terça-feira, 28 de setembro de 2021

Acórdão da Relação de Évora de 09.09.2021

Processo n.º 2394/20.2T8PTM-A.E1

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Sumário:

Os juízos de família e menores são materialmente competentes para preparar e julgar as acções em que seja pedido o reconhecimento da existência de uma situação de união de facto tendo em vista a aquisição da nacionalidade portuguesa.

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AF, solteiro, maior, de nacionalidade brasileira, residente em (…), propôs, no Juízo de Família e Menores de Portimão, a presente acção declarativa contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, pedindo que seja reconhecido que ele vive em união de facto com GM, de nacionalidade portuguesa, nos termos e para os fins do n.º 3 do artigo 3.º da Lei n.º 37/81, de 03.10, e do artigo 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14.12.

Na contestação, o réu, além do mais, arguiu a excepção dilatória da incompetência do tribunal em razão da matéria.

No despacho saneador, o tribunal a quo julgou esta excepção improcedente.

O réu interpôs recurso de apelação desse segmento do despacho saneador, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. O presente recurso tem como objecto o despacho proferido em 02.03.2021, com referência n.º 119271122 que julgou improcedente a excepção dilatória da incompetência em razão da matéria, no processo supra identificado.

2. Decidiu o despacho recorrido pela improcedência da invocada excepção dilatória de incompetência em razão da matéria, porém, com o devido respeito, não subscrevemos tais argumentos, concluímos antes, com os fundamentos que se expõem infra, pela competência dos juízos cíveis para a tramitação e julgamento dos presentes autos.

3. Não sufragamos os argumentos que sustentam a atribuição da competência aos tribunais de família, para julgamento da situação em apreço, integrando-a na previsão do art. 122º, n.º 1, al. g) “Outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família” da LOSJ (Lei n.º 62/2013 de 26 de Agosto), de que são exemplo o acórdão do TRC, de 08.10.2019, proferido no âmbito do processo n.º 2998/19.6T8CBR.C1 e o acórdão do TRL, de 30.06.2020, proferido no âmbito do processo n.º 23445/19.8LSB.L1 – 7, acessíveis in www.dgsi.pt.

4. O acórdão do TRL de 12 de Julho de 2012, relator: Manuel Marques, acabou por considerar que a expressão “estado civil” resultante do disposto no citado artigo 114.º, al h) da Lei n.º 52/2008, actual alínea g) do artigo 122.º da Lei 62/2013, com redacção conferida pela Lei n.º 40-A/2016, de 22/12, está utilizada em sentido estrito, onde cabem, por exemplo, as acções de reconhecimento ou não das decisões de divórcio, separação ou anulação do casamento proferidas pelas autoridades competentes dos Estados da União Europeia, mas não as acções de reconhecimento de união de facto.

5. A Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ, Lei n.º 62/2013, de 26/8) no seu artigo 122.º, veio atribuir competência às secções de instância central especializada de família e menores para preparar e julgar as seguintes matérias: a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges; b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum; c) Acções de separação de pessoas e bens e de divórcio; d) Acções de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil; e) Acções intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil; f) Acções e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges; g) Outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família.

6. Analisadas as referidas normas, no caso concreto, é de afastar a aplicação de qualquer daqueles preceitos legais. Desde logo, porque não está em causa o estado civil das pessoas, posto que este não se alterará com a procedência da acção, nem os presentes autos consubstanciam processo de jurisdição voluntária.

7. Com efeito, no âmbito das competências relativas ao estado civil das pessoas e da família, foi atribuída às secções de família e menores a competência para preparar e julgar os processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum (art. 122.º, n.º 1, al. b), da LOSJ).

8. A presente acção que tem como réu o Estado português, visa a aquisição de nacionalidade por estrangeiro, que tem como pressuposto a demanda sob pena de, não existindo, não existir também interesse em agir da parte do autor.

