terça-feira, 31 de outubro de 2017

Acórdão da Relação de Évora de 12.10.2017

Processo n.º 1670/13.5TBCTX.E1

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Sumário:

1 – Resulta dos artigos 484.º, n.º 1, e 485.º, n.ºs 2 a 4, do CPC, que o relatório pericial deve dar resposta completa, clara e coerente a todas as questões que constituem objecto da perícia. Tais respostas devem, em particular, ser tecnicamente rigorosas, atentas a natureza e finalidade do meio de prova em causa.

2 – Resulta dos mesmos preceitos legais que a fundamentação do relatório pericial também não pode deixar de ser completa, clara e coerente, tendo especialmente em conta que os destinatários do relatório não possuem os especiais conhecimentos de quem o elaborou, assumindo, assim, fundamental importância a capacidade de comunicação dos peritos com aqueles.

3 – O incumprimento destes requisitos legais constitui fundamento de reclamação pelas partes, que o juiz não poderá deixar de atender. Caso as partes não reclamem, o juiz tem o dever de determinar oficiosamente a prestação, pelo(s) perito(s), dos esclarecimentos ou aditamentos que entenda serem necessários para a boa decisão da causa.

4 – O incumprimento dos mesmos requisitos não é suprível através da prestação de esclarecimentos, pelo(s) perito(s), na audiência final.

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Relatório

AJ e mulher, MP, propuseram a presente acção declarativa comum contra MC, AC e CC, pedindo a condenação destas últimas a reconhecerem o seu direito de propriedade sobre uma parcela de terreno integrante do seu prédio que ilegitimamente ocupam com uma obra inacabada, a restituírem-lhes a mesma parcela livre e desimpedida de quaisquer construções e demais desperdícios destas decorrentes e a absterem-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização, por si, da mesma parcela.

As rés contestaram, sustentando que, com a construção do muro contra o qual os autores se insurgem, não invadiram o prédio destes, concluindo no sentido da improcedência da acção. As rés também deduziram reconvenção, pedindo a condenação dos autores a pagarem-lhes uma indemnização de montante não inferior a € 5.000 e, ainda, da que vier a apurar-se e a liquidar-se em execução de sentença.

Os autores replicaram, impugnando a matéria do pedido reconvencional e concluindo no sentido da improcedência deste.

Foi proferido despacho saneador, com a identificação do objecto do litígio e o enunciado dos temas de prova.

Na data agendada para a realização da audiência final e após a abertura desta, foi proferido despacho ordenando a realização de uma perícia e, com esse fundamento, dando sem efeito a audiência, adiando a mesma sine die, até ao momento em que o relatório pericial fosse junto aos autos.

Foi recebido o relatório pericial, tendo os autores e as rés reclamado do mesmo.

Ambas as reclamações foram indeferidas.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, na sequência da qual foi proferida sentença, que julgou improcedentes, quer a acção, quer a reconvenção.

Os autores recorreram, quer do despacho que indeferiu a sua reclamação contra o relatório pericial, quer da sentença. As suas alegações contêm as seguintes conclusões:

1 – Os apelantes insurgem-se contra o despacho que logrou indeferir a reclamação que apresentaram contra o relatório pericial, por este padecer dos vícios de deficiência, obscuridade e falta de fundamentação.

2 – Sendo certo que, a lei exige que no mesmo o perito ou peritos se pronunciem fundamentadamente sobre o seu objecto.

3 – Não bastando para tal efeito previsto na lei que o dito relatório pericial apenas contenha mapa com coordenadas e documentos fotográficos, sem qualquer fundamentação sobre o objecto da perícia.

4 – Omitindo-se no relatório a fundamentação, não cumpre o mesmo a citada disposição legal, pelo que incorre assim nos vícios assacados pelos apelantes.

5 – Por conseguinte, impunha-se à Mma. Juiz “a quo” que ordenasse aos peritos que nele incluíssem a fundamentação em falta.

6 – Outrossim, a decisão sobre a matéria de facto igualmente carece de ser alterada, julgando não provados os factos constantes dos pontos 12, 15, 16, 19 a 21 e provado o facto constante da matéria de facto não provada referido na al. i).

