quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Acórdão da Relação de Évora de 06.12.2018

Processo n.º 36/14.4T8RMR.E1

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Sumário:

1 – A decisão de mérito, proferida em embargos de terceiro deduzidos como incidente em processo de execução fiscal, sobre a existência e a titularidade dos direitos invocados por embargante e embargado, não produz efeito fora daquele processo.

2 – Tais questões podem, pois, voltar a ser discutidas, na jurisdição comum, sem que ocorram as excepções de caso julgado ou de litispendência.

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Relatório

E. – Bebidas, S.A. propôs a presente acção declarativa de simples apreciação negativa, com processo comum, contra C&C, Lda., Instituto da Vinha e do Vinho, I.P., Banco, S.A., Autoridade Tributária e Aduaneira e Incertos, formulando os seguintes pedidos: “A) Declarar-se que as obrigações emitidas pela sociedade CT nos anos de 1987, 1988 e 1989 e acima identificadas deixaram de ter validade e existência jurídica e estão desprovidas de qualquer valor, por já não incorporarem qualquer dívida; B) Declarar-se que a ora A. não é devedora à R. C&C, Lda. de qualquer quantia por conta das medidas de recuperação de empresa aprovada no âmbito dos autos que, sob o n.º 130/95, correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Rio Maior; C) Ordenar-se a destruição ou, caso assim não se entenda, condenar-se os RR. a restituírem à ora A. as obrigações emitidas pela sociedade CT nos anos de 1987, 1988 e 1989.

Os réus Instituto da Vinha e do Vinho, I.P., Banco, S.A., Autoridade Tributária e Aduaneira e Incertos, estes últimos representados por defensora para o efeito nomeada, contestaram, pugnando, todos, pela improcedência da acção.

Realizou-se audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, com a identificação do objecto do litígio e o enunciado dos temas de prova.

No início da audiência final, o Ministério Público, em representação da ré Autoridade Tributária e Aduaneira, invocou “o efeito preclusivo da autoridade do caso julgado”, pugnando “pela procedência da excepção e consequente absolvição dos réus da instância”. Na sequência deste requerimento, a audiência foi “dada sem efeito”.

O réu Instituto da Vinha e do Vinho, I.P. pronunciou-se em sentido concordante com o Ministério Público. A autora assumiu a posição oposta, pugnando pelo indeferimento do requerido por este último e pelo prosseguimento da acção.

Em seguida, foi proferida sentença julgando verificadas as excepções dilatórias de caso julgado e de litispendência e absolvendo os réus da instância.

A autora recorreu da sentença, formulando as seguintes conclusões:

1. A teoria do caso julgado trazida aos autos pelo Ministério Público e abraçada pela sentença recorrida não tem qualquer aplicação no caso concreto.

2. Como bem admite a sentença recorrida, os processos em causa têm natureza diferente, já que a sentença já transitada e aqui em causa, foi proferida no âmbito de uns embargos de terceiro deduzidos num processo de execução fiscal.

3. E os embargos de terceiro, após a reforma introduzida no C. P. Civil pelo DL 329-A/95, de 13/10, que eliminou do elenco dos processos especiais as acções possessórias, passaram a ser considerados um incidente da instância enxertado num processo pendente entre outras partes, visando a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de um acto de agressão patrimonial, judicialmente ordenado no interesse de alguma das partes da causa, e que terá atingido ilegitimamente o direito invocado pelo terceiro embargante.

4. Esta sistematização não mudou ainda aquando da mais recente revisão do Código do Processo Civil e que constitui sinal inequívoco da vontade do legislador de manter tal entendimento.

5. Acresce que o mesmo entendimento resulta incontornável da inserção sistemática do regime dos embargos de executado no art.º 342.º e ss do Código do Processo Civil, sob o “Título III – Dos incidentes da instância”.

6. Assim como é sufragado pela jurisprudência, nomeadamente no Acórdão da Relação de Coimbra de 14/10/2008 disponível em www.dgsi.pt.

7. Consequentemente, não pode deixar-se de ter como aplicável no presente caso o disposto no n.º 2 do art.º 91.º do Código do Processo Civil, que determina que “a decisão das questões e incidentes suscitados não constitui, porém, caso julgado fora do processo respetivo, excepto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude e o tribunal for competente do ponto de vista internacional e em razão da matéria e da hierarquia.”

8. A autora não requereu o julgamento com essa amplitude e tal regime só seria aplicável se estivéssemos no âmbito de embargos deduzidos em execução cível – considerando a necessidade de coincidência em razão da matéria.

9. Por estarmos no âmbito de embargos de terceiro deduzidos no âmbito do Código do Procedimento e Processo Tributário, que a decisão proferida naquele incidente não constitui caso julgado fora do respectivo processo.

10. A figura processual dos embargos de terceiro vem sistematizada nos artigos 196.º e 197.º, na Secção VI, com o título “Incidentes e Impugnações” do CPPT e o art.º 196.º é claro ao elencar que “são admitidos no processo de execução fiscal os seguintes incidentes: a) Embargos de terceiros; b) Habilitação de herdeiros; e c) Apoio judiciário.

11. Resulta assim completamente afastado o efeito preconizado pela sentença recorrida, uma vez que não pode, neste caso, falar-se de repetição de uma causa quando estamos no âmbito de uma que o é efectivamente, e um incidente “enxertado” noutra acção ou causa, objetivamente e subjetivamente dispares daquela, ou seja a execução onde os embargos foram deduzidos.

12. Acresce que, entre a acção na qual foi proferida a decisão do tribunal administrativo e fiscal ora em causa, e a presente acção, não existe qualquer semelhança de pedidos, muito menos identidade dos mesmos.

13. Naqueles embargos peticiona a embargante que sejam “os embargos recebidos, julgados provados e procedentes e, em consequência, ser ordenado o levantamento da penhora e a restituição à embargante das obrigações penhoradas, com todas as legais consequências.”

