Processo n.º 2236/19.1T8STB.E2
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Sumário:
1 – Salvo na
hipótese extrema prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, a omissão de
factos com relevo para a decisão da causa não é causa de nulidade da sentença.
2 – O artigo 6.º-E,
n.º 7, al. c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, aditado pelo artigo 3.º da Lei
n.º 13-B/2021, de 05.04, em vigor à data da prolação da sentença recorrida
(28.06.2023) e posteriormente revogado pelo artigo 4.º, als. a) e m), da Lei
n.º 31/2023, de 04.07, não suspendia a acção de despejo, mas sim, no âmbito e
condições nele previstos, os actos de execução da entrega do local arrendado.
3 – Em
execução para entrega de coisa imóvel arrendada para habitação, a simples
apresentação de requerimento de diferimento da desocupação, motivada pela
cessação do respectivo contrato, determina a suspensão da execução.
4 – Não é
admissível o decretamento do diferimento da desocupação do locado na sentença
que julgue procedente acção de despejo.
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Autora/recorrida:
AAA.
Ré/recorrente:
BBB.
Pedidos:
a) Ser declarada a
resolução do contrato de arrendamento celebrado;
b) Ser a ré condenada a
proceder à desocupação da fracção arrendada, devendo a mesma ser entregue à
autora, livre de pessoas e bens;
c) Ser a ré condenada no
pagamento das rendas vencidas e vincendas até à efectiva desocupação do locado,
montante esse acrescido de juros de mora até cumprimento efectivo.
Sentença
recorrida:
Julgou a presente acção
totalmente procedente, por provada e, em consequência,
1) Declarou resolvido o
contrato de arrendamento que vigorava entre a autora e a ré, referente à
fracção autónoma designada pela letra F, correspondente ao 2.º andar esquerdo,
do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito no Largo (…), n.º (…),
em (…), inscrito na matriz sob o art. (…) da freguesia de (…), concelho de (…),
descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…) da referida
freguesia;
2) Condenou a ré a
entregar, livre e devoluto de pessoas e bens de sua pertença, o descrito imóvel;
3) Condenou a ré a pagar à
autora a quantia de € 3.350, referente às rendas vencidas em Novembro de 2017 a
Março de 2019, bem como as rendas vincendas até efectiva entrega do locado,
acrescidas dos respectivos juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal de
4 %, a contar do respectivo vencimento;
4) Julgou improcedente o
incidente do diferimento do locado deduzido pela ré.
Conclusões do
recurso:
I – O art. 6.º E, n.º 7,
al. c) parte final, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, aditado pelo art. 3.º
da Lei n.º 13-B/2021, de 2021-04-05, ainda se mantém em vigor na data da
decisão revidenda.
II – A ré, acedendo ao
douto despacho ref. 90731605, de 21-09-2020, provou a sua fragilidade económica
e de saúde (03/10/2020, ref.5331214; 14/12/2020, ref, 5476907)
III – A autora respondeu.
IV – Essa matéria não foi
objecto de pronúncia na sentença (e, repete-se, a prova da fragilidade da ré
está nos autos).
V – A sentença, sob pena
de nulidade, e em obediência à lei em vigor, deveria ter julgado provados os
factos seguintes:
«1.º - A ré nasceu em (…) de (…) de 1954;
2.º - A ré aufere uma pensão de viuvez de: 263,42 euros;
3.º - A ré não apresenta declaração de IRS porque o seu
rendimento anual é inferior ao mínimo que a exige;
4.º - A ré não tem qualquer património imóvel ou móvel sujeito a
registo;
5.º - A ré é pessoa doente, com doenças crónicas, nomeadamente, diabetes
tipo 2, hipertensão arterial, discopatias, especialmente L5-S1, nódulos
tiróide;
6.º - A ré é pessoa com fragilidades de saúde e económicas que
não tem tecto para onde ir se for despejada, sem a comunicação à Segurança
Social e o diferimento de desocupação com pagamento de rendas pela SS.»
