Processo n.º 1498/16.0T8STR.E1
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Sumário:
1 – Em acção com processo
especial de prestação de contas, a prolação de saneador-sentença, julgando a
acção improcedente, na sequência de despacho que se absteve de resolver a
questão da existência da obrigação de prestar contas nos termos da 1.ª parte do
n.º 3 do artigo 942.º do CPC, não viola o princípio da extinção do poder
jurisdicional, consagrado no artigo 613.º, n.º 1, ex vi n.º 3, do mesmo código.
2 – A nulidade da sentença
prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC apenas ocorre se faltar, em
absoluto, ou a fundamentação de facto, ou a fundamentação de direito, ou ambas
em simultâneo.
3 – A prolação de
saneador-sentença, nos termos do artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC, tem
carácter excepcional, só devendo ter lugar se, logo nessa fase, o processo
contiver todos os elementos que possibilitem a tomada de decisão de acordo com
as várias soluções jurídicas plausíveis, em especial se estas estiverem a ser
esgrimidas pelas partes no processo.
4 – Se, no momento de
proferir despacho saneador, o processo apenas contiver elementos que sustentem
uma das diversas soluções possíveis do litígio, o juiz, por muito convicto que
esteja do acerto dessa solução, deverá abster-se de proferir saneador-sentença
e, em vez disso, ordenar o prosseguimento da acção.
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Relatório
AAA, BBB e CCC propuseram a presente acção especial de prestação de
contas contra DDD, pedindo a condenação deste último a prestar-lhes contas no
que se reporta à administração dos saldos das contas bancárias tituladas por EEE,
FFF e GGG, no período entre Setembro de 2011 e a data do respectivo
falecimento, bem como no pagamento do saldo correspondente (na devida
proporção), acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos.
O réu contestou, sustentando que não
está obrigado a prestar contas e que, consequentemente, a acção deve
improceder.
Foi proferido despacho, considerando que
a questão subjacente à prestação de contas não podia ser sumariamente decidida,
ao abrigo do disposto no artigo 942.º, n.º 3, do CPC, e designando data para a
realização de audiência prévia.
Na audiência prévia, foi proferido
despacho que, considerando ser possível, com os elementos carreados para os
autos, proferir decisão de mérito, ordenou a notificação das partes para,
querendo, se pronunciarem, no prazo de 10 dias.
Apenas os autores se pronunciaram,
concluindo no sentido de dever ser reconhecida legitimidade processual a ambas
as partes e ordenado o prosseguimento dos autos até final.
Em seguida, foi proferido
saneador-sentença, julgando a acção improcedente e absolvendo o réu do pedido.
Os autores recorreram do
saneador-sentença. As suas alegações contêm as seguintes conclusões:
I. Os recorrentes discordam da decisão
proferida pela Meritíssima Juiz a quo,
por a mesma ser injusta e infundada.
II. Os recorrentes discordam com toda a
matéria dada como não provada: por um lado, decidiu o tribunal dar como provado
todos os factos corroborados por documentos, e não impugnados, por outro lado,
decidiu dar como não provados os factos alegadamente carecidos de prova.
III. Deveria a Meritíssima Juiz a quo ter ordenado a realização da audiência
de discussão e julgamento, pois lograriam os recorrentes provar aquela matéria
factual dada como não provada;
IV. Entendem, ainda, os recorrentes que
deveria o tribunal ter ordenado a junção da respectiva documentação ou, em
alternativa, proceder à sua obtenção oficiosamente.
V. A convicção negativa do tribunal
prendeu-se apenas com a falta de documentação, uma vez que o réu não impugnou
tal matéria, motivo pelo qual deveria o tribunal ter providenciado pela
obtenção de tais documentos, pois que recai sobre o tribunal um verdadeiro
poder-dever na recolha da prova com vista à justa composição do litígio.
VI. A meritíssima Juiz a quo violou, com a sua conduta, dois
princípios fulcrais do ordenamento jurídico português: o princípio do
inquisitório e o princípio do contraditório, sendo que, a não observância
destes princípios influenciam a decisão da causa, o que gera uma nulidade
processual.
VII. Estamos perante uma
inconstitucionalidade por violação do direito de defesa dos recorrentes,
previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, acarretando
tal violação a anulação da sentença em crise, devendo ser ordenada a realização
da audiência de discussão e julgamento.