14. Já nos presentes autos, pede a autora que seja declarado que as obrigações emitidas pela sociedade CT nos anos de 1987, 1988 e 1989 e acima identificadas deixaram de ter validade e existência jurídica e estão desprovidas de qualquer valor, por já não incorporarem qualquer dívida; e que seja declarado que a autora não é devedora à ré C&C, Lda. de qualquer quantia por conta das medidas de recuperação de empresa aprovada no âmbito dos autos que, sob o n.º 130/95, correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Rio Maior; bem como seja ordenada a destruição ou, caso assim não se entenda, condenar-se os réus a restituírem à ora autora as obrigações emitidas pela sociedade CT nos anos de 1987, 1988 e 1989.

15. E em bom rigor, nunca poderíamos nunca falar de identidade de pedidos já que, nos embargos, a embargante não deduz qualquer pedido contra a embargada cfr Acórdão nº STJ_06B2342 de 11-07-2006.

16. Motivo pelo qual também temos de concluir pela não coincidência de partes, atendendo à posição que ocupam na lide, já que nos embargos a embargante pode ser comparada ao autor, no entanto, a embargada não pode ter-se como sujeito passivo, já que não é deduzido qualquer pedido quanto à mesma.

17. Mesmo que perante duas acções estivéssemos, no que se não concede, sempre faleceria o mesmo efeito pretendido pela sentença em crise, já que só constitui caso julgado a decisão contida na sentença e a decisão proferida em sede de embargos não é suscetível de ser repetida na presente acção.

18. Decidiu a sentença nos embargos que “nos termos e com os fundamentos expostos julga-se os embargos improcedentes por não provados e, em consequência, mantém-se a penhora das obrigações emitidas pela embargante”.

19. Considerando o pedido e causa de pedir na acção ora pendente, jamais poderia a mesma vir a receber sentença com qualquer identidade com a já proferida.

20. Na verdade, a força do caso julgado não incide sobre os fundamentos da sentença, já que, como bem ensina o Professor Manuel de Andrade: “O caso julgado só se destina a evitar uma contradição jurídica de decisões e já não a sua colisão teórica”.

21. “O que adquire força e autoridade de caso julgado é a posição tomada pelo juiz quanto aos bens ou direitos litigados pelas partes e a concessão ou denegação da tutela jurisdicional para esses bens ou direitos e já não a motivação da sentença, as motivações que determinaram o juiz, as soluções por ele dadas aos vários problemas que teve de resolver para chegar àquela conclusão final” – Esta é pois a posição defendida pelo Professor Alberto dos Reis in “Clássicos Jurídicos, Código do Processo Civil Anotado, Volume III, 3.ª ED. 1950, da Coimbra Editora, pág. 139.

22. No caso vertente, não pode ter-se por verificada a excepção de caso julgado por falta de identidade quanto à natureza das acções em causa, das partes e sua posição nos autos, e quanto aos pedidos deduzidos nas mesmas.

23. As decisões proferidas naqueles e nesta acção não são susceptíveis de abalar a posição de certeza própria das decisões judiciais, que aquela secção pretende evitar.

24 Todos os argumentos supra expendidos valem mutatis mutandis para a litispendência também validada pela sentença recorrida.

25. As assimetrias realçadas impedem que entre as acções fiscais e a presente acção exista qualquer tipo de impossibilidade de pendência simultânea, não se verificando os requisitos da litispendência.

26. E a este respeito impõe-se alertar para o paradoxo a que nos levaria sufragar a posição sustentada na sentença recorrida, já que levaria à inevitável conclusão de que os recursos pendentes não poderiam vir a ser julgados por poderem vir a merecer decisão revogatória da proferida em definitivo pela 1.ª instância, ofendendo o respetivo efeito do caso julgado, e constituindo litispendência uns em relação aos outros.

A recorrida Autoridade Tributária e Aduaneira contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

1 – O efeito preclusivo da autoridade do caso julgado, diferentemente do caso julgado, não supõe identidade de partes, causa de pedir ou pedido, embora determine “a inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida definida em decisão anterior”. – cfr. Ac. Rel. Coimbra de 06.11.2011, proc. 816/09.2 TBAGD, in www.dgsi.pt.

2 – A autoridade de caso julgado de sentença que transitou e a excepção de caso julgado são efeitos distintos da mesma realidade jurídica.

3 – A excepção de caso julgado constitui um obstáculo (efeito negativo) a nova decisão de mérito, enquanto a autoridade do caso julgado tem o efeito (positivo) de impor a primeira decisão como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito.

4 – Esse efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial da segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida- vd. Ac. STJ de 17.12.2013, proc. 3490/08.0 TBBCL, in www.dgsi.pt, em cujo âmbito foi proferida decisão, no sentido de que se numa anterior decisão, transitada em julgado e proferida no âmbito de uma oposição à execução na qual foram partes autores e réus, foi afirmada a validade de uma determinada transacção, não pode voltar a discutir-se, noutra ulterior acção a validade dessa mesma transacção, por força do efeito preclusivo da autoridade do caso julgado que existe ainda que não se verifique a tríplice identidade a este inerente.

5 – No caso sub iudicie, a autora pretende que seja declarado que as obrigações emitidas pela sociedade CT nos anos de 1987 a 1989 deixaram de ter validade e existência jurídica e estão desprovidas de qualquer valor, por não incorporarem qualquer dívida, que a autora não é devedora à ré C&C, Lda. de qualquer quantia por conta das medidas de recuperação de empresa aprovadas no processo n.º 130/95, do 1º Juízo do tribunal de Rio Maior e que seja ordenada a sua destruição ou restituição, ao autor, daquelas obrigações.

