Processo
n.º 1382/14.2TBLLE-A.E1
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Sumário:
1 – A disponibilização, às partes, da
gravação da audiência final de acções, incidentes e procedimentos cautelares,
nos termos do artigo 155.º, n.º 3, do CPC, consiste na simples colocação, pela
secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que
estas possam obter cópia da mesma.
2 – Tal disponibilização não envolve a
realização de qualquer notificação, às partes, de que a gravação se encontra
disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de
suporte digital da mesma gravação às partes.
3 – A contagem do prazo fixado no n.º 4
do mesmo artigo para invocar a falta ou deficiência da gravação inicia-se após
o decurso do prazo fixado no n.º 3.
4 – Porém, se a secretaria não cumprir o
prazo fixado no n.º 3 para a disponibilização da gravação, a contagem do prazo
fixado no n.º 4 apenas se iniciará quando tal disponibilização ocorrer.
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Relatório
SO propôs
a presente acção declarativa comum contra COMPANHIA DE SEGUROS, SA, pedindo a
condenação desta última a pagar-lhe determinadas quantias, que discriminou.
A ré contestou, concluindo no sentido
da improcedência da acção.
Foi proferido despacho saneador, com a identificação
do objecto do litígio e o enunciado dos temas de prova.
Realizou-se a audiência final, na sequência da qual
foi proferida sentença julgando a acção improcedente, por não provada, com a
consequente absolvição da ré do pedido.
Após a prolação da sentença, o autor requereu a
entrega, à sua advogada, da gravação da prova produzida nos autos.
A secretaria entregou cópia da gravação à advogada do
autor.
O autor apresentou requerimento invocando a
deficiência da gravação e arguindo a nulidade da prova produzida em julgamento.
O autor interpôs recurso da sentença.
O tribunal recorrido proferiu despacho mediante o qual
indeferiu, por extemporaneidade, o requerimento em que o autor invocou a
deficiência da gravação e arguiu a nulidade da prova produzida em julgamento.
Foi deste despacho que o autor interpôs o presente
recurso, admitido, que subiu imediatamente, em separado e com efeito meramente
devolutivo.
As alegações do recorrente contêm as seguintes
conclusões:
A) Não pode o recorrente conformar-se com o douto
despacho que indeferiu, por extemporâneo, o seu requerimento de arguição da
nulidade da gravação dos depoimentos prestados na sessão de audiência de
julgamento de 10/12/2015;
B) A disponibilização da gravação deve ser feita pela
secretaria no prazo de dois dias a contar do respectivo acto;
C) Não depende de requerimento ou despacho;
D) O prazo para a arguição da nulidade da gravação
conta-se da data da sua efectiva disponibilização;
E) A gravação dos depoimentos prestados foi
disponibilizada ao autor, ora recorrente, em 30 de Setembro de 2016, na
sequência de requerimento seu;
F) O requerimento de arguição da respectiva nulidade
foi apresentado via plataforma Citius em 12/10/2016, ao abrigo do disposto nos
artigos 155.º, n.º 4 e 195.º, n.º 1 e mediante o pagamento da multa prevista na
alínea b) do n.º 5 do artigo 139.º, todos do CPC;
G) Pelo que foi tempestivamente apresentado;
H) Os depoimentos constantes das gravações
inaudíveis/ imperceptíveis foram determinantes para a prolação da sentença de
que se apresentou já recurso, tendo entre mais por fim a reapreciação da prova
gravada, e são essenciais para a reapreciação da matéria de facto;
I) Apenas com recurso a notas recolhidas pelos
presentes na sessão de julgamento é possível reconstituir minimamente os
depoimentos cuja gravação se revela inaudível e/ou imperceptível;
J) A insuficiência/inaudibilidade da gravação impede
uma justa reapreciação da matéria de facto e limita inadmissivelmente as
garantas de defesa do autor, ora recorrente;
K) Decidindo pelo indeferimento do requerimento de
arguição de nulidade da gravação, por extemporaneidade, fez o tribunal a quo errada interpretação das normas
contidas nos artigos 115.º, n.ºs 3 e 4, 195.º, n.º 1, e 199.º, n.º 1, todos do
CPC;
L) Pelo que deve o douto despacho recorrido ser
revogado, ser declarada a nulidade da gravação dos depoimentos prestados na
sessão de julgamento de 10/12/2015 e prosseguir a acção os seus ulteriores
termos com a repetição dos referidos depoimentos e subsequente prolação de nova
sentença.
A
ré contra-alegou.
Foram
observados os vistos legais.
Objecto
do recurso
É entendimento uniforme que é pelas
conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o
âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º,
n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha
(artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo
663.º, n.º 2, do NCPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo
o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
A questão a decidir resume-se a saber a
partir de quando se conta o prazo de 10 dias que o artigo 155.º, n.º 4, do CPC,
estabelece para a invocação da falta ou deficiência da gravação da audiência
final.
