sexta-feira, 28 de junho de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 27.06.2024

Processo n.º 829/19.6T8STR-D.E1

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Sumário:

1 – O actual CPC visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância, tendo em vista o máximo aproveitamento dos actos processuais.

2 – A conclusão de que os réus são demandados na qualidade de herdeiros não tem de resultar, desde logo, da forma como eles são identificados no início da petição inicial. Em vez disso, poderá resultar da interpretação deste articulado no seu todo.

3 – Perante um pedido de condenação dos réus a pagarem determinada quantia por serviços prestados à pessoa de quem eles são herdeiros, e verificando-se que a herança ainda não se encontra partilhada, é admissível, na sequência de diligências praticadas pelo tribunal tendentes ao esclarecimento da finalidade visada pelos autores, o prosseguimento do processo para apreciação do pedido de condenação dos réus no mero reconhecimento da existência do crédito reclamado, da responsabilidade da herança.

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Autores/recorridos:

- AAA;

- BBB.

Réus:

- CCC;

- DDD.

Recorrente:

- DDD.

Pedido:

Condenação dos réus a pagarem, aos autores, a quantia de € 180.797,66 a título de capital, acrescida de IVA à taxa em vigor à data da prolação da sentença e, bem assim, juros vencidos, à taxa legal de 4% ao ano, contados desde 19.07.2021, os quais se computam, à data da propositura da acção, em € 6.855,45, e juros vincendos até efectivo e integral pagamento.

Segmento do despacho saneador que é objecto de recurso:

«Ilegitimidade substantiva arguida pelo R. DDD.

A legitimidade substancial ou substantiva respeita à efectividade da relação material controvertida.

Prende-se assim, com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta e, por isso, com o mérito da causa, sendo requisito da procedência do pedido.

A sua verificação – da ilegitimidade substantiva – leva à absolvição do pedido.

No caso concreto e após despacho de 13 de Janeiro de 2023 dirigindo convite aos AA. ficou sanada a eventual ilegitimidade substantiva, que sempre o estaria concatenando a petição inicial.

Ou seja, o que os AA. pretendem nesta demanda é que seja reconhecido que os mesmos são credores de determinada herança aberta por óbito dos pais dos RR. estando os RR. Nestes autos na qualidade de herdeiros.

Pelo que, não há lugar à absolvição do pedido, pelo menos por via da arguida ilegitimidade substantiva.

Sem custas.»

Outras vicissitudes processuais relevantes:

1 – Após a apresentação da réplica, o tribunal a quo proferiu despacho mediante o qual determinou o seguinte: «ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e considerando o espírito subjacente ao Código de Processo Civil, que privilegia decisões de fundo sobre as de forma e demanda o máximo aproveitamento dos atos, convido os Autores a esclarecerem se o que pretendem pedir é a condenação dos Réus ao pagamento de determinada quantia (como resulta da literalidade do petitório da petição inicial) ou, antes, ao reconhecimento da existência do crédito sobre a herança e a ver satisfeito esse alegado crédito pelos bens da herança (que é, de resto, o que parece resultar da leitura concatenada da sua petição inicial).»

2 – Na sequência do despacho referido em 1, os autores esclareceram, nomeadamente, o seguinte:

- A acção foi proposta no pressuposto de que os réus já haviam partilhado a totalidade da herança;

- Só através da leitura das contestações verificaram que apenas as quantias depositadas em contas bancárias de EEE haviam sido partilhadas entre os réus;

- Sendo assim, os réus devem ser condenados, nos termos peticionados, na medida daquilo que receberam por efeito da partilha já efectuada;

- No mais, deve o pedido ser entendido no sentido de os réus serem condenados a reconhecer a existência do crédito reclamado, da responsabilidade da herança.

3 – Num segmento do despacho saneador que não é objecto de recurso, o tribunal a quo decidiu o seguinte:

«Os AA. serão credores da herança, a qual responde pelas suas dívidas de acordo com o artigo 2068.º do CC.

Assim, os herdeiros apenas são responsáveis por aquilo que receberem, mas antes disso é necessário que seja reconhecida a dívida.

Ora não se podem – porque aparentemente parte da herança estará já partilhada – condenar os RR. pessoalmente pelo que já receberam, e reconhecer a herança como devedora do remanescente.

Veja-se que procedendo a acção duas de uma:

- ou os herdeiros com os bens da herança pagam a dívida com esses bens;

- ou tendo já existido partilha desses bens pelos mesmos, respondem até ao limite do que cada um recebeu, mas nunca em nome próprio outrossim enquanto sucessores.