6 – Sucede que no âmbito do processo 1509/07.0BEVIS a ora autora E. – Bebidas, S.A. deduziu embargos de terceiro contra a penhora de obrigações por si emitidas, depositadas na conta de valores mobiliários n.º 37958429 do Banco, S.A., titulada pela ora ré C&C, Lda., alegando, para além do mais, que os títulos obrigacionistas se encontram desprovidos de valor, por não titularem qualquer crédito existente e exigível, devendo, em consequência, serem restituídos à exequente, por esta os ter liquidado e que a penhora efectuada ofende a sua posse e direito de propriedade sobre os referidos títulos.

7 – Responderam a executada e a fazenda pública, alegando esta que decorridos 8 anos o saldo relativo aos valores mobiliários em causa ainda se mantinham na conta bancária da C&C, Lda., que não se encontra devidamente provado nos autos que os referidos créditos se encontrem totalmente liquidados. E ainda que o Banco, S.A. reconheceu a existência e a penhora do crédito em causa (o que supõe a sua existência).

8 – Nesta conformidade, dúvidas não existem que a matéria em apreciação no processo 1509/07.0 BEVIS é, necessariamente, a mesma que é objecto da presente acção, agora vestida sob a forma de acção declarativa de simples apreciação negativa.

9 – E, consequentemente, toda a matéria que cumpre apreciar nestes autos foi já apreciada naquela acção, assim como foi objecto dos processos 1508/07.2 BEVIS, 1510/07.2 BEVIS, 1511/07.2 BEVIS e 1512/07.2 BEVIS, todos daquele tribunal.

10 – Independentemente da existência ou não da tríplice identidade exigida pela excepção do caso julgado – sujeitos, pedido e causa de pedir – existem razões de certeza e segurança jurídica que, fazendo valer a autoridade do caso julgado, importam a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior.

11 – Isto porque os fundamentos de facto já foram apreciados e não podem ser reapreciados em tribunal da mesma categoria, sob pena de se obter uma decisão diferente, sendo-lhe, pois, extensiva a eficácia do caso julgado.- cfr. neste sentido, Ac. STJ de 20.09.2005, Revista nº 2095/05- 6ª Secção; STJ de 15.01.2013, proc. 816/2009, STJ de 21.03.2013, Proc. 3210/07.6TCLRS, Rel. Coimbra de 30.06.2015, proc. 89/14.5 TBLRA; Rel. Coimbra de 06.09.2011, proc. 816/09.2 TBAGD; Rel. Guimarães, de 17.12.2013, proc. 3490/08.0 TBBCL, Apelação 1747/11.1 TBFIG, de 20.11.2012 e nº 2560/10.9 TBPLB, de 11.10.2016, todos in www.dgsi.pt.

12 – Na verdade, em prol dos “valores da segurança das decisões e da autoridade do Estado, a anterior decisão que aprecie a mesma questão obsta a qualquer nova indagação sobre a relação material controvertida definida em anterior decisão definitiva.

13 – Assim, ao contrário do caso julgado, que implica uma total identidade entre ambas as causas, a autoridade do caso julgado “importa uma aceitação de uma decisão proferida em acção anterior que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica definida por uma sentença possa ser validamente definida, e modo diverso, por outra sentença (razão de certeza ou segurança jurídica) não se exigindo a tríplice identidade” – Ac. Rel. Coimbra de 11.10.2016, proc. 2560/10.9 TBPBL.

14 – Neste enquadramento, não pode a parte vencida em anterior processo cuja decisão haja transitado em julgado vir obter, através de nova acção que para o efeito seja proposta, um efeito útil que se traduza em decisão diversa da anterior – cfr., neste sentido e entre muitos outros, Ac. Rel Coimbra de 6.9.2011, proc. 816/09.2 TBAGD.C1.

15 – Como bem se refere na douta sentença recorrida, pretende o autor, em ambos os processos (neste e no 1509/07.0 BEVIS), o mesmo efeito jurídico: que se declare que as obrigações emitidas pela sociedade CT (todas elas) deixaram de ter validade por já não incorporarem qualquer divida, por não ser devedora da ré C&C, Lda., na sequência da recuperação da empresa.

16 – E bem se refere igualmente que “Apesar da diferente natureza dos dois processos, mantem-se incólume a situação objecto de apreciação nos dois processos, que é a mesma.”.- cfr. fls. 14 da sentença/ 583 dos autos.

17 – Mais se dirá, neste propósito, na esteira do também decidido, que os embargos de terceiro assumem a estrutura de uma acção declarativa de apreciação, sujeita a processo comum, o que substancialmente pouco tem a ver com os incidentes da instância pelo que, mesmo em termos de forma, nada obstaria a que fosse conhecido o caso julgado- cfr, neste sentido, Ac. rel. Coimbra 5166/06.3TBLRA, de 01.04.2008, in www.dgsi.pt.

18 – Assim, visto o proc.º 1509/07.0 BEVIS, resulta claramente que a questão relativa às obrigações da autora relativas ao ano de 1988, que se encontram depositadas na conta de valores mobiliários nº 37958429, titulada pela sociedade C&C, Lda., já foi definitivamente decidida nesse processo.

19 – E a questão que foi apreciada não se restringe às obrigações relativas ao ano de 1988, antes as abrange todas na medida em que a apreciação da sua validade jurídica constitui uma unidade não dissociável, nem a própria sentença proferida no proc. 1509/07.0 BEVIS faz essa destrinça, apenas curando de apreciar se tais obrigações são ou não penhoráveis, assim lhes reconhecendo, globalmente, validade jurídica.

20 – Ainda que, por mera hipótese e sem conceder, a autora lograsse agora provar o que antes não provou (note-se que a prova documental ora junta neste processo é a mesma que já se conhecia nos embargos) obteria, sobre o mesmo objecto, duas decisões de sentido contrário, situação a que se opõe a certeza e segurança jurídicas e a que se pretende obstar com o instituto do caso julgado) não estando ao seu alcance fazer uso da que mais lhe aprouver.

O recurso foi admitido.

Objecto do recurso

Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, que definem o objecto deste e delimitam o âmbito da intervenção do tribunal de recurso, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, a única questão a resolver consiste em saber se se verificam as excepções dilatórias do caso julgado e da litispendência.

