domingo, 12 de junho de 2022

Acórdão da Relação de Évora de 26.05.2022

Processo n.º 6614/16.0T8STB-AL.E1

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Sumário:

1 – É extemporânea a apresentação, pela ré, no período que mediou entre duas sessões da audiência final, de um documento cuja necessidade para a contraprova de factos alegados na petição inicial já era, num quadro de normal diligência, previsível aquando da apresentação da contestação e a que já tinha, então, acesso.

2 – Se a parte pretender arguir uma nulidade processual que enquadre na previsão do n.º 1 do artigo 195.º do CPC e, no seu entendimento, tenha sido cometida numa sessão da audiência final em que tenha estado patrocinada por mandatário judicial, terá de o fazer até ao final dessa sessão, nos termos da primeira parte do n.º 1 do artigo 199.º do mesmo código.

3 – É extemporâneo o requerimento, efectuado pela ré no período que mediou entre duas sessões da audiência final, de apresentação de documentos por parte da autora com vista à prova de factos alegados na petição inicial.

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Sociedade 1, Lda., ré nesta acção declarativa de condenação sob a forma comum contra si proposta por Massa Insolvente de Sociedade 2, S.A., interpôs recurso de apelação do despacho, proferido no início da segunda sessão da audiência final, que indeferiu um requerimento probatório por si apresentado posteriormente ao encerramento da primeira sessão daquela audiência.

As conclusões do recurso são as seguintes:

1 – No dia 24.01.2022, a recorrente apresentou ao tribunal o requerimento onde requereu:

• A junção ao processo das demonstrações financeiras da Sociedade 3 de 2016 nos termos e para os efeitos previstos no artigo 423.º, n.º 3, do CPC;

• A junção ao processo das demonstrações financeiras da Sociedade 2 de 2016 nos termos e para os efeitos previstos no artº 423.º, n.º 3, do CPC;

• Notificação da Sociedade 2 para que juntasse prova documental que sustentasse as suas alegações quanto ao pagamento das rendas, água e electricidade, nomeadamente as referentes aos meses de Agosto e Setembro de 2016 - meses de "pico" de produção -, relativas às instalações da Rua (…) em Setúbal.

2 – Este requerimento foi indeferido por despacho proferido a 11.02.2022, com os seguintes fundamentos: “tal a matéria já constitui temática dos autos desde o início dos articulados” e “nem constituem documentos inacessíveis” em momento anterior.

3 – Nenhuma leitura poderia a recorrente fazer das demonstrações financeiras da Sociedade 3 de 2016 sem os factos conhecidos ao longo do depoimento da testemunha Dra. AAA, que relevou factos novos, quando indicou que a Sociedade 3 não tinha quaisquer outras instalações, que não tinha qualquer outra actividade e que o contrato de electricidade estava em nome da Sociedade 3.

4 – É que só com a informação de que o contrato de electricidade estava em nome da Sociedade 3, conjuntamente com a informação de que as instalações de Setúbal eram as únicas instalações da Sociedade 3 e que a empresa não tinha qualquer outra actividade, é que pudemos concluir que tudo o que consta das contas da empresa diz respeito às instalações alegadamente arrendadas à Sociedade 2 e à sua relação contratual.

5 – Até à primeira sessão de julgamento a recorrente não conhecia, nem tinha a obrigação de conhecer, os novos factos trazidos a tribunal pela testemunha AAA, sem os quais o documento cuja junção se requereu não teria qualquer utilidade para o processo, visto que nenhuma conclusão dele poderia ser tirada.

6 – Ainda que eventualmente o tribunal tivesse conhecimento desses factos (por o processo que a Sociedade 2 moveu contra a recorrente ser um apenso ao processo de insolvência da Sociedade 2, com mais de 5 anos), não são factos de conhecimento oficioso, pelo que o tribunal não os poderia considerar até esse momento.

