Processo n.º 4269/15.8T8STB-G.E1 – Inventário.
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Sumário:
1 – Para que
possa ter-se por verificada uma violação do princípio do esgotamento do poder
jurisdicional, é necessária a prolação sucessiva de duas decisões sobre a mesma
matéria, sejam elas no mesmo sentido ou em sentidos diversos.
2 – O tribunal
apenas pode remeter os interessados para os meios comuns, ao abrigo do disposto
no n.º 1 do artigo 1093.º do CPC, quando a questão em causa exija larga e
complexa indagação factual, de tal modo que a sua solução se mostre inadequada
ou dificilmente apreciável no processo de inventário, especialmente por os
interessados não poderem aí exercer cabalmente a defesa dos seus direitos.
3 – O dever de
fundamentação das decisões judiciais impõe que a decisão de remeter os
interessados para os meios comuns, ao abrigo do disposto no artigo 1093.º, n.º
1, do CPC, especifique as razões que levaram o tribunal a concluir que a
complexidade da matéria de facto subjacente à questão em discussão torna
inconveniente a sua apreciação no processo de inventário, por implicar uma
redução das garantias das partes.
4 – A
complexidade de uma questão jurídica, por maior que se afigure aos olhos do
tribunal a quo, não pode constituir
fundamento para a remessa dos interessados para os meios comuns.
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Requerente/interessada/recorrente:
- AAA.
Requerido/cabeça-de-casal/recorrido:
- BBB.
Factos
relevantes para a decisão do recurso:
1 – BBB apresentou uma relação
de bens.
2 – AAA reclamou contra a
relação de bens apresentada, invocando, além do mais, a falta de relacionamento
de saldos de contas bancárias.
3 – Na sequência de
diligências probatórias realizadas no âmbito do incidente de reclamação contra
a relação de bens, AAA requereu que, a esta, fossem aditados os saldos
resgatados de uma apólice de «GNB PPR
Taxa Garantida», nos valores de € 39.988,52 e de € 5.207,96.
4 – BBB sustenta que:
- O saldo da conta no
Banco BPI, no valor de € 52.757,67, pertencia a sua mãe, tendo-o herdado por
morte desta, pelo que se trata de um bem próprio, que não tem de ser
relacionado.
- Os saldos resgatados da
apólice n.º 61/1029008 de NF PPR Taxa Garantida, nos valores de € 39.988,52
(resgate em 18.09.2014), € 19.990,54 (resgate em 29.09.2024) e € 5.207,96
(resgate em 02.04.2015) são bens próprios, quer porque se trata de um seguro de
vida, quer porque este foi constituído com dinheiro em parte emprestado por sua
mãe e, na parte restante, proveniente dos lucros emergentes da exploração de um
estabelecimento comercial que, por óbito de seu pai, herdou conjuntamente com
sua mãe. Daí que também não tenha de ser relacionado.
5 – Em resposta, AAA
manteve a posição anteriormente assumida.
6 – Em audiência prévia
realizada no dia 28.11.2023, foi proferido despacho mediante o qual o tribunal a quo decidiu, além do mais, o seguinte:
«Tendo em consideração que a relação de bens ainda não foi
apresentada devidamente atualizada, tendo em consideração a informação prestada
pelo banco BPI no que respeita a verba n.º 1 do ativo, bem como a informação
prestada pela companhia de seguros - grupo novo banco -, determino que o cabeça
de casal proceda a uma atualização da relação de bens em conformidade com a
informação fornecida pelas entidades bancárias, desde já salientado que, no que
respeita à verba n.º 1 do ativo, alegando o mesmo que parte do dinheiro foi
transferido de uma conta da sua mãe, deverá juntar os comprovativos
respetivos.»
7 – Em audiência prévia
realizada no dia 16.01.2024, foi proferido despacho mediante o qual o tribunal a quo decidiu o seguinte:
«Uma vez que o relatório ainda não foi notificado às partes
proceda à sua notificação.
Para realização de nova audiência previa designo o dia
26/02/2024, pelas 13h30min.
Uma vez aceite o valor indicado no relatório pericial, deverá o
cabeça de casal apresentar relação de bens atualizada, com indicação dos
valares dos bens imóveis bem como das contas bancárias, em conformidade com a
informação junta aos autos.
Providencie pelo pagamento dos honorários ao Sr. Perito.»
8 – Em audiência prévia
realizada no dia 26.02.2024, foi proferido despacho mediante o qual o tribunal a quo decidiu o seguinte:
«Tendo em consideração que as partes não chegam a acordo e que
se impõe apurar se o valor depositado no Banco BPI e os seguros do Grupo Novo
Banco constituem um bem comum ou são bem próprio do cabeça de casal, determino
a remessa para os meios comuns, uma vez que só depois de decidida esta questão
poder-se-á fazer a partilha dos bens.»
9 – AAA interpôs recurso
do despacho transcrito em 8.