VI – E deveria conter, no
dispositivo, um travão à execução, isto é, uma formulação do tipo:
«A presente decisão não pode ser objecto de execução enquanto vigorarem
as regras excepcionais de protecção dos arrendatários, por virtude da pandemia
por sarscov-2, actualmente constantes do art. 6.º E, n.º 7, al. c) parte final,
da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, aditado pelo art. 3.º da Lei n.º
13-B/2021, de 2021-04-05».
VII – É nula, pois, a
sentença, por omissão de pronúncia, art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.
VIII – O legislador não
justifica a razão de o privilégio de diferimento de desocupação estar,
sistematicamente, na secção relativa ao Procedimento Especial de Despejo, (Lei 6/2006,
versão actual).
IX – Não colhe, apenas, o
elemento interpretativo sistemático (tantas as alterações já teve).
X – A interpretação de
normas e direitos deve ser feita conforme a Constituição.
XI – São três as formas
actuais de despejo, acção, PED e BNA, e a jurisprudência está,
maioritariamente, no sentido da optatividade e não da exclusividade.
XII – Portanto, os
direitos e interesses do arrendatário devem ter igual protecção,
independentemente da forma de despejo escolhida pelo senhorio.
XIII – Qualquer outra
decisão é violadora do princípio da igualdade ínsito no art. 13.º da CRP e do
art. 65.º da mesma CRP, como o foi a da sentença recorrida que afastou a aplicação
do diferimento da desocupação por entender que só se aplica ao PED,
interpretando o art. 15.º e segs. (15.º-N) do NRAU (Lei 6/2006) de forma
materialmente inconstitucional, criando uma diferença de tratamento entre uns
arrendatários e outros.
XIV – Por fim, dizer que o
diferimento da desocupação do locado sugerido na sentença, em fase executiva,
art. 864.º do CPC, não tem eficácia prática, pois, uma vez mais, o legislador
não teve uma visão de conjunto: colide com o disposto no art. 626.º. n.º 3, do
CPC, pois o agente de execução, munido de uma sentença condenatória, executa de
imediato a desocupação, porque não é necessário despacho liminar ou citação
prévia, o que torna vazia e inútil a possibilidade prevista na lei.
Questões a
decidir:
1 – Nulidade da sentença;
2 – Admissibilidade do
incidente de diferimento da desocupação do locado na acção de despejo.
Factos
julgados provados pelo tribunal a quo:
1 – A autora é dona e
legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra F,
correspondente ao 2.º andar esquerdo do prédio urbano em regime de propriedade
horizontal sito no Largo (…), n.º (…), em (…), inscrito na matriz sob o art. (…)
da freguesia de (…), concelho de (…), descrito na Conservatória do Registo
Predial de (…) sob o n.º (…) da referida freguesia.
2 – Por contrato de
arrendamento para habitação celebrado em 1 de Fevereiro de 2017, a autora deu
de arrendamento à ré a referida fracção.
3 – A renda acordada, no
montante de € 200 mensais, seria a pagar pela Ré até ao dia 12 de cada mês,
sendo que, até à data, não sofreu qualquer alteração.
4 – A ré iniciou o
pagamento da renda em causa em Fevereiro de 2017 e, embora sempre com atraso no
pagamento, e por vezes fazendo apenas pagamentos parciais, foi efectuando os
pagamentos respectivos até ao mês de Outubro de 2017.
5 – Assim, a ré pagou a
renda relativa ao mês de Setembro de 2017, em Outubro de 2017 e a renda
relativa ao mês de Outubro de 2017, pagou em Janeiro de 2018.
6 – A ré, não obstante a
interpelação para o pagamento, deve parte da renda relativa ao mês de Novembro,
no montante de € 150 (pois, aquando do pagamento do mês de Outubro, adiantou € 50
para o mês de Novembro) e Dezembro de 2017, num total de € 350.
7 – Deve também a ré, as
rendas relativas a todos os meses do ano 2018 (12 x € 200), num total de € 2.400.
8 – E ainda as rendas aos
meses de Janeiro, Fevereiro e Março do ano 2019, no montante de € 600.