7 – Por um lado, a descrição registral do prédio das apeladas constante do registo, a qual influiu na parte de decisão de facto impugnada, não pode constituir prova das áreas, limites e confrontações, por não cobertas pela presunção derivada do registo, cfr. art. 7º, do CRP.

8 – Ademais, os referidos elementos da descrição física do prédio por resultarem de declarações das partes proferidas no título invocado, não vinculam terceiros, nem estão cobertas pela fé pública do notário titulador, cf. o disposto no art. 371.º, do CCiv.

9 – Outrossim, os depoimentos conjugados das testemunhas AS e ZS, cujas passagens se encontram transcritas no corpo desta alegação, configuram uma situação factual que impõe resposta diversa daquela a que se chegou na parte a decisão ora impugnada.

10 – Porquanto, do depoimento gravado respeitante à primeira testemunha - declarações iniciadas nos Mins. 4.46, 5.10 e 6.17 – esta refere qual a sua razão de ciência, contrariando a conclusão extraída pela Mma. Juiz “a quo”, vazada na fundamentação da decisão de facto, onde ai se julgou que a mesma “não teria conseguido esclarecer em que assenta tal afirmação.”

11 – Quando na verdade, a mesma declarou que: “Aquilo está dentro do terreno do AJ, dentro da tal passagenzinha que a gente ia para o poço, foi demolida para a casa ficar em esquadria, ouvi eu dizer aos pedreiros.”

12 – Com efeito, a testemunha ZS – gravado no ficheiro 20161123151802_1035544_2871750 – que, segundo a Mma. Juiz “a quo” esta teria peremptoriamente precisado que o muro se encontra construído no terreno das R. e porque o terreno dos A. estaria na parte de baixo do desnível (com cerca de 1 metro).

13 – Contudo, esta testemunha respondeu a instâncias da mandatária das recorridas sobre se a construção do prédio das R. teria introduzido alguma alteração, a qual respondeu que sim, depondo: “Sim houve alteração, a planta da casa foi feita um bocadinho grande demais e não havia espaço para implantar a casa. (…).”

14 – E sobre a situação do dito carreiro, disse: “Agora eu penso que ele está mesmo na extrema (…). Nunca lá fui medir se de facto tem um metro, acho um bocadinho estreito para um metro. Porque é o metro que está na escritura. (…) Tenho uma folha de partilhas da partilha da minha mãe e da mãe da minha prima (…) Eu tenho uma folha de partilhas que consta lá um carreiro, aquilo e a adega, ao lado da adega há um carreiro com um metro de largura. (…)”

15 – Sendo que o conhecimento da situação dele e respectiva dimensão/largura, mormente no que a extrema entre os dois prédios concerne, tal razão de ciência advém-lhe da escritura notarial, não que tivesse qualquer conhecimento pessoal e directo.

16 – Outrossim, no concernente à implantação da casa construída no prédio pela apelada mãe, a testemunha ZS foi enfática ao responder a instância da mandatária daquelas que: “A adega foi deitada abaixo. A casa teve de ser feita na recta onde o carreiro tinha o limite de um metro. (…)”

17 – Ora, coonestando o depoimento das testemunhas AS e ZS verifica-se que afinal a casa edificada em lugar da adega ocupou o leito do carreiro.

18 – O que significa que o muro foi edificado no terreno pertença dos apelantes, talqualmente, se extrai do depoimento da testemunha AS.

19 – Sendo aqui, imprestáveis as coordenadas geográficas a que se refere a Mma. Juiz “a quo”, bem como os depoimentos prestados em audiência pelos peritos e testemunha topografo indicada pelas apeladas, que apenas se referiram à perspectiva que extraíram da técnica que se socorreram.

20 – Mas, tal técnica não se compagina com o nosso sistema de registo predial, que não cobre com a presunção dele derivada as aéreas, limites e confrontações assim obtidos.

