sábado, 20 de julho de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 11.07.2024

Processo n.º 2236/19.1T8STB.E2

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Sumário:

1 – Salvo na hipótese extrema prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, a omissão de factos com relevo para a decisão da causa não é causa de nulidade da sentença.

2 – O artigo 6.º-E, n.º 7, al. c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, aditado pelo artigo 3.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05.04, em vigor à data da prolação da sentença recorrida (28.06.2023) e posteriormente revogado pelo artigo 4.º, als. a) e m), da Lei n.º 31/2023, de 04.07, não suspendia a acção de despejo, mas sim, no âmbito e condições nele previstos, os actos de execução da entrega do local arrendado.

3 – Em execução para entrega de coisa imóvel arrendada para habitação, a simples apresentação de requerimento de diferimento da desocupação, motivada pela cessação do respectivo contrato, determina a suspensão da execução.

4 – Não é admissível o decretamento do diferimento da desocupação do locado na sentença que julgue procedente acção de despejo.

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Autora/recorrida:

AAA.

Ré/recorrente:

BBB.

Pedidos:

a) Ser declarada a resolução do contrato de arrendamento celebrado;

b) Ser a ré condenada a proceder à desocupação da fracção arrendada, devendo a mesma ser entregue à autora, livre de pessoas e bens;

c) Ser a ré condenada no pagamento das rendas vencidas e vincendas até à efectiva desocupação do locado, montante esse acrescido de juros de mora até cumprimento efectivo.

Sentença recorrida:

Julgou a presente acção totalmente procedente, por provada e, em consequência,

1) Declarou resolvido o contrato de arrendamento que vigorava entre a autora e a ré, referente à fracção autónoma designada pela letra F, correspondente ao 2.º andar esquerdo, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito no Largo (…), n.º (…), em (…), inscrito na matriz sob o art. (…) da freguesia de (…), concelho de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…) da referida freguesia;

2) Condenou a ré a entregar, livre e devoluto de pessoas e bens de sua pertença, o descrito imóvel;

3) Condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 3.350, referente às rendas vencidas em Novembro de 2017 a Março de 2019, bem como as rendas vincendas até efectiva entrega do locado, acrescidas dos respectivos juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal de 4 %, a contar do respectivo vencimento;

4) Julgou improcedente o incidente do diferimento do locado deduzido pela ré.

Conclusões do recurso:

I – O art. 6.º E, n.º 7, al. c) parte final, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, aditado pelo art. 3.º da Lei n.º 13-B/2021, de 2021-04-05, ainda se mantém em vigor na data da decisão revidenda.

II – A ré, acedendo ao douto despacho ref. 90731605, de 21-09-2020, provou a sua fragilidade económica e de saúde (03/10/2020, ref.5331214; 14/12/2020, ref, 5476907)

III – A autora respondeu.

IV – Essa matéria não foi objecto de pronúncia na sentença (e, repete-se, a prova da fragilidade da ré está nos autos).

V – A sentença, sob pena de nulidade, e em obediência à lei em vigor, deveria ter julgado provados os factos seguintes:

«1.º - A ré nasceu em (…) de (…) de 1954;

2.º - A ré aufere uma pensão de viuvez de: 263,42 euros;

3.º - A ré não apresenta declaração de IRS porque o seu rendimento anual é inferior ao mínimo que a exige;

4.º - A ré não tem qualquer património imóvel ou móvel sujeito a registo;

5.º - A ré é pessoa doente, com doenças crónicas, nomeadamente, diabetes tipo 2, hipertensão arterial, discopatias, especialmente L5-S1, nódulos tiróide;

6.º - A ré é pessoa com fragilidades de saúde e económicas que não tem tecto para onde ir se for despejada, sem a comunicação à Segurança Social e o diferimento de desocupação com pagamento de rendas pela SS.»

VI – E deveria conter, no dispositivo, um travão à execução, isto é, uma formulação do tipo:

«A presente decisão não pode ser objecto de execução enquanto vigorarem as regras excepcionais de protecção dos arrendatários, por virtude da pandemia por sarscov-2, actualmente constantes do art. 6.º E, n.º 7, al. c) parte final, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, aditado pelo art. 3.º da Lei n.º 13-B/2021, de 2021-04-05».

VII – É nula, pois, a sentença, por omissão de pronúncia, art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.

VIII – O legislador não justifica a razão de o privilégio de diferimento de desocupação estar, sistematicamente, na secção relativa ao Procedimento Especial de Despejo, (Lei 6/2006, versão actual).

IX – Não colhe, apenas, o elemento interpretativo sistemático (tantas as alterações já teve).

X – A interpretação de normas e direitos deve ser feita conforme a Constituição.

XI – São três as formas actuais de despejo, acção, PED e BNA, e a jurisprudência está, maioritariamente, no sentido da optatividade e não da exclusividade.

XII – Portanto, os direitos e interesses do arrendatário devem ter igual protecção, independentemente da forma de despejo escolhida pelo senhorio.