Conclusões do
recurso:
A – O despacho recorrido é
contrário à decisão vertida nos despachos que o antecederam, dos quais não
houve recurso ou reclamação, tendo transitado em julgado, cristalizando-se o
seu efeito processual;
B – A audiência prévia na
qual foram proferidos os despachos anteriores ao recorrido foi convocada nos
termos do disposto no artigo 1109.º, número 1, do Código de Processo Civil, «com vista à obtenção de acordo sobre a
partilha», não com vista à obtenção de acordo acerca de alguma ou algumas
das questões controvertidas ou com vista a ouvir pessoalmente os interessados
sobre alguma questão;
C – Na falta de acordo, à
Meritíssima Juíza a quo restava o
seguimento para a fase de «Saneamento do
processo e conferência de interessados», pois o disposto no número 3 do
artigo 1109.º estará reservado para as questões controvertidas em matéria de
oposição ou de impugnação, não já para o «acordo
sobre a partilha»;
D – Ainda que assim não se
entendesse, não estaria a Meritíssima Juíza a
quo dispensada de proceder à «realização
das diligências instrutórias necessárias para decidir as matérias objeto de
oposição ou de impugnação»;
E – Pois a remessa para os
meios comuns é uma excepção ao princípio da suficiência do processo de
inventário, reservada às matérias de extensa indagação fáctica e cuja
apreciação em sede de inventário resulte numa redução das normais garantias das
partes;
F – O que não acontece no
caso vertente quando está unicamente em causa a questão da titularidade dos
saldos bancários, sobre os quais o cabeça-de-casal teve oportunidade de se
pronunciar extensamente, produzindo toda a prova que entendesse, inclusive
opondo-se ao levantamento do sigilo bancário, oposição essa suprida
judicialmente, com necessária ponderação de todos os direitos, interesses e
garantias;
G – Não sendo despiciendo
o facto de a decisão recorrida acontecer em 2024, quando o processo de
inventário teve o seu início em Abril de 2017, tendo ainda na fase notarial
estado suspenso precisamente para ser suprida a falta de autorização do
cabeça-de-casal para o levantamento do sigilo bancário, determinando flagrante
violação do direito a uma decisão em prazo razoável;
H – Dando-se assim por
violadas as normas dos artigos 613.º, números 1 e 3, 1093.º, número 1, e
1109.º, números 1 e 3, todos do Código de Processo Civil, artigo 20.º, número
4, da Constituição e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
ratificada pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro.
Questões a
decidir:
1 – Violação do princípio
do esgotamento do poder jurisdicional;
2 – Verificação dos
pressupostos da remessa dos interessados para os meios comuns.
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1 –
Violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional:
A recorrente afirma
que, ao proferir o despacho recorrido, o tribunal a quo violou o princípio do esgotamento do poder jurisdicional,
consagrado nos n.ºs 1 e 3 do artigo 613.º do CPC, porquanto proferira
anteriormente (em 28.11.2023 e 16.01.2024) dois despachos em sentido contrário.
A recorrente
não tem razão.
O n.º 1 do
artigo 613.º do CPC estabelece que, proferida a sentença, fica imediatamente
esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. Esta regra é
aplicável aos despachos, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo. Consagra-se,
assim, o princípio do esgotamento do poder jurisdicional.
No despacho
recorrido, o tribunal a quo remeteu
os interessados para os meios comuns. Ora, nos despachos proferidos em
28.11.2023 e 16.01.2024, acima transcritos, o tribunal a quo nada decidiu sobre esta matéria.
Admite-se que,
perante o teor dos despachos de 28.11.2023 e 16.01.2024, a recorrente tenha adquirido
a convicção de que o tribunal a quo
iria decidir, ele próprio (como, aliás, deve acontecer, salvo em hipóteses
excepcionais), a questão de saber se o saldo da conta no Banco BPI e os saldos
do PPR que foram resgatados são bens comuns do casal ou próprios do recorrido.
Contudo, isso não é suficiente para se poder considerar que, ao decidir remeter
a recorrente e o recorrido para os meios comuns, o tribunal a quo tenha violado o princípio do
esgotamento do poder jurisdicional. Resulta do n.º 1 do artigo 613.º do CPC
que, para que essa violação ocorra, é necessária a prolação sucessiva de duas
decisões sobre a mesma matéria, sejam elas no mesmo sentido ou em sentidos
diversos, o que não aconteceu no caso dos autos.
2 –
Verificação dos pressupostos da remessa dos interessados para os meios comuns:
No despacho
recorrido, não é mencionada a norma legal ao abrigo da qual os interessados
foram remetidos para os meios comuns. Tendo em conta a natureza da questão referida
nesse despacho («se o valor depositado no
Banco BPI e os seguros do Grupo Novo Banco constituem um bem comum ou são bem
próprio do cabeça de casal»), parece que o tribunal a quo teve em mente o disposto no n.º 1 do artigo 1093.º do CPC,
que estabelece que, se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou
à definição de direitos de interessados directos na partilha, mas a
complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a
apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode
abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.