Factualidade apurada

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1 – No processo n.º 1508/07.2BEVIS, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, em que é embargada C&C, Lda., contra-interessado IVV e outros e embargante E.T. – Produção de Bebidas, S.A., a autora E. – Bebidas, S.A. deduziu embargos de terceiro contra o acto de penhora de obrigações por si emitidas em 1989, da conta de valores mobiliários n.º 37958429, depositadas numa conta do Banco, S.A. pela executada C&C, Lda., realizada no âmbito do processo de execução fiscal n.º 2704200401002570, por os créditos decorrentes das obrigações por si emitidas terem sido reclamados no processo de recuperação de empresa, ficaram sujeitos às medidas de recuperação homologadas judicialmente e que foram integralmente cumpridas, sem que lhe tenham sido restituídos os títulos respectivos.

2 – Por sentença proferida em 31.07.2014, os embargos de terceiro foram julgados improcedentes, mantendo-se a penhora das obrigações emitidas pela embargante em 1989, depositadas na conta do Banco, S.A. titulada pela executada C&C, Lda..

3 – No processo n.º 1508/07.2BEVIS, a embargante E.T. – Produção de Bebidas, S.A. interpôs recurso, que se encontra pendente.

4 – No processo n.º 1509/07.0BEVIS, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, em que é embargado C&C, Lda., contra-interessado IVV e outros e embargante E.T. – Produção de Bebidas, S.A., a autora E. – Bebidas, S.A. deduziu embargos de terceiro contra o acto de penhora de obrigações por si emitidas em 1988, da conta de valores mobiliários n.º 37958429, depositadas numa conta do Banco, S.A. pela executada C&C, Lda., realizada no âmbito do processo de execução fiscal n.º 2704200601000950, por os créditos decorrentes das obrigações por si emitidas terem sido reclamados no processo de recuperação de empresa, ficaram sujeitos às medidas de recuperação homologadas judicialmente e que foram integralmente cumpridas, sem que lhe tenham sido restituídos os títulos respectivos.

5 – Por sentença proferida em 31.07.2014, os embargos de terceiro foram julgados improcedentes, mantendo-se a penhora das obrigações emitidas pela embargante em 1988, depositadas na conta do Banco, S.A. titulada pela executada C&C, Lda..

6 – A sentença proferida no processo n.º 1509/07.0BEVIS transitou em julgado em 23.10.2014.

7 – No processo n.º 1510/07.4BEVIS, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, em que é embargado C&C, Lda., contra-interessado IVV e outros e embargante E.T. – Produção de Bebidas, S.A., a autora E. – Bebidas, S.A. deduziu embargos de terceiro contra o acto de penhora de obrigações por si emitidas em 1988, da conta de valores mobiliários n.º 37958429, depositadas numa conta do Banco, S.A. pela executada C&C, Lda., realizada no âmbito do processo de execução fiscal n.º 2704200401016458, por os créditos decorrentes das obrigações por si emitidas terem sido reclamados no processo de recuperação de empresa, ficaram sujeitos às medidas de recuperação homologadas judicialmente e que foram integralmente cumpridas, sem que lhe tenham sido restituídos os títulos respectivos.

8 – Por sentença proferida em 15.07.2014, os embargos de terceiro foram julgados improcedentes, mantendo-se a penhora das obrigações emitidas pela embargante em 1988, depositadas na conta do Banco, S.A. titulada pela executada C&C, Lda..

9 – No processo n.º 1510/07.4BEVIS, a embargante E.T. – Produção de Bebidas, S.A. interpôs recurso, que se encontra pendente.

10 – No processo n.º 1511/07.2BEVIS, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, em que é embargado C&C, Lda., contra-interessado IVV e outros e embargante E.T. – Produção de Bebidas, S.A., a autora E. – Bebidas, S.A. deduziu embargos de terceiro contra o acto de penhora de obrigações por si emitidas em 1987, da conta de valores mobiliários n.º 37958429, depositadas numa conta do Banco, S.A. pela executada C&C, Lda., realizada no âmbito do processo de execução fiscal n.º 2704200401002597, por os créditos decorrentes das obrigações por si emitidas terem sido reclamados no processo de recuperação de empresa, ficaram sujeitos às medidas de recuperação homologadas judicialmente e que foram integralmente cumpridas, sem que lhe tenham sido restituídos os títulos respectivos.

11 – Por sentença proferida em 31.07.2014, os embargos de terceiro foram julgados improcedentes, mantendo-se a penhora das obrigações emitidas pela embargante em 1987, depositadas na conta do Banco, S.A. titulada pela executada C&C, Lda..

12 – No processo n.º 1511/07.2BEVIS, a embargante E.T. – Produção de Bebidas, S.A. interpôs recurso, que se encontra pendente.

13 – No processo n.º 1512/07.0BEVIS, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, em que é embargado C&C, Lda., contra-interessado IVV e outros e embargante E.T. – Produção de Bebidas, S.A., a autora E. – Bebidas, S.A. deduziu embargos de terceiro contra o acto de penhora de obrigações por si emitidas em 1988, da conta de valores mobiliários n.º 37958429, depositadas numa conta do Banco, S.A. pela executada C&C, Lda., realizada no âmbito do processo de execução fiscal n.º 2704200401004875, por os créditos decorrentes das obrigações por si emitidas terem sido reclamados no processo de recuperação de empresa, ficaram sujeitos às medidas de recuperação homologadas judicialmente e que foram integralmente cumpridas, sem que lhe tenham sido restituídos os títulos respectivos.

14 – Por sentença proferida em 13.07.2014, os embargos de terceiro foram julgados improcedentes, mantendo-se a penhora das obrigações emitidas pela embargante em 1988, depositadas na conta do Banco, S.A. titulada pela executada C&C, Lda..

