Processo n.º 6807/21.8T8STB-A.E1
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Sumário:
O
regime estabelecido pelo artigo 6.º-E, n.º 7, al. c), da Lei n.º 1-A/2020, de
19.03, aditado pelo artigo 3.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05.04, é aplicável a todas as hipóteses em que estejam em causa actos de execução da entrega
de um local arrendado, independentemente de tais actos ocorrerem no âmbito de
uma acção de despejo, de um procedimento especial de despejo ou de uma acção
executiva para entrega de coisa certa, de o imóvel a restituir se destinar a
habitação ou a outro fim e de, destinando-se a habitação, constituir, ou não, a
casa de morada de família do arrendatário.
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AAA
e BBB instauraram, contra CCC, acção executiva para entrega de coisa certa.
O
título executivo é constituído por uma sentença, não transitada em julgado,
proferida em procedimento especial de despejo, que condenou o agora executado a
desocupar de imediato o locado e a entregá-lo, livre e desimpedido de pessoas e
bens, aos exequentes.
No
requerimento executivo, os exequentes alegaram, nomeadamente, que, após a
prolação daquela sentença, interpelaram o executado para que procedesse à
entrega do imóvel arrendado, o que este não fez, nem manifestou qualquer
interesse ou intenção de fazer.
Com
vista à efectivação da entrega do locado, o agente de execução deslocou-se a
este no dia 15.12.2021. Nessa data, foi recebido por pessoa diversa do
executado, a qual, exibindo um documento médico, o informou de que o executado fora
submetido a uma cirurgia de urgência à coluna cervical três dias antes,
encontrando-se, por isso, medicado e acamado. Em face disso, o agente de
execução não realizou a diligência.
Com
a mesma finalidade, o agente de execução deslocou-se novamente ao locado no dia
11.01.2022. Foi recebido pelo executado, o qual se recusou a entregar o locado
invocando: 1) Encontrar-se em período de convalescença da cirurgia acima
referida, o que o impedia de realizar esforços; 2) Não possuir habitação
alternativa por falta de meios económicos, uma vez que tinha a conta bancária
bloqueada pelas rendas vencidas e não pagas aos exequentes; 3) Ter
subarrendado, pelo período de um ano, uma das casas existentes no locado; 4)
Pretender aguardar pela decisão do recurso que interpôs da sentença
condenatória que constitui o título executivo. O agente de execução consignou, no
auto da diligência, que iria «solicitar
despacho judicial de auxílio da força pública para realização da diligência de
entrega de coisa certa e notificar os sujeitos processuais do presente auto de
diligência».
O
executado requereu, no processo, a confirmação da suspensão da entrega do
locado, invocando, em síntese, o seguinte: 1) Recorreu da sentença que
constitui o título executivo; 2) Aquando da primeira deslocação do agente de
execução ao locado, o executado encontrava-se em recuperação de uma cirurgia
grave e urgente, realizada dias antes; 3) Aquando da segunda deslocação do
agente de execução ao locado, o executado expôs-lhe as razões por que não podia
proceder à entrega deste; 4) Dada a dimensão da mudança, o executado não a pode
efectuar sozinho, nem tem capacidade económica para contratar outrem para a ela
proceder; 5) A entrega do locado implicará que o executado fique sem um local
para habitar; 6) Existem contratos de subarrendamento, celebrados com
terceiros, expressamente autorizados pelos exequentes. O executado concluiu
requerendo que, «de acordo com o disposto
no artigo 15.º-M n.º 2, 15.º-M n.º 1 al. b) e demais legislação aplicável»,
seja confirmada a suspensão da entrega do locado, pelo prazo mínimo necessário
à sua convalescença, nunca inferior a três meses.
Os
exequentes opuseram-se à suspensão da entrega do locado e requereram a
autorização da intervenção de força pública para a execução daquela entrega.
Em
seguida, o tribunal a quo proferiu
despacho que se transcreve na parte relevante:
“Requerimentos de 21.01.2022 e 24.01.2022
Veio o executado requerer a suspensão ou
diferimento da entrega do locado por três meses, ao passo que o exequente
requer autorização para intervenção da força pública com vista à efectivação da
entrega.