O despacho
recorrido omite, pura e simplesmente, a indicação das razões pelas quais o
tribunal a quo considera que a
complexidade da matéria de facto subjacente à questão de saber se o saldo da
conta no Banco BPI e os saldos do PPR que foram resgatados são bens comuns do
casal ou próprios do recorrido torna inconveniente a sua apreciação no
incidente de reclamação contra a relação de bens.
Aquilo que
resulta do despacho recorrido é que as razões que levaram o tribunal a quo a remeter os interessados para os
meios comuns foram, exclusivamente, as seguintes: 1) Falta de acordo entre os
interessados; 2) Necessidade de decidir aquela questão antes de se proceder à
partilha.
Nenhuma destas
razões justifica a remessa dos interessados para os meios comuns.
É por não
existir acordo entre os interessados que este processo de inventário existe. Os
interessados não têm um dever de chegarem a acordo sobre a matéria em disputa,
cujo incumprimento justifique a sua remessa para os meios comuns. É, sim, o
tribunal que tem o dever de decidir o litígio. Ou seja, não havendo acordo entre
os interessados, o tribunal tem de decidir, sob pena de estar a denegar
justiça. Tudo isto é óbvio e apenas o mencionamos porque, lendo o despacho
recorrido, fica-se com a ideia de que a decisão de remeter os interessados para
os meios comuns foi determinada pelo facto de não ter havido acordo entre eles,
tendo funcionado como uma espécie de sanção pela ausência desse acordo.
A necessidade
de decidir a questão que se encontra em discussão no incidente de reclamação
contra a relação de bens antes de se proceder à partilha constitui uma
evidência. Porém, a prolação de tal decisão deve ter lugar no âmbito daquele
incidente, nos termos do n.º 3 do artigo 1105.º do CPC, salvo nas hipóteses, de
natureza excepcional, em que se verifiquem os pressupostos legais da remessa
dos interessados para os meios comuns. Em tais hipóteses, optando o tribunal
pelo uso desta permissão legal, ficará com o dever de fundamentar a sua
decisão, nos termos do artigo 154.º do CPC, indicando as razões pelas quais
considera que a complexidade da matéria de facto subjacente à questão torna
inconveniente a apreciação desta no incidente de reclamação contra a relação de
bens, por implicar uma redução das garantias das partes.
Foi isto que o
tribunal a quo não fez. Reconheceu a
óbvia inexistência de acordo e a não menos óbvia necessidade de decidir a
questão antes de se proceder à partilha, mas a decisão de remeter os
interessados para os meios comuns ficou, pura e simplesmente, por fundamentar.
Não ficaremos,
porém, pela constatação de que o despacho recorrido padece deste vício. Tendo
em conta a natureza da questão que importa decidir neste incidente de
reclamação contra a relação de bens e os elementos constantes dos autos,
impõe-se, além disso, concluir que não se encontra demonstrada a verificação
dos pressupostos da remessa dos interessados para os meios comuns.
O tribunal
apenas pode remeter os interessados para os meios comuns, ao abrigo do disposto
no n.º 1 do artigo 1093.º do CPC, «quando
a questão em causa exija larga e complexa indagação factual, de tal modo que a
sua solução se mostre inadequada ou dificilmente apreciável no processo de
inventário, especialmente por os interessados não poderem aí exercer cabalmente
a defesa dos seus direitos».[1]
Não nos parece
que seja esse o caso dos autos. A origem do dinheiro depositado no BPI e
utilizado para a subscrição do PPR será, à partida, objecto de prova
documental. Os fluxos financeiros provam-se, ao menos em princípio, através dos
documentos que lhes servem de suporte, documentos esses que as instituições
financeiras têm o dever de conservar e, verificados os respectivos pressupostos
legais, facultar ao tribunal. Sendo assim, nada parece obstar à obtenção dessa
prova e ao pleno exercício do contraditório no âmbito do incidente de
reclamação contra a relação de bens, sem que isso implique qualquer redução das
garantias dos interessados.
A complexidade
da questão jurídica suscitada pelo recorrido a propósito da natureza própria ou
comum dos saldos do PPR que foram resgatados, por maior que se afigure aos
olhos do tribunal a quo, não pode
constituir fundamento para a remessa dos interessados para os meios comuns. Nos
termos do n.º 1 do artigo 1093.º do CPC, apenas a complexidade da matéria de
facto poderá constituir fundamento para tal remessa.
Concluindo,
não se verificam os pressupostos legais da remessa dos interessados para os
meios comuns, pelo que o despacho recorrido deverá ser revogado.
*
Dispositivo:
Delibera-se,
pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido.
Custas a cargo
do recorrido.
Notifique.
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Évora,
27.06.2024
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª adjunta)
(2.º adjunto)
[1] Acórdão da Relação
do Porto de 08.09.2020 (Filipe Caroço). No mesmo sentido, acórdãos da Relação
de Coimbra de 28.10.2003 (Jaime Carlos Ferreira), da Relação de Évora de
19.11.2020 (Isabel Peixoto Imaginário) e da Relação do Porto de 07.11.2005
(Pinto Ferreira).