7 – Aliás, até 2016, o que a recorrente julgava saber, a avaliar pelo processo que a Sociedade 3 interpôs contra a recorrente, é que a Sociedade 3 tinha prejuízos na sua laboração…

8 – Do depoimento prestado pela testemunha AAA, ex-directora financeira da Sociedade 2, que ficou registado no sistema de gravação digital disponível no tribunal, com a duração total de 00.00.00-01.22.32, mais concretamente com o dito pela testemunha aos 14min40s e a partir dos 53min36s, a recorrente tomou conhecimento que a alegada locadora da Sociedade 2 não tinha outras instalações nem exercia qualquer actividade, pelo que não teria outros rendimentos para além das rendas, nem outras despesas.

9 – Assim, só após o conhecimento deste conjunto de novos factos, descobertos pela recorrente na pendência da audiência de julgamento de 13.01.2022, é que a recorrente soube que a análise das demonstrações financeiras da Sociedade 3 de 2016 poderia ser útil para a descoberta da verdade e para, deste modo, a recorrente exercer o seu direito legal de opor contraprova ao alegado pela Sociedade 2 na sua PI.

10 – À prova produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos (artº 346º do Código Civil).

11 – O direito da ora recorrente a opor contraprova não pode ser prejudicado pelo momento em que os factos chegam ao seu conhecimento.

12 – Sem o conhecimento desses novos factos, não seria possível à recorrente retirar qualquer conclusão da análise das demonstrações financeiras da Sociedade 3 de 2016, pelo que não teria feito qualquer sentido tê-las juntado antes.

13 – A recorrente requereu a junção das demonstrações financeiras das Sociedade 3 2016 no requerimento de 24.01.2022, com os fundamentos nele ínsitos, dentro do prazo legal, contado a partir do momento em que a recorrente tomou conhecimento dos factos que faziam com que aquele documento fosse útil, relevante.

14 – Assim, o tribunal a quo, no entendimento da recorrente, decidiu mal ao indeferir o requerido. Nomeadamente, porque o fez com a justificação de que as contas não estavam inacessíveis à recorrente em momento anterior. Essa análise seria relevante se a recorrente tivesse justificado a junção do documento com base no facto de só agora o documento estar disponível, o que não foi o caso.

15 – Foi com a superveniência de novos factos trazidos pela testemunha AAA que a recorrente justificou a requerida junção. Pelo exposto, entende a recorrente que houve, da parte do tribunal a quo, um incorrecto julgamento do normativo legal ao abrigo do qual a recorrente requereu aquando da justificação do indeferimento.

16 – Assim, deve o despacho de indeferimento ser substituído por outro que defira a junção das demonstrações financeiras da Sociedade 3 de 2016, uma vez que se verificam os requisitos legalmente previstos para a sua junção, ao abrigo do disposto no artº 423.º, n.º 3, nomeadamente a necessidade de os juntar por causa de ocorrência posterior aos momentos previsto nos artºs anteriores desse normativo legal.

17 – Ao agir do modo como supra se descreveu, o tribunal a quo também violou, no entendimento da recorrente, o princípio da igualdade das partes uma vez que deferiu um requerimento apresentado pela Sociedade 2 na véspera da primeira audiência de julgamento, requerendo a junção de documentos com fundamento no mesmo n.º 3 do artº 423.º do CPC. Esse deferimento foi feito com a justificação de que o documento era importante para a boa decisão da causa.

18 – Esta comparação só é possível pois o documento cuja junção a Sociedade 2 requereu também constituía temática dos autos desde o início dos articulados.

19 – E esse, sim, estava não só ao alcance mas na posse da Sociedade 2 vários meses antes da data do requerimento da sua junção, motivo pelo qual foi a Sociedade 2 condenada em multa.

