza objectiva
não desaparecerá se o proprietário de um dos prédios confinantes se antecipar
ao outro e colocar, unilateralmente, marcos no terreno, em conformidade com
aquela que é a sua vontade (fundada, ou não, numa genuína convicção) sobre a
localização da estrema do seu prédio.
*
Autor/recorrente:
AAA.
Réus/recorridos:
BBB;
CCC.
Pedido:
Demarcação da propriedade do autor de
acordo com o respectivo título e demais documentos, corrigindo-se a colocação
dos marcos 9, 10, 11, 21 e 22 em conformidade com o esclarecimento técnico
junto como documento n.º 7, passando o furo e o PT a ficar na propriedade do
autor.
Decisão recorrida:
Considerou a petição inicial inepta, por
«contradição/ininteligibilidade do
pedido» e por contradição entre o pedido e a causa de pedir. Com esse
fundamento, anulou todo o processado e absolveu os réus da instância.
Conclusões do recurso:
A) O juiz a quo começa por fundar a sua decisão na invocação dos motivos do
acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08/03/2022, proferido no âmbito do
processo n.º 1008/20.5T8PVZ.P1, segundo o qual a acção de demarcação não pode
ser utilizada para obter o reconhecimento da propriedade sobre qualquer parcela
de terreno que está na titularidade de outra pessoa com desrespeito dos
respetivos títulos, o que significaria esconder o objecto de uma acção de
reivindicação.
B) Contrariamente ao que afirma a
sentença recorrida, o requerente centra toda a sua fundamentação, constante da
petição inicial e dos requerimentos que lhe sucederam, justamente na
circunstância de a linha divisória que se encontra no local não respeitar os
respectivos títulos, pelo que não há desrespeito pelos títulos.
C) O tribunal a quo ignorou que o requerente tem título para pedir a demarcação,
uma vez que consta da escritura de partilha através do qual o seu prédio
rústico foi adquirido (cfr. doc. 3) que o mesmo é proprietário de 619.700 m2,
muito embora no terreno se encontre demarcada a área de apenas 616.231m2, razão
pela qual o acórdão citado não corresponde ao que sucede no caso como afirma o
juiz a quo.
D) Na opinião do juiz a quo, as acções de demarcação servem
para quando não há qualquer demarcação já assinalada no solo entre as estremas
dos prédios contíguos em conflito, o que constitui outro importante erro de
julgamento.
E) A acção de demarcação não tem
cabimento apenas e só quando não há qualquer linha divisória entre os prédios
contíguos conflituantes, sendo suficiente a existência de dúvida ou incorrecção
quanto à localização dessa linha divisória para justificar a respetiva
propositura.
F) Por absurdo, se o tribunal a quo tivesse razão, bastaria que o
proprietário de um dos prédios procedesse à demarcação das estremas à revelia
do outro, justamente para impedir a propositura deste tipo de acção, para que o
outro proprietário ficasse com o seu direito de demarcação coartado, o que não
tem cabimento.
G) O juiz a quo não podia ter convidado o requerente a definir muito
claramente a orientação da linha divisória que propunha, numa clara
manifestação de que se conformava com o facto de a acção ser uma acção de
demarcação, para depois proferir uma sentença completamente contraditória com o
seu despacho interlocutório onde vem dizer que a acção afinal é de reivindicação.
H) Ao ter tratado a acção como
demarcação no despacho com a ref. 93766662, o juiz a quo constituiu caso julgado sobre o tipo de acção de que se
tratava.
I) Nos termos do artigo 625.º do CPC,
vale assim a primeira decisão, ou seja, aquela que convidou o requerente a
propor muito claramente qual a orientação da linha divisória que propunha para
a demarcação, sendo a sentença nula ao abrigo desta disposição.
J) O argumento do tribunal a quo, segundo o qual, o facto de o requerente
definir muito concretamente a área de terreno que pretende, significar que a acção
é de reivindicação não colhe porque a indicação do lugar da linha divisória foi
feito a pedido do próprio tribunal e a título de mera proposta para a
demarcação.
K) Seja de acordo com a petição inicial
ou com todos os elementos processuais, a área que, por força da acção de
demarcação, possa vir a ser restituída ao requerente, e bem assim as
construções que lá se encontrem, são mera consequência da acção de demarcação e
não objecto de reivindicação.
L) Se fosse verdade que o requerente
quisesse reivindicar o furo ou o PT não colocaria a determinação da passagem da
linha divisória no escrutínio de um juiz, pois nas acções de demarcação os traçados
da linha divisória são obtidos oficiosamente.