9. Destarte, a aquisição da nacionalidade em nada contende com as relações de família (compreendida no seu sentido mais amplo e incluindo também as que têm por fonte uniões de facto), as quais serão da competência dos juízos de família.

10. Ou seja, o autor visa, com o reconhecimento da união de facto, apenas a aquisição de um efeito civil, a nacionalidade portuguesa.

11. O legislador não atribuiu competência material aos juízos de família e menores para as acções de reconhecimento das uniões de facto, tanto mais que a lei da nacionalidade refere expressamente que “O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português, pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação, a interpor no tribunal cível”.

12. Da conjugação das disposições dos artigos 122.º, n.º 1, al. b) a contrario sensu e artigo 130.º ambos da LOSJ, artigo 986.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, artigo 4.º, al. d), e 5.º da Lei n.º 6/2001 de 11-5 art. 3.º, al. a), e 4.º, da Lei n.º 7/2001 de 11-5, entendemos, pois, que o tribunal competente para o julgamento da presente acção é a instância local cível.

13. Desta forma, o douto despacho deverá ser revogado, procedendo a excepção dilatória da incompetência do juízo de família e menores quanto ao reconhecimento da união de facto com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa ao abrigo dos artigos 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1, e 99.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e, em consequência, deverá ser ordenada a remessa do processo para o juízo local cível nos termos dos artigos 278.º, n.º 1, al. a), 576º, n.ºs 1 e 2 e 577º, al. a), todos Código de Processo Civil.

O recorrido não apresentou contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.

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Está em causa saber se a acção para reconhecimento da existência de uma situação de união de facto com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 03.10 (Lei da Nacionalidade, doravante designada por LN), e do artigo 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14.12 (Regulamento da Nacionalidade Portuguesa), cabe no âmbito da competência material dos juízos de família e menores.

O tribunal a quo respondeu afirmativamente a esta questão, julgando-se competente em razão da matéria ao abrigo do disposto no artigo 122.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 62/2013, de 26.08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário, doravante designada por LOSJ).

A tal entendimento, o recorrente opõe, em síntese, as seguintes objecções:

- Esta acção não é de jurisdição voluntária, pelo que não se insere no âmbito de aplicação do artigo 122.º, n.º 1, al. b), da LOSJ;

- Não está em causa, nesta acção, o estado civil das pessoas, o qual não se alterará com a procedência daquela;

- Através da propositura desta acção, o recorrido pede o reconhecimento da existência de uma situação de união de facto unicamente com vista a adquirir a nacionalidade portuguesa e tal aquisição em nada contende com as relações de família;

- A LN atribui ao tribunal cível competência para a acção de reconhecimento da existência de uma situação de união de facto que tenha por finalidade a aquisição da nacionalidade portuguesa.

Analisemos a questão.

O tribunal a quo considerou-se competente em razão da matéria ao abrigo do disposto, não na al. b), mas na al. g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ. Na fundamentação do despacho recorrido, a aplicabilidade da al. b) foi expressamente afastada. Logo, inexiste controvérsia acerca deste ponto. É pacífico que esta acção não é de jurisdição voluntária.

A al. g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ atribui aos juízos de família e menores competência para preparar e julgar “outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família”.

Ao contrário do que o recorrente sustenta, a união de facto contende com o estado civil das pessoas e com as relações familiares. Duas pessoas que vivam em união de facto uma com a outra constituem uma família, como decorre, desde logo, da Lei n.º 7/2001, de 11.05 (Lei de Protecção das Uniões de Facto, doravante designada por LPUF).

Assim, o artigo 1.º, n.º 2, da LPUF, define a união de facto como a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos. Estamos, pois, perante uma situação, a que a lei atribui efeitos jurídicos, que, na realidade dos factos, não se diferencia do casamento. Apenas falta a celebração do contrato.