20 – Assim, considerando a recorrente que tais situações são perfeitamente comparáveis, havendo um tratamento diferente, há violação do princípio da igualdade das partes, originando uma nulidade processual que influi na boa decisão da causa, dado que, ao não aceitar o documento junto pela recorrente, o tribunal a quo agiu de forma desigual e não ficou munido de toda a prova essencial à boa decisão da causa.

21 – Por mais esta razão jurídica, se outras não houvesse, deve o despacho posto em crise ser declarado nulo e substituído por outro que defira a junção das demonstrações financeiras da Sociedade 3 de 2016, como doc.1 do requerimento apresentado pela recorrente a 24.01.2022.

22 – Como anteriormente já se referiu, no requerimento de 24.01.2022, a recorrente requereu que: 10.º Tendo em consideração que a alegação da autora de que era quem pagava a eletricidade e a água nas instalações de Setúbal da Sociedade 3 é um pressuposto chave de todo o processo, e face à prova documental agora apresentada pela recorrente, vem a mesma requerer a V. Exa. que, com base no princípio da economia processual e no previsto no artº 429º do CPC, notifique a autora para que junte ao processo prova documental que sustente as suas alegações quanto às rendas, água e eletricidade pagas em Agosto e Setembro de 2016 - meses de "pico" de produção -, relativas às instalações da Rua (…) em Setúbal. 11.º Essa prova, se existisse, seria de qualquer forma útil no sentido de se quantificar o montante de electricidade que a Autora teria deixado de pagar, durante o período de utilização de geradores.

23 – E tal como se alcança da transcrição do despacho ora posto em crise, o mesmo não expende uma linha sobre o requerido pela recorrente nesta matéria.

24 – Assim, conforme está taxativamente enumerada no art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, tal omissão consubstancia uma nulidade.

25 – A nulidade ora arguida, omissão de pronúncia, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada.

26 – Pelo que, tendo a recorrente formulado um pedido expresso ao tribunal a quo, que notificasse a Sociedade 2 para junção de documentos que estavam na posse desta, o tribunal tinha de se pronunciar sobre esse pedido, sob pena de nulidade do despacho que omitiu tal pronúncia, o que se verificou.

27 – Impõe-se assim que o douto despacho, ora recorrido, seja declarado nulo e substituído por outro que se pronuncie, deferindo o requerido, quanto ao pedido formulado pela recorrente uma vez que tais documentos são essenciais à boa decisão da causa.

Nestes termos, e nos demais em Direito permitidos e doutamente supridos por V. Exa, deve o presente recurso ter provimento por provado e consequentemente ser proferido acórdão no sentido de: (i) Revogar o despacho de indeferimento e ser o mesmo substituído por outro que defira a junção das demonstrações financeiras da Sociedade 3 2016, (ii) Declarar nulo o despacho posto em crise por violação do princípio da igualdade das partes, em consequência do indeferimento da junção das Demonstrações Financeiras 2016 da Sociedade 3. (iii) Declarar nulo o despacho e substituí-lo por outro que se pronuncie favoravelmente quanto ao requerido pela ora recorrente no que diz respeito à notificação da Sociedade 2 para junção de documentos, por ser essencial à boa decisão da causa.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.

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Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, as questões a resolver são as seguintes:

1 – Tempestividade da apresentação de documento efectuada pela recorrente;

2 – Nulidade processual decorrente da violação do princípio da igualdade das partes;

3 – Nulidade do despacho recorrido por omissão de pronúncia sobre o requerimento de notificação da recorrida para juntar documentos.

