sábado, 18 de novembro de 2017

Acórdão da Relação de Évora de 09.11.2017

Processo n.º 1498/16.0T8STR.E1                                                   

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Sumário:

1 – Em acção com processo especial de prestação de contas, a prolação de saneador-sentença, julgando a acção improcedente, na sequência de despacho que se absteve de resolver a questão da existência da obrigação de prestar contas nos termos da 1.ª parte do n.º 3 do artigo 942.º do CPC, não viola o princípio da extinção do poder jurisdicional, consagrado no artigo 613.º, n.º 1, ex vi n.º 3, do mesmo código.

2 – A nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC apenas ocorre se faltar, em absoluto, ou a fundamentação de facto, ou a fundamentação de direito, ou ambas em simultâneo.

3 – A prolação de saneador-sentença, nos termos do artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC, tem carácter excepcional, só devendo ter lugar se, logo nessa fase, o processo contiver todos os elementos que possibilitem a tomada de decisão de acordo com as várias soluções jurídicas plausíveis, em especial se estas estiverem a ser esgrimidas pelas partes no processo.

4 – Se, no momento de proferir despacho saneador, o processo apenas contiver elementos que sustentem uma das diversas soluções possíveis do litígio, o juiz, por muito convicto que esteja do acerto dessa solução, deverá abster-se de proferir saneador-sentença e, em vez disso, ordenar o prosseguimento da acção.

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Relatório

AAA, BBB e CCC propuseram a presente acção especial de prestação de contas contra DDD, pedindo a condenação deste último a prestar-lhes contas no que se reporta à administração dos saldos das contas bancárias tituladas por EEE, FFF e GGG, no período entre Setembro de 2011 e a data do respectivo falecimento, bem como no pagamento do saldo correspondente (na devida proporção), acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos.

O réu contestou, sustentando que não está obrigado a prestar contas e que, consequentemente, a acção deve improceder.

Foi proferido despacho, considerando que a questão subjacente à prestação de contas não podia ser sumariamente decidida, ao abrigo do disposto no artigo 942.º, n.º 3, do CPC, e designando data para a realização de audiência prévia.

Na audiência prévia, foi proferido despacho que, considerando ser possível, com os elementos carreados para os autos, proferir decisão de mérito, ordenou a notificação das partes para, querendo, se pronunciarem, no prazo de 10 dias.

Apenas os autores se pronunciaram, concluindo no sentido de dever ser reconhecida legitimidade processual a ambas as partes e ordenado o prosseguimento dos autos até final.

Em seguida, foi proferido saneador-sentença, julgando a acção improcedente e absolvendo o réu do pedido.

Os autores recorreram do saneador-sentença. As suas alegações contêm as seguintes conclusões:

I. Os recorrentes discordam da decisão proferida pela Meritíssima Juiz a quo, por a mesma ser injusta e infundada.

II. Os recorrentes discordam com toda a matéria dada como não provada: por um lado, decidiu o tribunal dar como provado todos os factos corroborados por documentos, e não impugnados, por outro lado, decidiu dar como não provados os factos alegadamente carecidos de prova.

III. Deveria a Meritíssima Juiz a quo ter ordenado a realização da audiência de discussão e julgamento, pois lograriam os recorrentes provar aquela matéria factual dada como não provada;

IV. Entendem, ainda, os recorrentes que deveria o tribunal ter ordenado a junção da respectiva documentação ou, em alternativa, proceder à sua obtenção oficiosamente.

V. A convicção negativa do tribunal prendeu-se apenas com a falta de documentação, uma vez que o réu não impugnou tal matéria, motivo pelo qual deveria o tribunal ter providenciado pela obtenção de tais documentos, pois que recai sobre o tribunal um verdadeiro poder-dever na recolha da prova com vista à justa composição do litígio.

VI. A meritíssima Juiz a quo violou, com a sua conduta, dois princípios fulcrais do ordenamento jurídico português: o princípio do inquisitório e o princípio do contraditório, sendo que, a não observância destes princípios influenciam a decisão da causa, o que gera uma nulidade processual.

VII. Estamos perante uma inconstitucionalidade por violação do direito de defesa dos recorrentes, previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, acarretando tal violação a anulação da sentença em crise, devendo ser ordenada a realização da audiência de discussão e julgamento.