O artigo 2.º, al. c), da LPUF, estabelece que é impeditivo da atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou por morte, fundados na união de facto, o casamento não dissolvido, salvo se tiver sido decretada a separação de pessoas e bens. Se a união de facto nada tivesse a ver com o estado civil das pessoas, não haveria razão para a não atribuição dos referidos direitos ou benefícios devido a factos relativos a este último, como o são os previstos na norma.

Sintomático de que o regime jurídico da união de facto visa aproximar esta última, em grande medida, do casamento, é o elenco dos direitos que o artigo 3.º atribui a quem viver nessa situação, bem como o estabelecimento das medidas de protecção previstas nos artigos 4.º e 5.º, todos da LPUF.

Particular importância para a demonstração de que a lei considera a união de facto como geradora de uma verdadeira relação familiar é o disposto no artigo 7.º da LPUF. Dispõe esta norma que, nos termos do actual regime de adopção, constante do livro IV, título IV, do Código Civil, é reconhecido a todas as pessoas que vivam em união de facto nos termos da LPUF o direito de adopção em condições análogas às previstas no artigo 1979.º do Código Civil (CC), sem prejuízo das disposições legais respeitantes à adopção por pessoas não casadas. A lei reconhece, assim, que a união de facto dá origem a uma verdadeira família, à partida tão idónea para adoptar uma criança quanto aquela que é constituída por duas pessoas casadas entre si. Se a união de facto não gerasse uma relação familiar entre os seus membros, não faria sentido reconhecer que estes últimos podem adoptar em condições análogas às pessoas casadas entre si. Tal permissão seria, nessa hipótese, tão descabida quanto a de, por exemplo, uma pessoa colectiva ou duas pessoas singulares sem qualquer ligação entre si poderem adoptar uma criança. A diferença está precisamente na natureza familiar da união de facto, no reconhecimento de que duas pessoas, ao unirem-se de facto entre si, constituíram uma família. Assim se explica, também, o disposto no n.º 6 do artigo 1979.º CC, que dispõe que releva para a contagem do prazo do n.º 1 (quatro anos de casamento) o tempo de vivência em união de facto imediatamente anterior à celebração do casamento.

Atente-se, finalmente, no disposto no artigo 8.º, n.º 1, al. c), da LPUF, segundo o qual a união de facto se dissolve com o casamento de um dos membros. À semelhança do observámos a propósito do disposto no artigo 2.º, al. c), da mesma lei, se a união de facto não interferisse com o estado civil das pessoas, não haveria razão para a sua cessação por efeito do casamento de um dos membros. Ora, a razão dessa cessação salta à vista: ao casar com terceiro, o membro da união de facto que o fez constituiu uma nova relação jurídica familiar e, ao fazê-lo, determinou a extinção daquela que decorria da referida união.

Concluímos, assim, que a união de facto não constitui uma realidade exterior à instituição familiar, antes tendo, por pressão da transformação da realidade sociológica, a que o legislador não ficou indiferente, alargado o âmbito desta última. O motor da evolução legislativa foi exterior ao Código Civil e, não obstante este último já reflectir tal evolução, ainda contém, logo a abrir o seu Livro IV, dedicado ao Direito da Família, uma norma como a do artigo 1576.º, que estabelece que são fontes das relações jurídicas familiares o casamento, o parentesco, a afinidade e a adopção. Uma interpretação não contextualizada – sociológica e normativamente – do artigo 1576.º CC conduziria à exclusão da união de facto do âmbito das relações jurídicas familiares, colocando-a à margem do Direito da Família. Todavia, como procurámos demonstrar, tal interpretação é inadmissível, pois não pode deixar de se ter em consideração, quer as normas jurídicas que reconhecem a união de facto como fonte de relações jurídicas familiares, quer a actual realidade sociológica, muito diversa da de 1966.

