quinta-feira, 18 de abril de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

Processo n.º 135/22.9T8BNV.E1

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Sumário:

1 – Um pedido de demarcação deve fundar-se na existência de uma situação de incerteza sobre a linha divisória entre dois prédios confinantes pertencentes a pessoas diversas.

2 – Para o efeito referido em 1, o conceito de incerteza abrange, nomeadamente, a hipótese de os proprietários dos prédios confinantes manifestarem vontades divergentes sobre a localização da linha que os divide, assim gerando um conflito sobre essa localização.

3 – Tal incerteza objectiva não desaparecerá se o proprietário de um dos prédios confinantes se antecipar ao outro e colocar, unilateralmente, marcos no terreno, em conformidade com aquela que é a sua vontade (fundada, ou não, numa genuína convicção) sobre a localização da estrema do seu prédio.

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Autor/recorrente:

AAA.

Réus/recorridos:

BBB;

CCC.

Pedido:

Demarcação da propriedade do autor de acordo com o respectivo título e demais documentos, corrigindo-se a colocação dos marcos 9, 10, 11, 21 e 22 em conformidade com o esclarecimento técnico junto como documento n.º 7, passando o furo e o PT a ficar na propriedade do autor.

Decisão recorrida:

Considerou a petição inicial inepta, por «contradição/ininteligibilidade do pedido» e por contradição entre o pedido e a causa de pedir. Com esse fundamento, anulou todo o processado e absolveu os réus da instância.

Conclusões do recurso:

A) O juiz a quo começa por fundar a sua decisão na invocação dos motivos do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08/03/2022, proferido no âmbito do processo n.º 1008/20.5T8PVZ.P1, segundo o qual a acção de demarcação não pode ser utilizada para obter o reconhecimento da propriedade sobre qualquer parcela de terreno que está na titularidade de outra pessoa com desrespeito dos respetivos títulos, o que significaria esconder o objecto de uma acção de reivindicação.

B) Contrariamente ao que afirma a sentença recorrida, o requerente centra toda a sua fundamentação, constante da petição inicial e dos requerimentos que lhe sucederam, justamente na circunstância de a linha divisória que se encontra no local não respeitar os respectivos títulos, pelo que não há desrespeito pelos títulos.

C) O tribunal a quo ignorou que o requerente tem título para pedir a demarcação, uma vez que consta da escritura de partilha através do qual o seu prédio rústico foi adquirido (cfr. doc. 3) que o mesmo é proprietário de 619.700 m2, muito embora no terreno se encontre demarcada a área de apenas 616.231m2, razão pela qual o acórdão citado não corresponde ao que sucede no caso como afirma o juiz a quo.

D) Na opinião do juiz a quo, as acções de demarcação servem para quando não há qualquer demarcação já assinalada no solo entre as estremas dos prédios contíguos em conflito, o que constitui outro importante erro de julgamento.

E) A acção de demarcação não tem cabimento apenas e só quando não há qualquer linha divisória entre os prédios contíguos conflituantes, sendo suficiente a existência de dúvida ou incorrecção quanto à localização dessa linha divisória para justificar a respetiva propositura.

F) Por absurdo, se o tribunal a quo tivesse razão, bastaria que o proprietário de um dos prédios procedesse à demarcação das estremas à revelia do outro, justamente para impedir a propositura deste tipo de acção, para que o outro proprietário ficasse com o seu direito de demarcação coartado, o que não tem cabimento.

G) O juiz a quo não podia ter convidado o requerente a definir muito claramente a orientação da linha divisória que propunha, numa clara manifestação de que se conformava com o facto de a acção ser uma acção de demarcação, para depois proferir uma sentença completamente contraditória com o seu despacho interlocutório onde vem dizer que a acção afinal é de reivindicação.

H) Ao ter tratado a acção como demarcação no despacho com a ref. 93766662, o juiz a quo constituiu caso julgado sobre o tipo de acção de que se tratava.

I) Nos termos do artigo 625.º do CPC, vale assim a primeira decisão, ou seja, aquela que convidou o requerente a propor muito claramente qual a orientação da linha divisória que propunha para a demarcação, sendo a sentença nula ao abrigo desta disposição.

J) O argumento do tribunal a quo, segundo o qual, o facto de o requerente definir muito concretamente a área de terreno que pretende, significar que a acção é de reivindicação não colhe porque a indicação do lugar da linha divisória foi feito a pedido do próprio tribunal e a título de mera proposta para a demarcação.

