segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Decisão singular de 08.02.2021

 

Sumário:

Não é de mero expediente o despacho mediante o qual o tribunal ordena ao insolvente que preste informação sobre o paradeiro de determinados veículos sob pena de condenação em multa por falta de cooperação processual.

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A insolvente, Sociedade 1, Lda., reclamou, nos termos do artigo 643.º, n.º 1, do CPC, de despacho que não admitiu um recurso de apelação por si interposto.

Os factos relevantes para a apreciação da reclamação são os seguintes:

1 – No apenso de liquidação, foi proferido despacho com o seguinte teor:

«A apreensão de bens/liquidação não ficará indefinidamente a aguardar a sua prossecução de uma resposta da Insolvente, pelo que deve esta ser notificada para informar de todos os dados que possua sobre o paradeiro dos veículos, não lhe cabendo tecer qualquer tipo de considerações laterais sobre matéria de direito do que deve ou não ser apreendido para a massa insolvente.

Assim, o Tribunal pretende que a Insolvente responda ao seguinte:

1) Sabe do paradeiro dos veículos?

2) Caso a resposta seja negativa, esclarecer por que razão desconhece?

3) Em qualquer circunstância, explicar qual a última vez que soube do paradeiro dos veículos e onde estavam, aduzindo tudo quanto saiba a respeito?

Fica, de imediato, advertida que a falta de resposta ou resposta insuficiente poderá importa a sua condenação em multa por falta de colaboração com o Tribunal, em conformidade com o disposto no artigo 417.º, do Código de Processo Civil, e sem prejuízo da aplicação dos institutos vigentes no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, designadamente o incidente de qualificação da insolvência.

Prazo: 10 dias.

Alarme o processo em conformidade e dê conhecimento ao Ministério Público.»

2 – A insolvente interpôs recurso de apelação do despacho transcrito em 1;

3 – Na sequência da interposição do recurso referido em 2, o tribunal a quo proferiu despacho que se transcreve na parte relevante:

«§2- Requerimento de 06.03.2014 (ref.ª 1788077):

Cumpre proferir despacho, nos termos e para os efeitos do artigo 641.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 17.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Dispõe o artigo 630.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que não admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso legal de um poder discricionário.

No caso sub judicio, e salvo mais douta opinião, o despacho de que se recorre e notificado à Requerente (conferir referência 7246429) é um despacho de mero expediente, de mera gestão e prossecução processual, determinando a imposição de prazo para cumprir um dever de colaboração processual com a cominação legal e processual eventualmente atendível no caso de incumprimento ou inação do interveniente processual.

Por conseguinte, o tribunal não admite o recurso, porquanto a decisão de que se recorre o não permite – artigo 641.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil.

Sem custas, por delas estar isento.

Notifique.»

4 – A insolvente reclamou do despacho referido em 3, nos termos do artigo 643.º, n.º 1, do CPC.

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O requerimento de interposição do recurso foi indeferido com fundamento na qualificação do despacho recorrido como de mero expediente.

A argumentação expendida pela insolvente na sua reclamação passa completamente ao lado do referido fundamento, pois não discute a correcção da qualificação do despacho recorrido como de mero expediente, antes se centrando na questão, logicamente posterior por pressupor aquela resolvida em sentido negativo, de saber se o mesmo despacho é susceptível de apelação autónoma, procurando integrar a situação dos autos nas previsões das alíneas d) e h) do n.º 2 do artigo 644.º do CPC. A insolvente confunde a questão da recorribilidade de uma decisão com a da admissibilidade de recurso de apelação autónomo de uma decisão cuja recorribilidade se encontra assente[1].

Apesar do exposto, a questão da recorribilidade da decisão terá de ser analisada.

Decorre do artigo 627.º, n.º 1, do CPC, que o princípio geral é o da recorribilidade das decisões judiciais. As hipóteses de irrecorribilidade são excepcionais[2].

O artigo 630.º do CPC consagra algumas dessas excepções. Aquela que nos interessa, por ter sido a invocada no despacho reclamado, é a prevista na 1.ª parte do n.º 1.

O artigo 152.º, n.º 4, do CPC, define os despachos de mero expediente aqueles que se destinam a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes. Trata-se de despachos «que não põem em causa a situação subjectiva das partes (por exemplo, são despachos internos, tais como ordens dirigidas à secretaria), ou que se limitam a fixar datas para a prática de certos actos processuais»[3]. «Despachos decisórios são os que, como o seu próprio nome sugere, decidem qualquer dúvida suscitada no processo (…). Os não decisórios ou de mero expediente destinam-se em regra a ordenar os termos do processo, deixando inalterados os direitos das partes (…)»[4].

Através do despacho recorrido, o tribunal a quo ordenou a notificação da insolvente para indicar a localização de três veículos e, caso a desconhecesse, dizer porquê. Mais, em qualquer hipótese, a insolvente deveria explicar qual foi última vez que soube do paradeiro dos veículos, aduzindo tudo quanto soubesse a esse respeito. A insolvente foi advertida de que a falta de resposta ou a resposta insuficiente ao solicitado poderia importar a sua condenação em multa por falta de colaboração com o tribunal, em conformidade com o disposto no artigo 417.º do CPC, e sem prejuízo da aplicação dos institutos vigentes no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, designadamente o incidente de qualificação da insolvência.

Não pode dizer-se que este despacho se destinou exclusivamente a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes; que não tenha posto em causa a situação subjectiva da insolvente, deixando inalterados os direitos desta. O despacho visou, como sempre deveria acontecer (embora nem sempre aconteça), que o processo atinja a sua finalidade, saindo do impasse em que aparentemente caíra. Nessa medida, visou prover ao andamento regular do processo. Contudo, o mesmo despacho fez mais que isso: ordenou à insolvente que prestasse informação detalhada relativa à localização de três veículos, implicitamente considerando que a informação por aquela anteriormente prestada sobre essa matéria era insuficiente, e cominou o eventual incumprimento do ordenado, além do mais, com a condenação em multa por falta de cooperação processual. Por via disso, afectou a posição processual da insolvente, que ficou adstrita ao dever de prestar determinada informação ao tribunal sob pena de sofrer sanções.

Consequentemente, o despacho recorrido não pode ser qualificado como de mero expediente, não cabendo, assim, na excepção ao princípio da recorribilidade das decisões judiciais invocada pelo tribunal a quo. O despacho é recorrível e, atento o disposto no artigo 14.º, n.º 5, do CIRE, é susceptível de recurso de apelação autónomo, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.

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Dispositivo:

Julgo a reclamação procedente, admitindo o recurso de apelação interposto pela insolvente, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.

Comunique este despacho ao tribunal a quo, a fim de aí se providenciar pela subida do recurso.

Não são devidas custas.

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08.02.2021

Vítor Sequinho dos Santos



[1] Acerca desta distinção, leia-se ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4.ª edição, p. 75, anotação 5 ao artigo 630.º.

[2] JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, Recursos, edição da AAFDL, 1980, p. 5.

[3] ARMINDO RIBEIRO MENDES, Recursos em Processo Civil, Lisboa, 1992, p. 156.

[4] ARTUR ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Coimbra, 1982, p. 95.


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