Processo n.º 1536/21.5T8PTM-A.E1
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É solicitado, ao abrigo do
disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP, aplicável ex vi artigos 417.º, n.º 4, e 497.º, n.º 3, do CPC, que este
tribunal determine que AAA, que se pretende ouvir na qualidade de testemunha e
tem a profissão de advogado, preste depoimento com quebra do sigilo
profissional a que se encontra vinculado.
Os factos relevantes para a
apreciação da descrita solicitação são os seguintes:
1 – Sociedade 1, Lda., propôs acção
declarativa comum contra BBB e CCC, pedindo que fosse declarada a validade do
reconhecimento de dívida subscrito pelos réus e que, em consequência, estes
fossem condenados no pagamento da quantia de € 29.639,10, acrescida de juros de
mora desde a citação até integral pagamento.
2 – A autora alegou, em síntese, que o
primeiro réu foi seu trabalhador, tendo a seu cargo a reposição de material e o
levantamento de quantias em dinheiro do interior das máquinas de distribuição
de tabaco, devendo prestar-lhe contas periodicamente. Apurou-se que existiam
falhas no stock das máquinas que estavam sob a responsabilidade do primeiro
réu, bem como nas entregas em numerário. Falhas essas que ascendiam a €
29.639,10. O que determinou a cessação, por acordo, da relação laboral. Ambos
os demandados subscreveram, em 29.09.2015 um documento particular, epigrafado
de «Acordo de Consolidação de Débitos e
de Pagamento», por via do qual se obrigaram solidariamente a pagar
mensalmente, à autora, a quantia de € 400, até perfazer a totalidade do valor
em dívida. Não tendo os réus, contudo, pago qualquer das prestações mensais
convencionadas. Pelo que, em 09.06.2021, a autora remeteu, a cada um dos réus,
cartas registadas com aviso de recepção, que foram pelos mesmos recebidas em 11.06.2021,
interpelando-os para o pagamento da totalidade do crédito, no prazo de oito
dias. Cartas essas que às quais os réus não responderam, indício de que não
pretendem cumprir. Sendo que, sem prejuízo do vencimento de todas as
prestações, se deverá considerar definitivamente incumprido o acordo firmado,
sendo os réus, solidariamente, responsáveis pelo pagamento da totalidade da
dívida.
3 – Os réus contestaram, alegando, em
síntese, que assinaram a declaração de dívida, apesar de o primeiro réu estar
plenamente convicto de que nada devia, com vista a obviar a uma participação
criminal que foi anunciada pela autora e que o visaria por ele se ter recusado
a depor como testemunha no âmbito de processos que a proponente tinha pendentes
contra outros trabalhadores. Motivo esse pelo qual considera que a declaração
de divida constituiu um negócio usurário, sendo anulável. Mais alegou que o
crédito invocado tem natureza laboral e que se acha prescrito nos termos do
artigo 337.º do Código do Trabalho. No mais, impugnou os factos alegados pela
autora, tendo negado a existência da dívida.
4 – O tribunal de 1.ª instância
enunciou, como questões a decidir, as seguintes: a) Se os réus, por via do
reconhecimento de dívida que subscreveram, devem a quantia peticionada à
autora; b) Se existe algum fundamento que seja invalidante do(s) acordo(s)
firmado(s).
5 – O tribunal de 1.ª instância proferiu
sentença mediante a qual julgou a acção totalmente procedente.
6 – Os réus interpuseram recurso da
sentença.
7 – O tribunal de 2.ª instância proferiu
decisão sumária mediante a qual julgou o recurso procedente e anulou a sentença
recorrida.
8 – Na decisão referida em 7,
escreveu-se, nomeadamente, o seguinte:
«Ora,
sobre tal problemática a averiguar nestes autos – factualidade essa que, por
via de excepção, foi devidamente alegada pelos RR. na sua contestação –
importava ouvir, em concreto, os diversos intervenientes nas negociações, não
só os representantes legais da sociedade A., DDD e EEE (identificados na parte
final da petição inicial), como também o advogado da dita A. (a identificar)
que terá “participado activamente” em tal reunião e que, como causídico, terá
elaborado a declaração/reconhecimento de dívida aqui em discussão, a qual foi
subscrita pelas partes.