21 – Pelo que, deve assim ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, no sentido de não serem julgados provados os factos elencados na conclusão 6.ª e ser julgado provado o facto vertido na al. i), da parte da decisão respeitante aos factos não provados, como decorre do depoimento da testemunha AS conjugado com o da testemunha ZS.

22 – Alterando-se a decisão de facto no sentido que resulta das conclusões supra, deverão proceder os pedidos dos apelantes.

Houve lugar a resposta, sendo as seguintes as conclusões das recorridas:

1. A decisão recorrida não merece qualquer reparo, já que a mesma resultou de uma exaustiva produção de prova, tendo a Meritíssima Juiz a quo, feito uma valoração criteriosa e prudente das provas produzidas, incluindo as provas documentais trazidas pelas apeladas.

2. Os apelantes colocam em causa matéria de facto dada por provada, sem, contudo, respeitarem o teor da gravação, sendo dever dos recorrentes indicar com precisão (exactidão) as passagens da gravação em que se funda ou proceder à transcrição dos depoimentos – com a mesma precisão – que então e no seu entender, daria uma diferente decisão de facto.

3. A sentença recorrida não merece reparo, a qual resultou da livre apreciação e valoração da prova produzida segundo critérios práticos e realistas e lógico-intuitivos, colhidos quer da inquirição das testemunhas, como das declarações do Perito e do Topógrafo que realizaram a perícia no local e ainda da documentação junta.

4. Resulta, assim, que a Meritíssima Juiz a quo fez o julgamento em estrito cumprimento do artº. 607º. do C.P.C.

O recurso foi admitido.                                                         

Objecto do recurso

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do NCPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

Importa apreciar, em primeiro lugar, o recurso interposto do despacho que indeferiu a reclamação dos recorrentes contra o relatório pericial. Está em causa saber se este relatório padece dos vícios que os recorrentes lhe apontaram na reclamação que deu origem ao despacho de indeferimento de que agora recorrem e, na hipótese afirmativa, se tais vícios tiveram influência no sentido da sentença (cfr. artigo 660.º do CPC).                                                       

Factualidade apurada

Com interesse para a resolução da questão acima enunciada, resulta do processo o seguinte:

1 – Na sessão da audiência realizada em 23.09.2015, foi proferido o seguinte despacho:

“Compulsados os autos e após a tentativa de conciliação verifica-se não estar assente a posição dos marcos limitadores dos terrenos dos AA e dos RR patentes em levantamento topográfico apresentado pelas R. (que os A. não aceitam) o que se impõe com vista a aferir da exata localização dos mesmos e do muro em causa nestes autos.

Tal situação afigura-se a este Tribunal passível de esclarecimento apenas por perícia a ordenar nestes autos.

Termos em que, ao abrigo do Artº 467.º e seguintes do CPC, determino a realização de perícia com vista a determinar:

a) concreta localização da linha de estrema (e marcos) que delimita o terreno dos AA e dos RR;

b) localização do muro construído e em causa nestes autos, por referência àquela estrema;

c) medida da frente dos terrenos dos AA e dos RR face à Rua …

Determina-se que se solicite ao Instituto Geográfico Português, remetendo cópia de fls. 78, as coordenadas dos marcos assinalados com os nºs 2, 3 e 4 e bem assim os dois pontos adicionais que no mesmo vão marcados com os nºs 5 e 6, sendo a selecção de tais pontos obtida com a concordância dos mandatários das partes.

Obtidos tais elementos, remeta-os ao perito para efeitos da perícia ordenada, bem como as certidões prediais dos prédios em causa.

Indique a secção pessoa idónea para a perícia ordenada, a qual desde já se nomeia, devendo apresentar por escrito o compromisso de honra.

Fixa-se o prazo de trinta dias para a realização da perícia.

Por se afigurar que o relatório pericial deverá estar junto aos autos em momento anterior à inquirição das testemunhas, dou sem efeito a presente audiência, adiando a mesma sine die e até ao momento em que tal relatório se mostre junto aos autos.

Junto tal relatório, venham-me os autos conclusos.

Notifique.”