VIII. A sentença é ainda nula por falta
de fundamentação: a meritíssima Juiz a
quo proferiu uma decisão de mérito sem se pronunciar sobre o teor do
requerimento apresentado pelos recorrentes.
IX. A meritíssima Juiz a quo causou um desvio ao formalismo
processual prescrito na lei, sendo que não deve o juiz deixar de se pronunciar
acerca de uma questão que a parte entenda como indispensável para a justa
composição do litígio.
X. A falta de fundamentação da sentença
constitui uma violação de um direito constitucionalmente consagrado, previsto
no artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa.
XI. Deve a sentença ser declarada nula!
XII. A decisão recorrida violou o
princípio da extinção do poder jurisdicional: pretendeu a meritíssima Juiz a quo alterar uma decisão anteriormente
proferida, dando o dito por não dito.
XIII. A meritíssima Juiz a quo proferiu
um despacho em 28.09.2016 no qual decidira que o processo não podia ser
sumariamente decidido, sendo que a 9.11.2016, sem que nada fosse junto ao
processo, pretendeu proferir decisão de mérito.
XIV. A sentença proferida violou o
princípio da extinção do poder jurisdicional consagrado no artigo 613.º, n.º 1,
ex vi o n.º 3, do Código de Processo Civil, bem como também colocou em causa
princípios e direitos constitucionais, pois importa relembrar que o poder
jurisdicional se encontra limitado pelos artigos 2.º, 20.º e 21.º da
Constituição da República Portuguesa.
XV. Não tendo ocorrido nenhuma
circunstância superveniente que motivasse uma alteração da decisão tomada no
primeiro despacho, deve a sentença em crise ser nula.
XVI. Desde que o pai dos recorrentes
faleceu, estes entregaram as cadernetas das contas bancárias tituladas pelos
seus avós e das de sua tia-avó GGG ao recorrido, que as passou a controlar e a
movimentar sozinho, sem prestar contas aos recorrentes, o que aliás já fazia
desde o agravar da doença do seu irmão.
XVII. Nunca o recorrido prestou contas
aos recorrentes nem nunca lhes entregou qualquer documento comprovativo do
destino do saldo das contas bancárias.
XVIII. A obrigação do recorrido deriva
do disposto no artigo 941.º e seguintes do Código do Processo Civil, dado
administrar bens alheios, advindo o direito dos recorrentes da morte do seu
pai.
XIX. O processo de inventário não é o
meio próprio para os recorrentes verem o seu direito reconhecido, pois apenas
se consegue apurar as verbas existentes à data do óbito do pai dos autores e
uma acção declarativa comum, não tem o mesmo alcance de uma acção de prestação
de contas, como facilmente se depreende.
XX. Os factos em discussão nos presentes
autos constituem, uma verdadeira acção de prestação de contas, configurando a
situação dos autos o regime da gestão de negócios conforme prevista nos artigos
464.º e seguintes do Código Civil.
XXI. Motivo pelo qual deveria a
meritíssima Juiz a quo ter submetido
toda esta matéria a audiência de discussão e julgamento.
Nestes termos e nos mais de direito que,
Vossas Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores, suprirão, deverá o
presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a
sentença proferida em primeira instância, substituindo-a por outra que ordene a
prossecução dos autos até final, ordenando-se a realização da audiência de
discussão e julgamento, fazendo-se assim Justiça.
O recurso foi admitido.
Não houve lugar a resposta.
Objecto do recurso
É entendimento uniforme
que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e
se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º
4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento
oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex
vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões
sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto
recorrido.
As questões a resolver são
as seguintes:
1 – Se, tendo-se anteriormente
abstido de proferir decisão ao abrigo do disposto no artigo 942.º, n.º 3, 1.ª
parte, do CPC, o tribunal recorrido violou o princípio da extinção do poder
jurisdicional ao proferir saneador-sentença julgando a acção improcedente;
2 – Se a sentença é nula
por falta de fundamentação;
3 – Se estão preenchidos
os pressupostos legais para a prolação de saneador-sentença.