M) A questão levada a juízo nunca foi a
de reivindicar determinadas construções, tendo a circunstância de as mesmas
deverem constar dentro dos limites do prédio do requerente apenas a ver com o
facto de a delimitação da linha pelo vizinho ter sido desviada propositadamente
para que essas construções fiquem do lado dos requeridos.
N) A correcção da distorção provocada
pelo pai dos requeridos na linha divisória, feita de modo a que a mesma cumpra
o título, implica que o furo e o PT fiquem dentro da propriedade do requerente,
porque era lá que se encontravam se a linha não tivesse sido desviada.
O) A correcção da distorção faria com
que o furo e o PT ficassem no terreno do requerente, mas apenas como efeito
dessa correcção e do cumprimento da área do título, não por se entender que
estas construções lhes pertencem, e a menos que o tribunal decida que a correcção
deve ser feita noutro lado (o que não faria sentido porque o resto da estrema é
recta).
P) O lugar da estrema onde, sob o ponto
de vista técnico, deve ser feita a correcção, com a restituição dos metros
quadrados a que o requerente tem direito em face do título, fica justamente na
zona do furo e do PT, pelo que, mesmo que a linha divisória não tivesse sido
desviada a favor dos requeridos, sempre deveria ser aí o lugar da correção.
Q) A melhor jurisprudência e doutrina
citados, são claros ao afirmar que, se as partes discutem o título de
aquisição, como se, por exemplo, o autor pede o reconhecimento do seu direito
de propriedade sobre a faixa ou sobre uma parte dela, o que não sucede, a acção
é de reivindicação, mas se, pelo contrário, como aqui sucede, se não discute o
título, mas a relevância dele em relação ao prédio, vertido na respectiva
extensão, então a acção é já de demarcação ou, como dizem alguns autores, de
acertamento ou de declaração da extensão da propriedade.
R) A acção apresentada pelo requerente –
acção de demarcação – não visa a declaração do direito real, mas apenas definir
as estremas entre dois prédios contíguos, corrigindo a respectiva demarcação em
face do título.
S) A concreta indicação do local onde
deveria ser efectuada a demarcação dos prédios não passou de uma mera proposta
do requerente de acordo (i) com a influência que bem sabe que o pai dos
requeridos teve na colocação dos marcos, (ii) com os motivos de ordem técnica
apresentados pelo topógrafo por si contratado e, posteriormente, (iii) com o
convite efetuado pelo juiz a quo no despacho
com a ref.ª 963766662.
T) Se o requerente desse entrada de uma
acção de reivindicação, com base nos metros quadrados do título e do desvio e
consequente má marcação da linha divisória, o mesmo seria reenviado para uma acção
de demarcação para resolver o problema da definição da linha divisória.
U) O pedido não é contraditório nem
ininteligível e o tribunal a quo não
explica porque o afirma, especialmente depois do despacho com a ref.ª 963766662
onde revela saber perfeitamente que o requerente pretende sanar as dúvidas na
demarcação da linha divisória do seu prédio.
V) O pedido e a causa de pedir não são
contraditórios e o tribunal a quo não
explica porque faz esta afirmação.
W) É verdade que se pede que o furo e o
PT passem a ficar dentro da propriedade do requerente, mas como mera
consequência e efeito da correcção dos marcos 9, 10, 11, 21 e 22 feita de
acordo com o título, demais documentos em conformidade com o esclarecimento
técnico, portanto nunca como reivindicação, mas como melhor modo de corrigir o
erro.
X) A referência ao local da demarcação e
ao modo como esta deve ser feita não coloca a acção em termos de a correção ter
de ser feita desse modo ou de não ser feita de todo, nada afastando o arbítrio
do Juiz sobre a posição da linha divisória como é próprio de uma acção de demarcação.
Y) A referência ao local da demarcação e
ao modo como esta deve ser feita serve, em primeiro lugar, para localizar a
dúvida, identificar o erro, explicar a sua origem e indicar o modo certo de
proceder à demarcação do prédio.
Z) A sentença recorrida viola, por tudo
o quanto foi exposto, o disposto nos artigos 1353.º e 1354.º do CC e os artigos
186.º e 625.º do CPC.
Questões a decidir:
1 – Contradição/ininteligibilidade do
pedido;
2 – Contradição entre o pedido e a causa
de pedir.
*
1 –
Contradição/ininteligibilidade do pedido:
Na decisão recorrida,
afirma-se que o pedido é ininteligível, mas não se explica porquê. Seja como
for, discordamos. O pedido é perfeitamente inteligível: o recorrente pretende
que seja efectuada uma demarcação entre o seu prédio e o dos recorridos nos
termos que propõe.