VIII. A sentença é ainda nula por falta de fundamentação: a meritíssima Juiz a quo proferiu uma decisão de mérito sem se pronunciar sobre o teor do requerimento apresentado pelos recorrentes.

IX. A meritíssima Juiz a quo causou um desvio ao formalismo processual prescrito na lei, sendo que não deve o juiz deixar de se pronunciar acerca de uma questão que a parte entenda como indispensável para a justa composição do litígio.

X. A falta de fundamentação da sentença constitui uma violação de um direito constitucionalmente consagrado, previsto no artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa.

XI. Deve a sentença ser declarada nula!

XII. A decisão recorrida violou o princípio da extinção do poder jurisdicional: pretendeu a meritíssima Juiz a quo alterar uma decisão anteriormente proferida, dando o dito por não dito.

XIII. A meritíssima Juiz a quo proferiu um despacho em 28.09.2016 no qual decidira que o processo não podia ser sumariamente decidido, sendo que a 9.11.2016, sem que nada fosse junto ao processo, pretendeu proferir decisão de mérito.

XIV. A sentença proferida violou o princípio da extinção do poder jurisdicional consagrado no artigo 613.º, n.º 1, ex vi o n.º 3, do Código de Processo Civil, bem como também colocou em causa princípios e direitos constitucionais, pois importa relembrar que o poder jurisdicional se encontra limitado pelos artigos 2.º, 20.º e 21.º da Constituição da República Portuguesa.

XV. Não tendo ocorrido nenhuma circunstância superveniente que motivasse uma alteração da decisão tomada no primeiro despacho, deve a sentença em crise ser nula.

XVI. Desde que o pai dos recorrentes faleceu, estes entregaram as cadernetas das contas bancárias tituladas pelos seus avós e das de sua tia-avó GGG ao recorrido, que as passou a controlar e a movimentar sozinho, sem prestar contas aos recorrentes, o que aliás já fazia desde o agravar da doença do seu irmão.

XVII. Nunca o recorrido prestou contas aos recorrentes nem nunca lhes entregou qualquer documento comprovativo do destino do saldo das contas bancárias.

XVIII. A obrigação do recorrido deriva do disposto no artigo 941.º e seguintes do Código do Processo Civil, dado administrar bens alheios, advindo o direito dos recorrentes da morte do seu pai.

XIX. O processo de inventário não é o meio próprio para os recorrentes verem o seu direito reconhecido, pois apenas se consegue apurar as verbas existentes à data do óbito do pai dos autores e uma acção declarativa comum, não tem o mesmo alcance de uma acção de prestação de contas, como facilmente se depreende.

XX. Os factos em discussão nos presentes autos constituem, uma verdadeira acção de prestação de contas, configurando a situação dos autos o regime da gestão de negócios conforme prevista nos artigos 464.º e seguintes do Código Civil.

XXI. Motivo pelo qual deveria a meritíssima Juiz a quo ter submetido toda esta matéria a audiência de discussão e julgamento.

Nestes termos e nos mais de direito que, Vossas Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores, suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença proferida em primeira instância, substituindo-a por outra que ordene a prossecução dos autos até final, ordenando-se a realização da audiência de discussão e julgamento, fazendo-se assim Justiça.

O recurso foi admitido.

Não houve lugar a resposta.                                                

Objecto do recurso

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

As questões a resolver são as seguintes:

1 – Se, tendo-se anteriormente abstido de proferir decisão ao abrigo do disposto no artigo 942.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC, o tribunal recorrido violou o princípio da extinção do poder jurisdicional ao proferir saneador-sentença julgando a acção improcedente;

2 – Se a sentença é nula por falta de fundamentação;

3 – Se estão preenchidos os pressupostos legais para a prolação de saneador-sentença.

Factualidade apurada

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

A) Em 17.09.2013, 1.04.2014 e 31.08.2014 faleceram, respectivamente, os referidos EEE, FFF e GGG, deixando como únicos e universais herdeiros o réu e, em representação do pré-falecido filho e sobrinho daqueles, os autores;

B) A conta bancaria (…) é uma conta conjunta e solidária, onde são únicos titulares FFF e o Réu que foi aberta em 08.11.2013 e encerrada em 06.11.2014;

C) As contas bancárias nº (…) e nº (…), são ambas da única e exclusiva titularidade de GGG;

D) A conta nº (…) foi cancelada em 31 de Janeiro de 2012;

E) Nos autos de Inventário por óbito de EEE, FFF e GGG, o Réu exerce as funções de cabeça de casal, nomeado para o cargo em 18 de Maio de 2015.

A sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:

- Os autores são irmãos entre si, filhos de HHH, falecido no dia 7.03.2012 na sequência de doença prolongada, e sobrinhos do réu, irmão do falecido pai daqueles;

- Até adoecer, o pai dos autores ocupava-se, juntamente com o seu irmão, ora réu, com tudo o que dizia respeito aos seus pais EEE e FFF (avós dos autores e, naturalmente, pais do réu), e à sua tia GGG (tia-avó dos autores e tia do réu), não só ao nível da sua saúde, alimentação e bem estar, como no que se reporta à sua situação económica e financeira;

- Até cerca de seis meses antes deste falecer, o património dos avós e da tia-avó dos autores foi sempre gerido pelos filhos/sobrinhos daqueles, face à sua avançada idade e evidente incapacidade para o fazerem sem a ajuda dos filhos/sobrinhos, que ainda os ajudavam financeiramente;

- Desde que o pai dos autores faleceu, os autores entregaram as cadernetas das contas bancárias tituladas pelos seus avós e das de sua tia-avó GGG ao réu, que as passou a controlar e a movimentar sozinho, sem prestar contas aos autores, o que aliás já fazia desde o agravar da doença do seu irmão.

- Em 23.04.2015, o réu requereu inventário para partilha de bens por herança dos referidos EEE, FFF e GGG, processo que corre os seus termos no Cartório Notarial Dra. (…), em (…), sob o n.º (…);

- Desde que o seu pai faleceu, não mais os autores tiveram acesso às referidas contas bancárias nem lhes foram comunicados os movimentos nelas efectuados, embora fosse através das mesmas que as pensões de reforma daqueles eram e continuaram a ser pagas e nelas era depositada por ambas as partes uma quantia mensal para, sob administração do pai dos autores e do réu e, após o falecimento daquele, apenas pelo réu, se prover o sustento dos inventariados.

Fundamentação

1

Os recorrentes sustentam que o tribunal recorrido, por se ter anteriormente abstido de proferir decisão nos termos do disposto no artigo 942.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC, violou o princípio da extinção do poder jurisdicional, consagrado no artigo 613.º, n.º 1, ex vi n.º 3, do mesmo código, ao proferir saneador-sentença, julgando a acção improcedente, sem que algo tivesse sido entretanto junto ao processo. Entendem os recorrentes que, com essa actuação processual, o tribunal recorrido pretendeu alterar uma decisão anteriormente proferida, dando o dito por não dito. Afirmam, inclusivamente, que, por essa razão, a sentença é nula.

O artigo 613.º do CPC dispõe que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (n.º 1), sendo, porém, lícito ao juiz rectificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes (n.º 2). O n.º 3 estabelece que o disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, se aplica, com as necessárias adaptações, aos despachos.

Os recorrentes têm razão quando afirmam que, entre as duas decisões em causa, não foi junto ao processo qualquer elemento novo que permita compreender como se passou de um despacho que se absteve de resolver a questão da existência da obrigação de prestar contas nos termos da 1.ª parte do n.º 3 do artigo 942.º do CPC para um saneador-sentença que julgou a acção improcedente. Não obstante, em rigor, com a actuação processual sob análise, o tribunal recorrido não violou o princípio da extinção do poder jurisdicional.

Tê-lo-ia feito se, após proferir, no momento processual previsto no artigo 942.º, n.º 3, do CPC, despacho em que, considerando “que a questão subjacente à prestação de contas não pode ser sumariamente decidida”, ordenou que se seguissem os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da causa, concretamente designando data para a realização de audiência prévia, tivesse proferido novo despacho ao abrigo do disposto nesse mesmo preceito legal. Então sim, o tribunal recorrido estaria a dar o dito por não dito, estaria a proferir duas decisões sucessivas em sentido diferente, violando, com a segunda, o disposto no artigo 613.º do CPC.