Por
outro lado, foi alegado que o 1º R. devia testemunhar em processos judiciais
contra os funcionários da A., FFF e GGG (identificados no art.4º da
contestação), por aquele ter conhecimento directo dos factos aí em litígio e,
por isso, poder sustentar e defender em tribunal a “posição” sufragada pela A.
Todavia,
sobre as condições e as vicissitudes várias que levaram à celebração da referida
declaração/reconhecimento de dívida, assinada pelos representantes legais da A.
e pelos RR., constata-se que apenas foi inquirido como testemunha, em
audiência, HHH, muito embora, nem os dois representante legais da sociedade A.
(acima identificados), nem o advogado que elaborou tal documento, tenham sido
ouvidos em julgamento, sendo certo que os mesmos tomaram parte activa e directa
nas negociações em causa e, por isso, quer as declarações dos legais
representantes da A., quer o depoimento como testemunha do referido causídico
(a identificar), são essenciais para o completo esclarecimento e apuramento da
verdade material, nomeadamente a diversa factualidade constante dos arts.1.º a
10.º e 15.º a 20.º da contestação, bem como concretizarem se a declaração de
dívida assinada entre as partes era para vigorar de imediato (ou não), uma vez
que nada consta expressamente a tal propósito (podendo, se necessário,
solicitar-se a dispensa do respectivo dever de sigilo profissional por parte
desta última testemunha, advogado de profissão – cfr. arts.497º nº3 e 417º nº4
do C.P.C. – e, também, se estiverem verificados os pressupostos, realizar-se
uma acareação entre eles e os RR. cfr. art.523º do C.P.C.).
(…)
Por
isso, todas as dúvidas, contradições ou divergências que necessitem de
esclarecimentos e respostas cristalinas, com vista ao cabal apuramento da
verdade e da justa composição do litígio – nos termos do disposto no referido
art. 411º do C.P.C. – poderão ser dadas no tribunal a quo, com a tomada de declarações
de parte aos dois representantes legais da sociedade A., acima identificados,
bem como através da inquirição oficiosa em julgamento do advogado representante
da A., a identificar por esta (cfr. art.526º do C.P.C.), uma vez que, não será
aqui demais repetir, todos eles terão tido uma actuação e uma participação
directa e activa nas negociações com vista à elaboração da
declaração/reconhecimento de dívida aqui em causa, podendo ainda esclarecer se
tal declaração assinada entre as partes era para vigorar de imediato (ou não)
- sublinhado nosso.
(…)
Nestes
termos, e com vista ao esclarecimento cabal dos termos e das circunstâncias
em que foi negociada e subscrita pelas partes a declaração/reconhecimento de
dívida, e também sobre a sua entrada em vigor, resulta claro que as respostas
dadas ao ponto 2 dos factos provados, bem como as respostas negativas aos
pontos 1 a 3 dos factos não provados, não se poderão manter, de todo, pelo que,
nos termos do disposto no art.662º nº2 alínea c) do C.P.C., anulam-se tais
respostas constantes da factualidade provada e não provada e, por consequência,
anula-se também a sentença recorrida, a fim de ser devidamente apurada a
matéria fáctica alegada na contestação - nomeadamente os arts.1º a 10º e 15º a
20º de tal articulado - o que deverá ser feito com a realização de todas as
diligências de prova mencionadas supra, sendo certo que, na repetição do
julgamento, o tribunal a quo deverá ter em atenção o estipulado no n.º 3 alínea
c) do citado art. 662.º - sublinhado nosso.»
9 – O tribunal de 1.ª instância reabriu
a audiência final, na qual compareceu, para depor na qualidade de testemunha, AAA,
o qual se identificou como advogado e, ao ser inquirido sobre a matéria da
causa, se recusou a responder. O fundamento invocado para essa recusa foi o de
que tomou conhecimento dos factos acerca dos quais estava a ser inquirido na
qualidade de advogado da autora e não tinha solicitado, à Ordem dos Advogados,
o levantamento do sigilo profissional a que se encontra vinculado.