15 – No processo n.º 1512/07.0BEVIS, a embargante E.T. – Produção de Bebidas, S.A. interpôs recurso, que se encontra pendente.

Fundamentação

A argumentação desenvolvida pela recorrente em abono da sua tese resume-se da seguinte forma:

1 – Este processo e os embargos de terceiro deduzidos em sede de execução fiscal têm natureza diferente, sendo estes últimos considerados como um incidente pelos artigos 196.º e 197.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT);

2 – Consequentemente, a decisão proferida nos embargos de terceiro deduzidos em sede de execução fiscal não constitui caso julgado fora do respectivo processo; não pode, pois, falar-se de repetição de uma causa;

3 – Mesmo os embargos de terceiro regulados no CPC têm a natureza de um mero incidente da instância, pelo que, ainda que fosse esse o caso dos autos, seria aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 91.º do referido código, sendo certo que a autora não requereu o julgamento com essa amplitude;

4 – Inexiste identidade das partes e dos pedidos;

5 – Como decorrência da falta de identidade dos pedidos, a decisão proferida em sede de embargos não é suscetível de ser repetida na presente acção, sendo certo que a força do caso julgado não incide sobre os fundamentos da sentença, mas apenas sobre a parte dispositiva da mesma;

6 – Todos estes argumentos valem, mutatis mutandis, para a litispendência.

Analisemos esta argumentação.

É exacto que, quer o CPC, quer o CPPT, qualificam os embargos de terceiro como um incidente da instância. O CPC regula-os no Título III do Livro II, título esse dedicado aos incidentes da instância, e os artigos 97.º, n.º 1, al. o), 166.º, n.º 1, al. a), 167.º e 237.º (epígrafe) do CPPT assim os designam expressamente.

Todavia, ao contrário daquilo que a recorrente sustenta, a qualificação legal[1] dos embargos de terceiro como um incidente da instância, por si só, não impede que a decisão final neles proferida produza efeitos fora do processo, por via da formação de caso julgado material. Demonstra-o o disposto no artigo 349.º do CPC, ao estabelecer que a sentença de mérito proferida nos embargos de terceiro constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência e titularidade do direito invocado pelo embargante ou por algum dos embargados, nos termos do n.º 2 do artigo anterior. Aquela qualificação é, pois, irrelevante para a resolução do problema que temos entre mãos.

Interessa-nos, sim, o disposto no artigo 238.º do CPPT, de acordo com o qual “a decisão de mérito proferida nos embargos de terceiro constitui caso julgado no processo de execução fiscal quanto à existência e titularidade dos direitos invocados por embargante e embargado”. Entenda-se: constitui caso julgado exclusivamente no processo de execução fiscal. A decisão de mérito, proferida em embargos de terceiro deduzidos como incidente em processo de execução fiscal, sobre a existência e a titularidade dos direitos invocados por embargante e embargado, não produz efeitos fora daquele processo. A eficácia do caso julgado quanto à existência e à titularidade desses direitos restringe-se ao processo de execução fiscal, contrariamente ao que, como vimos anteriormente, acontece no processo civil por força do disposto no artigo 349.º do CPC. Daí que tais questões possam voltar a ser discutidas na sua sede própria, que é a jurisdição comum, sem que ocorram as excepções de caso julgado ou de litispendência e sem que possa, sequer, ser invocada a autoridade de caso julgado.

Esta interpretação do artigo 238.º do CPPT, que nos parece ser a única possível em face da sua redacção, harmoniza-se com a natureza dos tribunais administrativos e fiscais e com a forma como o incidente de embargos de terceiro é configurado por aquele código.

No que concerne ao primeiro aspecto, tenha-se em conta a forma como a Constituição reparte competências entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos e fiscais. O artigo 211.º, n.º 1, estabelece que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. O artigo 212.º, n.º 3, estabelece que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, sendo concretizado, ao nível da lei ordinária, pelo artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Daqui resulta, além do mais, que são os tribunais judiciais que estão vocacionados para dirimir conflitos de natureza cível, não os tribunais administrativos e fiscais. Por essa razão, quando a lei atribui, aos tribunais administrativos e fiscais, competência para, incidentalmente, em sede de embargos de terceiro, conhecer de questões de natureza cível, fica salvaguardado, pelo artigo 238.º do CPPT, que tais decisões não produzem efeitos fora do processo de execução fiscal, abrindo-se, assim, a possibilidade de as mesmas questões virem a ser discutidas e julgadas, sem limitações, na sede própria, que são os tribunais judiciais.

Por outro lado, enquanto o CPC, apesar de qualificar os embargos de terceiro como um incidente da instância, configurou o seu regime processual como se se tratasse de uma acção declarativa, o CPPT seguiu outro caminho. Com efeito, resulta do artigo 167.º deste código que, na ausência de normas específicas, o incidente dos embargos de terceiro se rege pelas normas aplicáveis à oposição à execução, ou seja, pelos artigos 203.º e seguintes. Também por isto, compreende-se o regime do artigo 238.º do CPPT[2].

Flui do exposto, por um lado, que a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu nos embargos de terceiro com o n.º 1509/07.0BEVIS, já transitada em julgado, não produz efeitos nos presentes autos, ou seja, não determina, nestes, a verificação da excepção de caso julgado, e, por outro lado, que a pendência dos restantes embargos de terceiro referidos na matéria de facto provada não gera a excepção de litispendência. Sendo assim, o tribunal a quo não podia ter absolvido os recorridos da instância com fundamento na ocorrência das referidas excepções dilatórias. Em vez disso, o processo devia ter seguido os seus termos, nomeadamente com a realização da audiência final.

Estando assim demonstrada a não verificação das excepções de caso julgado e de litispendência por força do disposto no artigo 238.º do CPPT, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso, o qual deverá ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida e ordenando-se o prosseguimento dos autos.

*

Decisão:

Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, revogando a sentença recorrida e ordenando o prosseguimento dos autos.

Custas a cargo da parte com elas onerada a final.