O executado tem domicílio no imóvel cuja
entrega vem peticionada, conforme resulta dos factos provados descritos na
sentença dada à execução (facto M) – O arrendamento assegura a habitação do
requerido, constituindo a sua casa de morada).
E, como se sabe, no âmbito das medidas
adoptadas no contexto da pandemia da covid19, actualmente está ainda suspensa a
concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família -
art. 6.º-E, n.º 7, alínea b) da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, introduzido pela
Lei nº 13-B/2021, de 05.04).
A propósito da aplicação deste regime
legal provisório, acompanha-se o entendimento plasmado no acórdão do Tribunal
da Relação do Porto, de 27.04.2021, processo 1212/20.6T8LOU-B.P1, www.dgsi.pt e
que se transcreve pela sua pertinência para o caso em apreço:
«As normas do art.º 6.º-A, n.º 6 e 7 da
Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 (na redacção da Lei n.º 16/2020, de 29/05) –
actualmente transpostas para o art.º 6.º-E, n.º 7 e 8 da Lei n.º 13-B/2021, de
05/04 – têm por propósito específico assegurar a manutenção de condições de
habitabilidade ou de utilização dos visados com diligências de entrega de
imóveis, atendendo ao contexto actual de pandemia que obriga, em muitas
situações, a confinamento obrigatório na habitação e que, por outro lado, é
potenciador de diminuição dos rendimentos das famílias.
Analisando o texto da lei à luz do
espírito da lei, entendemos que o art.º 6.º-A, n.º 6, alíneas b) e c) e n.º 7,
da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 (na redacção da Lei n.º 16/2020, de 29/05) prevê
três níveis diferentes de protecção das pessoas visadas com diligências de
entrega de imóveis:
a) se o imóvel em causa constituir casa de
morada de família ficam automaticamente suspensas todas as diligências de
entrega judicial da mesma;
b) se o imóvel a entregar, não sendo casa
de morada de família, for um imóvel arrendado apenas se suspendem estas mesmas
diligências caso “o arrendatário, por força da decisão final a proferir, possa
ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por
outra razão social imperiosa.”
c) se o imóvel em causa não constituir
casa de morada de família nem for arrendado somente se suspende a prática de
tais diligências caso estas “sejam susceptíveis de causar prejuízo à
subsistência do executado ou do declarado insolvente (…) desde que essa
suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo
irreparável.»
Por isso se conclui que o «nº 8 do artigo
6-E da Lei nº 1-A/2020 não é uma mera adjectivação da alínea b), do nº 7 do
mesmo artigo, sendo antes previsões com pressupostos objectivos e subjectivos
de aplicação diversos.» - acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de
20.09.2021, processo 104/14.2TBVLC-H.P2, www.dgsi.pt.
Em resumo, quer a alínea c) do n.º 7, quer
o n.º 8 do art. 6.º-E só têm aplicação quando não está em causa a casa de
morada de família; já as situações em que o imóvel (independentemente do título
de ocupação) constitui o domicílio do executado caem exclusivamente no âmbito
de previsão da alínea b) do n.º 7 e, por via disso, fica suspensa a sua entrega
durante a vigência deste regime legal.
Assim sendo e dado que a morada do
executado corresponde à do imóvel cuja entrega vem peticionada, sendo esse o
seu domicílio, entende-se que tem plena aplicabilidade o art. 6.º-E, n.º 7,
alínea b) da Lei n.º 1-A/2020.
Em face do exposto, indefere-se, por
ora, o prosseguimento dos autos para efectivação da entrega do imóvel, não se
autorizando o recurso à força pública.
Em consequência, fica prejudicada a
apreciação do requerido pelo executado, nomeadamente o eventual diferimento da
desocupação do imóvel arrendado para habitação nos termos do disposto no art.
864º do CPC.
Notifique.»
Os
exequentes interpuseram recurso de apelação do segmento do despacho que
transcrevemos, tendo formulado as seguintes conclusões:
I. O
presente recurso tem como objecto o douto despacho proferido no âmbito dos autos,
e que indeferiu o pedido de prosseguimento do processo para a efectivação do despejo,
com recurso à força pública (Ref.ª CITIUS 94291732).