Porém, não foi isso que se passou no caso dos autos. Entre a prolação do despacho previsto no artigo 942.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPC, e a da sentença recorrida, teve lugar a audiência preliminar e, nesta, foi proferido um despacho mediante o qual o tribunal recorrido deu a conhecer, às partes, que antevia como possível, com os elementos carreados para os autos, proferir decisão de mérito, dizendo porquê. O saneador-sentença foi proferido nesta sequência, ao abrigo do disposto no artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC. Processualmente, esta actuação do tribunal recorrido é admissível, já que as duas decisões foram proferidas em momentos processuais distintos e, cada uma delas, ao abrigo de uma específica disposição legal. Dito de outra forma, não há confusão possível entre a sentença recorrida e o despacho anteriormente proferido nos termos do artigo 942.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPC, mantendo-se, assim, a possibilidade de proferir saneador-sentença após este último despacho.

Conclui-se, assim, que o tribunal recorrido não violou o disposto no artigo 613.º do CPC.

2

Sustentam os recorrentes, por outro lado, que a sentença é nula por falta de fundamentação, já que não se pronunciou sobre o teor do requerimento por eles apresentado na sequência do despacho proferido na audiência preparatória.

O artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, estabelece que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade do (então) n.º 2 do art. 668.º”.[1] Para que esta nulidade se verifique, é necessário que “falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão (…) Não a constitui a mera deficiência de fundamentação.[2]

No caso dos autos, não se verifica uma falta absoluta de fundamentação, de facto ou de direito, da sentença recorrida. Embora deficiente, como se verá no ponto seguinte, tal fundamentação existe. Daí que a sentença não padeça da nulidade que lhe é apontada.

3

Vejamos, em seguida, se estão preenchidos os pressupostos legais para a prolação de saneador-sentença.

O artigo 595.º, n.º 1, do CPC, dispõe que o despacho saneador se destina a:

a) Conhecer das excepções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;

b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.

Doutrina e jurisprudência convergem quanto à natureza excepcional da possibilidade de conhecer do mérito da causa no despacho saneador e ao grau de exigência no tocante aos respectivos pressupostos legais.

Assim, apenas em situações excepcionais o estado do processo permitirá, sem necessidade de mais provas, conhecer do mérito da causa logo após o final da fase dos articulados, prescindindo-se das fases da instrução e do julgamento. “Normal é que o juiz (não estando ainda realizada a parte fundamental da instrução do processo) não possa conhecer da matéria no momento em que profere o despacho saneador. Excepcional é que, com o encerramento dos articulados, o julgador tenha à sua disposição todos os factos que interessam à resolução da questão de direito exclusivamente suscitada pelas partes, ou encontre nos autos todos os elementos de prova essenciais ao julgamento da matéria de facto envolvida no litígio”.[3]

