terça-feira, 1 de maio de 2018

Acórdão da Relação de Évora de 12.04.2018

Processo n.º 1749/07.2TBEVR.E1

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Sumário:

1 – Resulta dos artigos 266.º, n.º 6, e 286.º, n.º 2, do CPC que, em regra, a reconvenção é autónoma relativamente à acção.

2 – O pedido reconvencional é dependente do pedido formulado pelo autor quando só deva ser conhecido na hipótese de este último ser julgado procedente.

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QPS, Lda. propôs a presente acção declarativa, com processo comum ordinário, contra AS – Construções, Lda., formulando os seguintes pedidos:

- Declarar-se que a ré incumpriu, de forma reiterada e grave, o contrato de empreitada autuado sob doc. n.º 1 da petição inicial;

- Declarar-se que a autora procedeu à correcta aplicação das multas previstas no n.º 3 da cláusula 3.ª do contrato de empreitada;

- Declarar-se que a autora resolveu o contrato de empreitada com fundamento na previsão constante da sua cláusula 11.ª e com justa causa, o que constitui a ré na obrigação de a indemnizar;

- Ser a ré condenada a pagar à autora (ainda que no acerto final de contas) o montante de € 66.908,20, correspondente às multas contratuais aplicadas;

- Condenar-se a ré a pagar à autora o montante correspondente ao custo da reparação das deficiências apresentadas pela obra e das que, embora não aparentes, venham a ser detectadas no decurso do processo, custo esse que se liquida, provisoriamente, em € 82.241,24, acrescidos de IVA;

- Ser a ré condenada a entregar à autora a medição discriminada justificada de todos os trabalhos por ela facturados e pagos;

- Ser a ré condenada a entregar à autora a justificação discriminada e com decomposição dos “trabalhos a mais”, com medições e indicação dos valores realizados;

- Ser a ré condenada a pagar à autora o montante correspondente aos trabalhos que não realizou cabalmente, embora os tenha facturado;

- Ser a ré condenada a pagar à autora o montante correspondente aos materiais que lhe debitou, mas que já se encontravam em obra;

- Ser a ré condenada a pagar à autora uma indemnização correspondente ao montante dos subsídios a fundo perdido que esta deixará de receber do IFT, por não ter a obra tempestivamente concluída, por forma a permitir o equipamento e a abertura do estabelecimento hoteleiro, valor esse a liquidar ulteriormente, maxime em execução de sentença;

- Ser a ré condenada a indemnizar a autora pelo montante correspondente aos encargos que esta tiver de suportar em razão de não poder receber os serviços de empreiteiros em regime de ajuste directo, outros serviços, bens e equipamentos que dependem da conclusão da empreitada geral;

- Ser a ré condenada a pagar à autora uma indemnização no montante correspondente ao por esta despendido com a RD com a fiscalização da obra em momento ulterior ao da data contratualmente prevista para a sua conclusão, no valor de € 2.750;

- Ser a ré condenada a indemnizar a autora pelo montante por esta despendido com os honorários do arquitecto JB após o termo do prazo contratualmente ajustado para a conclusão da obra, no total de € 620;

- Ser a ré condenada a indemnizar a autora pelo montante correspondente àquele por ela despendido no pagamento de serviços de entidade contratada para acompanhar a recepção provisória da obra sucessivamente adiada e no acto da posse da obra – a MACE – no total de € 3.852, acrescidos de IVA;

- Ser a ré condenada a pagar à autora, a título de lucros cessantes, o montante de € 89.313.

A ré contestou, pugnando pela improcedência da acção e deduzindo reconvenção nos seguintes termos:

- Ser considerado provado o pedido reconvencional da ré e, em consequência, ser a autora condenada a pagar à ré a quantia de € 118.648,87, acrescida dos juros comerciais vencidos e vincendos até integral pagamento, a apurar em liquidação de sentença;

- Ser considerado provado o pedido reconvencional da ré e, em consequência, ser a autora condenada a devolver à ré a quantia de € 36.738,26€, mais € 18,15, ou seja, € 36.756,41, acrescida dos juros compensatórios que se mostrarem devidos em liquidação de sentença;

- Ser a autora condenada no pagamento dos custos com a maior onerosidade sofrida pela ré, no montante de € 13.950;

- Ser a autora condenada no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais não inferior a € 100.000.

A autora replicou, concluindo nos seguintes termos:

- Devem ser julgadas improcedentes, por não provadas, as excepções de não cumprimento e de exercício abusivo do direito;

- A reconvenção deve ser julgada parcialmente procedente, na medida do montante que corresponder aos trabalhos efectivamente executados pela ré-reconvinte, a apurar após a produção de prova e depois de deduzidos os trabalhos pagos pela autora-reconvinda e que não foram levados a efeito pela demandada;

- Deve ser abatido ao montante reclamado pela autora-reconvinda da ré-reconvinte aquele por ela recebido mediante a execução da garantia bancária (€ 36.738,26);

- Deve ser julgado improcedente, por não provado, o pedido de condenação da autora-reconvinda no pagamento à ré-reconvinte de € 13.950 de alegados custos com o protelamento dos trabalhos;

- Deve igualmente ser julgado improcedente, também por não provado, o pedido de condenação da autora-reconvinda no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais alegadamente sofridos pela ré-reconvinte;

- A ré-reconvinte deverá ser condenada como litigante de má-fé na adequada multa e em indemnização a favor da autora-reconvinda, a fixar de acordo com o arbítrio do tribunal.