II. A
decisão recorrida violou a norma constante do artigo 6.º-E, n.º 7, alíneas b) e
c)
da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril,
ao interpretá-la no sentido de que a alínea c) do n.º 7, (e até o n.º 8) do
art. 6º-E só têm aplicação quando não está em causa a casa de morada de
família; já as situações em que o imóvel (independentemente do título de
ocupação) constitui o domicílio do executado caem exclusivamente no âmbito de
previsão da alínea b) do n.º 7 e, por via disso, fica suspensa a sua entrega
durante a vigência deste regime legal.
III.
Tal norma deveria ter sido interpretada no sentido (literal, até) de que em
situações em que esteja em causa um contrato de arrendamento, ainda que o
locado seja casa de morada de família/habitação permanente do locado, os actos
de execução de entrega do locado apenas podem ser suspensos se o arrendatário
invocar e demonstrar que por via deles seria colocado em situação de
fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
IV. No
caso dos autos, por via da execução do despejo que é pretendida, o executado não
ficaria colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou
por outra razão social imperiosa, nem o mesmo o invocou e muito menos provou
tal situação!
V.
Acresce, ainda, que a interpretação da norma constante do artigo 6.º-E, n.º 7,
alíneas b) e c) da Lei n.º 1-A/2020,de 19 de Março, aditado pela Lei n.º
13-B/2021, de 5 de Abril, no sentido de que deverá ser declarada a suspensão do
acto de entrega judicial da casa de morada de família, sem qualquer restrição
ou condição e independentemente da necessidade do executado ou do prejuízo para
o exequente e sem que este tenha direito a qualquer justa indemnização e
compensação é materialmente inconstitucional, por violação do disposto no
artigo 18.º, n.º 2 (princípio da proporcionalidade) e no artigo 62.º, n.º 1 (direito
de propriedade privada), da Constituição da República Portuguesa.
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A
única questão a resolver no presente recurso consiste em saber se, numa acção
executiva para entrega de coisa certa em que esta última seja um imóvel objecto
de um contrato de arrendamento celebrado entre exequente e executado e
entretanto extinto, imóvel esse utilizado para habitação do executado, é
aplicável o disposto no artigo 6.º-E, n.º 7, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, de
19.03, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 05.04.
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Os
factos relevantes para a decisão do recurso são os anteriormente descritos.
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O
tribunal a quo não apreciou o
requerimento mediante o qual o executado solicitou a confirmação da suspensão
da entrega do locado. Em vez disso, aplicou o regime constante do artigo 6.º-E,
n.º 7, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, aditado pela Lei n.º 13-B/2021,
de 05.04.
Na
parte relevante para a decisão do recurso, o n.º 7 do artigo 6.º-E da Lei n.º
1-A/2020, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, estabelece que ficam suspensos, no
decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento
da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19: b) Os actos a realizar em
sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização
de diligências de entrega judicial da casa de morada de família; c) Os actos de
execução da entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos
especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando
o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser
colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra
razão social imperiosa.
O tribunal a quo interpretou estas duas alíneas, delimitando o âmbito de
aplicação de cada uma delas, nos seguintes termos: a al. b) é aplicável a todas
as situações em que o imóvel, independentemente do título da ocupação,
constitua o domicílio do executado, ficando, por via disso, suspensa a sua
entrega durante a vigência do regime excepcional; a al. c) só é aplicável quando, estando em causa
actos de execução da entrega de local arrendado, no âmbito de acções de
despejo, de procedimentos especiais de despejo e de processos para entrega de
coisa imóvel arrendada, o objecto da entrega não constitua a casa de morada de
família do requerido.
Discordamos desta interpretação.
A previsão da al. c) abrange todas
as hipóteses em que estejam em causa actos de execução da entrega de um local
arrendado, ocorram esses actos no âmbito de uma acção de despejo, de um
procedimento especial de despejo ou de uma execução para entrega de coisa certa.
