Processo n.º 2394/20.2T8PTM-A.E1
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Sumário:
Os
juízos de família e menores são materialmente competentes para preparar e
julgar as acções em que seja pedido o reconhecimento da existência de uma situação
de união de facto tendo em vista a aquisição da nacionalidade portuguesa.
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AF,
solteiro, maior, de nacionalidade brasileira, residente em (…), propôs, no
Juízo de Família e Menores de Portimão, a presente acção declarativa contra o
Estado Português, representado pelo Ministério Público, pedindo que seja
reconhecido que ele vive em união de facto com GM, de nacionalidade portuguesa,
nos termos e para os fins do n.º 3 do artigo 3.º da Lei n.º 37/81, de 03.10, e
do artigo 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14.12.
Na
contestação, o réu, além do mais, arguiu a excepção dilatória da incompetência
do tribunal em razão da matéria.
No
despacho saneador, o tribunal a quo
julgou esta excepção improcedente.
O
réu interpôs recurso de apelação desse segmento do despacho saneador, tendo
formulado as seguintes conclusões:
1. O
presente recurso tem como objecto o despacho proferido em 02.03.2021, com
referência n.º 119271122 que julgou improcedente a excepção dilatória da
incompetência em razão da matéria, no processo supra identificado.
2.
Decidiu o despacho recorrido pela improcedência da invocada excepção dilatória
de incompetência em razão da matéria, porém, com o devido respeito, não
subscrevemos tais argumentos, concluímos antes, com os fundamentos que se
expõem infra, pela competência dos juízos cíveis para a tramitação e julgamento
dos presentes autos.
3. Não
sufragamos os argumentos que sustentam a atribuição da competência aos
tribunais de família, para julgamento da situação em apreço, integrando-a na
previsão do art. 122º, n.º 1, al. g) “Outras acções relativas ao estado civil
das pessoas e família” da LOSJ (Lei n.º 62/2013 de 26 de Agosto), de que são
exemplo o acórdão do TRC, de 08.10.2019, proferido no âmbito do processo n.º 2998/19.6T8CBR.C1
e o acórdão do TRL, de 30.06.2020, proferido no âmbito do processo n.º
23445/19.8LSB.L1 – 7, acessíveis in www.dgsi.pt.
4. O acórdão
do TRL de 12 de Julho de 2012, relator: Manuel Marques, acabou por considerar
que a expressão “estado civil” resultante do disposto no citado artigo 114.º,
al h) da Lei n.º 52/2008, actual alínea g) do artigo 122.º da Lei 62/2013, com redacção
conferida pela Lei n.º 40-A/2016, de 22/12, está utilizada em sentido estrito,
onde cabem, por exemplo, as acções de reconhecimento ou não das decisões de
divórcio, separação ou anulação do casamento proferidas pelas autoridades competentes
dos Estados da União Europeia, mas não as acções de reconhecimento de união de
facto.
5. A
Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ, Lei n.º 62/2013, de 26/8) no seu
artigo 122.º, veio atribuir competência às secções de instância central especializada
de família e menores para preparar e julgar as seguintes matérias: a) Processos
de jurisdição voluntária relativos a cônjuges; b) Processos de jurisdição
voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum; c) Acções
de separação de pessoas e bens e de divórcio; d) Acções de declaração de
inexistência ou de anulação do casamento civil; e) Acções intentadas com base
no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil; f) Acções e execuções
por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges; g) Outras acções relativas ao
estado civil das pessoas e família.
6.
Analisadas as referidas normas, no caso concreto, é de afastar a aplicação de qualquer
daqueles preceitos legais. Desde logo, porque não está em causa o estado civil
das pessoas, posto que este não se alterará com a procedência da acção, nem os
presentes autos consubstanciam processo de jurisdição voluntária.
7. Com
efeito, no âmbito das competências relativas ao estado civil das pessoas e da família,
foi atribuída às secções de família e menores a competência para preparar e
julgar os processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto
ou de economia comum (art. 122.º, n.º 1, al. b), da LOSJ).
8. A presente
acção que tem como réu o Estado português, visa a aquisição de nacionalidade
por estrangeiro, que tem como pressuposto a demanda sob pena de, não existindo,
não existir também interesse em agir da parte do autor.
9.
Destarte, a aquisição da nacionalidade em nada contende com as relações de família
(compreendida no seu sentido mais amplo e incluindo também as que têm por fonte
uniões de facto), as quais serão da competência dos juízos de família.
10. Ou
seja, o autor visa, com o reconhecimento da união de facto, apenas a aquisição de
um efeito civil, a nacionalidade portuguesa.
11. O
legislador não atribuiu competência material aos juízos de família e menores
para as acções de reconhecimento das uniões de facto, tanto mais que a lei da
nacionalidade refere expressamente que “O estrangeiro que, à data da
declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português,
pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa
situação, a interpor no tribunal cível”.