Tal excepcionalidade decorre, nomeadamente, do grau de exigência subjacente ao citado artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC. A possibilidade de conhecimento do mérito da causa na fase de saneamento do processo, embora justificada pelo princípio da economia processual, não pode redundar em práticas processuais que prejudiquem a prova da factualidade relevante alegada pelas partes e o debate das propostas de solução jurídica do litígio por estas apresentadas, diversas daquela que o juiz, no momento do saneador, antevê como sendo a correcta. Mais concretamente, só pode conhecer-se do pedido no saneador se, logo nessa fase, o processo contiver todos os elementos que possibilitem a tomada de decisões de acordo com as várias soluções jurídicas plausíveis, em especial se estas estiverem a ser esgrimidas pelas partes no processo. Se, no momento do saneador, o processo apenas contiver elementos idóneos para sustentar uma das diversas soluções possíveis do litígio, o juiz, por muito convicto que esteja do acerto dessa solução, deverá abster-se de proferir saneador-sentença e, em vez disso, deverá fazer prosseguir o processo até à fase de julgamento. Esta orientação é pacífica na jurisprudência, podendo citar-se, a título de exemplo: “I - O artigo 510.º, n.º 1, alínea b), do C.P.C. — conhecimento antecipado do mérito no saneador — intenta evitar o arrastamento de acções que logo nesta fase contenham já todos os elementos necessários à sua boa decisão. II - Mas tal regime não se coaduna com tomadas de posição que, em nome da celeridade, não permitam às partes a discussão e prova, em sede de audiência, da factualidade que alegam e que poderá conduzir a soluções mais abrangentes, ainda não possíveis na fase do saneador ou, pelo menos, a um desfecho diverso daquele que ao juiz do processo pareça ser o correcto nessa altura. III - E daí que, na dúvida, deva o processo prosseguir os seus normais termos, com a organização da base instrutória e passagem à fase da instrução e produção das provas, apresentando-se excepcional o conhecimento antecipado de mérito e normal o seu prosseguimento para a fase de julgamento.”[4] “1 - Pode conhecer-se do mérito da causa em saneador-sentença sempre que o estado do processo o permita, sem necessidade de mais provas, mas apenas nessa situação. 2 - A produção de prova será desnecessária quando inexistam factos controvertidos relevantes para a solução da causa segundo as várias soluções plausíveis para a questão de direito. 3 - Existindo mais do que uma solução plausível para a questão de direito e factos controvertidos com relevância para alguma delas é prematuro o conhecimento do mérito da causa no saneador.”[5]O conhecimento, no despacho saneador, do pedido ou de uma excepção peremptória não deve ocorrer quando continuem em aberto várias soluções de direito plausíveis e, nessa perspectiva, haja factos ainda controvertidos.”[6] “Dispõe o art.º 510.º, n.º 1, al. b), aplicável ex vi art.º 787.º, n.º 1, do C. P. Civil, que o juiz conhece do mérito da causa no despacho saneador, sempre que o estado do processo permita a apreciação total ou parcial do/s pedido/s, sem necessidade de mais provas. Neste juízo de cognoscibilidade imediata o juiz não poderá deixar de ter sempre presentes, por um lado, a desnecessidade de mais provas e, por outro, sem prejuízo do princípio jura novit curia, consagrado no art.º 664.º do C. P. Civil, as várias soluções plausíveis da questão de direito, como determina o art.º 511.º, n.º 1, do C. P. Civil.”[7]

No caso dos autos, os recorrentes pretendem a condenação do recorrido a prestar-lhes contas da administração que este terá feito das contas bancárias de que eram titulares três familiares comuns durante o período que mediou entre Setembro de 2011 e as datas dos óbitos destes últimos, bem como a pagar-lhes o saldo correspondente, na devida proporção, com juros de mora vencidos e vincendos. Como fundamento, alegam, além da existência da referida administração, a sua qualidade de herdeiros do seu próprio pai e dos referidos três familiares e a ausência de prestação voluntária de contas por parte do recorrido. A tal pretensão, este último contrapõe que não exerceu a administração que os recorrentes alegam, pois os familiares em causa geriam o seu próprio dinheiro, pelo que não tem de prestar contas. O recorrido acrescentou que exerce a função de cabeça-de-casal em inventário pendente para partilha dos bens dos três referidos familiares, que aí estão relacionados os saldos das contas bancárias existentes à data dos óbitos dos inventariados e que apenas terá de prestar contas relativamente a esses dinheiros, o que vai ocorrendo no referido inventário.

Diante desta controvérsia, a sentença recorrida:

- Apenas julgou provado o óbito dos familiares em questão, a qualidade de herdeiros das partes (embora, de forma algo contraditória, tenha julgado não provados os vínculos familiares dos recorrentes entre si e com a pessoa que alegaram ser seu pai, bem como com o recorrido), a titularidade e a situação de quatro contas bancárias e que o recorrido é, desde 18.05.2015, cabeça-de-casal no inventário acima referido;

- Julgou não provados todos os restantes factos que constituem a causa de pedir;

- Nem sequer fundamentou por que julgou não provados estes últimos factos, com excepção daqueles que dependiam de prova documental;

- Na fundamentação de direito, sem qualquer base factual, deu como certo que “Não decorre da lei a existência de qualquer obrigação que impenda sobre o aqui réu na medida em que até ao falecimento de EEE, FFF e GGG se considera serem os próprios a gerir o seu património, salvo se os mesmos tivessem sido declarados interditos, o que não aconteceu”;

- Porém, em momento ulterior da fundamentação de direito, reconhece que o facto de os três familiares em questão terem administrado os seus próprios bens até morrerem não passa de uma alegação do recorrido;

- No final da fundamentação de direito, afirma que “Entre Setembro de 2011 e até ao falecimento de EEE, FFF e GGG, os Autores não detinham qualquer direito sobre os bens daqueles”, sem um mínimo de fundamentação, de facto ou de direito, nomeadamente refutando a tese dos recorrentes, cuja base factual remeteu, sem mais, para os factos não provados;

- Como decorrência desta última asserção, concluiu pela improcedência do pedido.