XIII – Qualquer outra decisão é violadora do princípio da igualdade ínsito no art. 13.º da CRP e do art. 65.º da mesma CRP, como o foi a da sentença recorrida que afastou a aplicação do diferimento da desocupação por entender que só se aplica ao PED, interpretando o art. 15.º e segs. (15.º-N) do NRAU (Lei 6/2006) de forma materialmente inconstitucional, criando uma diferença de tratamento entre uns arrendatários e outros.

XIV – Por fim, dizer que o diferimento da desocupação do locado sugerido na sentença, em fase executiva, art. 864.º do CPC, não tem eficácia prática, pois, uma vez mais, o legislador não teve uma visão de conjunto: colide com o disposto no art. 626.º. n.º 3, do CPC, pois o agente de execução, munido de uma sentença condenatória, executa de imediato a desocupação, porque não é necessário despacho liminar ou citação prévia, o que torna vazia e inútil a possibilidade prevista na lei.

Questões a decidir:

1 – Nulidade da sentença;

2 – Admissibilidade do incidente de diferimento da desocupação do locado na acção de despejo.

Factos julgados provados pelo tribunal a quo:

1 – A autora é dona e legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra F, correspondente ao 2.º andar esquerdo do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito no Largo (…), n.º (…), em (…), inscrito na matriz sob o art. (…) da freguesia de (…), concelho de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…) da referida freguesia.

2 – Por contrato de arrendamento para habitação celebrado em 1 de Fevereiro de 2017, a autora deu de arrendamento à ré a referida fracção.

3 – A renda acordada, no montante de € 200 mensais, seria a pagar pela Ré até ao dia 12 de cada mês, sendo que, até à data, não sofreu qualquer alteração.

4 – A ré iniciou o pagamento da renda em causa em Fevereiro de 2017 e, embora sempre com atraso no pagamento, e por vezes fazendo apenas pagamentos parciais, foi efectuando os pagamentos respectivos até ao mês de Outubro de 2017.

5 – Assim, a ré pagou a renda relativa ao mês de Setembro de 2017, em Outubro de 2017 e a renda relativa ao mês de Outubro de 2017, pagou em Janeiro de 2018.

6 – A ré, não obstante a interpelação para o pagamento, deve parte da renda relativa ao mês de Novembro, no montante de € 150 (pois, aquando do pagamento do mês de Outubro, adiantou € 50 para o mês de Novembro) e Dezembro de 2017, num total de € 350.

7 – Deve também a ré, as rendas relativas a todos os meses do ano 2018 (12 x € 200), num total de € 2.400.

8 – E ainda as rendas aos meses de Janeiro, Fevereiro e Março do ano 2019, no montante de € 600.

9 – Até ao presente momento, a ré não procedeu ao pagamento das rendas em falta.

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1 – Nulidade da sentença:

A recorrente sustenta que a sentença padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC (diploma ao qual pertencem as normas doravante referenciadas sem menção da sua origem), porquanto:

- Omitiu factos, que deveriam ter sido julgados provados, relativos à sua fragilidade económica e de saúde;

- Não conheceu a questão da aplicabilidade do artigo 6.º-E, n.º 7, al. c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, aditado pelo artigo 3.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05.04, que se encontrava em vigor à data da sua prolação (28.06.2023);

- Os factos referidos em a) são fundamentais para a apreciação, quer da questão referida em b), quer da questão do diferimento da desocupação do locado.

Analisemos estes argumentos.

1.1. Salvo na hipótese extrema prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), a omissão de factos com relevo para a decisão da causa não é causa de nulidade da sentença. A nulidade prevista na 1.ª parte da al. d) daquele artigo e número verifica-se quando a sentença não se pronuncie sobre questões que devessem ser apreciadas, não quando se limite a omitir factos relevantes para esse efeito. Nesta última hipótese, o vício da sentença será a insuficiência da matéria de facto para a decisão da causa, com as consequências estabelecidas no artigo 662.º, n.º 2, al. c).

Portanto, o primeiro fundamento de nulidade da sentença invocado pelo recorrente não procede. Se os factos que o recorrente considera em falta forem relevantes para o conhecimento de questão sobre a qual o tribunal a quo tiver omitido pronúncia indevidamente, a sentença será nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, mas pela falta de conhecimento daquela questão, não pela falta de inclusão dos factos no respectivo enunciado. Se os factos que o recorrente considera em falta forem relevantes para o conhecimento de questão sobre a qual o tribunal a quo se tiver pronunciado, o vício da sentença será o erro de julgamento e não a nulidade.

Importa ter presente esta distinção porquanto o recorrente considera que os factos que, segundo ele, foram indevidamente omitidos na sentença, são relevantes para a apreciação, quer da questão (não conhecida) da aplicabilidade do artigo 6.º-E, n.º 7, al. c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, aditado pelo artigo 3.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05.04, quer da questão (conhecida) do diferimento da desocupação do locado. A relevância da inclusão de tais factos na sentença recorrida será analisada em 1.2. e 2.3.