12. Da
conjugação das disposições dos artigos 122.º, n.º 1, al. b) a contrario sensu e artigo 130.º ambos
da LOSJ, artigo 986.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, artigo 4.º, al. d),
e 5.º da Lei n.º 6/2001 de 11-5 art. 3.º, al. a), e 4.º, da Lei n.º 7/2001 de
11-5, entendemos, pois, que o tribunal competente para o julgamento da presente
acção é a instância local cível.
13.
Desta forma, o douto despacho deverá ser revogado, procedendo a excepção
dilatória da incompetência do juízo de família e menores quanto ao
reconhecimento da união de facto com vista à obtenção da nacionalidade
portuguesa ao abrigo dos artigos 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1, e 99.º, n.º 1,
do Código de Processo Civil, e, em consequência, deverá ser ordenada a remessa
do processo para o juízo local cível nos termos dos artigos 278.º, n.º 1, al.
a), 576º, n.ºs 1 e 2 e 577º, al. a), todos Código de Processo Civil.
O
recorrido não apresentou contra-alegações.
O
recurso foi admitido, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
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Está
em causa saber se a acção para reconhecimento da existência de uma situação de
união de facto com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa, nos termos do
artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 03.10 (Lei da Nacionalidade, doravante
designada por LN), e do artigo 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de
14.12 (Regulamento da Nacionalidade Portuguesa), cabe no âmbito da competência
material dos juízos de família e menores.
O
tribunal a quo respondeu
afirmativamente a esta questão, julgando-se competente em razão da matéria ao
abrigo do disposto no artigo 122.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 62/2013, de 26.08
(Lei da Organização do Sistema Judiciário, doravante designada por LOSJ).
A
tal entendimento, o recorrente opõe, em síntese, as seguintes objecções:
- Esta
acção não é de jurisdição voluntária, pelo que não se insere no âmbito de
aplicação do artigo 122.º, n.º 1, al. b), da LOSJ;
- Não
está em causa, nesta acção, o estado civil das pessoas, o qual não se alterará
com a procedência daquela;
-
Através da propositura desta acção, o recorrido pede o reconhecimento da
existência de uma situação de união de facto unicamente com vista a adquirir a
nacionalidade portuguesa e tal aquisição em nada contende com as relações de
família;
- A LN
atribui ao tribunal cível competência para a acção de reconhecimento da
existência de uma situação de união de facto que tenha por finalidade a
aquisição da nacionalidade portuguesa.
Analisemos
a questão.
O
tribunal a quo considerou-se
competente em razão da matéria ao abrigo do disposto, não na al. b), mas na al.
g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ. Na fundamentação do despacho recorrido, a
aplicabilidade da al. b) foi expressamente afastada. Logo, inexiste
controvérsia acerca deste ponto. É pacífico que esta acção não é de jurisdição
voluntária.
A
al. g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ atribui aos juízos de família e menores
competência para preparar e julgar “outras acções
relativas ao estado civil das pessoas e família”.
Ao contrário do que o recorrente sustenta, a união de facto
contende com o estado civil das pessoas e com as relações familiares. Duas
pessoas que vivam em união de facto uma com a outra constituem uma família,
como decorre, desde logo, da Lei n.º 7/2001, de 11.05 (Lei de Protecção das
Uniões de Facto, doravante designada por LPUF).
Assim, o artigo 1.º, n.º 2, da LPUF, define a união de facto como
a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em
condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos. Estamos, pois, perante
uma situação, a que a lei atribui efeitos jurídicos, que, na realidade dos
factos, não se diferencia do casamento. Apenas falta a celebração do contrato.
O artigo 2.º, al. c), da LPUF, estabelece que é impeditivo da
atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou por morte, fundados na união
de facto, o casamento não dissolvido, salvo se tiver sido decretada a separação
de pessoas e bens. Se a união de facto nada tivesse a ver com o estado civil
das pessoas, não haveria razão para a não atribuição dos referidos direitos ou
benefícios devido a factos relativos a este último, como o são os previstos na
norma.
Sintomático de que o regime jurídico da união de facto visa
aproximar esta última, em grande medida, do casamento, é o elenco dos direitos
que o artigo 3.º atribui a quem viver nessa situação, bem como o
estabelecimento das medidas de protecção previstas nos artigos 4.º e 5.º, todos
da LPUF.