Factualidade
relevante para a decisão do recurso
Com relevo para a decisão do recurso, resultam
dos autos os seguintes factos:
1 – A audiência final desdobrou-se em
três sessões, que tiveram lugar nos dias 10.12.2015, 08.01.2016 e 22.01.2016 (fls. 340-344 e 350-358);
2 – A sentença foi registada e
notificada às partes no dia 01.09.2016 (fls.
371, 384 e 397);
3 – No dia 27.09.2016, o recorrente
requereu a entrega, à sua advogada, da gravação da prova produzida nos autos, a
fim de apresentar recurso da sentença; para o efeito, o recorrente requereu que
a sua advogada fosse informada da data em que a cópia da gravação poderia ser
levantada na secretaria judicial, com entrega do CD necessário para o efeito no
acto de levantamento (fls. 410-412);
4 – No dia 29.09.2016, a secretaria
judicial notificou a advogada do recorrente de que o CD se encontrava gravado e
ficava à sua disposição para o poder levantar, sendo que, na altura, a segunda
deveria levar CD virgem, após o que lhe seria entregue o CD gravado (fls. 413);
5 – No dia 30.09.2016, a secretaria judicial
entregou cópia da gravação da prova à advogada do recorrente (fls. 414);
6 – No dia 12.10.2016, o recorrente
apresentou requerimento no qual invocou a deficiência da gravação dos seus
próprios depoimento de parte e declarações de parte, bem como dos depoimentos
das testemunhas RO, JS e AG, prestados na sessão realizada em 10.12.2015, e
arguiu a nulidade dessa prova, nos termos dos artigos 155.º, n.º 4, e 195.º,
n.º 1, do CPC; tal requerimento foi acompanhado por documento comprovativo do
pagamento da multa a que se refere a al. b) do n.º 5 do artigo 139.º do CPC (fls. 419-426);
7 – O requerimento referido em 6 foi
indeferido, por extemporaneidade (fls.
480-483).
Fundamentação
O n.º 3
do artigo 155.º do CPC estabelece que a gravação da audiência final de acções,
incidentes e procedimentos cautelares, obrigatória nos termos do n.º 1, deve
ser disponibilizada às partes no prazo de 2 dias a contar do respectivo acto.
Dispõe o n.º 4 do mesmo artigo que a falta ou deficiência da gravação deve ser
invocada no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é
disponibilizada.
Importa
saber a partir de quando se conta este último prazo, o que redunda em apurar o
que significa “disponibilizar” para o efeito previsto nas duas citadas normas.
Na tese
do recorrente, “decorre da Lei que a disponibilização da gravação deve ser
notificada às partes pela secretaria independentemente de requerimento”. Ou
seja, após a audiência, a secretaria judicial teria o dever de notificar as
partes de que a gravação se encontra ao dispor destas. Na lógica desta tese,
parece que o prazo de 10 dias previsto no n.º 4 do artigo 155.º se contaria a
partir da referida notificação. Contudo, o recorrente vai mais longe,
sustentando que “o prazo para a arguição da nulidade da gravação da prova só
começa a contar da data da sua efectiva entrega”, a que, na alínea D) das suas
conclusões, chama “efectiva disponibilização”. Ou seja, nas suas alegações, o
recorrente acaba por propor duas teses diferentes sobre o que seja
“disponibilizar”: na primeira tese, disponibilizar equivale à realização, pela
secretaria judicial, da notificação das partes de que a gravação está ao dispor
destas; na segunda tese, ainda mais exigente que a primeira, disponibilizar é
sinónimo de entregar às partes o suporte digital da gravação.
Porém, nenhuma
destas teses encontra sustentação nos n.ºs 3 e 4 do artigo 155.º do CPC.
Por um
lado, em parte alguma a lei impõe que a secretaria realize a notificação
referida pelo recorrente. Além de resolver as dúvidas que o regime anterior
suscitava, foi intenção do legislador que o procedimento tendente à obtenção de
cópia da gravação pelas partes seja o mais simples possível, sem necessidade de
realização de qualquer notificação pela secretaria e tendo em vista garantir
que algum problema que se verifique com a gravação seja resolvido com rapidez,
no tribunal de primeira instância. Se fosse intenção do legislador que a
secretaria notificasse as partes de que a gravação está disponível, certamente
o teria estabelecido expressamente. Todavia, não é, manifestamente, isso que o
n.º 3 do artigo 151.º faz.
Por
outro lado, disponibilizar não é entregar o suporte digital da gravação às
partes. Desde logo, porque, na língua portuguesa, estas duas palavras não são
sinónimas. Disponibilizar é colocar algo à disposição de outrem, ainda que o
terceiro assuma uma atitude de inércia e não aproveite tal disponibilidade.