Factualidade apurada
Na sentença recorrida,
foram julgados provados os seguintes factos:
A) Em 17.09.2013,
1.04.2014 e 31.08.2014 faleceram, respectivamente, os referidos EEE, FFF e GGG,
deixando como únicos e universais herdeiros o réu e, em representação do
pré-falecido filho e sobrinho daqueles, os autores;
B) A conta bancaria (…) é
uma conta conjunta e solidária, onde são únicos titulares FFF e o Réu que foi
aberta em 08.11.2013 e encerrada em 06.11.2014;
C) As contas bancárias nº (…)
e nº (…), são ambas da única e exclusiva titularidade de GGG;
D) A conta nº (…) foi
cancelada em 31 de Janeiro de 2012;
E) Nos autos de Inventário
por óbito de EEE, FFF e GGG, o Réu exerce as funções de cabeça de casal,
nomeado para o cargo em 18 de Maio de 2015.
A sentença recorrida
julgou não provados os seguintes factos:
- Os autores são irmãos
entre si, filhos de HHH, falecido no dia 7.03.2012 na sequência de doença
prolongada, e sobrinhos do réu, irmão do falecido pai daqueles;
- Até adoecer, o pai dos
autores ocupava-se, juntamente com o seu irmão, ora réu, com tudo o que dizia
respeito aos seus pais EEE e FFF (avós dos autores e, naturalmente, pais do
réu), e à sua tia GGG (tia-avó dos autores e tia do réu), não só ao nível da
sua saúde, alimentação e bem estar, como no que se reporta à sua situação
económica e financeira;
- Até cerca de seis meses
antes deste falecer, o património dos avós e da tia-avó dos autores foi sempre
gerido pelos filhos/sobrinhos daqueles, face à sua avançada idade e evidente incapacidade
para o fazerem sem a ajuda dos filhos/sobrinhos, que ainda os ajudavam
financeiramente;
- Desde que o pai dos
autores faleceu, os autores entregaram as cadernetas das contas bancárias
tituladas pelos seus avós e das de sua tia-avó GGG ao réu, que as passou a
controlar e a movimentar sozinho, sem prestar contas aos autores, o que aliás
já fazia desde o agravar da doença do seu irmão.
- Em 23.04.2015, o réu
requereu inventário para partilha de bens por herança dos referidos EEE, FFF e GGG,
processo que corre os seus termos no Cartório Notarial Dra. (…), em (…), sob o
n.º (…);
- Desde que o seu pai
faleceu, não mais os autores tiveram acesso às referidas contas bancárias nem
lhes foram comunicados os movimentos nelas efectuados, embora fosse através das
mesmas que as pensões de reforma daqueles eram e continuaram a ser pagas e
nelas era depositada por ambas as partes uma quantia mensal para, sob
administração do pai dos autores e do réu e, após o falecimento daquele, apenas
pelo réu, se prover o sustento dos inventariados.
Fundamentação
1
Os recorrentes sustentam que o tribunal recorrido, por se ter
anteriormente abstido de proferir decisão nos termos do disposto no artigo
942.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC, violou o princípio da extinção do poder
jurisdicional, consagrado no artigo 613.º, n.º 1, ex vi n.º 3, do mesmo código, ao proferir saneador-sentença, julgando
a acção improcedente, sem que algo tivesse sido entretanto junto ao processo.
Entendem os recorrentes que, com essa actuação processual, o tribunal recorrido
pretendeu alterar uma decisão anteriormente proferida, dando o dito por não
dito. Afirmam, inclusivamente, que, por essa razão, a sentença é nula.
O artigo 613.º do CPC dispõe que, proferida a sentença, fica
imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa
(n.º 1), sendo, porém, lícito ao juiz rectificar erros materiais, suprir
nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes (n.º 2). O
n.º 3 estabelece que o disposto nos números anteriores, bem como nos artigos
subsequentes, se aplica, com as necessárias adaptações, aos despachos.
Os recorrentes têm razão quando afirmam que, entre as duas
decisões em causa, não foi junto ao processo qualquer elemento novo que permita
compreender como se passou de um despacho que se absteve de resolver a questão
da existência da obrigação de prestar contas nos termos da 1.ª parte do n.º 3
do artigo 942.º do CPC para um saneador-sentença que julgou a acção
improcedente. Não obstante, em rigor, com a actuação processual sob análise, o
tribunal recorrido não violou o princípio da extinção do poder jurisdicional.