Na sequência da junção aos autos de certidão da sentença que declarou a insolvência da ré, foi proferida decisão com o seguinte teor, resultante da rectificação de fls. 2657-2658:

“Compulsados os autos verifico que, por sentença, datada de 18-11-2016, transitada em julgado em 09-12-2016, a ré AS – Construções, Lda., foi declarada insolvente no âmbito do processo 1845/15.2T8EVR (fls. 2595 a 2601).

Na presente acção, a autora peticiona um crédito que alega ter sobre a ré, fundado no incumprimento de contrato de empreitada.

O crédito em causa poderia e deveria ter sido reclamado no processo de insolvência “supra” identificado, pois só nesse processo se estaria em condições de tratar de forma igual todos os credores, uma vez que o alcance teleológico do processo de insolvência é “exactamente o da salvaguarda da igualdade de tratamento de todos os credores perante a insuficiência da massa insolvente e a repartição do seu produto”.

Assim se decidiu no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2014, proferido pelo STJ e publicado no D.R. 1ª Série em 25 de Fevereiro de 2014.

Na senda do referido Acórdão, considera-se que, transitada que está a sentença que declarou insolvente o réu, esta acção, porque tem como fim a obtenção do reconhecimento do crédito peticionado, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil.

A instância reconvencional, porque dependente e conexionada com os pedidos formulados pela autora, não tem qualquer autonomia, pelo que, também deve ser declarada extinta (aplicando por analogia com o disposto no artº 286, nº 2 do CPC).

Pelo exposto e ainda, na senda do referido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, decreto a extinção da instância principal e reconvencional por inutilidade superveniente da lide, cfr. artº 277, al. e) do CPC.

Notifique e registe.”

A ré/reconvinte recorreu dessa decisão, formulando as seguintes conclusões:

1. A sentença sob recurso julgou extinta a presente instância por inutilidade superveniente da lide, com base na declaração da insolvência da Recorrente (em 18/11/2016), transitada em 9/12/2016.

2. O Tribunal a quo invocou para o efeito o disposto no artigo 287º, al. e) do CPC.

3. Contudo o artigo 287º do CPC tem por epígrafe a “desistência, confissão ou transação das pessoas coletivas, sociedades, incapazes ou ausentes”.

4. A declaração da insolvência da Recorrente não é uma situação de desistência.

5. O Tribunal a quo declarou a extinção da instância citando uma norma errada (identificada num Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido com base num Código de Processo Civil actualmente revogado).

6. O Tribunal a quo terá pretendido aludir ao disposto na al. e) do artigo 277º do CPC.

7. Contudo, a uniformização de jurisprudência citada na sentença sob recurso consagra o seguinte entendimento: transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide…

8. Mas nos presentes autos não é só a Recorrida que se arroga detentora de um crédito, mas também a Recorrente.

9. É certo que a Recorrida pode (e deve) reclamar o seu crédito (perante a Recorrente) nos autos de insolvência.

10. Mas a Recorrente (enquanto Ré) apresentou um pedido reconvencional, contra a Recorrida (Autora) e esse contra pedido não é reconhecível no processo de insolvência, mas sim – apenas e só – nos presentes autos.

11. Inexiste assim qualquer inutilidade superveniente da lide.

12. Na sentença proferida o Tribunal a quo não se pronunciou sobre essa questão que devia, obrigatoriamente, apreciar (existência de um pedido reconvencional, impassível de ser apreciado no processo de insolvência da Recorrente).

13. Sendo a sentença sob recurso (nessa parte e medida) nula. Cfr. artigo 615º, n.º 1, al. d) do CPC.

14. Importa apreciar e ver decidido o pedido reconvencional apresentado nos autos pela Recorrente, desde logo porque tal é uma das premissas do plano de insolvência apresentado.

Termos em que se deverá julgar procedente o presente recurso, reconhecendo-se a nulidade da decisão proferida pelo Tribunal a quo, revogando-se a extinção da lide e ordenando-se o prosseguimento dos autos, desde logo por se estar perante um processo com pedido reconvencional, sendo o mesmo uma das premissas do plano de insolvência apresentado, assim se fazendo Justiça.

A autora/reconvinda não contra-alegou.                                                     

O recurso foi admitido.