1.2. O artigo 6.º-E, n.º 7, al. c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, aditado pelo artigo 3.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05.04, em vigor à data da prolação da sentença recorrida e posteriormente revogado pelo artigo 4.º, als. a) e m), da Lei n.º 31/2023, de 04.07, suspendia os «actos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa».

Os «actos de execução da entrega», sublinhamos. Não se suspendia a acção de despejo, como até então acontecia por via do disposto no artigo 7.º, n.º 10, da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, na sua redacção originária, nos termos do qual «São suspensas as acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria». A recorrente não tem razão quando afirma que «A lei que suspendeu os prazos de despejo ainda estava em vigor». A Lei n.º 13-B/2021 não suspendeu os prazos de despejo.

A prolação de sentença que julgue procedente uma acção de despejo não constitui, obviamente, um acto de execução da entrega do locado. Essa sentença constitui, sim, o título executivo necessário para a instauração da acção executiva para entrega de coisa certa que eventualmente se mostre necessária para o senhorio obter a restituição do locado. Daí que o regime jurídico transitório que vimos analisando em nada afectasse a prolação da sentença recorrida e que esta não tivesse, sequer, de conhecer a questão da sua aplicabilidade. Tratava-se, claramente, de um regime de salvaguarda do interesse do arrendatário destinado a funcionar apenas em sede executiva.

A sentença recorrida não tinha de «conter, no dispositivo, um travão à execução, isto é uma formulação do tipo: “a presente decisão não pode ser objecto de execução enquanto vigorarem as regras excepcionais de protecção dos arrendatários, por virtude da pandemia por sarscov-2, actualmente constantes do art. 6.º E, n.º 7, al. c) parte final, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, aditado pelo art. 3.º da Lei n.º 13-B/2021, de 2021-04-05”», como a recorrente pretende. Por um lado, porque tal declaração não corresponderia ao disposto naquela norma, que suspendia, não a instauração da acção executiva, mas, meramente, a prática dos actos de execução da entrega do local arrendado no âmbito dessa acção. Por outro, porque, se fosse esse o sentido da mesma norma, a sua reprodução na sentença seria inútil. A hipotético obstáculo à instauração da acção executiva decorreria directamente da lei, sem necessidade da mediação da sentença.

Decorre do exposto que o disposto no artigo 6.º-E, n.º 7, al. c), da Lei n.º 1-A/2020, aditado pelo artigo 3.º da Lei n.º 13-B/2021, não impunha a inclusão, no enunciado da matéria de facto provada, dos factos relativos à fragilidade económica e de saúde da recorrente. Tais factos eram, nesta perspectiva, inúteis, uma vez que a sentença recorrida não era a sede própria para o tribunal a quo determinar a suspensão dos actos de execução da entrega do locado com fundamento numa eventual situação de fragilidade da recorrente por falta de habitação própria ou outra razão social imperiosa.

2 – Admissibilidade do incidente de diferimento da desocupação do locado na acção de despejo:

O tribunal a quo considerou que o instituto do diferimento da desocupação do locado não tem aplicação na acção de despejo, mas apenas no procedimento especial de despejo (artigos 15.º e seguintes da Lei n.º 6/2006, de 27.02) e na acção executiva para entrega de coisa imóvel arrendada (artigo 864.º, n.º 1).

A recorrente insurge-se contra este entendimento, com a seguinte argumentação:

- O regime do artigo 864.º colide com o do artigo 626.º, n.º 3, pois, sendo o arrendatário citado só após a remoção dos seus bens e a entrega do locado ao exequente, o pedido de desocupação em processo executivo torna-se vazio e inútil;

- A tese do tribunal a quo viola o princípio constitucional da igualdade e o direito à habitação (artigos 13.º e 65.º da Constituição).

2.1. O primeiro argumento não procede por duas razões. A primeira é a de que parte de um pressuposto que não é inteiramente correcto. A segunda é a de que, ainda que assim não fosse, não poderia produzir o efeito pretendido pela recorrente. Procuraremos demonstrar a primeira neste número. A segunda ficará para 2.2.

O artigo 859.º estabelece que, na execução para entrega de coisa certa, o executado é citado para, no prazo de 20 dias, fazer a entrega ou opor-se à execução mediante embargos. O n.º 4 do artigo 550.º estabelece que o processo comum para entrega de coisa certa e para prestação de facto segue forma única. Poderia, pois, parecer que o arrendatário condenado em acção de despejo é citado para a execução contra ele movida com base na sentença condenatória antes da apreensão do locado. Contudo, não é assim, pois o n.º 3 do artigo 626.º estabelece que, na execução de decisão judicial que condene na entrega de coisa certa, feita a entrega, o executado é notificado para deduzir oposição, seguindo-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 860.º e seguintes. Portanto, até aqui, a recorrente tem razão: a apreensão precede a citação.

Todavia, a lei não deixa o executado completamente desprotegido, como a recorrente pretende fazer crer.

