Processo n.º 1961/20.9T8FAR-B.E1
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Sumário:
1
– Não é admissível a junção, às alegações de recurso, de documentos cuja apresentação
no tribunal a quo era possível e
relevante para o conhecimento da matéria objecto da decisão recorrida.
2
– Os recursos ordinários
visam o reexame de questões submetidas à apreciação do tribunal a quo e não o conhecimento de questões
novas, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso, o que não
acontece no caso dos autos.
3 – Tendo a carta destinada à citação do
réu sido expedida para morada que este último não põe em causa que seja sua,
não constando do aviso de recepção que tal carta haja sido entregue a pessoa
diversa do seu destinatário e perante a ausência de qualquer outro meio de
prova sobre quem recebeu a carta e assinou o aviso de recepção, deve
concluir-se que o réu foi citado na sua própria pessoa.
4 – Tendo o réu sido citado, nos termos
descritos em 3, em França, apenas beneficia da dilação estabelecida no n.º 3 do
artigo 245.º do CPC.
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Nuno interpôs recurso de
apelação do despacho, proferido na acção declarativa de condenação sob a forma
de processo comum em que é demandado, conjuntamente com Sociedade 1, Lda., por Sociedade
2, S.A., mediante o qual o tribunal a quo
julgou extemporânea a contestação por si apresentada.
As conclusões do recurso são as
seguintes:
A) O réu Nuno foi demandado pela
autora, para contestar, querendo, a presente acção declarativa de condenação,
tendo sido notificado para tal no domicílio do seu filho Nicolau em França sito
na Rue Beauregard, (…).
B) A residência do réu é: 34
bis, Rue Grande Rue, (…), França, tal como consta dos elementos registrais da Sociedade
1, Lda. juntos aos autos.
C) O réu Nuno não possui a
assinatura constante do aviso de recepção dos correios portugueses, o qual
assina por NP e não NRP, conforme consta do seu cartão de cidadão português.
Doc nº 1 ora junto.
D) Na assinatura do filho do
requerido constam apenas duas letras maiúsculas que são precisamente um N e um
P, como se pode alcançar do seu documento de identificação “Carte Nationale
D`Identité n.º (…)” – Doc nº 2 ora junto.
E) O aviso de recepção referente
à citação judicial constante dos presentes autos está assinado por duas letras
estilizadas de “N” e “P” correspondentes à assinatura utilizada pelo Nicolau,
filho legítimo do ora requerido.
F) Pelo que ao prazo para
apresentação da contestação de 30 dias previsto no artigo 569.º, n.º 1, acresce
uma dilação de mais 30 dias pelo facto do réu ser citado no estrangeiro, nos
termos do artigo 245.º, n.º 3, e ainda de mais 5 dias, uma vez que foi
realizada em pessoa distinta do réu, conforme consta no artigo 245.º, n.º 1,
al. a), todos do CPC.
G) O réu poderia ainda
beneficiar da apresentação do seu articulado dentro dos três primeiros dias
úteis subsequentes ao termo do prazo nos termos do artigo 139.º, n.º 5, do CPC,
mediante o pagamento da multa aí fixada nas alíneas a) b) e c).
H- Nesta conformidade, deveriam
os presentes autos prosseguir a sua tramitação normal tal como ora se requer,
uma vez que a contestação em crise foi apresentada dentro do prazo legal.
A recorrida apresentou
contra-alegações, com as seguintes conclusões:
1. Ao determinar o
desentranhamento da contestação apresentada pelo recorrente, não incorreu, o
Tribunal a quo, em qualquer erro de
direito ou de facto.
2. Adicionalmente, não pode o
objecto do recurso englobar factos novos alegados pelo recorrente,
nomeadamente, este alegadamente não ter residência em 4 Rue Bearegard, (…),
França, local para o qual foi devidamente citado.
3. Sendo, contudo, certo que
esta morada corresponde à morada indicada pelo próprio apelante na procuração
forense que se encontra junta aos autos com a contestação.
4. Mesmo que tal não se entenda
e apenas à cautela de patrocínio, a citação não padece da nulidade prevista no
preceituado disposto no artigo 191.º, n.º 1 e n.º 2 do CPC, por ser evidente
que o recorrente reside em 4 Rue Bearegard, (…), França.
5. Não apresentou o recorrente
prova passível de demonstrar que a morada para a qual foi citado, consubstancia
a residência do seu filho e não do recorrente.
6. Muito pelo contrário, juntou
o recorrente o documento de identificação do seu filho, de onde consta a morada
da sua residência 6 bis Impasse Des Telleils Chevannes (91) e não 4 Rue
Bearegard, (…), França, como quis o recorrente fazer crer.