2 – Em 27.06.2016, foi recebido nos autos um documento, assinado pelo perito nomeado, com o seguinte teor:

“3. Relatório Pericial

- A perícia realizada esteve com base a localização da linha de estrema e marcos que delimita o terreno dos AA e dos RR.

- A localização do muro construído e em causa nos autos

- A medida da frente dos terrenos dos AA e dos RR face à rua …”

3 – O documento referido em 2 tem, em anexo, sete fotos e uma planta.

4 – Os ora recorrentes reclamaram do relatório pericial, sustentando que o mesmo padece de deficiência, obscuridade e ausência de fundamentação das conclusões, sendo, por isso, inidóneo para os fins visados pela perícia.

5 – O requerimento referido em 4 foi indeferido, através de despacho que, na parte que agora interessa, tem o seguinte teor:

“Nos termos do disposto no artigo 485.º do Código de Processo Civil as partes podem reclamar do relatório pericial quando entenderem que do mesmo resulta qualquer deficiência, obscuridade ou contrariedade, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas, naturalmente por relação aos quesitos a que devem responder.

Compulsado o requerimento/reclamação apresentado pelas partes e o apresentado relatório pericial (no qual constam assinalados os marcos/pontos determinados e a posição do muro face à linha de estrema de tais pontos/marcos) verifica-se não existir no reclamado relatório pericial qualquer deficiência, obscuridade ou contrariedade, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas.

Com efeito, cabendo reclamação do relatório pericial quando o mesmo não responde a qualquer quesito que tenha sido formulado, responde de forma insuficiente deixando questões por responder, responde de forma obscura que não permite descortinar o seu sentido e alcance, responde de forma a que entre respostas exista contradição ou apresenta conclusões não devidamente fundamentadas, verifica-se que a existência de mapas com escalas diferentes (sendo que os apontados pontos/marcos omissos efetivamente constam indicados) e a mera discordância relativamente à posição do muro face à estrema não é fundamento suficiente para que possa ser admitida tal reclamação.

Em face do exposto, indefere-se o requerido.

Notifique.”

6 – Da sentença recorrida consta, nomeadamente, o seguinte:

Análise Crítica da Prova

O Tribunal alicerçou a sua convicção na ponderação e análise crítica do conjunto da prova produzida, designadamente, na prova testemunhal e documental, nos termos infra indicados.

As respostas dadas resultam da valoração do mapa cadastral remetido pelo Instituto Geográfico Português, com sinalização das coordenadas dos pontos e marcos, bem assim, das plantas, certidões prediais e cadernetas prediais, certidões notariais, do relatório pericial junto (fls.), dos esclarecimentos prestados pelos peritos em sede de audiência de julgamento.

Com efeito, considerando as fotografias juntas com o relatório pericial, pelas quais é visível que apenas no marco/ponto 2 parte do muro se encontra (em cerca de seis centímetros) para lá da linha delimitadora dos prédios (ou seja, no prédio dos A.) – todos os seguintes marcos/pontos o muro encontra-se muito (chegando aos 80 cm) para dentro do prédio das R.-, conjugado com o ofício do Instituto Geográfico Português de indicação das coordenadas e margem erro e esclarecimento quanto à medição da margem de erro, forçoso é concluir que o muro porque dentro da referida margem de erro não está construído no prédio dos A.

Acresce, no sentido supra, os esclarecimentos prestados pelo perito e topógrafos nomeados, NC e PG, que prestaram um depoimento isento, claro e revelador da sua razão de ciência. (…)”

Fundamentação

O artigo 388.º do Código Civil estabelece que a prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial. Acerca deste meio de prova, salienta ANTUNES VARELA que “a nota típica, mais destacada, da prova pericial consiste em o perito não trazer ao tribunal apenas a perspectiva de factos, mas pode trazer também a apreciação ou valoração de factos, ou apenas esta.”[1] Acrescenta o mesmo autor que “Essencial, em princípio, para que haja perícia, é que a percepção desses factos assente sobre conhecimentos especiais que os julgadores não possuam, seja qual for a natureza (científica, técnica, artística, profissional ou de mera experiência) desses conhecimentos.”[2]

O regime adjectivo deste meio de prova encontra-se nos artigos 467.º a 489.º do Código de Processo Civil, diploma ao qual pertencem todas as disposições legais adiante referidas.