Tê-lo-ia feito se, após proferir, no momento processual previsto
no artigo 942.º, n.º 3, do CPC, despacho em que, considerando “que a questão
subjacente à prestação de contas não pode ser sumariamente decidida”, ordenou
que se seguissem os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da
causa, concretamente designando data para a realização de audiência prévia,
tivesse proferido novo despacho ao abrigo do disposto nesse mesmo preceito
legal. Então sim, o tribunal recorrido estaria a dar o dito por não dito, estaria
a proferir duas decisões sucessivas em sentido diferente, violando, com a
segunda, o disposto no artigo 613.º do CPC.
Porém, não foi isso que se passou no caso dos autos. Entre a
prolação do despacho previsto no artigo 942.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPC, e a da
sentença recorrida, teve lugar a audiência preliminar e, nesta, foi proferido
um despacho mediante o qual o tribunal recorrido deu a conhecer, às partes, que
antevia como possível, com os elementos carreados para os autos, proferir
decisão de mérito, dizendo porquê. O saneador-sentença foi proferido nesta
sequência, ao abrigo do disposto no artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC. Processualmente,
esta actuação do tribunal recorrido é admissível, já que as duas decisões foram
proferidas em momentos processuais distintos e, cada uma delas, ao abrigo de
uma específica disposição legal. Dito de outra forma, não há confusão possível
entre a sentença recorrida e o despacho anteriormente proferido nos termos do
artigo 942.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPC, mantendo-se, assim, a possibilidade de
proferir saneador-sentença após este último despacho.
Conclui-se, assim, que o tribunal recorrido não violou o
disposto no artigo 613.º do CPC.
2
Sustentam os recorrentes, por outro lado, que a sentença é nula
por falta de fundamentação, já que não se pronunciou sobre o teor do
requerimento por eles apresentado na sequência do despacho proferido na
audiência preparatória.
O artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, estabelece que a sentença
é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que
justificam a decisão. “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de
motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera
nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da
motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a
ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por
falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de
direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não
especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa,
verifica-se a nulidade do (então) n.º 2 do art. 668.º”.[1] Para que
esta nulidade se verifique, é necessário que “falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos
fundamentos de direito da decisão (…) Não a constitui a mera deficiência de fundamentação.[2]
No caso dos autos, não se verifica uma falta absoluta de
fundamentação, de facto ou de direito, da sentença recorrida. Embora
deficiente, como se verá no ponto seguinte, tal fundamentação existe. Daí que a
sentença não padeça da nulidade que lhe é apontada.
3
Vejamos, em seguida, se
estão preenchidos os pressupostos legais para a prolação de saneador-sentença.
O artigo 595.º, n.º 1, do
CPC, dispõe que o despacho saneador se destina a:
a) Conhecer das excepções
dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou
que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;
b) Conhecer imediatamente
do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade
de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou
de alguma excepção peremptória.
Doutrina e jurisprudência
convergem quanto à natureza excepcional da possibilidade de conhecer do mérito
da causa no despacho saneador e ao grau de exigência no tocante aos respectivos
pressupostos legais.
