Sumário:
Não é de mero expediente o
despacho mediante o qual o tribunal ordena ao insolvente que preste informação
sobre o paradeiro de determinados veículos sob pena de condenação em multa por falta de cooperação processual.
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A insolvente, Sociedade
1, Lda., reclamou, nos termos do artigo 643.º, n.º 1, do CPC, de despacho que
não admitiu um recurso de apelação por si interposto.
Os factos
relevantes para a apreciação da reclamação são os seguintes:
1 – No apenso de
liquidação, foi proferido despacho com o seguinte teor:
«A apreensão de bens/liquidação não ficará indefinidamente a
aguardar a sua prossecução de uma resposta da Insolvente, pelo que deve esta
ser notificada para informar de todos os dados que possua sobre o paradeiro dos
veículos, não lhe cabendo tecer qualquer tipo de considerações laterais sobre
matéria de direito do que deve ou não ser apreendido para a massa insolvente.
Assim, o Tribunal pretende que a Insolvente responda ao seguinte:
1) Sabe do paradeiro dos veículos?
2) Caso a resposta seja negativa, esclarecer por que razão
desconhece?
3) Em qualquer circunstância, explicar qual a última vez que
soube do paradeiro dos veículos e onde estavam, aduzindo tudo quanto saiba a
respeito?
Fica, de imediato, advertida que a falta de resposta ou resposta
insuficiente poderá importa a sua condenação em multa por falta de colaboração
com o Tribunal, em conformidade com o disposto no artigo 417.º, do Código de
Processo Civil, e sem prejuízo da aplicação dos institutos vigentes no Código
da Insolvência e da Recuperação de Empresas, designadamente o incidente de
qualificação da insolvência.
Prazo: 10 dias.
Alarme o processo em conformidade e dê conhecimento ao
Ministério Público.»
2 – A insolvente interpôs
recurso de apelação do despacho transcrito em 1;
3 – Na sequência da
interposição do recurso referido em 2, o tribunal a quo proferiu despacho que se transcreve na parte relevante:
«§2- Requerimento de 06.03.2014 (ref.ª 1788077):
Cumpre proferir despacho, nos termos e para os efeitos do artigo
641.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 17.º, do Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Dispõe o artigo 630.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que
não admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso
legal de um poder discricionário.
No caso sub judicio, e salvo mais douta opinião, o despacho de
que se recorre e notificado à Requerente (conferir referência 7246429) é um
despacho de mero expediente, de mera gestão e prossecução processual,
determinando a imposição de prazo para cumprir um dever de colaboração
processual com a cominação legal e processual eventualmente atendível no caso
de incumprimento ou inação do interveniente processual.
Por conseguinte, o tribunal não admite o recurso, porquanto a
decisão de que se recorre o não permite – artigo 641.º, n.º 2, alínea a), do
Código de Processo Civil.
Sem custas, por delas estar isento.
Notifique.»
4 – A insolvente reclamou
do despacho referido em 3, nos termos do artigo 643.º, n.º 1, do CPC.
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O requerimento
de interposição do recurso foi indeferido com fundamento na qualificação do
despacho recorrido como de mero expediente.
A argumentação
expendida pela insolvente na sua reclamação passa completamente ao lado do
referido fundamento, pois não discute a correcção da qualificação do despacho
recorrido como de mero expediente, antes se centrando na questão, logicamente
posterior por pressupor aquela resolvida em sentido negativo, de saber se o
mesmo despacho é susceptível de apelação autónoma, procurando integrar a
situação dos autos nas previsões das alíneas d) e h) do n.º 2 do artigo 644.º
do CPC. A insolvente confunde a questão da recorribilidade de uma decisão com a
da admissibilidade de recurso de apelação autónomo de uma decisão cuja
recorribilidade se encontra assente[1].
Apesar do
exposto, a questão da recorribilidade da decisão terá de ser analisada.
Decorre do
artigo 627.º, n.º 1, do CPC, que o princípio geral é o da recorribilidade das
decisões judiciais. As hipóteses de irrecorribilidade são excepcionais[2].
O artigo 630.º
do CPC consagra algumas dessas excepções. Aquela que nos interessa, por ter
sido a invocada no despacho reclamado, é a prevista na 1.ª parte do n.º 1.
O artigo
152.º, n.º 4, do CPC, define os despachos de mero expediente aqueles que se
destinam a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito
de interesses entre as partes. Trata-se de despachos «que não põem em causa a
situação subjectiva das partes (por exemplo, são despachos internos, tais como
ordens dirigidas à secretaria), ou que se limitam a fixar datas para a prática
de certos actos processuais»[3]. «Despachos decisórios são os que, como o seu próprio nome sugere, decidem qualquer dúvida suscitada no
processo (…). Os não decisórios ou de mero expediente destinam-se em regra a
ordenar os termos do processo, deixando inalterados os direitos das partes (…)»[4].
Através do
despacho recorrido, o tribunal a quo
ordenou a notificação da insolvente para indicar a localização de três veículos
e, caso a desconhecesse, dizer porquê. Mais, em qualquer hipótese, a insolvente
deveria explicar qual foi última vez que soube do paradeiro dos veículos, aduzindo
tudo quanto soubesse a esse respeito. A insolvente foi advertida de que a falta
de resposta ou a resposta insuficiente ao solicitado poderia importar a sua
condenação em multa por falta de colaboração com o tribunal, em conformidade
com o disposto no artigo 417.º do CPC, e sem prejuízo da aplicação dos
institutos vigentes no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas,
designadamente o incidente de qualificação da insolvência.
Não pode
dizer-se que este despacho se destinou exclusivamente a prover ao andamento
regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes;
que não tenha posto em causa a situação subjectiva da insolvente, deixando
inalterados os direitos desta. O despacho visou, como sempre deveria acontecer
(embora nem sempre aconteça), que o processo atinja a sua finalidade, saindo do
impasse em que aparentemente caíra. Nessa medida, visou prover ao andamento
regular do processo. Contudo, o mesmo despacho fez mais que isso: ordenou à
insolvente que prestasse informação detalhada relativa à localização de três
veículos, implicitamente considerando que a informação por aquela anteriormente
prestada sobre essa matéria era insuficiente, e cominou o eventual
incumprimento do ordenado, além do mais, com a condenação em multa por falta de
cooperação processual. Por via disso, afectou a posição processual da
insolvente, que ficou adstrita ao dever de prestar determinada informação ao
tribunal sob pena de sofrer sanções.
Consequentemente,
o despacho recorrido não pode ser qualificado como de mero expediente, não
cabendo, assim, na excepção ao princípio da recorribilidade das decisões
judiciais invocada pelo tribunal a quo.
O despacho é recorrível e, atento o disposto no artigo 14.º, n.º 5, do CIRE, é
susceptível de recurso de apelação autónomo, a subir imediatamente, em separado
e com efeito meramente devolutivo.
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Dispositivo:
Julgo a reclamação procedente,
admitindo o recurso de apelação interposto pela insolvente, com subida
imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
Comunique este despacho ao
tribunal a quo, a fim de aí se
providenciar pela subida do recurso.
Não são devidas custas.
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08.02.2021
Vítor
Sequinho dos Santos
[1] Acerca desta distinção, leia-se
ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, Recursos no
Novo Código de Processo Civil, 4.ª edição, p. 75, anotação 5 ao artigo
630.º.
[2] JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, Recursos,
edição da AAFDL, 1980, p. 5.
[3] ARMINDO RIBEIRO MENDES, Recursos em Processo Civil, Lisboa,
1992, p. 156.
[4] ARTUR ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório,
vol. III, Coimbra, 1982, p. 95.