A norma não distingue se o imóvel a restituir na sequência da extinção do
contrato de arrendamento se destinava a habitação ou a outro fim e, na primeira
hipótese, constituía a casa de morada de família do arrendatário ou, em vez
disso, uma mera habitação secundária. A ausência de tal distinção indicia que o
legislador a não pretendeu fazer.
Mais, da própria redacção da al.
c) resulta que a previsão desta abrange a hipótese de estar em causa a entrega
de um imóvel, anteriormente arrendado, que constituísse a casa de morada de
família do arrendatário. Um dos fundamentos de suspensão da entrega do locado é
o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, poder ser
colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria. Ora, se a
al. c) apenas fosse aplicável na hipótese de o locado não constituir a
residência permanente ou, na terminologia da al. b), a casa de morada de
família do arrendatário, não vemos como a entrega desse locado, destinado a fim
diverso, pudesse colocar o arrendatário em situação de fragilidade por falta de
habitação própria. De acordo com tal interpretação da al. c), a entrega do
locado ao abrigo do regime nesta estabelecido nunca privaria o arrendatário de
habitação própria, uma vez que tal entrega nunca poderia ter por objecto a
residência permanente ou casa de morada de família deste último.
Concluímos, assim, que a
interpretação correcta é aquela segundo a qual a al. c) é aplicável a todas as
hipóteses de entrega de imóvel arrendado, seja qual for o fim deste último e a
natureza do processo em que aquela entrega tenha lugar. Já a al. b) assume
natureza residual relativamente à al. c), aplicando-se aos actos a realizar em
sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização
de diligências de entrega judicial da casa de morada de família que não tenha
sido objecto de arrendamento, uma vez que esta última hipótese se encontra
regulada na al. c).
A suspensão da entrega da casa
de morada de família ao abrigo do disposto na al. b) é automática, isto é, não
depende de qualquer pressuposto cuja verificação no caso concreto gere a
necessidade de um incidente da instância a tanto destinado. Foi nesses termos
que o tribunal a quo decidiu suspender
a entrega do locado. Não podia fazê-lo, como decorre da exposição anterior. O
regime aplicável é o da al. c).
Já a suspensão da entrega da
casa de morada de família ao abrigo do disposto na al. c) não é automática,
antes dependendo, atento o princípio do dispositivo, da alegação e prova, por
parte do arrendatário, de que, por força da decisão judicial final a proferir,
poderá ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria
ou por outra razão social imperiosa. Se o arrendatário alegar tal situação,
terá início um incidente da instância tendente à verificação desse pressuposto
da suspensão da entrega. Se o não fizer, a entrega do imóvel não será suspensa.
No caso dos autos, o recorrido
não suscitou tal incidente, pelo que o tribunal a quo não podia conhecer da questão prevista na segunda parte da
alínea c), como, aliás, não conheceu.
O incidente que o recorrido
suscitou foi outro: a confirmação da suspensão da entrega do locado,
regulado no artigo 863.º do CPC. Ora, ao suspender a entrega do locado ao
abrigo do disposto no artigo 6.º-E, n.º 7, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, aditado
pela Lei n.º 13-B/2021, o tribunal a quo,
por um lado, aplicou indevidamente esta norma legal e, por outro, deixou de se
pronunciar sobre o incidente suscitado pelo recorrido. Em face disso, o
segmento do despacho do tribunal a quo
que foi objecto do presente recurso terá de ser revogado e o mesmo tribunal
deverá proferir decisão sobre o incidente suscitado pelo recorrido.
Em
face da interpretação que fazemos do artigo 6.º-E, n.º 7, als. b) e c), da Lei
n.º 1-A/2020, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, fica prejudicada a apreciação da
questão da constitucionalidade da interpretação daquelas normas feita pelo tribunal
a quo.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se
o segmento do despacho do tribunal a quo
que dele foi objecto e determinando-se que o mesmo tribunal se pronuncie sobre
o incidente efectivamente suscitado pelo recorrido.
Custas a cargo do recorrido.
Notifique.
*
Évora, 15.12.2022
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
1.º
adjunto
2.ª adjunta