10 – Perante isso, o tribunal de 1.ª
instância proferiu despacho com o seguinte teor:
«Tendo
em consideração o estatuído no art.º 92.º do estatuto da ordem dos advogados,
que determina que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita
aos factos cujo conhecimento advenha do exercício das suas funções, nomeadamente
aos factos que tenha tido conhecimento durante negociações para pôr termo ao
litígio, o Tribunal considera que e legitima a recusa do Sr. Advogado em depor
– Art.º417.º, n.º3, al.c) do CPC.
Tendo
contudo em consideração que o segredo profissional não tem valor absoluto e não
deverá obstar à realização da justiça nem à descoberta da verdade, sendo evidente
que o Sr. Advogado tem amplo conhecimento dos factos que estão em discussão,
nomeadamente porque terá sido a pessoa que redigiu a declaração de dívida que
se encontra junta aos autos e presenciou a sua subscrição, mais se constatando
que em sede recursiva foi ordenada a sua inquirição na qualidade de testemunha,
se necessário o levantamento do sigilo profissional, ao abrigo do disposto no
art 135, n.º3 do Código de Processo Penal, determino que se solicite ao
Tribunal da Relação de Évora para que, caso assim seja entendido, autorize a
quebra do sigilo profissional. (…)»
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Resulta do artigo 92.º, n.º
1, al. a), do Estatuto da Ordem dos Advogados, que o advogado é obrigado a
guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo
conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus
serviços, designadamente a factos referentes a assuntos profissionais
conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem
deste.
Pretende-se que AAA deponha,
na qualidade de testemunha, sobre factos por si percepcionados e praticados na
qualidade de advogado da autora. Em face do disposto na norma citada, é fora de
dúvida que tais factos se encontram abrangidos pelo dever de sigilo
profissional a que esta testemunha se encontra vinculada.
O artigo 135.º do CPP,
aplicável ex vi artigos 417.º, n.º 4,
e 497.º, n.º 3, do CPC, estabelece, na parte que nos interessa, que os
advogados podem escusar-se a depor
sobre os factos abrangidos
pelo dever de sigilo profissional (n.º 1). Contudo, o tribunal superior àquele onde o incidente tiver
sido suscitado pode determinar que a testemunha preste depoimento «com quebra do segredo profissional sempre
que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse
preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento
para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção
de bens jurídicos» (n.º 3).
Isto é, «o dever de sigilo pode e deve ceder quando em confronto com
outros interesses, igualmente relevantes, como é o caso do interesse, também
ele de ordem pública, na descoberta da verdade dos factos e na boa
administração da justiça, de que o dever genérico e alargado de cooperação
consagrado no art. 417º do CPC é instrumental»[1].
Impõe-se, assim, proceder a uma ponderação dos interesses em conflito tendo em
consideração as circunstâncias do caso concreto.
Resulta da decisão
parcialmente transcrita em 8 que os factos acerca dos quais se pretende que AAA
se pronuncie são absolutamente fundamentais para a decisão da causa. Resulta da
mesma decisão que o depoimento desta testemunha é indispensável para o
apuramento dos mesmos factos. Importa, também, considerar que se encontra em
discussão a existência de um direito de crédito de montante significativo.
Nestas circunstâncias,
consideramos que o interesse na descoberta da verdade dos factos, condição
essencial para a justa composição do litígio, deverá prevalecer sobre os
interesses protegidos pela consagração do dever de sigilo profissional do
advogado. Consequentemente, deverá ser determinado que AAA preste depoimento,
na qualidade de testemunha, sobre toda a matéria referida na decisão
parcialmente transcrita em 8, com quebra do seu dever de sigilo profissional.
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Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, que
AAA preste depoimento, na qualidade de testemunha, sobre toda a matéria
referida na decisão parcialmente transcrita em 8, com quebra do seu dever de
sigilo profissional.
Custas a cargo da parte
vencida a final.
Notifique.
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Évora,
12.09.2024
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª
adjunta)
(2.ª
adjunta)
[1] Acórdão da Relação de Évora de
25.05.2023 (José Lúcio).