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Os factos relevantes para a decisão do recurso são os seguintes:

1 – A primeira sessão da audiência final realizou-se no dia 13.01.2022;

2 – A segunda sessão da audiência final realizou-se no dia 11.02.2022;

3 – No dia 24.01.2022, a recorrente apresentou um requerimento com o seguinte teor:

«A Sociedade 1, Lda., Ré nos autos supra identificados, vem, nos termos e para os efeitos previstos no artº 423º, nº3 do CPC, e por as mesmas serem importantes para a boa decisão da causa, juntar as Demonstrações Financeiras da Sociedade 3 e da Sociedade 2 de 2016, expondo o seguinte:

Contas Sociedade 3:

1.º

Na sequência da inquirição da Dra. AAA (Diretora Financeira da Sociedade 2), em que a testemunha referiu que tinha a ideia de que a eletricidade das instalações de Setúbal era paga pela Sociedade 3, e por só agora se ter tornado necessário, conforme o previsto no nº3 do artº 423º do CPC, a Ré consultou as contas de 2016 da Sociedade 3, cuja cópia se junta como doc.1.

2.º

Assim, na parte relativa a "Desdobramentos de Contas da Demonstração de Resultados e Balanço" (que se inicia na página 44 de 55), podemos verificar o seguinte:

1. Na página 47 de 55, a conta 624, relativa a "Energia e Fluidos", regista que em 2016 a Sociedade 3 gastou 42.757,93€ + IVA nesse tipo de Gastos. Este montante subdivide-se em:

Conta 6241: em 2016 a Sociedade 3 pagou 40.370,81€ + IVA em eletricidade. Recordamos que em 2016 o transformador terá estado avariado durante cerca de 2 meses. Qual teria sido o valor pago pela Sociedade 3 se o transformador tivesse estado sempre em funcionamento?

Conta 6243: em 2016 a Sociedade 3 pagou 2.387,12€ + IVA de água.

3.º

Tendo em consideração que a eletricidade era fornecida pela Senhoria (Sociedade 3) à Inquilina (Autora), e se a Autora não recebeu eletricidade durante um determinado período de 2016 - tendo, por essa razão recorrido a geradores para fazer face à falta de energia elétrica -, então era à Senhoria (Sociedade 3) que a Inquilina (Autora) deveria ter exigido o pagamento das despesas em que incorreu, independentemente do eventual direito de regresso que a Senhoria (Sociedade 3) tivesse sobre a aqui Ré.

4.º

Mais à frente, na página 50 de 55, verificamos na conta 7873 que o único rendimento que a Sociedade 3 obteve no ano de 2016 foram 70.000€ respeitantes a “Rendas de Terrenos com Edifícios Implantados”, valor substancialmente inferior ao referido no "Contrato" junto pela Autora aos autos.

5.º

Assim, o Contrato que estivesse em vigor em 2016 previa que fosse a Senhoria (Sociedade 3) a pagar as despesas de água e de eletricidade, uma vez que as mesmas não foram "refaturadas" pela Senhoria (Sociedade 3) à Inquilina (Autora), o que se comprova pelo facto os únicos rendimentos da Senhoria (Sociedade 3) em 2016, terem sido os 70.000€ relativos a rendas, nada mais.

6.º

Na mesma página, na área relativa a "Deliberação de Aprovação de Contas", refere-se que estas contas foram aprovadas por unanimidade.

7.º

Pelo exposto, poder-se-á concluir que o "Contrato de Arrendamento" que a Autora juntou ao processo já não estava em vigor em 2016.

8.º

À cautela de patrocínio, a Ré requer a V. Exa que, caso, por alguma razão, o Tribunal considere o documento agora junto inválido como prova, o que apenas por mera hipótese se admite, se digne mandar notificar, nos termos e para os efeitos previstos no artº 432º do CPC, a Autoridade Tributária para juntar aos autos a Declaração Anual (IES - Informação Empresarial Simplificada) da Sociedade 3, relativa ao ano de 2016.

9.º

A Autora não podia desconhecer os dados que a Ré aqui traz a Tribunal - até porque, à data, ambas as sociedades (Sociedade 2 - Construções Metálicas e Sociedade 3) estavam sob a alçada do Sr. Administrador de Insolvência - pelo que se reafirma a plena convicção da Ré de que a Autora litiga de má-fé, nos termos e para os efeitos anteriormente alegados e peticionados.