Quando se trate de perícia oficiosamente ordenada, o juiz indica, no despacho que determina a realização da diligência, o respectivo objecto, podendo as partes sugerir o alargamento a outra matéria (artigo 477.º). O resultado da perícia é expresso em relatório, no qual o perito ou peritos se pronunciam fundamentadamente sobre o respectivo objecto (artigo 484.º, n.º 1). Se as partes entenderem que há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas, podem formular as suas reclamações (artigo 485.º, n.º 2). Se as reclamações forem atendidas, o juiz ordena que o perito complete, esclareça ou fundamente, por escrito, o relatório apresentado (artigo 485.º, n.º 3). Ainda que não haja reclamações, o juiz pode determinar oficiosamente a prestação dos esclarecimentos ou aditamentos que considerar necessários (artigo 485.º, n.º 4).

Resulta deste conjunto de normas que o relatório pericial deverá dar resposta completa, clara e coerente a todas as questões que constituem objecto da perícia. Tais respostas devem, em particular, ser tecnicamente rigorosas, atentas a natureza e finalidade do meio de prova em causa.

Além disso, a lei tem o cuidado de exigir que as tomadas de posição do ou dos peritos sejam fundamentadas. Tal fundamentação também não pode deixar de ser completa, clara e coerente, tendo especialmente em conta que os destinatários do relatório não possuem os especiais conhecimentos de quem o elaborou, assumindo, assim, fundamental importância a capacidade de comunicação dos peritos com aqueles.

Tratando-se de trazer ao processo, com vista à boa decisão da causa, o contributo de pessoas com especial qualificação em determinada área do saber, isto é, que possuam conhecimentos especiais que o juiz não possui, tal contributo não poderá deixar de ficar expresso num relatório que, em si mesmo, forneça, a este último – bem como às partes e seus advogados, para que possam exercer devidamente o contraditório –, informação completa, clara, coerente, tecnicamente rigorosa e fundamentada sobre todas as matérias que constituem objecto da perícia.

É, pois, com o descrito grau de exigência que o n.º 1 do artigo 484.º tem de ser interpretado. Sempre que o relatório pericial não logre satisfazê-lo, as partes poderão reclamar, nos termos do n.º 2 do artigo 485.º. O juiz, por seu turno, não poderá deixar de atender tais reclamações sempre que as mesmas tenham razão de ser. Se as partes não reclamarem, o próprio juiz tem, nos termos do n.º 4 do artigo 485.º, o poder, que na realidade é um dever, de determinar oficiosamente a prestação dos esclarecimentos ou aditamentos que julgar necessários para que todas as matérias que constituem objecto da perícia fiquem devidamente esclarecidas.

Analisemos o relatório da perícia realizada neste processo à luz daquilo que acabámos de afirmar. Recordemos o seu conteúdo: “A perícia realizada esteve com base a localização da linha de estrema e marcos que delimita o terreno dos AA e dos RR.”; “A localização do muro construído e em causa nos autos”; “A medida da frente dos terrenos dos AA e dos RR face à rua …”. Apenas isto. Seguem-se sete fotos e uma planta.

É patente que, em rigor, este escrito não cumpre, sequer, os requisitos mínimos para poder ser considerado um relatório pericial. Ficou por dizer tudo aquilo que interessava saber, tendo em conta o objecto definido para a perícia. Nomeadamente: Havia marcos no terreno? Na hipótese afirmativa, em que pontos do mesmo? É possível determinar a estrema entre os prédios dos autores e das rés com base nesses marcos? Foi dessa forma que a linha divisória dos dois prédios foi calculada? Ou, em vez disso, foi-o exclusivamente, ou também, com base nas coordenadas fornecidas pela Direcção-Geral do Território? Nesta última hipótese, qual foi o procedimento técnico adoptado pelo perito e quais são as margens de erro que se verificam na determinação de tais coordenadas no terreno? Tais margens de erro são as referidas na informação prestada em 29.10.2015 pela Direcção-Geral do Território? Sendo-o, é possível afirmar, com rigor, se o muro foi construído num ou noutro prédio, quando está em disputa uma faixa com 80 cm de largura, aparentemente inferior à margem de erro máxima e à própria margem de erro média (a resposta a esta questão é absolutamente fundamental)? Finalmente, qual é e como foi determinada a medida da frente dos prédios dos autores e das rés (não basta a remissão para planta anexa, antes tendo de constar, com toda a clareza, do próprio relatório, tal como acontece com a restante informação)?