A objecção, feita pelo recorrente, segundo a qual o tribunal a quo não é competente porque, através da propositura desta acção, o recorrido pede o reconhecimento da existência de uma situação de união de facto unicamente com vista a adquirir a nacionalidade portuguesa, fim esse que não contende com as relações de família, não tem razão de ser. A natureza familiar da união de facto não se altera em função da finalidade com que o seu reconhecimento judicial seja pedido. Em qualquer caso, estará em discussão uma matéria relativa ao estado civil e à família, pelo que a competência material para preparar e julgar a acção caberá necessariamente a um juízo de família e menores, nos termos do artigo 122.º, n.º 1, al. g), da LOSJ.

O derradeiro argumento do recorrente também não procede. O artigo 3.º, n.º 3, da LN, estabelece, efectivamente, que o estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português, pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível. Todavia, a LN não constitui a sede legal própria para delimitar a competência material dos juízos dos tribunais judiciais, circunstância que deve levar o intérprete a concluir que, ao mencionar o “tribunal cível” como sendo o competente para preparar e decidir as acções de reconhecimento da união de facto nos termos por ela exigidos, o citado artigo 3.º, n.º 3, não pretende regular aquela matéria. A sede própria para o legislador proceder à delimitação da competência material dos juízos dos tribunais judiciais é a LOSJ e, na realidade, é aí que aquele o faz, nomeadamente através do disposto no artigo 122.º, que delimita a competência material dos juízos de família e menores. Acresce que não faria sentido o legislador atribuir a juízos de natureza diversa a competência material para preparar e julgar acções de reconhecimento da existência de uma situação de união de facto propostas consoante tivessem por finalidade adquirir a nacionalidade portuguesa ou outra qualquer finalidade, sendo certo que estas últimas sempre cairiam no âmbito de aplicação do artigo 122.º, n.º 1, al. g), da LOSJ.

As objecções suscitadas pelo recorrente carecem, pois, de razão de ser. O Juízo de Família e Menores de Portimão decidiu bem ao julgar-se materialmente competente, devendo o recurso ser julgado improcedente.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.

Sem custas, dado o recorrente estar delas isento [artigo 4.º, n.º 1, al. a), do Regulamento das Custas Judiciais].

Notifique.

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Évora, 09.09.2021

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta


terça-feira, 21 de setembro de 2021

Acórdão da Relação de Évora de 09.09.2021

Processo n.º 1961/20.9T8FAR-B.E1

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Sumário:

1 – Não é admissível a junção, às alegações de recurso, de documentos cuja apresentação no tribunal a quo era possível e relevante para o conhecimento da matéria objecto da decisão recorrida.

2 – Os recursos ordinários visam o reexame de questões submetidas à apreciação do tribunal a quo e não o conhecimento de questões novas, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso, o que não acontece no caso dos autos.

3 – Tendo a carta destinada à citação do réu sido expedida para morada que este último não põe em causa que seja sua, não constando do aviso de recepção que tal carta haja sido entregue a pessoa diversa do seu destinatário e perante a ausência de qualquer outro meio de prova sobre quem recebeu a carta e assinou o aviso de recepção, deve concluir-se que o réu foi citado na sua própria pessoa.

4 – Tendo o réu sido citado, nos termos descritos em 3, em França, apenas beneficia da dilação estabelecida no n.º 3 do artigo 245.º do CPC.

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Nuno interpôs recurso de apelação do despacho, proferido na acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum em que é demandado, conjuntamente com Sociedade 1, Lda., por Sociedade 2, S.A., mediante o qual o tribunal a quo julgou extemporânea a contestação por si apresentada.

As conclusões do recurso são as seguintes:

A) O réu Nuno foi demandado pela autora, para contestar, querendo, a presente acção declarativa de condenação, tendo sido notificado para tal no domicílio do seu filho Nicolau em França sito na Rue Beauregard, (…).

B) A residência do réu é: 34 bis, Rue Grande Rue, (…), França, tal como consta dos elementos registrais da Sociedade 1, Lda. juntos aos autos.

C) O réu Nuno não possui a assinatura constante do aviso de recepção dos correios portugueses, o qual assina por NP e não NRP, conforme consta do seu cartão de cidadão português. Doc nº 1 ora junto.