7. Adicionalmente, no
requerimento submetido pelo recorrente no seguimento do despacho proferido pela
juiz do tribunal a quo, nunca este
primeiro referiu, uma única vez, que não vivia na morada para a qual foi
devidamente citado. Apenas alegou o referido facto em sede de recurso, por
motivo que se desconhece.
8. Refira-se ainda que no
limite, a prova terá que ser feita pelo recorrente, de acordo com a norma do
ónus da prova constante do artigo 342.º, n.º 1 do CC.
9. Face ao exposto, não foi
omitida nenhuma formalidade da citação que levasse a que esta padecesse de
nulidade, pois é mais que óbvio que o recorrente foi citado na sua residência,
para os efeitos do artigo 225.º, n.º 1 do CPC.
10. Alega ainda o recorrente que
o aviso de recepção não foi assinado pelo recorrente, o que não corresponde à
verdade, se compararmos a assinatura do filho do recorrente com a assinatura
aposta no aviso de recepção.
11. É mais do que evidente a
coincidência e semelhança entre a assinatura aposta ao aviso de recepção e a
assinatura do recorrente, conforme documentos anexos ao processo e que instruíram
a petição inicial, ou mesmo com a procuração forense outorgada pelo apelante e junta
a estes autos.
12. Mais uma vez, dir-se-á
sempre que cabe ao recorrente fazer prova de que o aviso de recepção não foi
por este assinado, para poder beneficiar da dilação de 5 dias disposta no
artigo 245, n.º1 do CPC, o que não sucedeu.
13. Por último, a juiz tem toda
a legitimidade para convidar as partes a pronunciarem-se sobre a tempestividade
da contestação, face ao disposto nos artigos 166.º, n.º 2, 145.º, n.ºs 4, 5 e
6, 146.º, 506.º, n.º 4, e 489.º, todos do CPC.
O recurso foi admitido, com
subida em separado e efeito meramente devolutivo.
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Tendo
em conta as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a resolver são
as seguintes:
1 –
Admissibilidade da junção de documentos na fase de recurso;
2 – Admissibilidade
da invocação, na fase de recurso, de que a morada para a qual a citação foi
enviada corresponde à residência do filho do recorrente;
3 – Se
está provado que a citação foi efectuada na pessoa do filho do recorrente;
4 – Se
o recorrente contestou a acção dentro do prazo legal.
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Os factos relevantes para a decisão do
recurso, evidenciados pelos autos deste, são os seguintes:
1 – A carta destinada à citação do
recorrente foi remetida para o seguinte endereço: “4 Rue Beauregard, (…), França” (fls. 15);
2 – O aviso de recepção da carta
expedida para citação do recorrente foi rubricado pela pessoa a quem aquela
carta foi entregue, o que ocorreu no dia 09.09.2020 (fls. 15);
3 – Não consta do aviso de recepção que
a carta expedida para citação do recorrente tenha sido entregue a pessoa diversa
do destinatário (fls. 15);
4 – O recorrente apresentou a
contestação no dia 16.11.2020 (fls.
16-24);
5 – Na procuração forense que consta dos
autos, o recorrente indicou, como sua morada, “4 Rue Beauregard (…) em França” (fls. 25);
6 – Na sequência da sua notificação para
se pronunciar acerca da tempestividade da contestação, o recorrente alegou o
seguinte:
“1.º
O ora réu foi citado na pessoa do seu filho que era a única pessoa que se
encontrava em casa.
2.º
Tal citação ocorreu em França.
3.º
O último dia de prazo para apresentar a contestação foi o dia 13/11/2020.
4.º
O ora réu apresentou a sua contestação no dia 16/11/2020, primeiro dia útil
após o prazo, com multa, que se encontra paga.
5.º
De qualquer forma, sempre se dirá, que a excepção dilatória prevista na al. c)
do artigo 577.º do CPC, invocada, é de conhecimento oficioso, com a consequente
cominação legal…”
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1 – Admissibilidade da junção de
documentos na fase de recurso:
O
recorrente juntou dois documentos às alegações de recurso.
O
n.º 1 do artigo 651.º do CPC (diploma ao qual pertencem todas as normas
doravante referenciadas) estabelece que as partes apenas podem juntar
documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo
425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento
proferido na 1.ª instância.
No
caso dos autos, o recorrente não alega a verificação de alguma destas
hipóteses, nem se encontra demonstrada tal verificação. Os documentos em causa
são cópias do cartão de cidadão do recorrente e de um documento de
identificação de um filho seu emitido pelo Estado Francês. Com a sua junção aos
autos, o recorrente pretende provar que a rubrica constante do aviso de
recepção de fls. 15 não é sua, mas do seu referido filho. Tendo o recorrente
alegado, no tribunal a quo, ter sido
citado na pessoa de seu filho, era esse o momento processual próprio para a
junção dos referidos documentos aos autos, como meio de prova dessa alegação.
