terça-feira, 2 de julho de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 27.06.2024

Processo n.º 4269/15.8T8STB-G.E1 – Inventário. 

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Sumário:

1 – Para que possa ter-se por verificada uma violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, é necessária a prolação sucessiva de duas decisões sobre a mesma matéria, sejam elas no mesmo sentido ou em sentidos diversos.

2 – O tribunal apenas pode remeter os interessados para os meios comuns, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 1093.º do CPC, quando a questão em causa exija larga e complexa indagação factual, de tal modo que a sua solução se mostre inadequada ou dificilmente apreciável no processo de inventário, especialmente por os interessados não poderem aí exercer cabalmente a defesa dos seus direitos.

3 – O dever de fundamentação das decisões judiciais impõe que a decisão de remeter os interessados para os meios comuns, ao abrigo do disposto no artigo 1093.º, n.º 1, do CPC, especifique as razões que levaram o tribunal a concluir que a complexidade da matéria de facto subjacente à questão em discussão torna inconveniente a sua apreciação no processo de inventário, por implicar uma redução das garantias das partes.

4 – A complexidade de uma questão jurídica, por maior que se afigure aos olhos do tribunal a quo, não pode constituir fundamento para a remessa dos interessados para os meios comuns.

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Requerente/interessada/recorrente:

- AAA.

Requerido/cabeça-de-casal/recorrido:

- BBB.

Factos relevantes para a decisão do recurso:

1 – BBB apresentou uma relação de bens.

2 – AAA reclamou contra a relação de bens apresentada, invocando, além do mais, a falta de relacionamento de saldos de contas bancárias.

3 – Na sequência de diligências probatórias realizadas no âmbito do incidente de reclamação contra a relação de bens, AAA requereu que, a esta, fossem aditados os saldos resgatados de uma apólice de «GNB PPR Taxa Garantida», nos valores de € 39.988,52 e de € 5.207,96.

4 – BBB sustenta que:

- O saldo da conta no Banco BPI, no valor de € 52.757,67, pertencia a sua mãe, tendo-o herdado por morte desta, pelo que se trata de um bem próprio, que não tem de ser relacionado.

- Os saldos resgatados da apólice n.º 61/1029008 de NF PPR Taxa Garantida, nos valores de € 39.988,52 (resgate em 18.09.2014), € 19.990,54 (resgate em 29.09.2024) e € 5.207,96 (resgate em 02.04.2015) são bens próprios, quer porque se trata de um seguro de vida, quer porque este foi constituído com dinheiro em parte emprestado por sua mãe e, na parte restante, proveniente dos lucros emergentes da exploração de um estabelecimento comercial que, por óbito de seu pai, herdou conjuntamente com sua mãe. Daí que também não tenha de ser relacionado.

5 – Em resposta, AAA manteve a posição anteriormente assumida.

6 – Em audiência prévia realizada no dia 28.11.2023, foi proferido despacho mediante o qual o tribunal a quo decidiu, além do mais, o seguinte:

«Tendo em consideração que a relação de bens ainda não foi apresentada devidamente atualizada, tendo em consideração a informação prestada pelo banco BPI no que respeita a verba n.º 1 do ativo, bem como a informação prestada pela companhia de seguros - grupo novo banco -, determino que o cabeça de casal proceda a uma atualização da relação de bens em conformidade com a informação fornecida pelas entidades bancárias, desde já salientado que, no que respeita à verba n.º 1 do ativo, alegando o mesmo que parte do dinheiro foi transferido de uma conta da sua mãe, deverá juntar os comprovativos respetivos.»

7 – Em audiência prévia realizada no dia 16.01.2024, foi proferido despacho mediante o qual o tribunal a quo decidiu o seguinte:

«Uma vez que o relatório ainda não foi notificado às partes proceda à sua notificação.

Para realização de nova audiência previa designo o dia 26/02/2024, pelas 13h30min.

Uma vez aceite o valor indicado no relatório pericial, deverá o cabeça de casal apresentar relação de bens atualizada, com indicação dos valares dos bens imóveis bem como das contas bancárias, em conformidade com a informação junta aos autos.

Providencie pelo pagamento dos honorários ao Sr. Perito.»

8 – Em audiência prévia realizada no dia 26.02.2024, foi proferido despacho mediante o qual o tribunal a quo decidiu o seguinte:

«Tendo em consideração que as partes não chegam a acordo e que se impõe apurar se o valor depositado no Banco BPI e os seguros do Grupo Novo Banco constituem um bem comum ou são bem próprio do cabeça de casal, determino a remessa para os meios comuns, uma vez que só depois de decidida esta questão poder-se-á fazer a partilha dos bens.»

9 – AAA interpôs recurso do despacho transcrito em 8.