10.º

Tendo em consideração que a alegação da Autora de que era quem pagava a eletricidade e a água nas instalações de Setúbal da Sociedade 3 é um pressuposto chave de todo o processo, e face à prova documental agora apresentada pela Ré, vem a mesma requerer a V. Exa que, com base no princípio da economia processual e no previsto no artº 429º do CPC, notifique a Autora para que junte ao processo prova documental que sustente as suas alegações quanto às rendas, água e eletricidade pagas em Agosto e Setembro de 2016 - meses de "pico" de produção -, relativas às instalações da Rua (…) em Setúbal.

11.º

Essa prova, se existisse, seria de qualquer forma útil no sentido de se quantificar o montante de eletricidade que a Autora teria deixado de pagar, durante o período de utilização de geradores.

Contas Sociedade 2:

12.º

Tendo em consideração que na primeira sessão de julgamento, todas as testemunhas inquiridas sobre o valor dos vencimentos dos trabalhadores da Sociedade 2 disseram não se recordar, e por esse ser um dado relevante para o apuramento da verdade dos factos e para a boa decisão da causa, a Ré decidiu consultar as contas de 2016 da Sociedade 2 - Construções Metálicas, S.A., documento que se junta aos autos como doc.2, por só agora se mostrarem essenciais à boa decisão da causa, nos termos previstos no nº3 do artº 423º do CPC.

13.º

Na área "Benefícios dos Empregados, Pessoas ao Serviço e Gastos com Pessoal" que se inicia na página 38 de 52, encontramos que, em média, ao longo do ano de 2016, a empresa teve 177 pessoas ao serviço.

14.º

Os Gastos com Pessoal foram no montante total de 5.373.586,59€.

15.º

Se a este montante retirarmos 230.744,55€ de Remunerações dos Órgãos Sociais, 133.258,77€ respeitantes a Indemnizações e 14.058,22€ respeitantes a fardamento, sobram 4.995.525,05€.

16.º

Assumindo que os Órgãos Sociais eram 7 pessoas, então o encargo médio da empresa com cada um dos 170 trabalhadores foi de 29.385,44€ ao longo de 2016.

17.º

Dividindo esse montante pelos 11 meses de trabalho efetivo ao longo do ano, temos que, em média, a empresa gastou 2.671,40€ por cada mês de trabalho efetivo de cada um dos 170 trabalhadores.

18.º

Assumindo que as pessoas trabalharam, em média, 22 dias por mês, então o gasto da Autora por cada dia de trabalho efetivo de cada trabalhador foi, em 2016, de 121,43€.

19.º

Assumindo que as pessoas trabalharam 8 horas por dia, então a despesa média foi de 15,18€ por cada hora de trabalho efetivo, cerca de metade do valor alegado pela Autora na PI.

20.º

À cautela de patrocínio, a Ré requer a V. Exa que, caso, por alguma razão, o Tribunal considere o documento agora junto inválido como prova, o que apenas por mera hipótese se admite, se digne mandar notificar, nos termos e para os efeitos previstos no artº 432º do CPC, a Autoridade Tributária para juntar aos autos a Declaração Anual (IES - Informação Empresarial Simplificada) da Sociedade 2, relativa ao ano de 2016.

Junta: 2 documentos»

4 – No início da sessão da audiência final que se realizou no dia 11.02.2022, o tribunal a quo proferiu despacho com o seguinte teor:

«Nos presentes autos veio a ré requerer a junção de diversos documentos contabilísticos referentes à sociedade Sociedade 3 e à sociedade Sociedade 2, argumentando que os mesmos se tornaram necessários na sequência da inquirição da testemunha AAA, designadamente, quanto a quem efetuava os pagamentos da eletricidade consumida pela Sociedade 2 e aos custos da mão de obra.

Sucede que tal matéria constitui temática dos autos desde o início dos articulados, seja quanto à questão da ilegitimidade suscitada já pela ré, seja pelo valor do prejuízo e custos alegados pela autora e cujo valor indemnizatório é peticionado à Ré.