Entregar é mais que isso, é transferir algo para o poder, para as mãos de
outrem. Na hermenêutica jurídica, tem de se partir do princípio de que o
legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (Código Civil,
artigo 9.º, n.º 3, in fine), pelo que
o verbo “disponibilizar” deve ser interpretado em sentido próprio e não como
sinónimo de “entregar”. A tese do recorrente parte do princípio de que o
legislador não se exprimiu adequadamente, utilizando o verbo “disponibilizar” quando
queria dizer “entregar”. Ora, tal desconformidade entre a intenção do
legislador e a forma como este se exprimiu não está demonstrada. Pelo
contrário, a ponderação do resultado a que conduziria a interpretação proposta
pelo recorrente confirma que o legislador se exprimiu correctamente ao utilizar
o verbo “disponibilizar”. Como bem nota a decisão recorrida, se a contagem do
prazo fixado no n.º 4 do artigo 155.º do CPC só se iniciasse a partir da
entrega da gravação à parte, tal início ficaria na dependência do arbítrio
desta. Bastaria que a parte não solicitasse a entrega da gravação ou, fazendo-o,
não diligenciasse, depois, no sentido de ir recebê-la, para que aquela contagem
não se iniciasse. Dessa forma, ficaria, na prática, a parte com a possibilidade
de invocar a falta ou deficiência da gravação quando lhe aprouvesse, até à
interposição de recurso da sentença. Ora, não foi, seguramente, isto que o
legislador quis ao estabelecer os apertados prazos que as normas que vimos
analisando estabelecem. Convém, a propósito, lembrar novamente o disposto no
citado artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil: O intérprete deverá presumir que o
legislador consagrou as soluções mais acertadas. Atento o resultado a que
conduz, a segunda tese que o recorrente propõe é tudo menos acertada.
Não se
objecte com o argumento de que, na hipótese de a secretaria não disponibilizar (em
sentido próprio) a gravação no prazo de dois dias a contar do acto, as partes
ficariam injustamente penalizadas por verem comprimido o prazo para a reclamação
prevista no n.º 4. Nessa hipótese, a parte terá o ónus de, através de
requerimento dirigido ao juiz, suscitar a questão. Caso se confirme o
incumprimento do prazo do n.º 3, o prazo do n.º 4 só começará a contar-se a
partir do momento em que a secretaria passe a ter a gravação ao dispor das
partes. É isto que decorre do n.º 4, ao estabelecer que o prazo de 10 dias para
a arguição da nulidade decorrente da falta ou deficiência da gravação começa a
contar-se no “momento em que a gravação é disponibilizada”. Veja-se, neste
sentido, por exemplo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 05.02.2015 (processo
n.º 8/13.6TCFUN.L1-2), o qual, além do
mais, enfatiza, bem, o dever das partes de cooperarem com o tribunal
no sentido de eventuais irregularidades da gravação que possam comprometer a
desejável celeridade no andamento dos autos serem remediadas o mais cedo
possível.
Estamos,
portanto, perante um regime que, visando resolver eventuais situações de falta
ou insuficiência da gravação com celeridade e de forma a evitar, em toda a
medida do possível, a anulação de actos processuais subsequentes, é, ainda
assim, equilibrado, na medida em que, através do n.º 4, salvaguarda as partes
quando a secretaria não cumpra o prazo fixado no n.º 3.
No caso
dos autos, a audiência final prolongou-se por três sessões, que decorreram nos
dias 10.12.2015, 08.01.2016 e 22.01.2016. A alegada deficiência da gravação
ocorreu na primeira sessão. Sendo assim, o prazo do n.º 3 terminou em
14.12.2015 (12 e 13.12 foram fim-de-semana) e o do n.º 4 em 06.01.2016.
Porém,
apenas no dia 27.09.2016, após ser notificado da sentença, o recorrente
requereu a entrega, à sua advogada, da gravação da prova produzida nos autos, e
apenas no dia 12.10.2016 o recorrente apresentou o requerimento mediante o qual
invocou a deficiência da gravação. É evidente que, em qualquer destas duas
datas, o prazo previsto no n.º 4 do artigo 155.º do CPC já tinha decorrido, com
a consequente sanação da eventual nulidade decorrente de uma deficiente
gravação. Donde se conclui, à semelhança do que fez a decisão recorrida, que o
requerimento apresentado pelo recorrente em 12.10.2016 é extemporâneo.
Consequentemente, o recurso não merece
provimento, devendo manter-se a decisão recorrida.
Decisão
Acordam os juízes do
Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a
decisão recorrida.
Custas
pelo recorrente.
Notifique.
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Évora, 12.10.2017
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.ª
adjunta
2.º adjunto