Não está demonstrada a impossibilidade dessa junção e, por outro lado, é
evidente que a mesma não se tornou necessária apenas devido ao decidido pelo
tribunal a quo, antes o sendo já
antes dessa decisão.
Decorre
do exposto que é legalmente inadmissível a junção aos autos dos documentos em
causa apenas na fase de recurso. Consequentemente, os mesmos documentos não
serão tidos em consideração na decisão deste último.
2
– Admissibilidade da invocação, na fase de recurso, de que a morada para a qual
a citação foi enviada corresponde à residência do filho do recorrente:
Na
sequência da sua notificação, pelo tribunal a
quo, para se pronunciar acerca da tempestividade da contestação, o
recorrente alegou, nomeadamente, que foi citado na pessoa do seu filho, que era
a única pessoa que se encontrava em casa. O recorrente, não só não alegou que a
morada para a qual a citação foi enviada corresponde à residência de seu filho,
como deu a entender que este recebeu a citação por ser a única pessoa que, no
momento, se encontrava na sua casa. Tudo isto em consonância com o facto de, na
procuração forense constante de fls. 25 dos autos de recurso, o recorrente ter
indicado, como sua morada, aquela para a qual a carta destinada à sua citação
foi enviada.
Nas
alegações de recurso, o recorrente altera a sua estratégia e sustenta que a
carta destinada à sua citação foi enviada para a residência de seu filho,
suscitando, assim, uma questão nova. Ora, resulta dos artigos 627.º, n.º 1,
639.º, n.ºs 1 e 2, e 640.º que os recursos ordinários visam o reexame de
questões que foram submetidas à apreciação do tribunal a quo e não o conhecimento de questões novas, ou seja, suscitadas
pela primeira vez perante o tribunal ad
quem. Isto, naturalmente, sem prejuízo do conhecimento, por este último,
das questões que o devam ser oficiosamente, o que não é o caso daquela que o
recorrente agora suscita. “Os recursos são meios de obter a reforma de sentença
injusta, de sentença inquinada de vício substancial ou de erro de julgamento.
(…) pretende-se um novo exame da
causa, por parte de órgão jurisdicional hierarquicamente superior.”[1] Esta
é uma regra básica em matéria de recursos, que define a própria natureza
destes.
Portanto,
não é lícito, ao recorrente, suscitar a questão de a morada para a qual a
citação foi enviada corresponder à residência de seu filho apenas em sede de
recurso e, mais que isso, em aberta contradição com a posição que assumiu perante
o tribunal a quo.
3
– Se está provado que a citação foi efectuada na pessoa do filho do recorrente:
Quando
foi notificado, pelo tribunal a quo, para
se pronunciar sobre a tempestividade da contestação, o recorrente não ofereceu
qualquer meio de prova do que alegou, ou seja, de que foi seu filho quem
recebeu a carta destinada à sua citação e assinou o aviso de recepção.
Nomeadamente, não juntou, então, aos autos, os dois documentos que acompanham
as alegações de recurso.
Aquilo
que constava dos autos era o aviso de recepção assinado pela pessoa que recebeu
a carta na morada para a qual esta foi expedida. Esse aviso de recepção não
menciona que a carta foi entregue a pessoa diversa do destinatário, pelo que,
na falta de prova em contrário, impunha-se concluir que foi o recorrente quem a
recebeu. Tanto mais que o recorrente, nessa altura, ainda não tinha posto em
causa que a carta fora enviada para a sua residência e, mais que isso, indicara
como sua residência, na procuração forense de fls. 25 dos autos de recurso, a
morada para a qual a carta foi expedida.
Em
face disto, não podia o tribunal a quo
decidir de forma diferente daquela que decidiu, ou seja, que a citação foi
feita na própria pessoa do recorrente.
4
– Se o recorrente contestou a acção dentro do prazo legal:
Estando
assente que a citação foi enviada para a residência do recorrente e por este
recebida, o acerto do despacho recorrido é indiscutível. A citação foi recebida
em 09.09.2020. O prazo para contestar é de 30 dias (artigo 569.º, n.º 1), ao
qual acresce uma dilação de 30 dias por a citação ter ocorrido no estrangeiro
(artigo 245.º, n.º 3), pelo que terminou em 09.11.2020. Tendo a contestação
sido apresentada em 16.11.2020, é evidente a sua extemporaneidade, mesmo tendo
em conta o disposto no artigo 139.º, n.ºs 5 e 6.
Deverá,
pois, o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.
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Dispositivo:
Delibera-se, pelo
exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas
a cargo do recorrente.
Notifique.
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Évora, 09.09.2021
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
(1.º
adjunto)
(2.ª adjunta)
[1] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume
V (reimpressão), p. 212.