Notifique.

*

Évora, 6 de Dezembro de 2018

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta

 


[1] Independentemente da questão do rigor científico dessa qualificação – cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA e RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, pp. 629-630, em anotação ao artigo 358.º do anterior CPC.

[2] Sobre esta matéria, embora aí referida a título incidental, tem interesse a leitura do acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 16.04.2002, proferido no processo n.º 6301/02, secundado, nomeadamente, pelo acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte de 07.10.2004, proferido no processo n.º 44/04.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Acórdão da Relação de Évora de 06.12.2018


Processo n.º 9344/15.6T8STB.E2

*

Competência em razão da matéria.

Contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública.

Seguro de acidente de trabalho.

Artigo 4.º, n.º 1, al. e), do ETAF.

*

Relatório

APSS – Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra, S.A. propôs acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra FIDELIDADE – Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 24.838,38, acrescida de juros de mora à taxa legal comercial a contar da citação e até integral pagamento, a título de accionamento de um seguro de acidente de trabalho pelo ressarcimento do capital de remição devido por reparação de um acidente de trabalho sofrido por um seu trabalhador.

A ré contestou, pugnando pela improcedência da acção.

Na resposta, a autora manteve a posição assumida na petição inicial.

Teve lugar uma audiência prévia, na sequência da qual foi proferido saneador-sentença julgando «verificada a excepção de autoridade de caso julgado» e absolvendo a ré da instância.

Na sequência de recurso interposto pela autora, esta Relação revogou o saneador-sentença e ordenou que o processo seguisse os seus termos.

Realizou-se nova audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, com a identificação do objecto do litígio e o enunciado dos temas de prova.

Na sequência da realização da audiência final, foi proferida sentença declarando «a excepção de incompetência absoluta dos tribunais judiciais para dirimir o presente litígio», absolvendo a ré da instância.

A autora recorreu da sentença, formulando as seguintes conclusões:

A) O tribunal a quo considerou-se incompetente para julgar a presente acção, uma questão de incumprimento do contrato de seguro entre a APSS, que não está a agir ao abrigo de poderes de autoridade, e a seguradora FIDELIDADE.

B) A apelante APSS é uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos criada pelo DL 338/98, de 3 de Novembro.

C) É uma empresa pública, como refere o art. 5.º/1 do DL 133/2013, de 3 de Outubro, que aprova o regime jurídico do sector público empresarial, já que é uma organização empresarial constituída sob a forma de sociedade nos termos da lei comercial e na qual o Estado exerce isoladamente e de forma directa influência dominante.

D) E é uma empresa pública como sociedade comercial e não como entidade pública empresarial, na distinção do art. 13.º/1 desse mesmo diploma.

E) Como empresa pública está sujeita basicamente à disciplina daquele DL 133/2013, de 3 de Outubro, como estabelece nomeadamente o seu art. 1.º.

F) Sendo uma empresa que realiza funções próprias do Estado, o art. 22.º/1 desse mesmo diploma refere que nalguns casos a APSS tem poderes e prerrogativas de autoridade de que goza o Estado – expropriação por utilidade pública, gestão das infraestruturas afectas ao serviço público e licenciamento e concessão da utilização do domínio público.

G) Na continuação do anterior art. 18.º do DL 558/99, de 17 de Dezembro, o art. 23.º deste DL 133/2013 estabelece que relativamente à determinação dos tribunais competentes para julgamento dos litígios só nos casos de actos e contratos celebrados no exercício dos poderes de autoridade as empresas públicas são equiparadas a entidades administrativas.

H) Assim, só nos casos em que a APSS exerce poderes e prerrogativas de autoridade de que goza o Estado (expropriação por utilidade pública, gestão das infraestruturas afectas ao serviço público e licenciamento e concessão da utilização do domínio público, art. 22.º/1 do DL 133/2013), os tribunais administrativos serão os competentes.

I) Nos demais litígios seguem-se as regras gerais de determinação da competência material dos tribunais, como claramente estabelece o art. 23.º/2 do mesmo diploma.

J) Os presentes autos referem-se a uma questão de incumprimento contratual num contrato de seguros, entre a APSS e a seguradora FIDELIDADE.

K) Que não é um contrato público, ao contrário do expendido a quo, já que nele a APSS não está a actuar ao abrigo de poderes de autoridade - art. 22.º/1 do DL 133/2013.

L) E o próprio contrato de seguro também não é materialmente um contrato público, sujeito à jurisdição administrativa, sendo ao contrário um contrato tipicamente privado – arts. 4.º e 9.º do DL 72/2008, de 16 de Abril, que estabelece o regime jurídico do contrato de seguro.

M) O Código do Procedimento Administrativo (DL 4/2015, de 7 de Janeiro), não refere explicitamente quais os contratos administrativos, dispondo antes no seu art. 200.º/2 que são contratos administrativos os que como tal são classificados no Código dos Contratos Públicos ou em legislação especial, e o contrato de seguro não é um contrato administrativo, nem no CCP nem em nenhuma legislação especial.

N) Esse CPAdministrativo no seu art. 200.º/1 distingue claramente a possibilidade da APSS celebrar contratos administrativos, sujeitos a um regime substantivo de direito administrativo, ou contratos submetidos a um regime de direito privado – o que aconteceu no presente caso na contratação dos seus seguros.

O) Sendo certo que este diploma impõe na formação do contrato a utilização do concurso público, para salvaguarda da transparência, igualdade e concorrência, art. 201.º/1, mas apenas e tão só na formação e não depois na celebração do mesmo contrato.

P) Mesmo estando a formação do contrato de seguro sujeita ao CCPúblicos, de molde a garantir princípios de concorrência de mercado, o próprio contrato não está sujeito à disciplina administrativa pois não é um contrato público.

