sábado, 24 de dezembro de 2022

Acórdão da Relação de Évora de 15.12.2022

Processo n.º 6807/21.8T8STB-A.E1

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Sumário:

O regime estabelecido pelo artigo 6.º-E, n.º 7, al. c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, aditado pelo artigo 3.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05.04, é aplicável a todas as hipóteses em que estejam em causa actos de execução da entrega de um local arrendado, independentemente de tais actos ocorrerem no âmbito de uma acção de despejo, de um procedimento especial de despejo ou de uma acção executiva para entrega de coisa certa, de o imóvel a restituir se destinar a habitação ou a outro fim e de, destinando-se a habitação, constituir, ou não, a casa de morada de família do arrendatário.

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AAA e BBB instauraram, contra CCC, acção executiva para entrega de coisa certa.

O título executivo é constituído por uma sentença, não transitada em julgado, proferida em procedimento especial de despejo, que condenou o agora executado a desocupar de imediato o locado e a entregá-lo, livre e desimpedido de pessoas e bens, aos exequentes.

No requerimento executivo, os exequentes alegaram, nomeadamente, que, após a prolação daquela sentença, interpelaram o executado para que procedesse à entrega do imóvel arrendado, o que este não fez, nem manifestou qualquer interesse ou intenção de fazer.

Com vista à efectivação da entrega do locado, o agente de execução deslocou-se a este no dia 15.12.2021. Nessa data, foi recebido por pessoa diversa do executado, a qual, exibindo um documento médico, o informou de que o executado fora submetido a uma cirurgia de urgência à coluna cervical três dias antes, encontrando-se, por isso, medicado e acamado. Em face disso, o agente de execução não realizou a diligência.

Com a mesma finalidade, o agente de execução deslocou-se novamente ao locado no dia 11.01.2022. Foi recebido pelo executado, o qual se recusou a entregar o locado invocando: 1) Encontrar-se em período de convalescença da cirurgia acima referida, o que o impedia de realizar esforços; 2) Não possuir habitação alternativa por falta de meios económicos, uma vez que tinha a conta bancária bloqueada pelas rendas vencidas e não pagas aos exequentes; 3) Ter subarrendado, pelo período de um ano, uma das casas existentes no locado; 4) Pretender aguardar pela decisão do recurso que interpôs da sentença condenatória que constitui o título executivo. O agente de execução consignou, no auto da diligência, que iria «solicitar despacho judicial de auxílio da força pública para realização da diligência de entrega de coisa certa e notificar os sujeitos processuais do presente auto de diligência».

O executado requereu, no processo, a confirmação da suspensão da entrega do locado, invocando, em síntese, o seguinte: 1) Recorreu da sentença que constitui o título executivo; 2) Aquando da primeira deslocação do agente de execução ao locado, o executado encontrava-se em recuperação de uma cirurgia grave e urgente, realizada dias antes; 3) Aquando da segunda deslocação do agente de execução ao locado, o executado expôs-lhe as razões por que não podia proceder à entrega deste; 4) Dada a dimensão da mudança, o executado não a pode efectuar sozinho, nem tem capacidade económica para contratar outrem para a ela proceder; 5) A entrega do locado implicará que o executado fique sem um local para habitar; 6) Existem contratos de subarrendamento, celebrados com terceiros, expressamente autorizados pelos exequentes. O executado concluiu requerendo que, «de acordo com o disposto no artigo 15.º-M n.º 2, 15.º-M n.º 1 al. b) e demais legislação aplicável», seja confirmada a suspensão da entrega do locado, pelo prazo mínimo necessário à sua convalescença, nunca inferior a três meses.

Os exequentes opuseram-se à suspensão da entrega do locado e requereram a autorização da intervenção de força pública para a execução daquela entrega.

Em seguida, o tribunal a quo proferiu despacho que se transcreve na parte relevante:

“Requerimentos de 21.01.2022 e 24.01.2022

Veio o executado requerer a suspensão ou diferimento da entrega do locado por três meses, ao passo que o exequente requer autorização para intervenção da força pública com vista à efectivação da entrega.

O executado tem domicílio no imóvel cuja entrega vem peticionada, conforme resulta dos factos provados descritos na sentença dada à execução (facto M) – O arrendamento assegura a habitação do requerido, constituindo a sua casa de morada).

E, como se sabe, no âmbito das medidas adoptadas no contexto da pandemia da covid19, actualmente está ainda suspensa a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família - art. 6.º-E, n.º 7, alínea b) da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, introduzido pela Lei nº 13-B/2021, de 05.04).

A propósito da aplicação deste regime legal provisório, acompanha-se o entendimento plasmado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27.04.2021, processo 1212/20.6T8LOU-B.P1, www.dgsi.pt e que se transcreve pela sua pertinência para o caso em apreço:

«As normas do art.º 6.º-A, n.º 6 e 7 da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 (na redacção da Lei n.º 16/2020, de 29/05) – actualmente transpostas para o art.º 6.º-E, n.º 7 e 8 da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04 – têm por propósito específico assegurar a manutenção de condições de habitabilidade ou de utilização dos visados com diligências de entrega de imóveis, atendendo ao contexto actual de pandemia que obriga, em muitas situações, a confinamento obrigatório na habitação e que, por outro lado, é potenciador de diminuição dos rendimentos das famílias.