Perante a evidente falta de toda esta informação, essencial para a boa decisão da causa, bem como de um mínimo de fundamentação, há que reconhecer razão aos recorrentes quando, na sua reclamação, afirmam que não resulta do relatório pericial qualquer elemento útil e que, consequentemente, o mesmo é inidóneo para os fins tidos em vista com a ordenada perícia. O relatório pericial é, em suma, deficiente, obscuro e, de todo, não fundamentado. Logo, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 485.º, a reclamação dos autores (apenas dessa tratamos) não podia deixar de ter sido deferida.

Deficiências do relatório pericial como as apontadas não são supríveis através da prestação de esclarecimentos, pelo perito, na audiência final. As partes têm o direito de, no momento processual próprio, isto é, aquando da notificação da apresentação do relatório pericial, ficarem a conhecer, com rigor, o resultado da perícia. Com efeito, desse conhecimento poderá depender, desde logo, a decisão das partes de requererem a realização de uma segunda perícia, para o que têm de alegar fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório apresentado (artigo 487.º, n.º 1). Do atempado conhecimento rigoroso do resultado da perícia também poderá depender a decisão de os advogados se fazerem assistir, durante a produção da prova e a discussão da causa, de assistentes técnicos, ou seja, de pessoas dotadas de competência especial para se ocuparem das questões de natureza técnica para as quais eles próprios não tenham a necessária preparação (artigo 50.º). Note-se que a parte que pretenda fazê-lo deverá, até 10 dias antes da audiência final, indicar, além da pessoa que escolheu, “as questões para que reputa conveniente a sua assistência” (n.º 2 deste último artigo), o que pressupõe que, nesse momento processual, todas as questões de natureza técnica que o objecto do processo envolva estejam devidamente analisadas, respondidas e fundamentadas no relatório pericial, sem prejuízo da sua ulterior discussão e esclarecimento na audiência final. De um modo geral, está em causa o direito de as partes delinearem as suas estratégias probatórias em devido tempo e na posse de todos os dados que, por lei, devem ter. É nesta ordem de ideias que o artigo 486.º fala em meros “esclarecimentos” dos peritos na audiência final. Esclarecer pontos concretos de um relatório pericial devidamente elaborado não é, obviamente, a mesma coisa que prestar declarações na sequência da apresentação de um relatório vazio de informação, ou incompleto. Logo, da permissão legal dos primeiros não pode resultar uma porta aberta para a violação do disposto nos artigos 484.º, n.º 1, e 485.º, n.ºs 2 a 4.

Não acompanhamos, pois, neste ponto, JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO quando, embora afirmando, a propósito do artigo 588.º do anterior CPC, a que corresponde o actual artigo 486.º, que “Os esclarecimentos que aí (na audiência final) podem ser pedidos aos peritos transcendem a mera reclamação contra o relatório apresentado”, que “Não se trata agora de corrigir vícios do relatório” e que se trata, “fundamentalmente, de precisar as conclusões do relatório, justificá-las e compreender as eventuais divergências entre os peritos, de modo a proporcionar o máximo de elementos para a formação da convicção judicial”, acabam por admitir, parece-nos que contraditoriamente, que “esses vícios, se subsistirem (por as partes não terem reclamado, o juiz não ter deferido a reclamação ou os peritos não terem esclarecido ou completado devidamente o relatório), também possam ser eliminados no interrogatório dos peritos em audiência”[3]. Esta última tomada de posição, na medida em que abre a porta à possibilidade de, através do expediente da prestação de esclarecimentos pelos peritos na audiência final, suprir vícios do relatório pericial na sequência do injusto indeferimento de reclamação das partes contra o mesmo, é inaceitável, por prejudicar o exercício dos direitos processuais destas acima referidos e, no fundo, redundar no reconhecimento, ao juiz, em sede de decisão de reclamações contra o relatório pericial, de um poder discricionário (deferir a reclamação, ordenando imediatamente que o perito complete, esclareça ou fundamente, por escrito, o relatório apresentado, ou, em vez disso e apenas segundo o seu arbítrio, indeferir a reclamação apesar do bem-fundado desta, deixando a correcção dos vícios do relatório para a audiência final, em sede de esclarecimentos orais) que a lei não lhe atribui (cfr., a este propósito, o disposto no artigo 152.º, n.º 4, 2.ª parte).