Nesta conformidade, os documentos cuja junção ora se requer não respeitam a qualquer questão nova suscitada no decurso da audiência de julgamento, nem constituem documentos inacessíveis à autora em momento anterior, dado que respeitam às contas do ano de 2016, pelo que, a sua junção é inadmissível, nos termos do art.º 423º n.º 3 do C.P.C..

Acresce que a má-fé se mostra já invocada nos autos e foi já objeto de resposta pela autora, não podendo a cada passo arguir-se novamente o que já se mostra alegado.

Em face do exposto, e por inadmissíveis legalmente, indefiro à requerida junção de documentos.

Custas do incidente a cargo da Ré com taxa de justiça fixada em 2 UC.

Notifique.»

5 – Após a prolação do despacho transcrito em 4, que constitui o objecto do presente recurso, a ora recorrente prescindiu da inquirição de uma testemunha. Nada mais tendo sido requerido pelas partes, prosseguiu a produção da prova testemunhal.

Todos os factos que acabámos de enunciar resultam das peças processuais constantes dos autos de recurso, mais precisamente das cópias das actas da audiência final e do requerimento apresentado pela recorrente no dia 24.01.2022.

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1 – Tempestividade da apresentação de documento efectuada pela recorrente:

O artigo 423.º do CPC (diploma ao qual pertencem as normas legais doravante referenciadas) estabelece que: 1 – Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes. 2 – Se não forem juntos com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado. 3 – Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.

A recorrente conformou-se com o despacho recorrido na parte em que o mesmo indeferiu a junção das “demonstrações financeiras” da Sociedade 2 de 2016. Está, pois, em discussão unicamente o indeferimento do requerimento de junção das «demonstrações financeiras» da Sociedade 3 do mesmo ano.

Com vista à sustentação da tempestividade da apresentação deste último documento entre duas sessões da audiência final, a recorrente invocou, no requerimento através do qual procedeu, em 24.01.2022, a tal apresentação, o disposto no n.º 3 do artigo 423.º. Mais precisamente, alegou que só na sequência da inquirição da testemunha AAA, directora financeira da Sociedade 2, a qual referiu que tinha a ideia de que a electricidade das instalações de Setúbal era paga pela Sociedade 3, a junção do documento em causa se tornou necessária. O objectivo então invocado para a apresentação desse documento era a demonstração de que o contrato de arrendamento que a recorrida juntou ao processo já não estava em vigor em 2016. É à luz deste enquadramento, feito pela ora recorrente no requerimento que apresentou em 24.01.2022, que o despacho recorrido deve ser apreciado.

Assim enquadrado, o despacho recorrido, na parte em que indeferiu o requerimento de junção do documento em causa, não merece censura.

Logo na contestação, a recorrente realçou a especial ligação entre as sociedades Sociedade 2 e Sociedade 3 (artigos 6.º a 11.º) e invocou a ilegitimidade da recorrida, ainda que parecendo confundir legitimidade processual com legitimidade substantiva[1], alegando que o contrato de arrendamento invocado na petição inicial, a ter existido, se extinguira em 31.12.2010, ou seja, quase seis anos antes da alegada prática dos factos que lhe são imputados e da ocorrência dos danos que estes alegadamente causaram (artigos 16.º a 31.º). Ou seja, na contestação, a recorrente sustentou que, ainda que a actuação que lhe é imputada tivesse causado danos, teria sido a Sociedade 3, e não a Sociedade 2, quem os teria sofrido.