O n.º 3 do artigo 863.º estabelece que, tratando-se de arrendamento para habitação, o agente de execução suspende as diligências executórias quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda. Nessa hipótese, o agente de execução deverá, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, lavrar certidão da ocorrência, juntar os documentos exibidos e advertir o detentor, ou a pessoa que se encontra no local, de que a execução prosseguirá se não solicitar, ao juiz, no prazo de dez dias, a confirmação da suspensão, juntando, ao requerimento, os documentos disponíveis, dando, do facto, imediato conhecimento ao exequente ou ao seu representante.

É evidente a assimetria entre o âmbito de protecção do n.º 3 do artigo 863.º e o do instituto do diferimento da desocupação do locado. O risco de vida por razões de doença aguda é apenas uma das situações susceptíveis de serem qualificadas como «razões sociais imperiosas». Não obstante, aquela norma já acautela as situações de necessidade mais premente de permanência do executado no imóvel.

Importa, por outro lado, considerar que, nos termos do n.º 1 do artigo 863.º, a simples apresentação de requerimento de diferimento da desocupação do local arrendado para habitação, motivada pela cessação do respectivo contrato, determina a suspensão da execução. Por essa via, confrontado com as diligências executórias, o executado tem a possibilidade de obter a imediata suspensão da execução, requerendo o diferimento da desocupação.

É esta a protecção que o legislador pretendeu conferir ao executado nas circunstâncias descritas. Poderá discutir-se a sua suficiência e adequação aos interesses em jogo, mas em sede diversa de uma decisão judicial de um caso concreto. O quadro legal relevante é o descrito e é dentro dele que os tribunais terão de decidir.

2.2. Concluímos, em 2.1, pelo insucesso da demonstração, que a recorrente se propôs fazer, de que uma absoluta ausência de protecção do arrendatário no processo executivo reclama a aplicação do instituto do diferimento da desocupação na acção de despejo. Tal protecção existe, sem prejuízo, evidentemente, da pertinência da discussão sobre a sua suficiência e adequação aos interesses em jogo, a ter lugar no plano do direito a constituir.

Porém, tal conclusão não basta para fundamentar devidamente a decisão do presente recurso. Importa demonstrar que a inaplicabilidade do instituto do diferimento da desocupação na acção de despejo não decorre, meramente, da inexistência da necessidade invocada, antes sendo consequência dos dados legislativos inequívocos que vigoravam em 28.06.2023, data da prolação da sentença recorrida, sendo certo que os mesmos se alteraram por efeito da Lei n.º 56/2023, de 06.10. Para esse efeito, reproduzimos a parte relevante do acórdão desta Relação de 07.04.2022, proferido no processo n.º 1146/19.7T8PTM.E1, cujo relator é o mesmo deste:

«O artigo 14.º, n.º 1, do NRAU, estabelece que a acção de despejo se destina a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação e segue a forma de processo comum declarativo. A lei não prevê, em tal sede, a possibilidade de o tribunal decretar o diferimento da desocupação do locado, com intervenção do Fundo de Socorro Social para assegurar o pagamento das rendas que se vencerem ao longo desse período. Tal possibilidade apenas se encontra prevista na acção executiva destinada à entrega do locado que eventualmente venha a ser instaurada, nos termos dos artigos 859.º a 867.º do CPC, bem como no procedimento especial de despejo, regulado nos artigos 15.º a 15.º-S do NRAU.

Pormenorizando, o artigo 862.º do CPC estabelece que à execução para entrega de coisa imóvel arrendada são aplicáveis as disposições referentes à execução para entrega de coisa certa, com as alterações constantes dos artigos 863.º a 866.º. O artigo 863.º, n.º 1, estabelece que a execução se suspende se o executado requerer o diferimento da desocupação do local arrendado para habitação, motivada pela cessação do respectivo contrato, nos termos do artigo seguinte. O artigo 864.º, n.º 1, estabelece que, no caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três. O artigo 864.º, n.º 2, estabelece que o diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos: a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção; b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %. O artigo 864.º, n.º 3, estabelece que, no caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste. O artigo 865.º, n.º 1, dispõe que a petição de diferimento da desocupação assume caráter de urgência e é indeferida liminarmente quando: a) Tiver sido deduzida fora do prazo; b) O fundamento não se ajustar a algum dos referidos no artigo anterior; c) For manifestamente improcedente. Os n.ºs 2 a 4 do artigo 865.º dispõem que, se a petição for recebida, o exequente é notificado para contestar, dentro do prazo de 10 dias, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três (n.º 2), que o juiz deve decidir do pedido de diferimento da desocupação por razões sociais no prazo máximo de 20 dias a contar da sua apresentação, sendo, no caso previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo anterior, a decisão oficiosamente comunicada, com a sua fundamentação, ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (n.º 3) e que o diferimento não pode exceder o prazo de cinco meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder (n.º 4). Destas normas decorre, nomeadamente, que, na acção executiva destinada à entrega do locado, a apresentação, pelo executado, de requerimento de diferimento da desocupação, dentro do prazo e com observância dos requisitos formais descritos, tem efeito suspensivo daquela, iniciando-se então o incidente regulado nos artigos 864.º e 865.º do CPC.