9 – Até ao presente
momento, a ré não procedeu ao pagamento das rendas em falta.
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1 –
Nulidade da sentença:
A recorrente
sustenta que a sentença padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al.
d), do CPC (diploma ao qual pertencem as normas doravante referenciadas sem
menção da sua origem), porquanto:
- Omitiu factos, que
deveriam ter sido julgados provados, relativos à sua fragilidade económica e de
saúde;
- Não conheceu a questão
da aplicabilidade do artigo 6.º-E, n.º 7, al. c), da Lei n.º 1-A/2020, de
19.03, aditado pelo artigo 3.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05.04, que se
encontrava em vigor à data da sua prolação (28.06.2023);
- Os factos referidos em
a) são fundamentais para a apreciação, quer da questão referida em b), quer da
questão do diferimento da desocupação do locado.
Analisemos
estes argumentos.
1.1. Salvo na
hipótese extrema prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), a omissão de factos
com relevo para a decisão da causa não é causa de nulidade da sentença. A
nulidade prevista na 1.ª parte da al. d) daquele artigo e número verifica-se
quando a sentença não se pronuncie sobre questões que devessem ser apreciadas,
não quando se limite a omitir factos relevantes para esse efeito. Nesta última
hipótese, o vício da sentença será a insuficiência da matéria de facto para a
decisão da causa, com as consequências estabelecidas no artigo 662.º, n.º 2,
al. c).
Portanto, o
primeiro fundamento de nulidade da sentença invocado pelo recorrente não
procede. Se os factos que o recorrente considera em falta forem relevantes para
o conhecimento de questão sobre a qual o tribunal a quo tiver omitido pronúncia indevidamente, a sentença será nula,
nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, mas pela falta de
conhecimento daquela questão, não pela falta de inclusão dos factos no respectivo
enunciado. Se os factos que o recorrente considera em falta forem relevantes
para o conhecimento de questão sobre a qual o tribunal a quo se tiver pronunciado, o vício da sentença será o erro de
julgamento e não a nulidade.
Importa ter
presente esta distinção porquanto o recorrente considera que os factos que,
segundo ele, foram indevidamente omitidos na sentença, são relevantes para a apreciação,
quer da questão (não conhecida) da aplicabilidade do artigo 6.º-E, n.º 7, al.
c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, aditado pelo artigo 3.º da Lei n.º 13-B/2021,
de 05.04, quer da questão (conhecida) do diferimento da desocupação do locado. A
relevância da inclusão de tais factos na sentença recorrida será analisada em
1.2. e 2.3.
1.2. O artigo
6.º-E, n.º 7, al. c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, aditado pelo artigo 3.º da
Lei n.º 13-B/2021, de 05.04, em vigor à data da prolação da sentença recorrida
e posteriormente revogado pelo artigo 4.º, als. a) e m), da Lei n.º 31/2023, de
04.07, suspendia os «actos de execução da
entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos
especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada,
quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa
ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por
outra razão social imperiosa».
Os «actos de execução da entrega»,
sublinhamos. Não se suspendia a acção de despejo, como até então acontecia por
via do disposto no artigo 7.º, n.º 10, da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, na sua
redacção originária, nos termos do qual «São
suspensas as acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os
processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por
força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de
fragilidade por falta de habitação própria». A recorrente não tem razão
quando afirma que «A lei que suspendeu os
prazos de despejo ainda estava em vigor». A Lei n.º 13-B/2021 não suspendeu
os prazos de despejo.
A prolação de
sentença que julgue procedente uma acção de despejo não constitui, obviamente,
um acto de execução da entrega do locado. Essa sentença constitui, sim, o
título executivo necessário para a instauração da acção executiva para entrega
de coisa certa que eventualmente se mostre necessária para o senhorio obter a
restituição do locado. Daí que o regime jurídico transitório que vimos
analisando em nada afectasse a prolação da sentença recorrida e que esta não
tivesse, sequer, de conhecer a questão da sua aplicabilidade. Tratava-se, claramente,
de um regime de salvaguarda do interesse do arrendatário destinado a funcionar
apenas em sede executiva.