K) Seja de acordo com a petição inicial ou com todos os elementos processuais, a área que, por força da acção de demarcação, possa vir a ser restituída ao requerente, e bem assim as construções que lá se encontrem, são mera consequência da acção de demarcação e não objecto de reivindicação.

L) Se fosse verdade que o requerente quisesse reivindicar o furo ou o PT não colocaria a determinação da passagem da linha divisória no escrutínio de um juiz, pois nas acções de demarcação os traçados da linha divisória são obtidos oficiosamente.

M) A questão levada a juízo nunca foi a de reivindicar determinadas construções, tendo a circunstância de as mesmas deverem constar dentro dos limites do prédio do requerente apenas a ver com o facto de a delimitação da linha pelo vizinho ter sido desviada propositadamente para que essas construções fiquem do lado dos requeridos.

N) A correcção da distorção provocada pelo pai dos requeridos na linha divisória, feita de modo a que a mesma cumpra o título, implica que o furo e o PT fiquem dentro da propriedade do requerente, porque era lá que se encontravam se a linha não tivesse sido desviada.

O) A correcção da distorção faria com que o furo e o PT ficassem no terreno do requerente, mas apenas como efeito dessa correcção e do cumprimento da área do título, não por se entender que estas construções lhes pertencem, e a menos que o tribunal decida que a correcção deve ser feita noutro lado (o que não faria sentido porque o resto da estrema é recta).

P) O lugar da estrema onde, sob o ponto de vista técnico, deve ser feita a correcção, com a restituição dos metros quadrados a que o requerente tem direito em face do título, fica justamente na zona do furo e do PT, pelo que, mesmo que a linha divisória não tivesse sido desviada a favor dos requeridos, sempre deveria ser aí o lugar da correção.

Q) A melhor jurisprudência e doutrina citados, são claros ao afirmar que, se as partes discutem o título de aquisição, como se, por exemplo, o autor pede o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a faixa ou sobre uma parte dela, o que não sucede, a acção é de reivindicação, mas se, pelo contrário, como aqui sucede, se não discute o título, mas a relevância dele em relação ao prédio, vertido na respectiva extensão, então a acção é já de demarcação ou, como dizem alguns autores, de acertamento ou de declaração da extensão da propriedade.

R) A acção apresentada pelo requerente – acção de demarcação – não visa a declaração do direito real, mas apenas definir as estremas entre dois prédios contíguos, corrigindo a respectiva demarcação em face do título.

S) A concreta indicação do local onde deveria ser efectuada a demarcação dos prédios não passou de uma mera proposta do requerente de acordo (i) com a influência que bem sabe que o pai dos requeridos teve na colocação dos marcos, (ii) com os motivos de ordem técnica apresentados pelo topógrafo por si contratado e, posteriormente, (iii) com o convite efetuado pelo juiz a quo no despacho com a ref.ª 963766662.

T) Se o requerente desse entrada de uma acção de reivindicação, com base nos metros quadrados do título e do desvio e consequente má marcação da linha divisória, o mesmo seria reenviado para uma acção de demarcação para resolver o problema da definição da linha divisória.

U) O pedido não é contraditório nem ininteligível e o tribunal a quo não explica porque o afirma, especialmente depois do despacho com a ref.ª 963766662 onde revela saber perfeitamente que o requerente pretende sanar as dúvidas na demarcação da linha divisória do seu prédio.

V) O pedido e a causa de pedir não são contraditórios e o tribunal a quo não explica porque faz esta afirmação.

W) É verdade que se pede que o furo e o PT passem a ficar dentro da propriedade do requerente, mas como mera consequência e efeito da correcção dos marcos 9, 10, 11, 21 e 22 feita de acordo com o título, demais documentos em conformidade com o esclarecimento técnico, portanto nunca como reivindicação, mas como melhor modo de corrigir o erro.

X) A referência ao local da demarcação e ao modo como esta deve ser feita não coloca a acção em termos de a correção ter de ser feita desse modo ou de não ser feita de todo, nada afastando o arbítrio do Juiz sobre a posição da linha divisória como é próprio de uma acção de demarcação.

Y) A referência ao local da demarcação e ao modo como esta deve ser feita serve, em primeiro lugar, para localizar a dúvida, identificar o erro, explicar a sua origem e indicar o modo certo de proceder à demarcação do prédio.

Z) A sentença recorrida viola, por tudo o quanto foi exposto, o disposto nos artigos 1353.º e 1354.º do CC e os artigos 186.º e 625.º do CPC.

Questões a decidir:

1 – Contradição/ininteligibilidade do pedido;

2 – Contradição entre o pedido e a causa de pedir.