Por outro lado, o artigo 15.º, n.º 1, do NRAU, define o procedimento especial de despejo como o meio processual que se destina a efectivar a cessação do arrendamento, independentemente do fim a que este se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes. O artigo 15.º-N do NRAU estabelece que, no caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo para a oposição ao procedimento especial de despejo, o arrendatário pode requerer ao juiz do tribunal judicial da situação do locado o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três (n.º 1); o diferimento da desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos: a) que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção; b) que o arrendatário tem deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60% (n.º 2); no caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste (n.º 3). O artigo 15.º-O do NRAU estabelece, por seu turno, que o requerimento de diferimento da desocupação assume carácter de urgência e é indeferido liminarmente quando: a) tiver sido apresentado fora do prazo; b) o fundamento não se ajustar a algum dos referidos no artigo anterior; c) for manifestamente improcedente (n.º 1); se o requerimento for recebido, o senhorio é notificado para contestar, dentro do prazo de 10 dias, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três (n.º 2); o juiz deve decidir o pedido de diferimento da desocupação por razões sociais no prazo máximo de 20 dias a contar da sua apresentação, sendo, no caso previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo anterior, a decisão oficiosamente comunicada, com a sua fundamentação, ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (n.º 3); o diferimento não pode exceder o prazo de cinco meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder (n.º 4). Todas estas normas são privativas do procedimento especial de despejo, que não se confunde com a acção de despejo, a que se reporta o artigo 14.º do NRAU. Repetimos, a lei não prevê a possibilidade de, na acção de despejo, o tribunal decretar o diferimento da desocupação do locado, com intervenção do Fundo de Socorro Social para assegurar o pagamento das rendas que se vencerem ao longo desse período.

A ausência dessa previsão não constitui uma lacuna da lei. Estabelecendo esta, nos termos descritos, a possibilidade de diferimento da desocupação do local arrendado para habitação na acção executiva, seria redundante fazê-lo, igualmente, em sede declarativa, ou seja, na acção de despejo. Tal duplicação seria desnecessária e geradora de problemas ao nível da interpretação da lei. Para acautelar o interesse da pessoa obrigada à desocupação do locado, basta a permissão legal do diferimento daquela na acção executiva. (…) tratou-se de uma opção do legislador, inexistindo uma lacuna na regulamentação da acção de despejo que careça de ser preenchida através da aplicação analógica de normas legais estabelecidas em sede diversa.

Ainda que estivéssemos perante uma lacuna, a mesma não poderia ser preenchida mediante a aplicação, por analogia, das normas que estabelecem a possibilidade de diferimento da desocupação, com intervenção do Fundo de Socorro Social para assegurar o pagamento das rendas vencidas ao longo desse período, que acima citámos. Tais normas impõem uma restrição ao direito de propriedade que tem de ser considerada excepcional, pois, apesar de estar reconhecido o direito à restituição do locado, o exercício de tal direito fica temporariamente paralisado por razões atinentes à pessoa do obrigado à restituição. Consequentemente, nos termos do artigo 11.º do Código Civil, sempre estaria vedada a aplicação das normas referidas por analogia.»

Por estas razões, impõe-se concluir que, à luz da lei vigente à data da prolação da sentença recorrida, o instituto do diferimento da desocupação era inaplicável à acção de despejo.

2.3. Retomemos a questão, deixada em suspenso em 1.1, da omissão, no enunciado da matéria de facto provada, dos factos referidos na conclusão V. À semelhança do tribunal a quo, consideramos tais factos irrelevantes para a decisão da causa, dada a inaplicabilidade do instituto do diferimento da desocupação à acção de despejo. Daí que a opção do tribunal a quo de os omitir na sentença recorrida seja correcta.

2.4. Resta refutar o argumento de que a inaplicabilidade do instituto do diferimento da desocupação à acção de despejo viola o princípio da igualdade e o direito à habitação, consagrados nos artigos 13.º e 65.º da Constituição.

O princípio constitucional da igualdade não é violado porquanto o réu da acção de despejo julgada procedente não fica privado da possibilidade de obter o diferimento da desocupação do locado, só que apenas em sede de execução da sentença. Não ocorre qualquer desigualdade de tratamento, relativamente ao que acontecia no procedimento especial de despejo antes da entrada em vigor da Lei n.º 56/2023, que viole aquele princípio constitucional.