Conclusões do recurso:

A – O despacho recorrido é contrário à decisão vertida nos despachos que o antecederam, dos quais não houve recurso ou reclamação, tendo transitado em julgado, cristalizando-se o seu efeito processual;

B – A audiência prévia na qual foram proferidos os despachos anteriores ao recorrido foi convocada nos termos do disposto no artigo 1109.º, número 1, do Código de Processo Civil, «com vista à obtenção de acordo sobre a partilha», não com vista à obtenção de acordo acerca de alguma ou algumas das questões controvertidas ou com vista a ouvir pessoalmente os interessados sobre alguma questão;

C – Na falta de acordo, à Meritíssima Juíza a quo restava o seguimento para a fase de «Saneamento do processo e conferência de interessados», pois o disposto no número 3 do artigo 1109.º estará reservado para as questões controvertidas em matéria de oposição ou de impugnação, não já para o «acordo sobre a partilha»;

D – Ainda que assim não se entendesse, não estaria a Meritíssima Juíza a quo dispensada de proceder à «realização das diligências instrutórias necessárias para decidir as matérias objeto de oposição ou de impugnação»;

E – Pois a remessa para os meios comuns é uma excepção ao princípio da suficiência do processo de inventário, reservada às matérias de extensa indagação fáctica e cuja apreciação em sede de inventário resulte numa redução das normais garantias das partes;

F – O que não acontece no caso vertente quando está unicamente em causa a questão da titularidade dos saldos bancários, sobre os quais o cabeça-de-casal teve oportunidade de se pronunciar extensamente, produzindo toda a prova que entendesse, inclusive opondo-se ao levantamento do sigilo bancário, oposição essa suprida judicialmente, com necessária ponderação de todos os direitos, interesses e garantias;

G – Não sendo despiciendo o facto de a decisão recorrida acontecer em 2024, quando o processo de inventário teve o seu início em Abril de 2017, tendo ainda na fase notarial estado suspenso precisamente para ser suprida a falta de autorização do cabeça-de-casal para o levantamento do sigilo bancário, determinando flagrante violação do direito a uma decisão em prazo razoável;

H – Dando-se assim por violadas as normas dos artigos 613.º, números 1 e 3, 1093.º, número 1, e 1109.º, números 1 e 3, todos do Código de Processo Civil, artigo 20.º, número 4, da Constituição e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ratificada pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro.

Questões a decidir:

1 – Violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional;

2 – Verificação dos pressupostos da remessa dos interessados para os meios comuns.

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1 – Violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional:

A recorrente afirma que, ao proferir o despacho recorrido, o tribunal a quo violou o princípio do esgotamento do poder jurisdicional, consagrado nos n.ºs 1 e 3 do artigo 613.º do CPC, porquanto proferira anteriormente (em 28.11.2023 e 16.01.2024) dois despachos em sentido contrário.

A recorrente não tem razão.

O n.º 1 do artigo 613.º do CPC estabelece que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. Esta regra é aplicável aos despachos, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo. Consagra-se, assim, o princípio do esgotamento do poder jurisdicional.

No despacho recorrido, o tribunal a quo remeteu os interessados para os meios comuns. Ora, nos despachos proferidos em 28.11.2023 e 16.01.2024, acima transcritos, o tribunal a quo nada decidiu sobre esta matéria.

Admite-se que, perante o teor dos despachos de 28.11.2023 e 16.01.2024, a recorrente tenha adquirido a convicção de que o tribunal a quo iria decidir, ele próprio (como, aliás, deve acontecer, salvo em hipóteses excepcionais), a questão de saber se o saldo da conta no Banco BPI e os saldos do PPR que foram resgatados são bens comuns do casal ou próprios do recorrido. Contudo, isso não é suficiente para se poder considerar que, ao decidir remeter a recorrente e o recorrido para os meios comuns, o tribunal a quo tenha violado o princípio do esgotamento do poder jurisdicional. Resulta do n.º 1 do artigo 613.º do CPC que, para que essa violação ocorra, é necessária a prolação sucessiva de duas decisões sobre a mesma matéria, sejam elas no mesmo sentido ou em sentidos diversos, o que não aconteceu no caso dos autos.

2 – Verificação dos pressupostos da remessa dos interessados para os meios comuns:

No despacho recorrido, não é mencionada a norma legal ao abrigo da qual os interessados foram remetidos para os meios comuns. Tendo em conta a natureza da questão referida nesse despacho («se o valor depositado no Banco BPI e os seguros do Grupo Novo Banco constituem um bem comum ou são bem próprio do cabeça de casal»), parece que o tribunal a quo teve em mente o disposto no n.º 1 do artigo 1093.º do CPC, que estabelece que, se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados directos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.