Analisando o texto da lei à luz do espírito da lei, entendemos que o art.º 6.º-A, n.º 6, alíneas b) e c) e n.º 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 (na redacção da Lei n.º 16/2020, de 29/05) prevê três níveis diferentes de protecção das pessoas visadas com diligências de entrega de imóveis:

a) se o imóvel em causa constituir casa de morada de família ficam automaticamente suspensas todas as diligências de entrega judicial da mesma;

b) se o imóvel a entregar, não sendo casa de morada de família, for um imóvel arrendado apenas se suspendem estas mesmas diligências caso “o arrendatário, por força da decisão final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.”

c) se o imóvel em causa não constituir casa de morada de família nem for arrendado somente se suspende a prática de tais diligências caso estas “sejam susceptíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente (…) desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável.»

Por isso se conclui que o «nº 8 do artigo 6-E da Lei nº 1-A/2020 não é uma mera adjectivação da alínea b), do nº 7 do mesmo artigo, sendo antes previsões com pressupostos objectivos e subjectivos de aplicação diversos.» - acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20.09.2021, processo 104/14.2TBVLC-H.P2, www.dgsi.pt.

Em resumo, quer a alínea c) do n.º 7, quer o n.º 8 do art. 6.º-E só têm aplicação quando não está em causa a casa de morada de família; já as situações em que o imóvel (independentemente do título de ocupação) constitui o domicílio do executado caem exclusivamente no âmbito de previsão da alínea b) do n.º 7 e, por via disso, fica suspensa a sua entrega durante a vigência deste regime legal.

Assim sendo e dado que a morada do executado corresponde à do imóvel cuja entrega vem peticionada, sendo esse o seu domicílio, entende-se que tem plena aplicabilidade o art. 6.º-E, n.º 7, alínea b) da Lei n.º 1-A/2020.

Em face do exposto, indefere-se, por ora, o prosseguimento dos autos para efectivação da entrega do imóvel, não se autorizando o recurso à força pública.

Em consequência, fica prejudicada a apreciação do requerido pelo executado, nomeadamente o eventual diferimento da desocupação do imóvel arrendado para habitação nos termos do disposto no art. 864º do CPC.

Notifique.»

Os exequentes interpuseram recurso de apelação do segmento do despacho que transcrevemos, tendo formulado as seguintes conclusões:

I. O presente recurso tem como objecto o douto despacho proferido no âmbito dos autos, e que indeferiu o pedido de prosseguimento do processo para a efectivação do despejo, com recurso à força pública (Ref.ª CITIUS 94291732).

II. A decisão recorrida violou a norma constante do artigo 6.º-E, n.º 7, alíneas b) e c) da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, ao interpretá-la no sentido de que a alínea c) do n.º 7, (e até o n.º 8) do art. 6º-E só têm aplicação quando não está em causa a casa de morada de família; já as situações em que o imóvel (independentemente do título de ocupação) constitui o domicílio do executado caem exclusivamente no âmbito de previsão da alínea b) do n.º 7 e, por via disso, fica suspensa a sua entrega durante a vigência deste regime legal.

III. Tal norma deveria ter sido interpretada no sentido (literal, até) de que em situações em que esteja em causa um contrato de arrendamento, ainda que o locado seja casa de morada de família/habitação permanente do locado, os actos de execução de entrega do locado apenas podem ser suspensos se o arrendatário invocar e demonstrar que por via deles seria colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.

IV. No caso dos autos, por via da execução do despejo que é pretendida, o executado não ficaria colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa, nem o mesmo o invocou e muito menos provou tal situação!

V. Acresce, ainda, que a interpretação da norma constante do artigo 6.º-E, n.º 7, alíneas b) e c) da Lei n.º 1-A/2020,de 19 de Março, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, no sentido de que deverá ser declarada a suspensão do acto de entrega judicial da casa de morada de família, sem qualquer restrição ou condição e independentemente da necessidade do executado ou do prejuízo para o exequente e sem que este tenha direito a qualquer justa indemnização e compensação é materialmente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 18.º, n.º 2 (princípio da proporcionalidade) e no artigo 62.º, n.º 1 (direito de propriedade privada), da Constituição da República Portuguesa.

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A única questão a resolver no presente recurso consiste em saber se, numa acção executiva para entrega de coisa certa em que esta última seja um imóvel objecto de um contrato de arrendamento celebrado entre exequente e executado e entretanto extinto, imóvel esse utilizado para habitação do executado, é aplicável o disposto no artigo 6.º-E, n.º 7, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 05.04.

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Os factos relevantes para a decisão do recurso são os anteriormente descritos.