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É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o objecto deste último e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

Posteriormente à interposição do recurso, a decisão recorrida foi rectificada. A referência ao artigo 287.º, al. e), do CPC foi substituída pela referência ao artigo 277.º, al. e), do mesmo código, pelo que a questão suscitada nas conclusões 1 a 5 está ultrapassada. Após a mesma rectificação, a decisão recorrida passou a fazer referência ao pedido reconvencional, pelo que também a questão suscitada nas conclusões 12 e 13 se encontra ultrapassada.

Por outro lado, a decisão recorrida não foi impugnada na parte em que julgou extinta a acção por inutilidade superveniente da lide.

Assim, a única questão a resolver consiste em saber se a inutilidade superveniente da acção, decorrente da declaração de insolvência da ré/reconvinte, determina a da reconvenção.

O tribunal recorrido entendeu que “A instância reconvencional, porque dependente e conexionada com os pedidos formulados pela autora, não tem qualquer autonomia, pelo que, também deve ser declarada extinta (aplicando por analogia com o disposto no artº 286, nº 2 do CPC).” Com esta fundamentação, o tribunal recorrido julgou extinta a instância reconvencional por inutilidade superveniente da lide.

Verifica-se, nesta parca fundamentação, alguma confusão de conceitos. A reconvenção, para ser admissível, tem de estar substantivamente conexionada com a acção, nos termos estabelecidos pelo artigo 266.º, n.º 2, do CPC. Não obstante, é, em regra, autónoma relativamente à acção, como decorre dos artigos 266.º, n.º 6, e 286.º, n.º 2, do CPC[1]. De acordo com o n.º 6 do artigo 266.º, a improcedência da acção e a absolvição do réu da instância não obstam à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido, salvo quando este seja dependente do formulado pelo autor. O n.º 2 do artigo 286.º estabelece, por seu turno, que a desistência do pedido é livre, mas não prejudica a reconvenção, a não ser que o pedido reconvencional seja dependente do formulado pelo autor.

Portanto, no caso dos autos, a conexão da reconvenção com a acção é ponto assente, mas irrelevante para a resolução da questão que nos ocupa. Importa, sim, saber se a reconvenção se pode considerar dependente da acção, para o efeito previsto no n.º 6 do artigo 266.º do CPC.

O tribunal recorrido considerou que essa dependência se verifica, embora sem explicar porquê. Limitou-se a afirmar que a instância reconvencional, porque dependente, não tem autonomia, o que é tautológico.

Um pedido reconvencional é dependente de um pedido formulado pelo autor se se destinar a ser conhecido apenas na hipótese de este último ser julgado procedente[2]. Tal dependência verifica-se, por exemplo, quando o autor reivindica uma coisa e o réu, em reconvenção, pede a condenação daquele, na hipótese de procedência da acção, a pagar-lhe o valor de benfeitorias que realizou na mesma coisa. É evidente que, se improceder a pretensão reivindicatória ou se o réu/reconvinte for absolvido da instância, o conhecimento do pedido reconvencional não terá lugar. Se a instância principal for julgada extinta por inutilidade superveniente da lide, o mesmo terá de acontecer à instância reconvencional.

No caso dos autos, tal dependência da reconvenção relativamente à acção não se verifica. Mais concretamente, como resulta da leitura dos artigos 222.º a 242.º e da parte conclusiva da contestação, nenhum dos pedidos reconvencionais se encontra dependente da procedência de qualquer dos pedidos do autor, sendo certo que bastaria que um dos primeiros não fosse dependente para que a instância reconvencional tivesse de prosseguir. Cada uma das partes imputou à outra o incumprimento do contrato de empreitada entre elas celebrado e, com esse fundamento, formulou pretensões autónomas. Consequentemente, nos termos do n.º 6 do artigo 266.º do CPC, a inutilidade superveniente da acção, resultante da declaração de insolvência da recorrente, não obsta à apreciação da reconvenção. Solução diversa não faria, aliás, qualquer sentido, pois apenas geraria, sem justificação, a necessidade de a ré propor uma nova acção, contra a autora, com conteúdo idêntico ao da reconvenção deduzida nestes autos. O tribunal recorrido decidiu, pois, erradamente ao julgar extinta a instância reconvencional como consequência da inutilidade superveniente da acção, pelo que o recurso deverá ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida na parte impugnada.

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Decisão:

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, revogando a decisão recorrida na parte em que julgou a instância reconvencional extinta por inutilidade superveniente da lide e ordenando o prosseguimento dos autos para conhecimento da reconvenção.

Custas a cargo da recorrida.

Notifique.

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Évora, 12 de Abril de 2018

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.ª adjunta

2.º adjunto



[1] Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA e RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, Coimbra Editora, 1999, p. 491, anotação 5 ao artigo 274.º do anterior CPC.

[2] Cfr. JORGE AUGUSTO PAIS DE AMARAL, Direito Processual Civil, 13.ª edição, p. 252.

Voto de vencido exarado em acórdão da Relação de Évora de 30.01.2025

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