O despacho recorrido omite, pura e simplesmente, a indicação das razões pelas quais o tribunal a quo considera que a complexidade da matéria de facto subjacente à questão de saber se o saldo da conta no Banco BPI e os saldos do PPR que foram resgatados são bens comuns do casal ou próprios do recorrido torna inconveniente a sua apreciação no incidente de reclamação contra a relação de bens.

Aquilo que resulta do despacho recorrido é que as razões que levaram o tribunal a quo a remeter os interessados para os meios comuns foram, exclusivamente, as seguintes: 1) Falta de acordo entre os interessados; 2) Necessidade de decidir aquela questão antes de se proceder à partilha.

Nenhuma destas razões justifica a remessa dos interessados para os meios comuns.

É por não existir acordo entre os interessados que este processo de inventário existe. Os interessados não têm um dever de chegarem a acordo sobre a matéria em disputa, cujo incumprimento justifique a sua remessa para os meios comuns. É, sim, o tribunal que tem o dever de decidir o litígio. Ou seja, não havendo acordo entre os interessados, o tribunal tem de decidir, sob pena de estar a denegar justiça. Tudo isto é óbvio e apenas o mencionamos porque, lendo o despacho recorrido, fica-se com a ideia de que a decisão de remeter os interessados para os meios comuns foi determinada pelo facto de não ter havido acordo entre eles, tendo funcionado como uma espécie de sanção pela ausência desse acordo.

A necessidade de decidir a questão que se encontra em discussão no incidente de reclamação contra a relação de bens antes de se proceder à partilha constitui uma evidência. Porém, a prolação de tal decisão deve ter lugar no âmbito daquele incidente, nos termos do n.º 3 do artigo 1105.º do CPC, salvo nas hipóteses, de natureza excepcional, em que se verifiquem os pressupostos legais da remessa dos interessados para os meios comuns. Em tais hipóteses, optando o tribunal pelo uso desta permissão legal, ficará com o dever de fundamentar a sua decisão, nos termos do artigo 154.º do CPC, indicando as razões pelas quais considera que a complexidade da matéria de facto subjacente à questão torna inconveniente a apreciação desta no incidente de reclamação contra a relação de bens, por implicar uma redução das garantias das partes.

Foi isto que o tribunal a quo não fez. Reconheceu a óbvia inexistência de acordo e a não menos óbvia necessidade de decidir a questão antes de se proceder à partilha, mas a decisão de remeter os interessados para os meios comuns ficou, pura e simplesmente, por fundamentar.

Não ficaremos, porém, pela constatação de que o despacho recorrido padece deste vício. Tendo em conta a natureza da questão que importa decidir neste incidente de reclamação contra a relação de bens e os elementos constantes dos autos, impõe-se, além disso, concluir que não se encontra demonstrada a verificação dos pressupostos da remessa dos interessados para os meios comuns.

O tribunal apenas pode remeter os interessados para os meios comuns, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 1093.º do CPC, «quando a questão em causa exija larga e complexa indagação factual, de tal modo que a sua solução se mostre inadequada ou dificilmente apreciável no processo de inventário, especialmente por os interessados não poderem aí exercer cabalmente a defesa dos seus direitos».[1]

Não nos parece que seja esse o caso dos autos. A origem do dinheiro depositado no BPI e utilizado para a subscrição do PPR será, à partida, objecto de prova documental. Os fluxos financeiros provam-se, ao menos em princípio, através dos documentos que lhes servem de suporte, documentos esses que as instituições financeiras têm o dever de conservar e, verificados os respectivos pressupostos legais, facultar ao tribunal. Sendo assim, nada parece obstar à obtenção dessa prova e ao pleno exercício do contraditório no âmbito do incidente de reclamação contra a relação de bens, sem que isso implique qualquer redução das garantias dos interessados.

A complexidade da questão jurídica suscitada pelo recorrido a propósito da natureza própria ou comum dos saldos do PPR que foram resgatados, por maior que se afigure aos olhos do tribunal a quo, não pode constituir fundamento para a remessa dos interessados para os meios comuns. Nos termos do n.º 1 do artigo 1093.º do CPC, apenas a complexidade da matéria de facto poderá constituir fundamento para tal remessa.

Concluindo, não se verificam os pressupostos legais da remessa dos interessados para os meios comuns, pelo que o despacho recorrido deverá ser revogado.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido.

Custas a cargo do recorrido.

Notifique.

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Évora, 27.06.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.ª adjunta)

(2.º adjunto)



[1] Acórdão da Relação do Porto de 08.09.2020 (Filipe Caroço). No mesmo sentido, acórdãos da Relação de Coimbra de 28.10.2003 (Jaime Carlos Ferreira), da Relação de Évora de 19.11.2020 (Isabel Peixoto Imaginário) e da Relação do Porto de 07.11.2005 (Pinto Ferreira).

Acórdão da Relação de Évora de 12.09.2024

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