A sentença
recorrida não tinha de «conter, no
dispositivo, um travão à execução, isto é uma formulação do tipo: “a presente
decisão não pode ser objecto de execução enquanto vigorarem as regras
excepcionais de protecção dos arrendatários, por virtude da pandemia por
sarscov-2, actualmente constantes do art. 6.º E, n.º 7, al. c) parte final, da
Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, aditado pelo art. 3.º da Lei n.º 13-B/2021,
de 2021-04-05”», como a recorrente pretende. Por um lado, porque tal
declaração não corresponderia ao disposto naquela norma, que suspendia, não a
instauração da acção executiva, mas, meramente, a prática dos actos de execução
da entrega do local arrendado no âmbito dessa acção. Por outro, porque, se
fosse esse o sentido da mesma norma, a sua reprodução na sentença seria inútil.
A hipotético obstáculo à instauração da acção executiva decorreria directamente
da lei, sem necessidade da mediação da sentença.
Decorre do
exposto que o disposto no artigo 6.º-E, n.º 7, al. c), da Lei n.º 1-A/2020,
aditado pelo artigo 3.º da Lei n.º 13-B/2021, não impunha a inclusão, no
enunciado da matéria de facto provada, dos factos relativos à fragilidade
económica e de saúde da recorrente. Tais factos eram, nesta perspectiva,
inúteis, uma vez que a sentença recorrida não era a sede própria para o tribunal
a quo determinar a suspensão dos
actos de execução da entrega do locado com fundamento numa eventual situação de
fragilidade da recorrente por falta de habitação própria ou outra razão social
imperiosa.
2 –
Admissibilidade do incidente de diferimento da desocupação do locado na acção
de despejo:
O tribunal a quo considerou que o instituto do
diferimento da desocupação do locado não tem aplicação na acção de despejo, mas
apenas no procedimento especial de despejo (artigos 15.º e seguintes da Lei n.º
6/2006, de 27.02) e na acção executiva para entrega de coisa imóvel arrendada
(artigo 864.º, n.º 1).
A recorrente
insurge-se contra este entendimento, com a seguinte argumentação:
- O regime do artigo 864.º
colide com o do artigo 626.º, n.º 3, pois, sendo o arrendatário citado só após
a remoção dos seus bens e a entrega do locado ao exequente, o pedido de
desocupação em processo executivo torna-se vazio e inútil;
- A tese do tribunal a quo viola o princípio constitucional
da igualdade e o direito à habitação (artigos 13.º e 65.º da Constituição).
2.1. O
primeiro argumento não procede por duas razões. A primeira é a de que parte de
um pressuposto que não é inteiramente correcto. A segunda é a de que, ainda que
assim não fosse, não poderia produzir o efeito pretendido pela recorrente.
Procuraremos demonstrar a primeira neste número. A segunda ficará para 2.2.
O artigo 859.º
estabelece que, na execução para entrega de coisa certa, o executado é citado
para, no prazo de 20 dias, fazer a entrega ou opor-se à execução mediante
embargos. O n.º 4 do artigo 550.º estabelece que o processo comum para entrega
de coisa certa e para prestação de facto segue forma única. Poderia, pois,
parecer que o arrendatário condenado em acção de despejo é citado para a
execução contra ele movida com base na sentença condenatória antes da apreensão
do locado. Contudo, não é assim, pois o n.º 3 do artigo 626.º estabelece que,
na execução de decisão judicial que condene na entrega de coisa certa, feita a
entrega, o executado é notificado para deduzir oposição, seguindo-se, com as
necessárias adaptações, o disposto nos artigos 860.º e seguintes. Portanto, até
aqui, a recorrente tem razão: a apreensão precede a citação.
Todavia, a lei
não deixa o executado completamente desprotegido, como a recorrente pretende
fazer crer.