D) Na assinatura do filho do requerido constam apenas duas letras maiúsculas que são precisamente um N e um P, como se pode alcançar do seu documento de identificação “Carte Nationale D`Identité n.º (…)” – Doc nº 2 ora junto.

E) O aviso de recepção referente à citação judicial constante dos presentes autos está assinado por duas letras estilizadas de “N” e “P” correspondentes à assinatura utilizada pelo Nicolau, filho legítimo do ora requerido.

F) Pelo que ao prazo para apresentação da contestação de 30 dias previsto no artigo 569.º, n.º 1, acresce uma dilação de mais 30 dias pelo facto do réu ser citado no estrangeiro, nos termos do artigo 245.º, n.º 3, e ainda de mais 5 dias, uma vez que foi realizada em pessoa distinta do réu, conforme consta no artigo 245.º, n.º 1, al. a), todos do CPC.

G) O réu poderia ainda beneficiar da apresentação do seu articulado dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo nos termos do artigo 139.º, n.º 5, do CPC, mediante o pagamento da multa aí fixada nas alíneas a) b) e c).

H- Nesta conformidade, deveriam os presentes autos prosseguir a sua tramitação normal tal como ora se requer, uma vez que a contestação em crise foi apresentada dentro do prazo legal.

A recorrida apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:

1. Ao determinar o desentranhamento da contestação apresentada pelo recorrente, não incorreu, o Tribunal a quo, em qualquer erro de direito ou de facto.

2. Adicionalmente, não pode o objecto do recurso englobar factos novos alegados pelo recorrente, nomeadamente, este alegadamente não ter residência em 4 Rue Bearegard, (…), França, local para o qual foi devidamente citado.

3. Sendo, contudo, certo que esta morada corresponde à morada indicada pelo próprio apelante na procuração forense que se encontra junta aos autos com a contestação.

4. Mesmo que tal não se entenda e apenas à cautela de patrocínio, a citação não padece da nulidade prevista no preceituado disposto no artigo 191.º, n.º 1 e n.º 2 do CPC, por ser evidente que o recorrente reside em 4 Rue Bearegard, (…), França.

5. Não apresentou o recorrente prova passível de demonstrar que a morada para a qual foi citado, consubstancia a residência do seu filho e não do recorrente.

6. Muito pelo contrário, juntou o recorrente o documento de identificação do seu filho, de onde consta a morada da sua residência 6 bis Impasse Des Telleils Chevannes (91) e não 4 Rue Bearegard, (…), França, como quis o recorrente fazer crer.

7. Adicionalmente, no requerimento submetido pelo recorrente no seguimento do despacho proferido pela juiz do tribunal a quo, nunca este primeiro referiu, uma única vez, que não vivia na morada para a qual foi devidamente citado. Apenas alegou o referido facto em sede de recurso, por motivo que se desconhece.

8. Refira-se ainda que no limite, a prova terá que ser feita pelo recorrente, de acordo com a norma do ónus da prova constante do artigo 342.º, n.º 1 do CC.

9. Face ao exposto, não foi omitida nenhuma formalidade da citação que levasse a que esta padecesse de nulidade, pois é mais que óbvio que o recorrente foi citado na sua residência, para os efeitos do artigo 225.º, n.º 1 do CPC.

10. Alega ainda o recorrente que o aviso de recepção não foi assinado pelo recorrente, o que não corresponde à verdade, se compararmos a assinatura do filho do recorrente com a assinatura aposta no aviso de recepção.

11. É mais do que evidente a coincidência e semelhança entre a assinatura aposta ao aviso de recepção e a assinatura do recorrente, conforme documentos anexos ao processo e que instruíram a petição inicial, ou mesmo com a procuração forense outorgada pelo apelante e junta a estes autos.