Vale por dizer que não pode o Tribunal condená-los a título pessoal em parte como pretendem os AA e na outra parte reconhecer ser a herança devedora.

Existindo sentença condenatória os AA. poderão executar quer os bens da herança, quer aqueles que fazendo parte dela estão já partilhados e se transferiram para o património dos herdeiros, aqui se incluindo como é bom de ver quantias monetárias por eles recebidas.

Pelo exposto o único pedido que vai admitido é o seguinte:

§ Reconhecimento de que a herança de EEE, representada pelos RR. herdeiros é devedora dos AA. de determinada quantia, pela qual os mesmos são responsáveis até ao limite dos bens que cada um receber daquela herança.

Improcede assim parcialmente o peticionado, bem assim no meio do requerimento o pedido de junção de documentos a fim de averiguar o que foi ou não partilhado, matéria sem interesse para a demanda.»

Conclusões do recurso:

A – Os A.A., através da presente acção, demandam os R.R., o ora recorrente e seu irmão CCC, peticionando a sua condenação, a título pessoal, no pagamento de honorários por serviços prestados a seu falecido pai.

B – Tanto assim que, como vertido nos arts. 2º, 4º, 5º, 7º, 12º, 13º e 16º da petição inicial, os A.A. alegam que agiram sempre em nome do falecido pai dos ora R.R., foram por ele mandatados para o representarem em várias acções, em que ele figurava como Autor/demandante, outorgando as competentes procurações forenses, foi com ele que contrataram um ajuste prévio de honorários, remuneração final dos serviços (sucess fee), em suma, toda a actividade profissional alegadamente praticada pelos A.A., e que constitui a causa de pedir e fundamento do pedido na presente acção, não o foi em representação dos R.R., mas sim em nome e em representação de seu pai.

C – Assim sendo, responsável pelo pagamento dos honorários referentes à actividade profissionalmente desenvolvida pelos A.A. é o pai dos R.R. e nunca estes a título pessoal, qualidade em que são demandados.

D – Mas o pai dos R.R. já faleceu e a sua herança ainda se encontra indivisa, correndo termos pela Comarca de Vila Real – Juízo Local Cível de Chaves – Juiz 1, os respectivos autos de inventário com o n.º (…).

E – Uma vez que a relação controvertida, tal como a configuram os A.A., e que modela o conteúdo jurídico da sua pretensão, é que constitui - em orientação jurídica - o objecto do processo e é perante ela que se afere da legitimidade substantiva dessa pretensão, é de concluir que a eventual dívida aqui reclamada constitui encargo da herança do falecido pai dos R.R. e não destes pessoalmente.

F – Dada a manifesta inviabilidade do direito aqui reclamado por a correspondente obrigação não estar radicada na esfera jurídica dos demandados, mas sim na de terceiros, está-se perante uma exceção peremptória inominada conexionada com a relação material, com o mérito da causa, que acarreta a improcedência do pedido na conformidade do disposto no n.º 3 do art. 576.º C.Pr.Civil.

G – Por douto despacho de 13-01-2023 (Ref: 92125943), o Mm.º Juiz entendeu que efectivamente a legitimidade substantiva radicava na herança e não nos demandados tal como o foram, ou seja, a título pessoal, e, consequentemente, ordenou a notificação dos A.A. para esclarecerem se o que pretendem é pedir a condenação dos Réus ao pagamento de determinada quantia (como resulta da literalidade do petitório da petição inicial ) ou, antes, ao reconhecimento da existência do crédito sobre a herança (que é, de resto, o que parece resultar da leitura concatenada da sua petição inicial).

H – Os A.A., na sequência daquele douto despacho, mantiveram a intenção processual de que os R.R. fossem condenados, sempre a título pessoal, por um lado, relativamente à quantia de 89.406,03 € e, por outro, a reconhecerem a existência da restante parte do crédito reclamado da responsabilidade da herança.

I – Mesmo assim, e não obstante a posição manifestada pelos A.A., inclusive de manterem a intenção de que os R.R. fossem condenados pessoalmente ao pagamento de parte da dívida reclamada, o Mm.º Juiz, no despacho saneador, decidiu que ficou sanada a eventual ilegitimidade substantiva dos R.R., porquanto o que os A.A. pretendem nesta demanda é que seja reconhecido que os mesmos são credores de determinada herança aberta por óbito dos pais dos R.R. estando os R.R. nestes autos na qualidade de herdeiros.