O n.º 3 do
artigo 863.º estabelece que, tratando-se de arrendamento para habitação, o
agente de execução suspende as diligências executórias quando se mostre, por
atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve
suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se
encontra no local, por razões de doença aguda. Nessa hipótese, o agente de
execução deverá, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, lavrar certidão da
ocorrência, juntar os documentos exibidos e advertir o detentor, ou a pessoa
que se encontra no local, de que a execução prosseguirá se não solicitar, ao
juiz, no prazo de dez dias, a confirmação da suspensão, juntando, ao
requerimento, os documentos disponíveis, dando, do facto, imediato conhecimento
ao exequente ou ao seu representante.
É evidente a
assimetria entre o âmbito de protecção do n.º 3 do artigo 863.º e o do
instituto do diferimento da desocupação do locado. O risco de vida por razões
de doença aguda é apenas uma das situações susceptíveis de serem qualificadas
como «razões sociais imperiosas». Não
obstante, aquela norma já acautela as situações de necessidade mais premente de
permanência do executado no imóvel.
Importa, por
outro lado, considerar que, nos termos do n.º 1 do artigo 863.º, a simples
apresentação de requerimento de diferimento da desocupação do local arrendado
para habitação, motivada pela cessação do respectivo contrato, determina a
suspensão da execução. Por essa via, confrontado com as diligências
executórias, o executado tem a possibilidade de obter a imediata suspensão da
execução, requerendo o diferimento da desocupação.
É esta a
protecção que o legislador pretendeu conferir ao executado nas circunstâncias
descritas. Poderá discutir-se a sua suficiência e adequação aos interesses em
jogo, mas em sede diversa de uma decisão judicial de um caso concreto. O quadro
legal relevante é o descrito e é dentro dele que os tribunais terão de decidir.
2.2. Concluímos,
em 2.1, pelo insucesso da demonstração, que a recorrente se propôs fazer, de
que uma absoluta ausência de protecção do arrendatário no processo executivo
reclama a aplicação do instituto do diferimento da desocupação na acção de
despejo. Tal protecção existe, sem prejuízo, evidentemente, da pertinência da
discussão sobre a sua suficiência e adequação aos interesses em jogo, a ter
lugar no plano do direito a constituir.
Porém, tal
conclusão não basta para fundamentar devidamente a decisão do presente recurso.
Importa demonstrar que a inaplicabilidade do instituto do diferimento da
desocupação na acção de despejo não decorre, meramente, da inexistência da
necessidade invocada, antes sendo consequência dos dados legislativos
inequívocos que vigoravam em 28.06.2023, data da prolação da sentença recorrida,
sendo certo que os mesmos se alteraram por efeito da Lei n.º 56/2023, de 06.10.
Para esse efeito, reproduzimos a parte relevante do acórdão desta Relação de
07.04.2022, proferido no processo n.º 1146/19.7T8PTM.E1, cujo relator é o mesmo
deste:
«O artigo 14.º, n.º 1, do NRAU, estabelece que a acção de despejo se destina a fazer cessar a situação jurídica do
arrendamento sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover
tal cessação e segue a forma de processo comum declarativo. A lei não prevê, em
tal sede, a possibilidade de o tribunal decretar o diferimento da desocupação do locado, com intervenção do Fundo
de Socorro Social para assegurar o pagamento das rendas que se vencerem ao
longo desse período. Tal possibilidade apenas se encontra prevista na acção
executiva destinada à entrega do locado que eventualmente venha a ser
instaurada, nos termos dos artigos 859.º a 867.º do CPC, bem como no
procedimento especial de despejo, regulado nos artigos 15.º a 15.º-S do NRAU.