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O tribunal a quo não apreciou o requerimento mediante o qual o executado solicitou a confirmação da suspensão da entrega do locado. Em vez disso, aplicou o regime constante do artigo 6.º-E, n.º 7, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 05.04.

Na parte relevante para a decisão do recurso, o n.º 7 do artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, estabelece que ficam suspensos, no decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19: b) Os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família; c) Os actos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.

O tribunal a quo interpretou estas duas alíneas, delimitando o âmbito de aplicação de cada uma delas, nos seguintes termos: a al. b) é aplicável a todas as situações em que o imóvel, independentemente do título da ocupação, constitua o domicílio do executado, ficando, por via disso, suspensa a sua entrega durante a vigência do regime excepcional; a al. c) só é aplicável quando, estando em causa actos de execução da entrega de local arrendado, no âmbito de acções de despejo, de procedimentos especiais de despejo e de processos para entrega de coisa imóvel arrendada, o objecto da entrega não constitua a casa de morada de família do requerido.

Discordamos desta interpretação.

A previsão da al. c) abrange todas as hipóteses em que estejam em causa actos de execução da entrega de um local arrendado, ocorram esses actos no âmbito de uma acção de despejo, de um procedimento especial de despejo ou de uma execução para entrega de coisa certa. A norma não distingue se o imóvel a restituir na sequência da extinção do contrato de arrendamento se destinava a habitação ou a outro fim e, na primeira hipótese, constituía a casa de morada de família do arrendatário ou, em vez disso, uma mera habitação secundária. A ausência de tal distinção indicia que o legislador a não pretendeu fazer.

Mais, da própria redacção da al. c) resulta que a previsão desta abrange a hipótese de estar em causa a entrega de um imóvel, anteriormente arrendado, que constituísse a casa de morada de família do arrendatário. Um dos fundamentos de suspensão da entrega do locado é o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, poder ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria. Ora, se a al. c) apenas fosse aplicável na hipótese de o locado não constituir a residência permanente ou, na terminologia da al. b), a casa de morada de família do arrendatário, não vemos como a entrega desse locado, destinado a fim diverso, pudesse colocar o arrendatário em situação de fragilidade por falta de habitação própria. De acordo com tal interpretação da al. c), a entrega do locado ao abrigo do regime nesta estabelecido nunca privaria o arrendatário de habitação própria, uma vez que tal entrega nunca poderia ter por objecto a residência permanente ou casa de morada de família deste último.

Concluímos, assim, que a interpretação correcta é aquela segundo a qual a al. c) é aplicável a todas as hipóteses de entrega de imóvel arrendado, seja qual for o fim deste último e a natureza do processo em que aquela entrega tenha lugar. Já a al. b) assume natureza residual relativamente à al. c), aplicando-se aos actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família que não tenha sido objecto de arrendamento, uma vez que esta última hipótese se encontra regulada na al. c).

A suspensão da entrega da casa de morada de família ao abrigo do disposto na al. b) é automática, isto é, não depende de qualquer pressuposto cuja verificação no caso concreto gere a necessidade de um incidente da instância a tanto destinado. Foi nesses termos que o tribunal a quo decidiu suspender a entrega do locado. Não podia fazê-lo, como decorre da exposição anterior. O regime aplicável é o da al. c).

Já a suspensão da entrega da casa de morada de família ao abrigo do disposto na al. c) não é automática, antes dependendo, atento o princípio do dispositivo, da alegação e prova, por parte do arrendatário, de que, por força da decisão judicial final a proferir, poderá ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa. Se o arrendatário alegar tal situação, terá início um incidente da instância tendente à verificação desse pressuposto da suspensão da entrega. Se o não fizer, a entrega do imóvel não será suspensa.

No caso dos autos, o recorrido não suscitou tal incidente, pelo que o tribunal a quo não podia conhecer da questão prevista na segunda parte da alínea c), como, aliás, não conheceu.

O incidente que o recorrido suscitou foi outro: a confirmação da suspensão da entrega do locado, regulado no artigo 863.º do CPC. Ora, ao suspender a entrega do locado ao abrigo do disposto no artigo 6.º-E, n.º 7, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, o tribunal a quo, por um lado, aplicou indevidamente esta norma legal e, por outro, deixou de se pronunciar sobre o incidente suscitado pelo recorrido. Em face disso, o segmento do despacho do tribunal a quo que foi objecto do presente recurso terá de ser revogado e o mesmo tribunal deverá proferir decisão sobre o incidente suscitado pelo recorrido.

Em face da interpretação que fazemos do artigo 6.º-E, n.º 7, als. b) e c), da Lei n.º 1-A/2020, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, fica prejudicada a apreciação da questão da constitucionalidade da interpretação daquelas normas feita pelo tribunal a quo.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se o segmento do despacho do tribunal a quo que dele foi objecto e determinando-se que o mesmo tribunal se pronuncie sobre o incidente efectivamente suscitado pelo recorrido.

Custas a cargo do recorrido.

Notifique.

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Évora, 15.12.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

1.º adjunto

2.ª adjunta 


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