Assim, apenas em situações
excepcionais o estado do processo permitirá, sem necessidade de mais provas,
conhecer do mérito da causa logo após o final da fase dos articulados,
prescindindo-se das fases da instrução e do julgamento. “Normal é que o juiz (não estando ainda realizada a parte
fundamental da instrução do processo) não possa conhecer da matéria no momento
em que profere o despacho saneador. Excepcional
é que, com o encerramento dos articulados, o julgador tenha à sua disposição
todos os factos que interessam à resolução da questão de direito exclusivamente
suscitada pelas partes, ou encontre nos autos todos os elementos de prova
essenciais ao julgamento da matéria de facto envolvida no litígio”.[3]
Tal excepcionalidade
decorre, nomeadamente, do grau de exigência subjacente ao citado artigo 595.º,
n.º 1, al. b), do CPC. A possibilidade de conhecimento do mérito da causa na
fase de saneamento do processo, embora justificada pelo princípio da economia
processual, não pode redundar em práticas processuais que prejudiquem a prova da
factualidade relevante alegada pelas partes e o debate das propostas de solução
jurídica do litígio por estas apresentadas, diversas daquela que o juiz, no
momento do saneador, antevê como sendo a correcta. Mais concretamente, só pode
conhecer-se do pedido no saneador se, logo nessa fase, o processo contiver todos
os elementos que possibilitem a tomada de decisões de acordo com as várias
soluções jurídicas plausíveis, em especial se estas estiverem a ser esgrimidas
pelas partes no processo. Se, no momento do saneador, o processo apenas
contiver elementos idóneos para sustentar uma das diversas soluções possíveis
do litígio, o juiz, por muito convicto que esteja do acerto dessa solução,
deverá abster-se de proferir saneador-sentença e, em vez disso, deverá fazer
prosseguir o processo até à fase de julgamento. Esta orientação é pacífica na
jurisprudência, podendo citar-se, a título de exemplo: “I - O artigo 510.º, n.º 1, alínea b),
do C.P.C. — conhecimento antecipado do mérito no saneador — intenta evitar o
arrastamento de acções que logo nesta fase contenham já todos os elementos
necessários à sua boa decisão. II - Mas tal regime não se coaduna com tomadas
de posição que, em nome da celeridade, não permitam às partes a discussão e
prova, em sede de audiência, da factualidade que alegam e que poderá conduzir a
soluções mais abrangentes, ainda não possíveis na fase do saneador ou, pelo
menos, a um desfecho diverso daquele que ao juiz do processo pareça ser o
correcto nessa altura. III - E daí que, na dúvida, deva o processo prosseguir
os seus normais termos, com a organização da base instrutória e passagem à fase
da instrução e produção das provas, apresentando-se excepcional o conhecimento
antecipado de mérito e normal o seu prosseguimento para a fase de julgamento.”[4] “1 - Pode conhecer-se do mérito da causa em saneador-sentença
sempre que o estado do processo o permita, sem necessidade de mais provas, mas
apenas nessa situação. 2 - A produção de prova será desnecessária quando
inexistam factos controvertidos relevantes para a solução da causa segundo as
várias soluções plausíveis para a questão de direito. 3 - Existindo mais do que
uma solução plausível para a questão de direito e factos controvertidos com
relevância para alguma delas é prematuro o conhecimento do mérito da causa no
saneador.”[5] “O conhecimento, no despacho saneador, do pedido ou de uma excepção
peremptória não deve ocorrer quando continuem em aberto várias soluções de
direito plausíveis e, nessa perspectiva, haja factos ainda controvertidos.”[6]
“Dispõe o art.º 510.º, n.º 1, al. b), aplicável ex vi art.º 787.º, n.º 1, do C.
P. Civil, que o juiz conhece do mérito da causa no despacho saneador, sempre
que o estado do processo permita a apreciação total ou parcial do/s pedido/s,
sem necessidade de mais provas. Neste juízo de cognoscibilidade imediata o juiz
não poderá deixar de ter sempre presentes, por um lado, a desnecessidade de
mais provas e, por outro, sem prejuízo do princípio jura novit curia, consagrado
no art.º 664.º do C. P. Civil, as várias soluções plausíveis da questão de
direito, como determina o art.º 511.º, n.º 1, do C. P. Civil.”[7]
No caso dos autos, os recorrentes
pretendem a condenação do recorrido a prestar-lhes contas da administração que este
terá feito das contas bancárias de que eram titulares três familiares comuns
durante o período que mediou entre Setembro de 2011 e as datas dos óbitos
destes últimos, bem como a pagar-lhes o saldo correspondente, na devida
proporção, com juros de mora vencidos e vincendos. Como fundamento, alegam,
além da existência da referida administração, a sua qualidade de herdeiros do
seu próprio pai e dos referidos três familiares e a ausência de prestação
voluntária de contas por parte do recorrido. A tal pretensão, este último
contrapõe que não exerceu a administração que os recorrentes alegam, pois os
familiares em causa geriam o seu próprio dinheiro, pelo que não tem de prestar
contas. O recorrido acrescentou que exerce a função de cabeça-de-casal em
inventário pendente para partilha dos bens dos três referidos familiares, que
aí estão relacionados os saldos das contas bancárias existentes à data dos
óbitos dos inventariados e que apenas terá de prestar contas relativamente a
esses dinheiros, o que vai ocorrendo no referido inventário.