Pormenorizando, o artigo 862.º do CPC estabelece que à execução
para entrega de coisa imóvel arrendada são aplicáveis as disposições referentes
à execução para entrega de coisa certa, com as alterações constantes dos
artigos 863.º a 866.º. O artigo 863.º, n.º 1, estabelece que a execução se
suspende se o executado requerer o diferimento da desocupação do local
arrendado para habitação, motivada pela cessação do respectivo contrato, nos
termos do artigo seguinte. O artigo 864.º, n.º 1, estabelece que, no caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à
execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões
sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as
testemunhas a apresentar, até ao limite de três. O artigo 864.º, n.º 2,
estabelece que o diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido
de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em
consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não
dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o
arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica
e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se
verifique algum dos seguintes fundamentos: a) Que, tratando-se de resolução por
não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do
arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de
desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida,
ou de rendimento social de inserção; b) Que o arrendatário é portador de
deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %. O artigo
864.º, n.º 3, estabelece que, no caso de diferimento decidido com base na
alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de
Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas
correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos
direitos deste. O artigo 865.º, n.º 1, dispõe que a petição de diferimento da
desocupação assume caráter de urgência e é indeferida liminarmente quando: a)
Tiver sido deduzida fora do prazo; b) O fundamento não se ajustar a algum dos
referidos no artigo anterior; c) For manifestamente improcedente. Os n.ºs 2 a 4
do artigo 865.º dispõem que, se a petição for recebida, o exequente é
notificado para contestar, dentro do prazo de 10 dias, devendo logo oferecer as
provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três
(n.º 2), que o juiz deve decidir do pedido de diferimento da desocupação por
razões sociais no prazo máximo de 20 dias a contar da sua apresentação, sendo,
no caso previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo anterior, a decisão
oficiosamente comunicada, com a sua fundamentação, ao Fundo de Socorro Social
do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (n.º 3) e que o
diferimento não pode exceder o prazo de cinco meses a contar da data do
trânsito em julgado da decisão que o conceder (n.º 4). Destas normas decorre,
nomeadamente, que, na acção executiva destinada
à entrega do locado, a apresentação, pelo executado, de requerimento de
diferimento da desocupação, dentro do prazo e com observância dos requisitos
formais descritos, tem efeito suspensivo daquela, iniciando-se então o
incidente regulado nos artigos 864.º e 865.º do CPC.
Por outro lado, o artigo 15.º, n.º 1, do NRAU, define o
procedimento especial de despejo como o meio processual que se
destina a efectivar a cessação do arrendamento, independentemente do fim a que
este se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista
na lei ou na data fixada por convenção entre as partes. O artigo 15.º-N do NRAU
estabelece que, no caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo
para a oposição ao procedimento especial de despejo, o arrendatário pode
requerer ao juiz do tribunal judicial da situação do locado o diferimento da
desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas
disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três (n.º
1); o diferimento da desocupação do locado para habitação é decidido de acordo
com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as
exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor
imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o
arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação
económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que
se verifique algum dos seguintes fundamentos: a) que, tratando-se de resolução
por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do
arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de
desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida,
ou de rendimento social de inserção; b) que o arrendatário tem deficiência com
grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60% (n.º 2); no caso de
diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de
Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao
senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele
sub-rogado nos direitos deste (n.º 3). O artigo 15.º-O do NRAU estabelece, por
seu turno, que o requerimento de diferimento da desocupação assume carácter de
urgência e é indeferido liminarmente quando: a) tiver sido apresentado fora do
prazo; b) o fundamento não se ajustar a algum dos referidos no artigo anterior;
c) for manifestamente improcedente (n.º 1); se o requerimento for recebido, o
senhorio é notificado para contestar, dentro do prazo de 10 dias, devendo logo
oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao
limite de três (n.º 2); o juiz deve decidir o pedido de diferimento da
desocupação por razões sociais no prazo máximo de 20 dias a contar da sua
apresentação, sendo, no caso previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo anterior,
a decisão oficiosamente comunicada, com a sua fundamentação, ao Fundo de
Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (n.º 3); o
diferimento não pode exceder o prazo de cinco meses a contar da data do
trânsito em julgado da decisão que o conceder (n.º 4). Todas estas normas são
privativas do procedimento especial de despejo, que não se confunde com a acção
de despejo, a que se reporta o artigo 14.º do NRAU. Repetimos, a lei não prevê
a possibilidade de, na acção de despejo, o tribunal decretar o diferimento da desocupação do locado, com intervenção do Fundo
de Socorro Social para assegurar o pagamento das rendas que se vencerem ao
longo desse período.