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1 – Contradição/ininteligibilidade do pedido:

Na decisão recorrida, afirma-se que o pedido é ininteligível, mas não se explica porquê. Seja como for, discordamos. O pedido é perfeitamente inteligível: o recorrente pretende que seja efectuada uma demarcação entre o seu prédio e o dos recorridos nos termos que propõe.

Também se afirma, na decisão recorrida, que o pedido contém uma contradição intrínseca, porquanto o recorrente não se limita a pedir a demarcação do seu prédio, como é próprio da acção de demarcação; em vez disso, pede também que determinadas construções passem a fazer parte do seu prédio, o que já seria próprio de uma acção de reivindicação.

Discordamos novamente.

O recorrente formulou um puro pedido de demarcação do seu prédio face ao dos recorridos. Ele pretende que o seu prédio seja demarcado de acordo com o respectivo título e demais documentos, corrigindo-se a colocação dos marcos 9, 10, 11, 21 e 22 em conformidade com o esclarecimento técnico junto à petição inicial como documento n.º 7. A referência final à passagem do furo e do posto de transformação para o prédio do recorrente nada acrescenta ao pedido de demarcação, pois, a verificar-se, constituiria um mero efeito desta. Com essa referência, que acaba por ser redundante, o recorrente limita-se a fornecer um esclarecimento adicional sobre os termos em que pretende que a demarcação seja feita, não formulando qualquer pedido típico de uma acção de reivindicação, a saber, a sua declaração como titular do direito de propriedade sobre o seu prédio e a condenação dos recorridos a restituírem-lhe determinada área deste.

Podíamos ficar por aqui na análise da questão em epígrafe. O pedido é inteligível e não contém qualquer contradição intrínseca. Não obstante, deixamos mais algumas notas acerca da argumentação expendida na decisão recorrida, tendo em vista um mais completo esclarecimento daquela questão.

Afirma-se, na decisão recorrida, que o recorrente pretende utilizar a presente acção para, a pretexto de demarcar o seu prédio, obter o seu reconhecimento como titular do direito de propriedade sobre o furo e o posto de transformação. Segundo o tribunal a quo, esta intenção do recorrente resulta de, na petição inicial, ele não alegar qualquer situação de incerteza quanto aos limites do seu prédio, uma vez que reconhece que há demarcações, só que imprecisas e incorrectas. Em vez disso, toda a alegação do recorrente se centra na defesa de uma concreta demarcação, que não é a existente. Tanto assim é, que o recorrente conclui pedindo a demarcação do seu prédio em conformidade com aquela que julga ser a demarcação correcta e, en passant, «passando o furo e o PT a ficar na propriedade do autor». Considera o tribunal a quo que a parte final do pedido revela bem que o propósito do recorrente não é a demarcação do seu prédio, mas sim o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre uma concreta área de terreno e as construções nela existentes.

Não acompanhamos esta argumentação.

É pacífico que um pedido de demarcação deve ter, como pressuposto, a existência de uma situação de incerteza sobre a linha divisória entre dois prédios confinantes pertencentes a pessoas diversas.

Porém, o conceito de incerteza, para este efeito, é mais amplo que aquele que o tribunal a quo perfilha, abrangendo, nomeadamente, a hipótese de os proprietários dos prédios confinantes manifestarem vontades divergentes sobre a localização da linha que os divide, assim gerando um conflito sobre essa localização.

Esta hipótese desdobra-se em duas sub-hipóteses: 1) Cada um dos proprietários dos prédios confinantes está convicto de que a linha divisória se localiza onde ele indica; 2) Um ou ambos os proprietários fazem essa indicação com reserva mental, sabendo que não é essa a localização da estrema do seu prédio. Em qualquer delas, verifica-se uma incerteza objectiva acerca desta localização, que justificará uma pretensão de demarcação ao abrigo do disposto no artigo 1353.º do CC.

Tal incerteza objectiva não desaparecerá se o proprietário de um dos prédios confinantes se antecipar ao outro e colocar, unilateralmente, marcos no terreno, em conformidade com aquela que é a sua vontade (fundada, ou não, numa genuína convicção) sobre a localização da estrema do seu prédio. A pretensão do proprietário do prédio contíguo a que a demarcação se faça de forma diversa não pode ser privada de tutela jurisdicional por efeito daquela actuação unilateral do seu opositor.

Por outras palavras, a posição do proprietário que foi colocado perante o facto consumado da demarcação feita pelo seu opositor não pode ficar reduzida à possibilidade de reivindicar a parte do seu prédio que, no seu entendimento, ficou indevidamente para lá dos marcos. Tem de se lhe reconhecer a possibilidade de exercer o seu direito de demarcação, determinando, se o tribunal lhe der razão, a correcção daquela que o seu opositor unilateralmente levou a cabo.