Também se afirma, na decisão
recorrida, que o pedido contém uma contradição intrínseca, porquanto o recorrente
não se limita a pedir a demarcação do seu prédio, como é próprio da acção de
demarcação; em vez disso, pede também que determinadas construções passem a
fazer parte do seu prédio, o que já seria próprio de uma acção de
reivindicação.
Discordamos novamente.
O recorrente formulou um
puro pedido de demarcação do seu prédio face ao dos recorridos. Ele pretende
que o seu prédio seja demarcado de acordo com o respectivo título e demais
documentos, corrigindo-se a colocação dos marcos 9, 10, 11, 21 e 22 em
conformidade com o esclarecimento técnico junto à petição inicial como documento
n.º 7. A referência final à passagem do furo e do posto de transformação para o
prédio do recorrente nada acrescenta ao pedido de demarcação, pois, a
verificar-se, constituiria um mero efeito desta. Com essa referência, que acaba
por ser redundante, o recorrente limita-se a fornecer um esclarecimento
adicional sobre os termos em que pretende que a demarcação seja feita, não
formulando qualquer pedido típico de uma acção de reivindicação, a saber, a sua
declaração como titular do direito de propriedade sobre o seu prédio e a condenação
dos recorridos a restituírem-lhe determinada área deste.
Podíamos ficar por aqui na
análise da questão em epígrafe. O pedido é inteligível e não contém qualquer
contradição intrínseca. Não obstante, deixamos mais algumas notas acerca da
argumentação expendida na decisão recorrida, tendo em vista um mais completo
esclarecimento daquela questão.
Afirma-se, na decisão
recorrida, que o recorrente pretende utilizar a presente acção para, a pretexto
de demarcar o seu prédio, obter o seu reconhecimento como titular do direito de
propriedade sobre o furo e o posto de transformação. Segundo o tribunal a quo, esta intenção do recorrente
resulta de, na petição inicial, ele não alegar qualquer situação de incerteza
quanto aos limites do seu prédio, uma vez que reconhece que há demarcações, só
que imprecisas e incorrectas. Em vez disso, toda a alegação do recorrente se
centra na defesa de uma concreta demarcação, que não é a existente. Tanto assim
é, que o recorrente conclui pedindo a demarcação do seu prédio em conformidade
com aquela que julga ser a demarcação correcta e, en passant, «passando o furo
e o PT a ficar na propriedade do autor». Considera o tribunal a quo que a parte final do pedido revela
bem que o propósito do recorrente não é a demarcação do seu prédio, mas sim o
reconhecimento do seu direito de propriedade sobre uma concreta área de terreno
e as construções nela existentes.
Não acompanhamos esta
argumentação.
É pacífico que um pedido de
demarcação deve ter, como pressuposto, a existência de uma situação de
incerteza sobre a linha divisória entre dois prédios confinantes pertencentes a
pessoas diversas.
Porém, o conceito de
incerteza, para este efeito, é mais amplo que aquele que o tribunal a quo perfilha, abrangendo,
nomeadamente, a hipótese de os proprietários dos prédios confinantes manifestarem
vontades divergentes sobre a localização da linha que os divide, assim gerando
um conflito sobre essa localização.
Esta hipótese desdobra-se em
duas sub-hipóteses: 1) Cada um dos proprietários dos prédios confinantes está
convicto de que a linha divisória se localiza onde ele indica; 2) Um ou ambos
os proprietários fazem essa indicação com reserva mental, sabendo que não é
essa a localização da estrema do seu prédio. Em qualquer delas, verifica-se uma
incerteza objectiva acerca desta localização, que justificará uma pretensão de
demarcação ao abrigo do disposto no artigo 1353.º do CC.
Tal incerteza objectiva não
desaparecerá se o proprietário de um dos prédios confinantes se antecipar ao
outro e colocar, unilateralmente, marcos no terreno, em conformidade com aquela
que é a sua vontade (fundada, ou não, numa genuína convicção) sobre a
localização da estrema do seu prédio. A pretensão do proprietário do prédio contíguo
a que a demarcação se faça de forma diversa não pode ser privada de tutela
jurisdicional por efeito daquela actuação unilateral do seu opositor.
Por outras palavras, a
posição do proprietário que foi colocado perante o facto consumado da
demarcação feita pelo seu opositor não pode ficar reduzida à possibilidade de
reivindicar a parte do seu prédio que, no seu entendimento, ficou indevidamente
para lá dos marcos. Tem de se lhe reconhecer a possibilidade de exercer o seu
direito de demarcação, determinando, se o tribunal lhe der razão, a correcção daquela
que o seu opositor unilateralmente levou a cabo.