Tendo sido este um dos argumentos esgrimidos pela recorrente na contestação, a necessidade de contraprova do facto, alegado pela recorrida, da subsistência, entre 08.10.2016 e 02.12.2016, do contrato de arrendamento alegado na petição inicial, já existia nesse momento processual. Daí que, nos termos do n.º 1 do artigo 423.º, o documento em causa, destinado a esse fim, mesmo não sendo, por si só, suficiente, devesse ter sido apresentado com a contestação. Não foi, à recorrente, necessário ouvir as declarações que a testemunha AAA prestou na audiência final para se aperceber da existência da necessidade de fazer contraprova daquele facto e da possível utilidade daquele documento para esse fim, conjugado com outros meios de prova. Aquela necessidade de contraprova era patente logo em face da estratégia de defesa delineada na contestação. A utilidade do documento para esse fim, em conjunto com outros meios de prova, era previsível num quadro de normal diligência da parte.

Por outras palavras, na contestação, a recorrente demonstrou saber da existência da Sociedade 3, salientou a especial ligação, que descreveu, entre esta sociedade e a Sociedade 2, e sustentou que, no momento em que ocorreram os factos que, na tese da recorrida, geraram a responsabilidade civil aquiliana que esta lhe atribui, o contrato de arrendamento alegadamente celebrado entre aquelas duas sociedades em 01.04.2008 já se extinguira, pelo que seria a Sociedade 3, proprietária do imóvel anteriormente arrendado, quem ocupava este último e sofreu os danos alegados na petição inicial. Desta tese, sustentada pela recorrente na contestação, decorre logicamente que seria a Sociedade 3 quem pagava o preço da electricidade consumida no imóvel anteriormente dado de arrendamento à Sociedade 2. Daí que nada de substancialmente novo tenha resultado, para a recorrente, do depoimento prestado pela testemunha AAA na audiência final, que a necessidade de contraprova da subsistência do contrato de arrendamento alegado na petição inicial em 08.10.2016 já fosse patente no momento da contestação e que, com essa finalidade, já se justificasse, num quadro de normal diligência por parte da recorrente, a apresentação das «demonstrações financeiras» da Sociedade 3.

Resulta do exposto que a apresentação do documento em causa apenas na fase da audiência final não é enquadrável na parte final do n.º 3 do artigo 423.º, sendo extemporânea. Daí que o despacho recorrido tenha decidido correctamente ao indeferir o requerimento de junção do mesmo documento aos autos.

2 – Nulidade processual decorrente da violação do princípio da igualdade das partes:

Outro argumento apresentado pela recorrente tendo em vista a revogação do despacho recorrido é o de o mesmo ter violado o princípio da igualdade das partes, por ter deferido um requerimento apresentado pela recorrida na véspera da primeira sessão audiência final, requerendo também a junção de documento com fundamento no n.º 3 do artigo 423.º, com a justificação de que aquele era importante para a boa decisão da causa. Sustenta a recorrente que o mesmo documento «também constituía temática dos autos desde o início dos articulados» e, esse sim, estava, não só ao alcance, mas na posse da recorrida havia vários meses, motivo pelo qual esta foi condenada em multa. Conclui a recorrente que tal tratamento diferente de situações «perfeitamente comparáveis», em violação do referido princípio da igualdade das partes, originou uma nulidade processual que influi na boa decisão da causa, nulidade essa que deverá determinar que o despacho recorrido seja declarado nulo e substituído por outro que defira a junção das demonstrações financeiras da Sociedade 3 de 2016.

A nulidade processual invocada pela recorrente, a verificar-se, apenas poderia ser enquadrável na previsão do artigo 195.º. Estaríamos perante a prática, pelo tribunal a quo, de um acto que a lei não permite e que poderia influir no exame ou na decisão da causa.

Ora, a recorrente não arguiu esta pretensa nulidade processual no tribunal a quo, nomeadamente na sessão da audiência final em cujo início foi proferido o despacho recorrido. Apenas o fez em sede de recurso. Fê-lo, portanto, intempestivamente e no tribunal errado. É o que resulta do n.º 1 do artigo 199.º: a nulidade processual em questão apenas podia ser arguida até ao final da sessão da audiência final em que foi alegadamente praticada. Não o tendo sido, ficou precludida a possibilidade da sua arguição.