Diante desta controvérsia, a sentença
recorrida:
- Apenas julgou provado o óbito dos
familiares em questão, a qualidade de herdeiros das partes (embora, de forma
algo contraditória, tenha julgado não provados os vínculos familiares dos
recorrentes entre si e com a pessoa que alegaram ser seu pai, bem como com o
recorrido), a titularidade e a situação de quatro contas bancárias e que o
recorrido é, desde 18.05.2015, cabeça-de-casal no inventário acima referido;
- Julgou não provados todos os
restantes factos que constituem a causa de pedir;
- Nem sequer fundamentou por que
julgou não provados estes últimos factos, com excepção daqueles que dependiam
de prova documental;
- Na fundamentação de direito, sem
qualquer base factual, deu como certo que “Não decorre da lei a existência de
qualquer obrigação que impenda sobre o aqui réu na medida em que até ao
falecimento de EEE, FFF e GGG se considera serem os próprios a gerir o seu património,
salvo se os mesmos tivessem sido declarados interditos, o que não aconteceu”;
- Porém, em momento ulterior da
fundamentação de direito, reconhece que o facto de os três familiares em
questão terem administrado os seus próprios bens até morrerem não passa de uma
alegação do recorrido;
- No final da fundamentação de
direito, afirma que “Entre Setembro de 2011 e até ao falecimento de EEE, FFF e GGG,
os Autores não detinham qualquer direito sobre os bens daqueles”, sem um mínimo
de fundamentação, de facto ou de direito, nomeadamente refutando a tese dos
recorrentes, cuja base factual remeteu, sem mais, para os factos não provados;
- Como decorrência desta última
asserção, concluiu pela improcedência do pedido.
É evidente que não estavam verificadas
as condições exigidas pelo artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC para a prolação de
saneador-sentença. Do ponto de vista factual, o processo estava longe de permitir, sem necessidade
de mais provas, o conhecimento do mérito da causa. Bem pelo contrário, a prova
estava quase toda por fazer, como aliás resulta dos próprios termos da
sentença, que julgou não provada a quase totalidade dos factos que constituem a
causa de pedir. Embora não se tenha cuidado de fundamentar esse segmento
decisório, a razão de se ter julgado tais factos como não provados é óbvia: não
foi produzido qualquer meio de prova sobre eles, nem podia ter sido, por falta
de oportunidade. O tribunal recorrido impediu a produção de prova sobre factos
essenciais para a decisão da causa, inviabilizou a ponderação das várias
soluções jurídicas plausíveis do litígio, ignorou a argumentação expendida
pelos recorrentes na peça que ofereceram na sequência da notificação que lhes
foi feita na audiência preparatória, à qual não dedicou uma linha da sentença,
e, por fim, decidiu de forma não devidamente fundamentada, quer de facto, quer
de direito.
Sendo assim, é evidente que
a sentença recorrida terá de ser revogada, devendo a acção prosseguir os seus
ulteriores termos.
*
Decisão
Acordam
os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, revogando
a sentença recorrida e ordenando que a acção prossiga os seus ulteriores termos.
Custas a cargo da parte vencida a final.
Notifique.
*
Évora, 9 de Novembro de
2017
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
1.ª adjunta
2.ª adjunta
[1] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume
V, p. 140.
[2] JOSÉ LEBRE DE
FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO, Código
de Processo Civil Anotado, volume 2.º, p. 669.
[3] ANTUNES VARELA, J.
MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual
de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada, p. 385.
[4] Acórdão da Relação do
Porto de 10.03.2009 (processo n.º 0824061); Relator: CANELAS BRÁS.
[5] Acórdão da Relação
de Évora de 14.11.2013 (processo n.º 25/12.3TBFTR-A.E1); Relator: JOSÉ LÚCIO.
[6] Acórdão da Relação
de Lisboa de 14.11.2013 (processo n.º 866/11.9TBOER.L1-2); Relator: TIBÉRIO SILVA.
[7] Acórdão da Relação
de Lisboa de 22.01.2013 (processo n.º 532/10.2T2MFR.L1-7); Relator: ORLANDO NASCIMENTO.