Seja como for, no caso dos autos, as declarações que, a título de esclarecimentos, o perito e o topógrafo que o auxiliou na realização da perícia prestaram na audiência final não responderam, de forma alguma, a todas as questões acima formuladas. O perito declarou que achou a linha divisória entre os prédios tendo como ponto de referência as coordenadas fornecidas pelo cadastro e que há um único marco no terreno (não disse exactamente em que ponto), alinhado com as referidas coordenadas. Quanto ao aspecto fundamental da margem de erro do meio técnico através do qual efectuou a perícia, o perito admitiu o seu desconhecimento, remetendo a questão para o topógrafo. Este último, além de corroborar as declarações do perito, confirmou a existência das margens de erro referidas na informação prestada em 29.10.2015 pela Direcção-Geral do Território. No que toca às restantes questões relevantes, em especial à questão fundamental de saber se é possível afirmar, com rigor, se o muro foi construído num ou noutro prédio, quando está em disputa uma faixa com 80 cm de largura, inferior à margem de erro máxima e à própria margem de erro média das coordenadas fornecidas pela Direcção-Geral do Território, nada foi dito. Ou seja, a um relatório pericial extremamente deficiente, seguiram-se, não esclarecimentos, mas verdadeiras declarações do perito e do topógrafo que o auxiliou sobre matéria que não consta do referido relatório, e, mesmo essas declarações, não esclareceram os aspectos essenciais da perícia, tendo em conta o objecto desta. Logo, ainda que se entendesse que as deficiências do relatório pericial podem, em geral, ser supridas através da prestação de esclarecimentos, pelo perito, na audiência final, tal suprimento não se verificou no caso dos autos.

Por último, é evidente, através da leitura da fundamentação de facto da sentença recorrida, acima parcialmente transcrito, que o relatório pericial em questão, apesar das suas patentes deficiências, acabou por constituir um dos meios de prova fundamentais para a formação da convicção do tribunal recorrido sobre a matéria de facto controvertida.

Em conclusão, o despacho que indeferiu a reclamação dos recorrentes contra o relatório pericial terá de ser revogado nessa parte e substituído por outro que, deferindo o requerido, ordene, ao perito, que complete o relatório nos termos por aqueles requeridos.

Como consequência lógica da revogação do referido despacho, fica anulado o processado subsequente ao mesmo, incluindo, naturalmente, a audiência final e a sentença. Daí que fique prejudicado o conhecimento do recurso na parte em que tem esta última por objecto.

Decisão

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, na parte que tem por objecto o despacho que indeferiu a reclamação dos recorrentes contra o relatório pericial, revogando o mesmo despacho nessa parte e ordenando a sua substituição por outro que, deferindo o requerido pelos recorrentes, ordene, ao perito, que complete aquele relatório nos termos por estes requeridos. Em consequência, anula-se o processado subsequente ao mesmo, ficando prejudicado o conhecimento do recurso na parte que tem por objecto a sentença.

Custas a cargo da parte com elas onerada a final.

Notifique.

*

Évora, 12.10.2017

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.ª adjunta

2.º adjunto



[1] Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada, p. 576.

[2] Idem, p. 578.

[3] Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, p. 519.

Voto de vencido exarado em acórdão da Relação de Évora de 30.01.2025

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