É evidente que não estavam verificadas as condições exigidas pelo artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC para a prolação de saneador-sentença. Do ponto de vista factual, o processo estava longe de permitir, sem necessidade de mais provas, o conhecimento do mérito da causa. Bem pelo contrário, a prova estava quase toda por fazer, como aliás resulta dos próprios termos da sentença, que julgou não provada a quase totalidade dos factos que constituem a causa de pedir. Embora não se tenha cuidado de fundamentar esse segmento decisório, a razão de se ter julgado tais factos como não provados é óbvia: não foi produzido qualquer meio de prova sobre eles, nem podia ter sido, por falta de oportunidade. O tribunal recorrido impediu a produção de prova sobre factos essenciais para a decisão da causa, inviabilizou a ponderação das várias soluções jurídicas plausíveis do litígio, ignorou a argumentação expendida pelos recorrentes na peça que ofereceram na sequência da notificação que lhes foi feita na audiência preparatória, à qual não dedicou uma linha da sentença, e, por fim, decidiu de forma não devidamente fundamentada, quer de facto, quer de direito.

Sendo assim, é evidente que a sentença recorrida terá de ser revogada, devendo a acção prosseguir os seus ulteriores termos.

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Decisão

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, revogando a sentença recorrida e ordenando que a acção prossiga os seus ulteriores termos.

Custas a cargo da parte vencida a final.

Notifique.

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Évora, 9 de Novembro de 2017

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.ª adjunta

2.ª adjunta



[1] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume V, p. 140.

[2] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, p. 669.

[3] ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada, p. 385.

[4] Acórdão da Relação do Porto de 10.03.2009 (processo n.º 0824061); Relator: CANELAS BRÁS.

[5] Acórdão da Relação de Évora de 14.11.2013 (processo n.º 25/12.3TBFTR-A.E1); Relator: JOSÉ LÚCIO.

[6] Acórdão da Relação de Lisboa de 14.11.2013 (processo n.º 866/11.9TBOER.L1-2); Relator: TIBÉRIO SILVA.

[7] Acórdão da Relação de Lisboa de 22.01.2013 (processo n.º 532/10.2T2MFR.L1-7); Relator: ORLANDO NASCIMENTO.

domingo, 12 de novembro de 2017

Acórdão da Relação de Évora de 26.10.2017

Processo n.º 523/17.2T8EVR-A.E1

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Sumário:

Na acção pauliana, o valor da causa é determinado segundo o critério estabelecido pelo artigo 301.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

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Banco, SA propôs, contra VC, CC e Imobiliária, S.A., acção declarativa comum em que pediu que se lhe reconheça o direito de executar o património constituído pelos imóveis alienados no património do obrigado à restituição (3.ª ré) na medida do que se mostrar necessário para ressarcimento do seu crédito, conforme disposto no n.º 1 do artigo 616.º do Código Civil. O autor indicou, como valor da causa, € 30.000,01.

Foi proferido despacho fixando o valor da causa em € 2.472.859,89, declarando o Juízo Local Cível de Évora – Comarca de Évora incompetente em razão do valor e determinando a remessa dos autos, após trânsito, para o Juízo Cível e Criminal da Instância Central da Comarca de Évora.

O autor recorreu deste despacho, formulando as seguintes conclusões:

I. Salvo o devido respeito por melhor opinião, crê-se que a decisão do tribunal a quo advém de uma incorrecta aplicação do artigo 297º, n.º 1 do CPC aos presentes autos, porquanto o critério para determinar o valor da presente causa é o que se encontra previsto no artigo 301º, n.º 1 do CPC.

II. O valor de uma causa corresponde à utilidade económica imediata que através da mesma se pretende alcançar (cfr. artigo 296, n.º 1, do CPC).