Entendimento diverso levaria, em situações de conflito sobre a localização da linha divisória entre prédios confinantes, a beneficiar o proprietário, eventualmente menos escrupuloso, que efectuasse uma demarcação do seu prédio de forma unilateral, em vez de tentar chegar a um acordo com o seu vizinho ou de solicitar a intervenção judicial. Em vez de inibir a tomada unilateral de posições de força por parte dos particulares, que constitui uma das suas funções principais, o Direito estaria a fazer precisamente o contrário, ou seja, a fomentar atitudes dessa natureza. Daí que consideremos tal entendimento inaceitável.

Na petição inicial, o recorrente alegou que o pai dos recorridos procedeu, unilateralmente, a uma demarcação que não coincide com os limites de cada um dos prédios. Mais precisamente, os marcos n.ºs 9, 10, 11, 21 e 22 teriam sido indevidamente colocados no interior do seu prédio e não na estrema. Os recorridos discordam, considerando que a demarcação efectuada por seu pai respeitou os limites dos prédios. Verifica-se, pois, uma situação de incerteza objectiva sobre a localização das estremas dos prédios, para cuja resolução o recorrente exerceu o seu direito, consagrado no artigo 1353.º do CC, de solicitar tutela jurisdicional, que não pode ser coarctado por uma actuação unilateral do pai dos recorridos pela qual considera ter sido lesado.

Portanto, ao contrário do que se afirma na decisão recorrida, o recorrente alega uma situação de incerteza objectiva quanto aos limites do seu prédio. Considerando o recorrente que a demarcação efectuada é imprecisa e incorrecta, como se reconhece na decisão recorrida, não pode concluir-se que ele não alegou aquela situação de incerteza.

Sendo assim, não existe fundamento para imputar, ao recorrente, uma tentativa de utilização disfuncional de um pedido formulado como sendo de demarcação para prosseguir a finalidade típica de uma acção de reivindicação, que teria por objecto o furo e o posto de transformação. Desde logo, porque essa ideia nem sequer é rigorosa quanto ao objecto: não são apenas o furo e o posto de transformação que passarão a integrar o prédio do recorrente na hipótese de a demarcação se fazer nos termos que ele pretende. Mas, sobretudo, porque o recorrente alegou a existência de uma situação de incerteza objectiva sobre a localização da linha divisória entre os prédios, que justifica a formulação de um genuíno pedido de demarcação, sem que haja fundamento para nele divisar uma sub-reptícia finalidade de reivindicação.

2 – Contradição entre o pedido e a causa de pedir:

O tribunal a quo entendeu que, tendo o recorrente fundamentado a sua pretensão numa alegada divergência, entre ele e os recorridos, sobre a propriedade de uma faixa de terreno, deveria ter formulado um pedido de reivindicação e não de demarcação.

Continuamos a discordar do tribunal a quo.

Vimos, no ponto anterior, que o recorrente formulou um puro pedido de demarcação do seu prédio face ao dos recorridos. O recorrente pediu a demarcação do prédio de que é proprietário de acordo com o respectivo título e demais documentos, corrigindo-se a colocação dos marcos 9, 10, 11, 21 e 22 em conformidade com o esclarecimento técnico junto à petição inicial como documento n.º 7, passando, assim, o furo e o posto de transformação a ficar no interior do seu prédio. Inexiste, aqui, qualquer elemento de uma pretensão de reivindicação.

Como também vimos no ponto anterior, a causa de pedir invocada é constituída pela existência de dois prédios confinantes, um deles propriedade do recorrente e o outro propriedade dos recorridos, relativamente a cujas estremas se verifica uma situação de incerteza objectiva. Ou seja, estamos perante a causa de pedir típica de um pedido de demarcação.

Inexiste, pois, qualquer contradição entre o pedido e a causa de pedir.

3 – Conclusão:

Pelas razões expostas, a petição inicial não é inepta, seja por «contradição/ ininteligibilidade do pedido», seja por contradição entre o pedido e a causa de pedir. Daí que a decisão recorrida deva ser revogada e os autos devam prosseguir os seus termos.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se que os autos prossigam os seus termos.

Custas a cargo dos recorridos.

Notifique.

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Évora, 11.04.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunta)

(2.ª adjunta)

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

Processo n.º 135/22.9T8BNV.E1 * Sumário: 1 – Um pedido de demarcação deve fundar-se na existência de uma situação de incerteza sobre a...