Particular importância para a demonstração de que a lei considera
a união de facto como geradora de uma verdadeira relação familiar é o disposto
no artigo 7.º da LPUF. Dispõe esta norma que, nos termos do actual regime de
adopção, constante do livro IV, título IV, do Código Civil, é reconhecido a
todas as pessoas que vivam em união de facto nos termos da LPUF o direito de
adopção em condições análogas às previstas no artigo 1979.º do Código Civil
(CC), sem prejuízo das disposições legais respeitantes à adopção por pessoas
não casadas. A lei reconhece, assim, que a união de facto dá origem a uma
verdadeira família, à partida tão idónea para adoptar uma criança quanto aquela
que é constituída por duas pessoas casadas entre si. Se a união de facto não
gerasse uma relação familiar entre os seus membros, não faria sentido
reconhecer que estes últimos podem adoptar em condições análogas às pessoas
casadas entre si. Tal permissão seria, nessa hipótese, tão descabida quanto a
de, por exemplo, uma pessoa colectiva ou duas pessoas singulares sem qualquer
ligação entre si poderem adoptar uma criança. A diferença está precisamente na
natureza familiar da união de facto, no reconhecimento de que duas pessoas, ao
unirem-se de facto entre si, constituíram uma família. Assim se explica,
também, o disposto no n.º 6 do artigo 1979.º CC, que dispõe que releva para a
contagem do prazo do n.º 1 (quatro anos de casamento) o tempo de vivência em
união de facto imediatamente anterior à celebração do casamento.
Atente-se, finalmente, no disposto no artigo 8.º, n.º 1, al. c),
da LPUF, segundo o qual a união de facto se dissolve com o casamento de um dos
membros. À semelhança do observámos a propósito do disposto no artigo 2.º, al.
c), da mesma lei, se a união de facto não interferisse com o estado civil das
pessoas, não haveria razão para a sua cessação por efeito do casamento de um
dos membros. Ora, a razão dessa cessação salta à vista: ao casar com terceiro,
o membro da união de facto que o fez constituiu uma nova relação jurídica
familiar e, ao fazê-lo, determinou a extinção daquela que decorria da referida
união.
Concluímos, assim, que a união de facto não constitui uma
realidade exterior à instituição familiar, antes tendo, por pressão da
transformação da realidade sociológica, a que o legislador não ficou
indiferente, alargado o âmbito desta última. O motor da evolução legislativa foi
exterior ao Código Civil e, não obstante este último já reflectir tal evolução,
ainda contém, logo a abrir o seu Livro IV, dedicado ao Direito da Família, uma
norma como a do artigo 1576.º, que estabelece que são fontes das relações
jurídicas familiares o casamento, o parentesco, a afinidade e a adopção. Uma interpretação
não contextualizada – sociológica e normativamente – do artigo 1576.º CC
conduziria à exclusão da união de facto do âmbito das relações jurídicas familiares,
colocando-a à margem do Direito da Família. Todavia, como procurámos
demonstrar, tal interpretação é inadmissível, pois não pode deixar de se ter em
consideração, quer as normas jurídicas que reconhecem a união de facto como
fonte de relações jurídicas familiares, quer a actual realidade sociológica,
muito diversa da de 1966.
A objecção, feita pelo recorrente, segundo a qual o tribunal a quo não é competente porque, através
da propositura desta acção, o recorrido pede o reconhecimento da existência de
uma situação de união de facto unicamente com vista a adquirir a nacionalidade
portuguesa, fim esse que não contende com as relações de família, não tem razão
de ser. A natureza familiar da união de facto não se altera em função da
finalidade com que o seu reconhecimento judicial seja pedido. Em qualquer caso,
estará em discussão uma matéria relativa ao estado civil e à família, pelo que
a competência material para preparar e julgar a acção caberá necessariamente a
um juízo de família e menores, nos termos do artigo 122.º, n.º 1, al. g), da
LOSJ.
O
derradeiro argumento do recorrente também não procede. O artigo 3.º, n.º 3, da LN,
estabelece, efectivamente, que o estrangeiro que, à
data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional
português, pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de
reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível. Todavia, a LN não
constitui a sede legal própria para delimitar a competência material dos juízos
dos tribunais judiciais, circunstância que deve levar o intérprete a concluir
que, ao mencionar o “tribunal cível” como sendo o competente para preparar e
decidir as acções de reconhecimento da união de facto nos termos por ela
exigidos, o citado artigo 3.º, n.º 3, não pretende regular aquela matéria. A
sede própria para o legislador proceder à delimitação da competência material
dos juízos dos tribunais judiciais é a LOSJ e, na realidade, é aí que aquele o
faz, nomeadamente através do disposto no artigo 122.º, que delimita a
competência material dos juízos de família e menores. Acresce que não faria
sentido o legislador atribuir a juízos de natureza diversa a competência
material para preparar e julgar acções de reconhecimento da existência de uma
situação de união de facto propostas consoante tivessem por finalidade adquirir
a nacionalidade portuguesa ou outra qualquer finalidade, sendo certo que estas
últimas sempre cairiam no âmbito de aplicação do artigo 122.º, n.º 1,
al. g), da LOSJ.
As objecções suscitadas pelo recorrente carecem, pois, de razão de
ser. O Juízo
de Família e Menores de Portimão decidiu bem ao
julgar-se materialmente competente, devendo o recurso ser julgado improcedente.
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Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente,
confirmando-se o despacho recorrido.
Sem
custas, dado o recorrente estar delas isento [artigo 4.º, n.º 1, al. a), do
Regulamento das Custas Judiciais].
Notifique.
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Évora, 09.09.2021
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.ª adjunta