Quanto à suposta violação do direito à habitação, importa começar por lembrar que, como resulta do artigo 65.º da Constituição, a prossecução das políticas necessárias para a sua plena realização constitui tarefa do Estado, com a colaboração das regiões autónomas e das autarquias locais, e não aos particulares. Importa, igualmente, notar que o facto de o diferimento da desocupação do locado poder ser decretado apenas na fase executória da sentença que tenha julgado procedente acção de despejo não prejudica a protecção do obrigado à restituição do locado quando razões sociais imperiosas o justifiquem. Importa, finalmente, ponderar que a possibilidade de diferimento da desocupação do locado, fundada em razões sociais imperiosas, por um período máximo de cinco meses (artigo 865.º, n.º 4), em sede de execução da sentença que tenha julgado procedente a acção de despejo, já constitui uma compressão significativa do direito do senhorio, a quem não é exigível maior sacrifício com vista à prossecução do direito constitucional à habitação. Por este somatório de razões, impõe-se concluir que não é violado o direito constitucional à habitação.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente, sem prejuízo do decidido em matéria de apoio judiciário.

Notifique.

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Évora, 11.07.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.ª adjunta)

(2.ª adjunta)

 

terça-feira, 2 de julho de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 27.06.2024

Processo n.º 4269/15.8T8STB-G.E1 – Inventário. 

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Sumário:

1 – Para que possa ter-se por verificada uma violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, é necessária a prolação sucessiva de duas decisões sobre a mesma matéria, sejam elas no mesmo sentido ou em sentidos diversos.

2 – O tribunal apenas pode remeter os interessados para os meios comuns, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 1093.º do CPC, quando a questão em causa exija larga e complexa indagação factual, de tal modo que a sua solução se mostre inadequada ou dificilmente apreciável no processo de inventário, especialmente por os interessados não poderem aí exercer cabalmente a defesa dos seus direitos.

3 – O dever de fundamentação das decisões judiciais impõe que a decisão de remeter os interessados para os meios comuns, ao abrigo do disposto no artigo 1093.º, n.º 1, do CPC, especifique as razões que levaram o tribunal a concluir que a complexidade da matéria de facto subjacente à questão em discussão torna inconveniente a sua apreciação no processo de inventário, por implicar uma redução das garantias das partes.

4 – A complexidade de uma questão jurídica, por maior que se afigure aos olhos do tribunal a quo, não pode constituir fundamento para a remessa dos interessados para os meios comuns.

*

Requerente/interessada/recorrente:

- AAA.

Requerido/cabeça-de-casal/recorrido:

- BBB.

Factos relevantes para a decisão do recurso:

1 – BBB apresentou uma relação de bens.

2 – AAA reclamou contra a relação de bens apresentada, invocando, além do mais, a falta de relacionamento de saldos de contas bancárias.

3 – Na sequência de diligências probatórias realizadas no âmbito do incidente de reclamação contra a relação de bens, AAA requereu que, a esta, fossem aditados os saldos resgatados de uma apólice de «GNB PPR Taxa Garantida», nos valores de € 39.988,52 e de € 5.207,96.

4 – BBB sustenta que:

- O saldo da conta no Banco BPI, no valor de € 52.757,67, pertencia a sua mãe, tendo-o herdado por morte desta, pelo que se trata de um bem próprio, que não tem de ser relacionado.

- Os saldos resgatados da apólice n.º 61/1029008 de NF PPR Taxa Garantida, nos valores de € 39.988,52 (resgate em 18.09.2014), € 19.990,54 (resgate em 29.09.2024) e € 5.207,96 (resgate em 02.04.2015) são bens próprios, quer porque se trata de um seguro de vida, quer porque este foi constituído com dinheiro em parte emprestado por sua mãe e, na parte restante, proveniente dos lucros emergentes da exploração de um estabelecimento comercial que, por óbito de seu pai, herdou conjuntamente com sua mãe. Daí que também não tenha de ser relacionado.

5 – Em resposta, AAA manteve a posição anteriormente assumida.

6 – Em audiência prévia realizada no dia 28.11.2023, foi proferido despacho mediante o qual o tribunal a quo decidiu, além do mais, o seguinte:

«Tendo em consideração que a relação de bens ainda não foi apresentada devidamente atualizada, tendo em consideração a informação prestada pelo banco BPI no que respeita a verba n.º 1 do ativo, bem como a informação prestada pela companhia de seguros - grupo novo banco -, determino que o cabeça de casal proceda a uma atualização da relação de bens em conformidade com a informação fornecida pelas entidades bancárias, desde já salientado que, no que respeita à verba n.º 1 do ativo, alegando o mesmo que parte do dinheiro foi transferido de uma conta da sua mãe, deverá juntar os comprovativos respetivos.»

7 – Em audiência prévia realizada no dia 16.01.2024, foi proferido despacho mediante o qual o tribunal a quo decidiu o seguinte:

«Uma vez que o relatório ainda não foi notificado às partes proceda à sua notificação.

Para realização de nova audiência previa designo o dia 26/02/2024, pelas 13h30min.

Uma vez aceite o valor indicado no relatório pericial, deverá o cabeça de casal apresentar relação de bens atualizada, com indicação dos valares dos bens imóveis bem como das contas bancárias, em conformidade com a informação junta aos autos.

Providencie pelo pagamento dos honorários ao Sr. Perito.»