A ausência dessa previsão não constitui uma lacuna da lei.
Estabelecendo esta, nos termos descritos, a possibilidade de diferimento da
desocupação do local arrendado para habitação na acção executiva, seria
redundante fazê-lo, igualmente, em sede declarativa, ou seja, na acção de
despejo. Tal duplicação seria desnecessária e geradora de problemas ao nível da
interpretação da lei. Para acautelar o interesse da pessoa obrigada à
desocupação do locado, basta a permissão legal do diferimento daquela na acção
executiva. (…) tratou-se de uma opção do legislador, inexistindo uma lacuna na
regulamentação da acção de despejo que careça de ser preenchida através da
aplicação analógica de normas legais estabelecidas em sede diversa.
Ainda que estivéssemos perante uma lacuna, a mesma não poderia
ser preenchida mediante a aplicação, por analogia, das normas que estabelecem a
possibilidade de diferimento da desocupação, com intervenção do Fundo de
Socorro Social para assegurar o pagamento das rendas vencidas ao longo desse
período, que acima citámos. Tais normas impõem uma restrição ao direito de
propriedade que tem de ser considerada excepcional, pois, apesar de estar
reconhecido o direito à restituição do locado, o exercício de tal direito fica
temporariamente paralisado por razões atinentes à pessoa do obrigado à
restituição. Consequentemente, nos termos do artigo 11.º do Código Civil,
sempre estaria vedada a aplicação das normas referidas por analogia.»
Por estas
razões, impõe-se concluir que, à luz da lei vigente à data da prolação da
sentença recorrida, o instituto do diferimento da desocupação era inaplicável à
acção de despejo.
2.3. Retomemos
a questão, deixada em suspenso em 1.1, da omissão, no enunciado da matéria de
facto provada, dos factos referidos na conclusão V. À semelhança do tribunal a quo, consideramos tais factos
irrelevantes para a decisão da causa, dada a inaplicabilidade do instituto do
diferimento da desocupação à acção de despejo. Daí que a opção do tribunal a quo de os omitir na sentença recorrida
seja correcta.
2.4. Resta
refutar o argumento de que a inaplicabilidade do instituto do diferimento da
desocupação à acção de despejo viola o princípio da igualdade e o direito à
habitação, consagrados nos artigos 13.º e 65.º da Constituição.
O princípio constitucional
da igualdade não é violado porquanto o réu da acção de despejo julgada
procedente não fica privado da possibilidade de obter o diferimento da
desocupação do locado, só que apenas em sede de execução da sentença. Não
ocorre qualquer desigualdade de tratamento, relativamente ao que acontecia no
procedimento especial de despejo antes da entrada em vigor da Lei n.º 56/2023,
que viole aquele princípio constitucional.
Quanto à
suposta violação do direito à habitação, importa começar por lembrar que, como
resulta do artigo 65.º da Constituição, a prossecução das políticas necessárias
para a sua plena realização constitui tarefa do Estado, com a colaboração das
regiões autónomas e das autarquias locais, e não aos particulares. Importa, igualmente,
notar que o facto de o diferimento da desocupação do locado poder ser decretado
apenas na fase executória da sentença que tenha julgado procedente acção de
despejo não prejudica a protecção do obrigado à restituição do locado quando
razões sociais imperiosas o justifiquem. Importa, finalmente, ponderar que a possibilidade
de diferimento da desocupação do locado, fundada em razões sociais imperiosas,
por um período máximo de cinco meses (artigo 865.º, n.º 4), em sede de execução
da sentença que tenha julgado procedente a acção de despejo, já constitui uma
compressão significativa do direito do senhorio, a quem não é exigível maior
sacrifício com vista à prossecução do direito constitucional à habitação. Por
este somatório de razões, impõe-se concluir que não é violado o direito
constitucional à habitação.
*
Dispositivo:
Delibera-se,
pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença
recorrida.
Custas a cargo
da recorrente, sem prejuízo do decidido em matéria de apoio judiciário.
Notifique.
*
Évora,
11.07.2024
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª adjunta)
(2.ª adjunta)