3 – Nulidade do despacho recorrido por omissão de pronúncia sobre o requerimento de notificação da recorrida para juntar documentos:

A recorrida sustenta que o despacho recorrido padece da nulidade estabelecida no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, porquanto requereu, com fundamento no princípio da economia processual e no disposto no artigo 429.º, a notificação da recorrida para apresentar prova documental que sustente as suas alegações quanto às rendas, água e electricidade, pagas em Agosto e Setembro de 2016 (meses de pico de produção), relativas ao imóvel de alega ser arrendatária, e aquele despacho não se pronunciou sobre tal requerimento.

A recorrente tem razão neste ponto, pois o requerimento em causa foi feito e o tribunal a quo não se pronunciou sobre ele no despacho recorrido. Nos termos do disposto no artigo 665.º, n.º 1, este tribunal proferirá a decisão omitida pelo tribunal a quo.

A pretensão de notificação da recorrida para proceder à apresentação de documentos que se encontram em seu poder integra o requerimento apresentado pela recorrente entre a primeira e a segunda sessões da audiência final. Também em relação a este segmento do requerimento em causa se coloca a questão da sua tempestividade.

Resulta dos pontos 10 e 11 do requerimento que analisamos que a finalidade da apresentação dos documentos em causa é a prova de que foi a recorrida quem pagou o preço da água e da electricidade consumidas no imóvel de que ela alegou ser arrendatária e de quanto pagou nos meses de Agosto e Setembro de 2016. Os documentos relativos ao pagamento do preço da electricidade permitiriam, segundo a recorrente, quantificar o montante de electricidade que a recorrida teria deixado de pagar durante o período de utilização de geradores.

Toda esta matéria se encontra em discussão desde o início do processo. Como vimos anteriormente, a recorrente, na contestação, pôs em causa a subsistência, em 2016, do contrato de arrendamento invocado pela recorrida na petição inicial. No mesmo articulado, a recorrente suscitou a questão da necessidade de compensar os alegados danos decorrentes do aluguer de um gerador e do pagamento do preço do combustível necessário para alimentar este último com a quantia que a recorrida deixou de pagar pelo fornecimento de electricidade, compensação essa que poderia levar a concluir que aqueles danos nem sequer se verificaram (artigos 154.º a 159.º).

Consequentemente, o requerimento de apresentação dos documentos em causa pela recorrida ao abrigo do disposto no artigo 429.º tinha de constar da própria contestação, nos termos da al. d) do artigo 572.º. A recorrente tinha, ainda, a possibilidade de, alterando o requerimento probatório constante da contestação, requerer a referida apresentação de documentos pela recorrida na audiência prévia, nos termos do n.º 1 do artigo 598.º. Não o tendo feito, ficou precludido o direito de requerer aquela apresentação. Deverá, pois, o requerimento da recorrente ser indeferido também nesta parte.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto:

- Julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido em tudo aquilo que nele foi decidido;

- Não conhecer da nulidade processual arguida pela recorrente;

- Suprindo a nulidade do despacho recorrido por omissão de pronúncia, indeferir o requerimento, apresentado pela recorrente, de notificação da recorrida para apresentar documentos relativos ao pagamento das rendas relativas aos meses de Agosto e Setembro de 2016 e do preço da água e da electricidade consumidos no imóvel dos autos nos mesmos meses.

Custas pela recorrente.

Notifique.

*

Évora, 26.05.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.º adjunto)



[1] Atente-se no título que antecede o artigo 16.º da contestação, onde a recorrente qualifica a invocada ilegitimidade da recorrida como excepção peremptória, e no teor dos artigos 24.º, 25.º e 31.º do mesmo articulado, nos quais invoca o disposto nos artigos 30.º, 576.º, n.º 2, e 577.º, al. e), do CPC.


Despacho de 19.06.2024

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