8 – Em audiência prévia realizada no dia 26.02.2024, foi proferido despacho mediante o qual o tribunal a quo decidiu o seguinte:

«Tendo em consideração que as partes não chegam a acordo e que se impõe apurar se o valor depositado no Banco BPI e os seguros do Grupo Novo Banco constituem um bem comum ou são bem próprio do cabeça de casal, determino a remessa para os meios comuns, uma vez que só depois de decidida esta questão poder-se-á fazer a partilha dos bens.»

9 – AAA interpôs recurso do despacho transcrito em 8.

Conclusões do recurso:

A – O despacho recorrido é contrário à decisão vertida nos despachos que o antecederam, dos quais não houve recurso ou reclamação, tendo transitado em julgado, cristalizando-se o seu efeito processual;

B – A audiência prévia na qual foram proferidos os despachos anteriores ao recorrido foi convocada nos termos do disposto no artigo 1109.º, número 1, do Código de Processo Civil, «com vista à obtenção de acordo sobre a partilha», não com vista à obtenção de acordo acerca de alguma ou algumas das questões controvertidas ou com vista a ouvir pessoalmente os interessados sobre alguma questão;

C – Na falta de acordo, à Meritíssima Juíza a quo restava o seguimento para a fase de «Saneamento do processo e conferência de interessados», pois o disposto no número 3 do artigo 1109.º estará reservado para as questões controvertidas em matéria de oposição ou de impugnação, não já para o «acordo sobre a partilha»;

D – Ainda que assim não se entendesse, não estaria a Meritíssima Juíza a quo dispensada de proceder à «realização das diligências instrutórias necessárias para decidir as matérias objeto de oposição ou de impugnação»;

E – Pois a remessa para os meios comuns é uma excepção ao princípio da suficiência do processo de inventário, reservada às matérias de extensa indagação fáctica e cuja apreciação em sede de inventário resulte numa redução das normais garantias das partes;

F – O que não acontece no caso vertente quando está unicamente em causa a questão da titularidade dos saldos bancários, sobre os quais o cabeça-de-casal teve oportunidade de se pronunciar extensamente, produzindo toda a prova que entendesse, inclusive opondo-se ao levantamento do sigilo bancário, oposição essa suprida judicialmente, com necessária ponderação de todos os direitos, interesses e garantias;

G – Não sendo despiciendo o facto de a decisão recorrida acontecer em 2024, quando o processo de inventário teve o seu início em Abril de 2017, tendo ainda na fase notarial estado suspenso precisamente para ser suprida a falta de autorização do cabeça-de-casal para o levantamento do sigilo bancário, determinando flagrante violação do direito a uma decisão em prazo razoável;

H – Dando-se assim por violadas as normas dos artigos 613.º, números 1 e 3, 1093.º, número 1, e 1109.º, números 1 e 3, todos do Código de Processo Civil, artigo 20.º, número 4, da Constituição e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ratificada pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro.

Questões a decidir:

1 – Violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional;

2 – Verificação dos pressupostos da remessa dos interessados para os meios comuns.

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1 – Violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional:

A recorrente afirma que, ao proferir o despacho recorrido, o tribunal a quo violou o princípio do esgotamento do poder jurisdicional, consagrado nos n.ºs 1 e 3 do artigo 613.º do CPC, porquanto proferira anteriormente (em 28.11.2023 e 16.01.2024) dois despachos em sentido contrário.

A recorrente não tem razão.

O n.º 1 do artigo 613.º do CPC estabelece que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. Esta regra é aplicável aos despachos, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo. Consagra-se, assim, o princípio do esgotamento do poder jurisdicional.

No despacho recorrido, o tribunal a quo remeteu os interessados para os meios comuns. Ora, nos despachos proferidos em 28.11.2023 e 16.01.2024, acima transcritos, o tribunal a quo nada decidiu sobre esta matéria.

Admite-se que, perante o teor dos despachos de 28.11.2023 e 16.01.2024, a recorrente tenha adquirido a convicção de que o tribunal a quo iria decidir, ele próprio (como, aliás, deve acontecer, salvo em hipóteses excepcionais), a questão de saber se o saldo da conta no Banco BPI e os saldos do PPR que foram resgatados são bens comuns do casal ou próprios do recorrido. Contudo, isso não é suficiente para se poder considerar que, ao decidir remeter a recorrente e o recorrido para os meios comuns, o tribunal a quo tenha violado o princípio do esgotamento do poder jurisdicional. Resulta do n.º 1 do artigo 613.º do CPC que, para que essa violação ocorra, é necessária a prolação sucessiva de duas decisões sobre a mesma matéria, sejam elas no mesmo sentido ou em sentidos diversos, o que não aconteceu no caso dos autos.

2 – Verificação dos pressupostos da remessa dos interessados para os meios comuns:

No despacho recorrido, não é mencionada a norma legal ao abrigo da qual os interessados foram remetidos para os meios comuns. Tendo em conta a natureza da questão referida nesse despacho («se o valor depositado no Banco BPI e os seguros do Grupo Novo Banco constituem um bem comum ou são bem próprio do cabeça de casal»), parece que o tribunal a quo teve em mente o disposto no n.º 1 do artigo 1093.º do CPC, que estabelece que, se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados directos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.