Q) Se estamos perante uma relação jurídica material quando aquela confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres aos particulares perante a administração, no presente caso tal situação não se verifica, até porque a própria lei, o art. 23.º do DL 133/2013 afasta expressamente o caráter administrativo de jus imperii da aquisição de contratos de seguros de acidentes de trabalho.

R) Sendo as partes nos presentes autos a APSS, num contrato sem poderes de autoridade (art. 23.º/2 do DL 133/2013), contrato esse de seguro de acidentes de trabalho de natureza privada (art. 4.º do DL 72/2008, de 16 de abril), celebrado com uma empresa privada de seguros, não podem ser os tribunais administrativos a dirimir questões sobre o incumprimento contratual desse contrato.

Devendo pelas razões expostas a sentença recorrida ser revogada e o processo continuar os seus demais termos, com o que será feita Justiça.

A recorrida contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

1) A presente acção visa a condenação da recorrida por incumprimento de contrato de seguro celebrado com a recorrente em adjudicação através de concurso público, invocando-se um determinado pedido de entrega de valor alegadamente despendido pela recorrente, sem reembolso pela recorrida, o que, no limite, convoca as regras da responsabilidade contratual.

2) Atendendo à causa de pedir assim formulada, impunha-se descortinar se existiu, de facto, incumprimento contratual.

3) Apurou-se que a recorrente é uma sociedade anónima de capitais públicos, posteriormente abrangida pelo conceito de empresa pública, conforme artº 3º do DL 558/99, de 17 de Dezembro.

4) Também se apurou que o sinistrado AAA, que sofreu um acidente de trabalho em 18/08/2010, quando trabalhava por conta da recorrente em funções públicas, efectuava descontos para a CGA.

5) De acordo com a lei em vigor à data do referido acidente de trabalho, a reparação deste deveria seguir o regime reparatório previsto no DL 503/99, de 20 de Novembro, mas conforme a redacção que lhe foi conferida, designadamente ao seu artº 2º, pela Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro.

6) E, atendendo ao estatuto da recorrente e ao regime de trabalho do sinistrado, deveria ter aplicação o nº 4 do artº 2º do DL 503/99, segundo o qual a reparação de acidente de trabalho segue o regime do Código do Trabalho, que é o da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro.

7) Por isso que a recorrida, ao abrigo da apólice celebrada e nos termos da lei, participou o acidente de trabalho ao competente tribunal do trabalho, no âmbito do qual efectuou ao sinistrado todas as prestações em dinheiro e em espécie reconhecidas como seu direito, e conforme a incapacidade permanente apurada em sede pericial por Junta Médica, devidamente validada pela decisão judicial que sobre ela recaiu, com trânsito em julgado.

8) A recorrida cumpriu integralmente o contrato de seguro e a lei aplicável, e não estava vinculada a seguir outro procedimento.

9) Ainda que, em tese abstracta – e sem conceder - se entendesse ser competência da jurisdição administrativa a apreciação do conteúdo de um contrato de seguro, face ao caderno de encargos do concurso público do qual resultou a sua adjudicação, o certo é que a decisão da presente acção, no sentido da improcedência do invocado incumprimento contratual, se basta com o reconhecimento da natureza jurídica da pessoa colectiva empregadora pública e do estatuto profissional do seu trabalhador sinistrado, sendo tais elementos suficientes para a declaração de improcedência da acção e para a absolvição da recorrida do pedido, e não apenas da instância, como foi doutamente considerado.

10) Nestas condições, deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se inteiramente o decidido na 1ª instância, salvo se este Tribunal da Relação entender, como a recorrida, que existe matéria de facto e de direito que fundamentem a absolvição do pedido, o que igualmente se requer.

Termos em que se requer a V.Exas. que, sempre com o indispensável suprimento, seja julgado improcedente o recurso da recorrente, sendo, por outro lado, a presente acção julgada improcedente com a consequente absolvição do pedido.

O recurso foi admitido.

Objecto do recurso

Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, que definem o objecto deste e delimitam o âmbito da intervenção do tribunal de recurso, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, a questão a resolver consiste em saber se a competência material para o julgamento do litígio que opõe recorrente e recorrida cabe aos tribunais judiciais ou aos tribunais administrativos e fiscais.

Factualidade apurada

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. A Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., resultou da fusão por incorporação da Império Bonança – Companhia de Seguros, S.A., na Companhia de Seguros Fidelidade- Mundial, S.A., cuja denominação social foi alterada para Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A..

2. A APSS é uma empresa pública criada pelo Decreto-Lei 338/98, de 3 de Novembro, que sucedeu automática e globalmente ao anterior instituto público «Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra», este criado pelo Decreto-lei 376/89, de 25 de Outubro.

3. O Decreto-Lei 421/99, de 21 de Outubro, aprovou o novo Estatuto de Pessoal das Administrações Portuárias.

4. Desde a entrada em vigor do Decreto-Lei 421/99, de 21 de Outubro, a autora passou a ter trabalhadores abrangidos pelo contrato administrativo em funções públicas e outros abrangidos pelo contrato individual de trabalho.

5. A autora lançou um concurso público para aquisição de vários seguros para 2009 e anos seguintes, onde separou para os acidentes de trabalho os trabalhadores abrangidos pela Segurança Social e os abrangidos pela Caixa Geral da Aposentações.

6. De acordo com o caderno de encargos do concurso público, os trabalhadores da APSS subscritores da CGA estariam abrangidos pelo Decreto-Lei 503/99.

7. Distinção essa observada também em 2010, através da proposta para este ano efectuada pela ré, através de corretor de seguros, tendo a ré ganho esse concurso público:

a) Trabalhadores do regime geral da segurança social – apólice 29122082;

b) Trabalhadores da CGA – apólice 23075247.

8. Tendo depois sido emitidas as respectivas actas adicionais relativas às condições particulares e especiais de cada apólice, bem como as condições gerais que se dão por reproduzidas e constam de fls. 34 e ss..

9. Em 16 de Agosto 2010, o trabalhador da autora AAA sofreu uma queda ocorrida no tempo e local de trabalho, da qual lhe resultaram lesões físicas.