12. Mais uma vez, dir-se-á sempre que cabe ao recorrente fazer prova de que o aviso de recepção não foi por este assinado, para poder beneficiar da dilação de 5 dias disposta no artigo 245, n.º1 do CPC, o que não sucedeu.

13. Por último, a juiz tem toda a legitimidade para convidar as partes a pronunciarem-se sobre a tempestividade da contestação, face ao disposto nos artigos 166.º, n.º 2, 145.º, n.ºs 4, 5 e 6, 146.º, 506.º, n.º 4, e 489.º, todos do CPC.

O recurso foi admitido, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.

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Tendo em conta as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a resolver são as seguintes:

1 – Admissibilidade da junção de documentos na fase de recurso;

2 – Admissibilidade da invocação, na fase de recurso, de que a morada para a qual a citação foi enviada corresponde à residência do filho do recorrente;

3 – Se está provado que a citação foi efectuada na pessoa do filho do recorrente;

4 – Se o recorrente contestou a acção dentro do prazo legal.

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Os factos relevantes para a decisão do recurso, evidenciados pelos autos deste, são os seguintes:

1 – A carta destinada à citação do recorrente foi remetida para o seguinte endereço: “4 Rue Beauregard, (…), França” (fls. 15);

2 – O aviso de recepção da carta expedida para citação do recorrente foi rubricado pela pessoa a quem aquela carta foi entregue, o que ocorreu no dia 09.09.2020 (fls. 15);

3 – Não consta do aviso de recepção que a carta expedida para citação do recorrente tenha sido entregue a pessoa diversa do destinatário (fls. 15);

4 – O recorrente apresentou a contestação no dia 16.11.2020 (fls. 16-24);

5 – Na procuração forense que consta dos autos, o recorrente indicou, como sua morada, “4 Rue Beauregard (…) em França” (fls. 25);

6 – Na sequência da sua notificação para se pronunciar acerca da tempestividade da contestação, o recorrente alegou o seguinte:

“1.º O ora réu foi citado na pessoa do seu filho que era a única pessoa que se encontrava em casa.

2.º Tal citação ocorreu em França.

3.º O último dia de prazo para apresentar a contestação foi o dia 13/11/2020.

4.º O ora réu apresentou a sua contestação no dia 16/11/2020, primeiro dia útil após o prazo, com multa, que se encontra paga.

5.º De qualquer forma, sempre se dirá, que a excepção dilatória prevista na al. c) do artigo 577.º do CPC, invocada, é de conhecimento oficioso, com a consequente cominação legal…”

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1 – Admissibilidade da junção de documentos na fase de recurso:

O recorrente juntou dois documentos às alegações de recurso.

O n.º 1 do artigo 651.º do CPC (diploma ao qual pertencem todas as normas doravante referenciadas) estabelece que as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.

No caso dos autos, o recorrente não alega a verificação de alguma destas hipóteses, nem se encontra demonstrada tal verificação. Os documentos em causa são cópias do cartão de cidadão do recorrente e de um documento de identificação de um filho seu emitido pelo Estado Francês. Com a sua junção aos autos, o recorrente pretende provar que a rubrica constante do aviso de recepção de fls. 15 não é sua, mas do seu referido filho. Tendo o recorrente alegado, no tribunal a quo, ter sido citado na pessoa de seu filho, era esse o momento processual próprio para a junção dos referidos documentos aos autos, como meio de prova dessa alegação. Não está demonstrada a impossibilidade dessa junção e, por outro lado, é evidente que a mesma não se tornou necessária apenas devido ao decidido pelo tribunal a quo, antes o sendo já antes dessa decisão.

Decorre do exposto que é legalmente inadmissível a junção aos autos dos documentos em causa apenas na fase de recurso. Consequentemente, os mesmos documentos não serão tidos em consideração na decisão deste último.