J – Por força deste despacho, o recorrido, operou-se ou aceitou-se uma transmutação da instância, quer a nível de sujeitos processuais quer a nível de pedido, em clara violação dos princípios que regem a estabilidade dessa mesma instância.

L – Na verdade, preconiza o art. 260.º C.Pr.Civil que, citado o Réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.

M – Quanto às pessoas, essa modificação pode ocorrer na sequência da sua substituição, por sucessão ou acto entre vivos, ou mediante incidente de intervenção de terceiros - art. 262.º C.Pr.Civil.

N – Relativamente ao pedido, o mesmo pode ser alterado por acordo das partes ou, então, verificado o circunstancialismo de que a lei faz depender essa alteração - arts. 264.º e 265.º C.Pr.Civil.

O – Ora, nem uma nem outra das situações ocorrem no caso vertente, porquanto nem os R.R. foram substituídos e/ou alterada a qualidade em que foram demandados, nem ocorre o circunstancialismo que permita a alteração do pedido inicialmente formulado.

P – Ainda que a lei processual civil confira ao juiz o poder de gestão processual e de adequação formal, bem como o dever de providenciar pela sanação da falta de pressuposto processual que seja sanável, dever este que abrange aqueles pressupostos cuja falta possa, por natureza, ser sanada, a fim de que sejam removidos todos os impedimentos à prolação da decisão de mérito, esse poder/dever não pode afrontar normas expressas, algumas preclusivas, que visam salvaguardar práticas processuais consolidadas.

Q – Uma vez que o pedido e a modificação subjectiva agora aceites e transmudados no despacho recorrido se traduzem numa sua alteração substancial, bem como numa modificação das partes, tudo operado fora do quadro processual exigível, não podem essa modificação e alteração ser aceites por afrontarem normas processuais expressas e imperativas.

R – Daí que, não sendo os R.R., na qualidade em que foram demandados, responsáveis pela satisfação da indemnização peticionada, e não sendo processualmente admissível a modificação da instância nos termos admitidos, deverão eles ser desde já absolvidos do respectivo pedido, perante a procedência da exceção peremptória inominada conexionada com o mérito da causa, na conformidade do disposto no n.º 3 do art. 576.º C.Pr.Civil.

S – Tendo, assim, o despacho recorrido incorrido na violação do disposto nos arts. 6.º, 260.º, 264.º e 265.º, todos C.Pr.Civil.

Termos em que, na procedência do recurso, se deve:

1. Revogar a decisão proferida no despacho saneador em que se decidiu pela improcedência da ilegitimidade substantiva dos R.R. demandados nesta acção; e

2. Na procedência dessa exceção peremptória inominada conexionada com o mérito da causa e na conformidade do disposto no n.º 3 do art. 576.º C.Pr.Civil, absolver os R.R. do pedido formulado na acção.

Questão a decidir:

Legitimidade substantiva do recorrente e do co-réu.

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O recorrente sustenta que, conjuntamente com o co-réu, foi demandado a título pessoal, apesar de o direito de crédito invocado pelos recorridos constituir encargo da herança de seu pai, EEE, pelo que se verifica uma situação de ilegitimidade substantiva, que deveria ter determinado a sua absolvição do pedido.

Vejamos se é assim.

Ao identificar as partes no início da petição inicial, os recorridos não mencionam que a acção é proposta contra o recorrente e o co-réu por serem os herdeiros de EEE. Por isso, ao iniciar a leitura daquele articulado, fica-se com a ideia de que o recorrente e o co-réu são demandados a título pessoal e não na qualidade de herdeiros.

Contudo, a leitura da totalidade desse articulado afasta tal ideia. Os factos que constituem a causa de pedir são invariavelmente atribuídos a EEE e o título pelo qual se pretende que o recorrente e o co-réu sejam condenados é, exclusivamente, a sua qualidade de herdeiros daquele. É, pois, claríssimo, desde o início do processo, que o recorrente e o co-réu foram demandados na qualidade de herdeiros de seu pai. Os recorridos consideram que o direito de crédito que se arrogam constitui um encargo da herança e pretendem a sua satisfação à custa dos bens desta.

Sendo assim, carece de fundamento a afirmação, feita pelo recorrente, de que o tribunal a quo admitiu uma modificação subjectiva da instância. O recorrente e o co-réu foram demandados como herdeiros de EEE e a esse título se mantêm como partes.