O despacho recorrido omite, pura e simplesmente, a indicação das razões pelas quais o tribunal a quo considera que a complexidade da matéria de facto subjacente à questão de saber se o saldo da conta no Banco BPI e os saldos do PPR que foram resgatados são bens comuns do casal ou próprios do recorrido torna inconveniente a sua apreciação no incidente de reclamação contra a relação de bens.

Aquilo que resulta do despacho recorrido é que as razões que levaram o tribunal a quo a remeter os interessados para os meios comuns foram, exclusivamente, as seguintes: 1) Falta de acordo entre os interessados; 2) Necessidade de decidir aquela questão antes de se proceder à partilha.

Nenhuma destas razões justifica a remessa dos interessados para os meios comuns.

É por não existir acordo entre os interessados que este processo de inventário existe. Os interessados não têm um dever de chegarem a acordo sobre a matéria em disputa, cujo incumprimento justifique a sua remessa para os meios comuns. É, sim, o tribunal que tem o dever de decidir o litígio. Ou seja, não havendo acordo entre os interessados, o tribunal tem de decidir, sob pena de estar a denegar justiça. Tudo isto é óbvio e apenas o mencionamos porque, lendo o despacho recorrido, fica-se com a ideia de que a decisão de remeter os interessados para os meios comuns foi determinada pelo facto de não ter havido acordo entre eles, tendo funcionado como uma espécie de sanção pela ausência desse acordo.

A necessidade de decidir a questão que se encontra em discussão no incidente de reclamação contra a relação de bens antes de se proceder à partilha constitui uma evidência. Porém, a prolação de tal decisão deve ter lugar no âmbito daquele incidente, nos termos do n.º 3 do artigo 1105.º do CPC, salvo nas hipóteses, de natureza excepcional, em que se verifiquem os pressupostos legais da remessa dos interessados para os meios comuns. Em tais hipóteses, optando o tribunal pelo uso desta permissão legal, ficará com o dever de fundamentar a sua decisão, nos termos do artigo 154.º do CPC, indicando as razões pelas quais considera que a complexidade da matéria de facto subjacente à questão torna inconveniente a apreciação desta no incidente de reclamação contra a relação de bens, por implicar uma redução das garantias das partes.

Foi isto que o tribunal a quo não fez. Reconheceu a óbvia inexistência de acordo e a não menos óbvia necessidade de decidir a questão antes de se proceder à partilha, mas a decisão de remeter os interessados para os meios comuns ficou, pura e simplesmente, por fundamentar.

Não ficaremos, porém, pela constatação de que o despacho recorrido padece deste vício. Tendo em conta a natureza da questão que importa decidir neste incidente de reclamação contra a relação de bens e os elementos constantes dos autos, impõe-se, além disso, concluir que não se encontra demonstrada a verificação dos pressupostos da remessa dos interessados para os meios comuns.

O tribunal apenas pode remeter os interessados para os meios comuns, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 1093.º do CPC, «quando a questão em causa exija larga e complexa indagação factual, de tal modo que a sua solução se mostre inadequada ou dificilmente apreciável no processo de inventário, especialmente por os interessados não poderem aí exercer cabalmente a defesa dos seus direitos».[1]

Não nos parece que seja esse o caso dos autos. A origem do dinheiro depositado no BPI e utilizado para a subscrição do PPR será, à partida, objecto de prova documental. Os fluxos financeiros provam-se, ao menos em princípio, através dos documentos que lhes servem de suporte, documentos esses que as instituições financeiras têm o dever de conservar e, verificados os respectivos pressupostos legais, facultar ao tribunal. Sendo assim, nada parece obstar à obtenção dessa prova e ao pleno exercício do contraditório no âmbito do incidente de reclamação contra a relação de bens, sem que isso implique qualquer redução das garantias dos interessados.

A complexidade da questão jurídica suscitada pelo recorrido a propósito da natureza própria ou comum dos saldos do PPR que foram resgatados, por maior que se afigure aos olhos do tribunal a quo, não pode constituir fundamento para a remessa dos interessados para os meios comuns. Nos termos do n.º 1 do artigo 1093.º do CPC, apenas a complexidade da matéria de facto poderá constituir fundamento para tal remessa.

Concluindo, não se verificam os pressupostos legais da remessa dos interessados para os meios comuns, pelo que o despacho recorrido deverá ser revogado.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido.

Custas a cargo do recorrido.

Notifique.

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Évora, 27.06.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.ª adjunta)

(2.º adjunto)



[1] Acórdão da Relação do Porto de 08.09.2020 (Filipe Caroço). No mesmo sentido, acórdãos da Relação de Coimbra de 28.10.2003 (Jaime Carlos Ferreira), da Relação de Évora de 19.11.2020 (Isabel Peixoto Imaginário) e da Relação do Porto de 07.11.2005 (Pinto Ferreira).

Acórdão da Relação de Évora de 12.09.2024

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