10. No dia 18 de Agosto de 2010, foi participado à ré, através do corretor de seguros, o acidente de AAA, ao abrigo da apólice n.º 23075247.

11. O trabalhador identificado em 8 era titular de contrato administrativo de provimento em funções públicas e efectuava os seus descontos para a CGA.

12. Em 18 de Novembro de 2011, os serviços clínicos da ré atribuíram alta ao sinistrado, reconhecendo a existência de uma incapacidade parcial permanente.

13. A ré participou o acidente de trabalho ao Tribunal do Trabalho de Setúbal, dando origem ao processo especial emergente de acidente de trabalho autuado com o nº 1011/11.6TTSTB.

14. Na sequência do processo referido em 12, veio a ser reconhecida ao sinistrado uma IPP de 0,0496, com efeitos desde 23 de Novembro de 2011, tendo a aqui ré sido condenada a pagar-lhe o capital de remição da pensão anual e vitalícia de € 935,31 (novecentos e trinta e cinco euros e trinta e um cêntimos), acrescida de juros de mora.

15. O que a ré cumpriu, em 24 de Outubro de 2012, entregando a quantia de € 12.455,80 (doze mil quatrocentos e cinquenta e cinco euros e oitenta cêntimos), por cheque ao sinistrado.

16. Em 05 de Abril de 2012, a autora enviou a comunicação legal à CGA, tendo esta fixado uma pensão anual vitalícia ao referido trabalhador e calculado a respectiva remição no valor de € 24.838,38 (vinte e quatro mil oitocentos e trinta e oito euros e trinta e oito cêntimos).

17. A autora pagou em 13 de Dezembro de 2013 à CGA a importância de € 26.354,18 (vinte e seis mil trezentos e cinquenta e quatro euros e dezoito cêntimos), correspondente à remição da pensão e outros encargos.

18. Em 9 de Maio de 2014, a CGA emitiu o ofício circular n.º 3/2014, onde refere «Atento o disposto no artigo 2.º, n.º, 4 do Decreto-Lei 503/99, de 20 de Novembro, na redacção introduzida pela Lei 59/2008, de 11 de Setembro. Importa esclarecer que, desde 2009-01-01, ao pessoal subscritor da Caixa Geral de Aposentações (CGA) que exerça funções em entidades públicas empresariais é aplicável:

Na eventualidade de acidente de trabalho: o regime previsto no Código do Trabalho, devendo a entidade empregadora transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho nos termos previsto naquele Código. (…)

Quanto ao pessoal não subscritor da CGA que exerça funções em entidades públicas empresariais, ao qual se aplica o regime dos acidentes de trabalho e doenças profissionais previsto no Código do Trabalho, está excluído da aplicação do Decreto-Lei 503/99, de 20 de Novembro.

Assim sendo, os pedidos relativos a acidentes ocorridos a partir de 2009-01-01 e excluídos do regime do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de Novembro, e que ainda estejam em curso na CGA, serão devolvidos às entidades, independentemente da fase de instrução (mesmo aqueles relativamente aos quais tenha já sido realizada junta médica).

(...)»

Fundamentação

Como acima referimos, está em causa, neste recurso, saber se a competência material para o julgamento do litígio que opõe recorrente e recorrida cabe aos tribunais judiciais ou aos tribunais administrativos e fiscais.

Para sustentar a sua tese de que tal competência cabe aos tribunais judiciais, a recorrente invoca, em síntese, os seguintes argumentos: a) Como empresa pública sob a forma de sociedade comercial, exerce poderes de autoridade em alguns casos, mas também actua como mero sujeito de direito privado; b) No âmbito do contrato de seguro que celebrou com a recorrida, não actua dotada de poderes de autoridade, até porque o contrato de seguro não é um contrato administrativo ou, sequer, um contrato público, mas sim um contrato tipicamente privado; c) O artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 133/2013 estabelece que, relativamente à determinação dos tribunais competentes para julgamento dos litígios, só nos casos de actos e contratos celebrados no exercício dos poderes de autoridade as empresas públicas são equiparadas a entidades administrativas.

Esta argumentação não toca no aspecto essencial para a resolução da questão sub judice. Antes de se discutir a natureza jurídica das partes, a qualidade em que cada uma delas actuou na formação e execução do contrato e a natureza jurídica deste último, importa, logicamente, saber em que medida esses aspectos poderão ter relevância para a resolução daquela questão de acordo com a lei, mais precisamente com a norma que define o âmbito da competência material dos tribunais administrativos e fiscais, sabido, como é, que a dos tribunais judiciais é definida por exclusão (artigos 211.º, n.º 1, da Constituição e 64.º do CPC).

A norma que define o âmbito da competência material dos tribunais administrativos e fiscais é o artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Interessa-nos o disposto na alínea e) do n.º 1, de acordo com a qual compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas à validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes. Esta norma inclui, pois, no âmbito da competência material dos tribunais administrativos e fiscais, a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas à execução de contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes. Ainda que não se trate de contratos administrativos, sublinhamos. Ora, no caso sub judice, está provado que, com vista à celebração do contrato de seguro, a recorrente lançou um concurso público nos termos da legislação sobre contratação pública. A própria recorrente admite, nas suas alegações, nomeadamente nas conclusões O) e P), que a lei – concretamente, o Código dos Contratos Públicos – o impunha. Atento o disposto na citada norma legal, é quanto basta para concluir que a competência material para dirimir o conflito que opõe recorrente e recorrida pertence aos tribunais administrativos e fiscais, verificando-se, pois, a excepção dilatória da incompetência em razão da matéria. Logo, o recurso deverá ser julgado improcedente, inexistindo fundamento para revogar a sentença recorrida.

Decisão

Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Notifique.

*

Évora, 6 de Dezembro de 2018

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta)


Voto de vencido exarado em acórdão da Relação de Évora de 30.01.2025

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