Por outro lado, o pedido deduzido na petição inicial foi de condenação do recorrente e do co-réu a pagarem, aos recorridos, os honorários que consideram serem-lhes devidos como contrapartida pelos serviços que alegam ter prestado a EEE, acrescidos de IVA e juros de mora.

Convidados, pelo tribunal a quo, a «esclarecerem se o que pretendem pedir é a condenação dos Réus ao pagamento de determinada quantia (…) ou, antes, ao reconhecimento da existência do crédito sobre a herança e a ver satisfeito esse alegado crédito pelos bens da herança (…)», os recorridos responderam que a acção foi proposta no pressuposto de que o recorrido e o co-réu já haviam partilhado a totalidade da herança, quando, na realidade, apenas tinham partilhado as quantias depositadas em contas bancárias de EEE, pelo que aqueles devem ser condenados, nos termos peticionados, na medida daquilo que receberam por efeito da partilha já efectuada, e, no mais, devem ser condenados a reconhecer a existência do crédito reclamado, da responsabilidade da herança.

Num segmento do despacho saneador que não é objecto do recurso, o tribunal a quo decidiu admitir apenas o pedido de reconhecimento de que a herança deve, aos recorridos, a quantia peticionada, pela qual o recorrente e o co-réu são responsáveis até ao limite dos bens que cada um deles receber da herança.

O recorrente considera que, ao proceder nos termos descritos, o tribunal a quo admitiu uma alteração do pedido vedada pelo artigo 265.º do CPC. Porém, sem razão. Esta tomada de posição do recorrente baseia-se numa concepção exacerbadamente formalista do processo civil, que não é a do actual CPC.

Se a herança já tivesse sido partilhada na sua totalidade, não se suscitaria qualquer dos problemas que temos vindo a analisar. Provando-se a prestação dos serviços alegados pelos recorridos, o recorrente e o co-réu seriam condenados, sempre na qualidade de herdeiros de EEE, a pagar a remuneração que o tribunal considerasse ser a devida.

Verificou-se, porém, que a herança não foi partilhada, ao menos na sua totalidade. Implicará isso a absolvição do recorrente e do co-réu do pedido, obrigando os recorridos a proporem nova acção, também contra aqueles, em que peçam a condenação, não já no pagamento de uma quantia, mas apenas no reconhecimento da existência do crédito reclamado, da responsabilidade da herança?

A resposta a esta questão é negativa. Os sujeitos da nova acção seriam os mesmos, como vimos anteriormente. O pedido diferiria daquele que consta da petição inicial desta acção na sua formulação, mas não no seu efeito jurídico-prático. Em qualquer das hipóteses, os recorridos visariam obter uma sentença com base na qual pudessem executar os bens deixados pelo pai do recorrente e do co-réu, independentemente de se encontrarem, ou não, partilhados. Para quê, então, impedir o prosseguimento desta acção, julgando-se a mesma, desde já, improcedente, para, noutra acção entre os mesmos sujeitos, se discutir exactamente os mesmos factos, com o mesmo enquadramento jurídico, visando a produção de um efeito jurídico-prático idêntico? Não divisamos qualquer interesse do recorrente e do co-réu, digno de protecção legal, cuja salvaguarda imponha a solução que refutamos.

O actual CPC «visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância, tendo em vista o máximo aproveitamento dos actos processuais»[1]. Em consonância com este princípio, o tribunal a quo procedeu acertadamente ao convidar os recorridos para esclarecerem o que realmente pretendem através da presente acção (e que o mesmo tribunal considerou, também acertadamente, que já resultava da interpretação da petição inicial). Em face do esclarecimento prestado pelos recorridos e tendo em consideração tudo o que anteriormente referimos, impunha-se julgar improcedente a excepção de ilegitimidade substantiva do recorrente e do co-réu. Errado seria uma absolvição do pedido com fundamento numa formulação menos correcta deste, não obstante o resultado, acima descrito, da actividade desenvolvida pelo tribunal a quo, como era seu dever (artigo 6.º do CPC), tendente a assegurar o normal prosseguimento da acção.

Deverá, pois, o recurso ser julgado improcedente.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o segmento do despacho saneador que dele constitui objecto.

Custas a cargo do recorrente.

Notifique.

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Évora, 27.06.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.º adjunto)



[1] Acórdão da Relação de Guimarães de 07.12.2016 (Maria Purificação Carvalho). No mesmo sentido, acórdãos da Relação de Coimbra 26.02.2019 (António Carvalho Martins) e de 24.09.2019 (Fonte Ramos).  

Acórdão da Relação de Évora de 12.09.2024

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