Entendimento diverso levaria,
em situações de conflito sobre a localização da linha divisória entre prédios
confinantes, a beneficiar o proprietário, eventualmente menos escrupuloso, que
efectuasse uma demarcação do seu prédio de forma unilateral, em vez de tentar
chegar a um acordo com o seu vizinho ou de solicitar a intervenção judicial. Em
vez de inibir a tomada unilateral de posições de força por parte dos
particulares, que constitui uma das suas funções principais, o Direito estaria
a fazer precisamente o contrário, ou seja, a fomentar atitudes dessa natureza. Daí
que consideremos tal entendimento inaceitável.
Na petição inicial, o
recorrente alegou que o pai dos recorridos procedeu, unilateralmente, a uma
demarcação que não coincide com os limites de cada um dos prédios. Mais
precisamente, os marcos n.ºs 9, 10, 11, 21 e 22 teriam sido indevidamente
colocados no interior do seu prédio e não na estrema. Os recorridos discordam,
considerando que a demarcação efectuada por seu pai respeitou os limites dos
prédios. Verifica-se, pois, uma situação de incerteza objectiva sobre a
localização das estremas dos prédios, para cuja resolução o recorrente exerceu o
seu direito, consagrado no artigo 1353.º do CC, de solicitar tutela
jurisdicional, que não pode ser coarctado por uma actuação unilateral do pai
dos recorridos pela qual considera ter sido lesado.
Portanto, ao contrário do
que se afirma na decisão recorrida, o recorrente alega uma situação de
incerteza objectiva quanto aos limites do seu prédio. Considerando o recorrente
que a demarcação efectuada é imprecisa e incorrecta, como se reconhece na decisão
recorrida, não pode concluir-se que ele não alegou aquela situação de
incerteza.
Sendo assim, não existe
fundamento para imputar, ao recorrente, uma tentativa de utilização
disfuncional de um pedido formulado como sendo de demarcação para prosseguir a
finalidade típica de uma acção de reivindicação, que teria por objecto o furo e
o posto de transformação. Desde logo, porque essa ideia nem sequer é rigorosa
quanto ao objecto: não são apenas o furo e o posto de transformação que
passarão a integrar o prédio do recorrente na hipótese de a demarcação se fazer
nos termos que ele pretende. Mas, sobretudo, porque o recorrente alegou a
existência de uma situação de incerteza objectiva sobre a localização da linha
divisória entre os prédios, que justifica a formulação de um genuíno pedido de
demarcação, sem que haja fundamento para nele divisar uma sub-reptícia
finalidade de reivindicação.
2 – Contradição entre o
pedido e a causa de pedir:
O tribunal a quo entendeu que, tendo o recorrente
fundamentado a sua pretensão numa alegada divergência, entre ele e os
recorridos, sobre a propriedade de uma faixa de terreno, deveria ter formulado
um pedido de reivindicação e não de demarcação.
Continuamos a discordar do
tribunal a quo.
Vimos, no ponto anterior,
que o recorrente formulou um puro pedido de demarcação do seu prédio face ao
dos recorridos. O recorrente pediu a demarcação do prédio de que é proprietário
de acordo com o respectivo título e demais documentos, corrigindo-se a colocação
dos marcos 9, 10, 11, 21 e 22 em conformidade com o esclarecimento técnico
junto à petição inicial como documento n.º 7, passando, assim, o furo e o posto
de transformação a ficar no interior do seu prédio. Inexiste, aqui, qualquer
elemento de uma pretensão de reivindicação.
Como também vimos no ponto
anterior, a causa de pedir invocada é constituída pela existência de dois
prédios confinantes, um deles propriedade do recorrente e o outro propriedade
dos recorridos, relativamente a cujas estremas se verifica uma situação de
incerteza objectiva. Ou seja, estamos perante a causa de pedir típica de um
pedido de demarcação.
Inexiste, pois, qualquer
contradição entre o pedido e a causa de pedir.
3 – Conclusão:
Pelas razões expostas, a
petição inicial não é inepta, seja por «contradição/
ininteligibilidade do pedido», seja por contradição entre o pedido e a
causa de pedir. Daí que a decisão recorrida deva ser revogada e os autos devam
prosseguir os seus termos.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto,
julgar o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se
que os autos prossigam os seus termos.
Custas a cargo dos recorridos.
Notifique.
*
Évora,
11.04.2024
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.º adjunta)
(2.ª adjunta)