2 – Admissibilidade da invocação, na fase de recurso, de que a morada para a qual a citação foi enviada corresponde à residência do filho do recorrente:

Na sequência da sua notificação, pelo tribunal a quo, para se pronunciar acerca da tempestividade da contestação, o recorrente alegou, nomeadamente, que foi citado na pessoa do seu filho, que era a única pessoa que se encontrava em casa. O recorrente, não só não alegou que a morada para a qual a citação foi enviada corresponde à residência de seu filho, como deu a entender que este recebeu a citação por ser a única pessoa que, no momento, se encontrava na sua casa. Tudo isto em consonância com o facto de, na procuração forense constante de fls. 25 dos autos de recurso, o recorrente ter indicado, como sua morada, aquela para a qual a carta destinada à sua citação foi enviada.

Nas alegações de recurso, o recorrente altera a sua estratégia e sustenta que a carta destinada à sua citação foi enviada para a residência de seu filho, suscitando, assim, uma questão nova. Ora, resulta dos artigos 627.º, n.º 1, 639.º, n.ºs 1 e 2, e 640.º que os recursos ordinários visam o reexame de questões que foram submetidas à apreciação do tribunal a quo e não o conhecimento de questões novas, ou seja, suscitadas pela primeira vez perante o tribunal ad quem. Isto, naturalmente, sem prejuízo do conhecimento, por este último, das questões que o devam ser oficiosamente, o que não é o caso daquela que o recorrente agora suscita. “Os recursos são meios de obter a reforma de sentença injusta, de sentença inquinada de vício substancial ou de erro de julgamento. (…) pretende-se um novo exame da causa, por parte de órgão jurisdicional hierarquicamente superior.”[1] Esta é uma regra básica em matéria de recursos, que define a própria natureza destes.

Portanto, não é lícito, ao recorrente, suscitar a questão de a morada para a qual a citação foi enviada corresponder à residência de seu filho apenas em sede de recurso e, mais que isso, em aberta contradição com a posição que assumiu perante o tribunal a quo.

3 – Se está provado que a citação foi efectuada na pessoa do filho do recorrente:

Quando foi notificado, pelo tribunal a quo, para se pronunciar sobre a tempestividade da contestação, o recorrente não ofereceu qualquer meio de prova do que alegou, ou seja, de que foi seu filho quem recebeu a carta destinada à sua citação e assinou o aviso de recepção. Nomeadamente, não juntou, então, aos autos, os dois documentos que acompanham as alegações de recurso.

Aquilo que constava dos autos era o aviso de recepção assinado pela pessoa que recebeu a carta na morada para a qual esta foi expedida. Esse aviso de recepção não menciona que a carta foi entregue a pessoa diversa do destinatário, pelo que, na falta de prova em contrário, impunha-se concluir que foi o recorrente quem a recebeu. Tanto mais que o recorrente, nessa altura, ainda não tinha posto em causa que a carta fora enviada para a sua residência e, mais que isso, indicara como sua residência, na procuração forense de fls. 25 dos autos de recurso, a morada para a qual a carta foi expedida.

Em face disto, não podia o tribunal a quo decidir de forma diferente daquela que decidiu, ou seja, que a citação foi feita na própria pessoa do recorrente.

4 – Se o recorrente contestou a acção dentro do prazo legal:

Estando assente que a citação foi enviada para a residência do recorrente e por este recebida, o acerto do despacho recorrido é indiscutível. A citação foi recebida em 09.09.2020. O prazo para contestar é de 30 dias (artigo 569.º, n.º 1), ao qual acresce uma dilação de 30 dias por a citação ter ocorrido no estrangeiro (artigo 245.º, n.º 3), pelo que terminou em 09.11.2020. Tendo a contestação sido apresentada em 16.11.2020, é evidente a sua extemporaneidade, mesmo tendo em conta o disposto no artigo 139.º, n.ºs 5 e 6.

Deverá, pois, o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas a cargo do recorrente.

Notifique.

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Évora, 09.09.2021

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta)



[1] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume V (reimpressão), p. 212.

Acórdão da Relação de Évora de 11.04.2024

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