III. Numa acção de impugnação pauliana a pretensão deduzida pelo autor consiste em tornar ineficaz o negócio que constitui o objecto da impugnação.

IV. A satisfação do crédito do autor da acção de impugnação pauliana é posterior a ter alcançado a procedência dessa acção e daí que o valor da acção não deva ser o da utilidade económica do pedido formulado em função do crédito alegado mas sim aquele que resulta do valor atribuído aos direitos constantes do acto impugnado.

V. Pelo que o critério a aplicar para determinar o valor da presente causa é o critério previsto no artigo 301.º, n.º 1 do CPC que dispõe que «quando a acção tiver por objecto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um acto jurídico, atender-se-á ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes».

VI. No caso em apreço, o preço atribuído aos imóveis no negócio de compra e venda objecto da presente impugnação pauliana foi de € 550.000,00, conforme resulta da escritura pública junta como doc. 1 da petição inicial.

VII. Pelo que o valor da presente causa deve ser fixado em € 550.000,00, o que se requer.

O recurso foi admitido.

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É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

A questão a resolver consiste em saber qual é o critério a atender para a fixação do valor da causa numa acção pauliana.

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Como acima se referiu, o recorrente pediu que se lhe reconheça o direito de executar o património constituído pelos imóveis alienados no património do obrigado à restituição (3.ª ré) na medida do que se mostrar necessário para ressarcimento do seu crédito, conforme disposto no n.º 1 do artigo 616.º do Código Civil. Estamos, portanto, perante uma acção pauliana, regulada, nos seus aspectos substantivos, pelos artigos 610.º a 618.º do Código Civil.

Através da acção pauliana, o credor impugna um acto praticado pelo devedor que envolva uma diminuição da garantia patrimonial do seu crédito. O credor ataca judicialmente determinado acto jurídico, visando destruir, pelo menos, uma parte dos efeitos deste. A finalidade imediata da acção pauliana não é o reconhecimento da existência do crédito, ou a condenação do devedor no cumprimento deste, mas sim a conservação da garantia patrimonial do mesmo crédito nos termos estabelecidos pelo artigo 616.º do Código Civil, cujo n.º 1 dispõe que, julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.

Sendo assim, não é correcto aplicar, como o despacho recorrido aplicou, o critério estabelecido no artigo 297.º, n.º 1, do CPC, para fixar o valor da causa. A primeira parte desta norma estabelece que, se pela acção se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário. É evidente que, através da acção pauliana, não se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro. Nesta última hipótese, não estaríamos perante uma acção pauliana, mas sim perante uma acção de dívida. O despacho recorrido confunde indevidamente a cobrança de um crédito com a impugnação de um acto jurídico que põe em causa a garantia patrimonial deste. São coisas distintas.

Em vez disso, o critério de fixação do valor da causa deverá ser o estatuído no artigo 301.º, n.º 1, do CPC. De acordo com esta norma, quando a acção tiver por objecto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um acto jurídico, atende-se ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes. É o caso da acção pauliana, através da qual, como se referiu, se impugna um concreto acto jurídico com vista a destruir, pelo menos, uma parte dos efeitos deste.

A conclusão a que chegamos está em consonância com o princípio geral, consagrado no artigo 296.º, n.º 1, do CPC, de que o valor da causa deverá representar a utilidade económica imediata do pedido. Na acção pauliana, é o valor do acto jurídico impugnado que exprime esta utilidade económica imediata do pedido, não o do crédito cuja garantia patrimonial o autor pretende ver conservada.

No caso dos autos, resulta da petição inicial e do documento n.º 10 anexo à mesma que o preço estipulado para a venda impugnada pelo recorrente foi de € 550.000. Logo, nos termos do artigo 301.º, n.º 1, do CPC, é este o valor da causa.

Deverá, assim, o despacho recorrido ser revogado, fixando-se em € 550.000 o valor da causa.

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Decisão:

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, revogando o despacho recorrido e fixando o valor da causa em € 550.000.

Sem custas, atento o disposto no artigo 527.º do CPC.

Notifique.

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Évora, 26.10.2017

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.ª adjunta

2.ª adjunta

 

Voto de vencido exarado em acórdão da Relação de Évora de 30.01.2025

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