quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 12.09.2024

Processo n.º 1536/21.5T8PTM-A.E1

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É solicitado, ao abrigo do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP, aplicável ex vi artigos 417.º, n.º 4, e 497.º, n.º 3, do CPC, que este tribunal determine que AAA, que se pretende ouvir na qualidade de testemunha e tem a profissão de advogado, preste depoimento com quebra do sigilo profissional a que se encontra vinculado.

Os factos relevantes para a apreciação da descrita solicitação são os seguintes:

1 – Sociedade 1, Lda., propôs acção declarativa comum contra BBB e CCC, pedindo que fosse declarada a validade do reconhecimento de dívida subscrito pelos réus e que, em consequência, estes fossem condenados no pagamento da quantia de € 29.639,10, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento.

2 – A autora alegou, em síntese, que o primeiro réu foi seu trabalhador, tendo a seu cargo a reposição de material e o levantamento de quantias em dinheiro do interior das máquinas de distribuição de tabaco, devendo prestar-lhe contas periodicamente. Apurou-se que existiam falhas no stock das máquinas que estavam sob a responsabilidade do primeiro réu, bem como nas entregas em numerário. Falhas essas que ascendiam a € 29.639,10. O que determinou a cessação, por acordo, da relação laboral. Ambos os demandados subscreveram, em 29.09.2015 um documento particular, epigrafado de «Acordo de Consolidação de Débitos e de Pagamento», por via do qual se obrigaram solidariamente a pagar mensalmente, à autora, a quantia de € 400, até perfazer a totalidade do valor em dívida. Não tendo os réus, contudo, pago qualquer das prestações mensais convencionadas. Pelo que, em 09.06.2021, a autora remeteu, a cada um dos réus, cartas registadas com aviso de recepção, que foram pelos mesmos recebidas em 11.06.2021, interpelando-os para o pagamento da totalidade do crédito, no prazo de oito dias. Cartas essas que às quais os réus não responderam, indício de que não pretendem cumprir. Sendo que, sem prejuízo do vencimento de todas as prestações, se deverá considerar definitivamente incumprido o acordo firmado, sendo os réus, solidariamente, responsáveis pelo pagamento da totalidade da dívida.

3 – Os réus contestaram, alegando, em síntese, que assinaram a declaração de dívida, apesar de o primeiro réu estar plenamente convicto de que nada devia, com vista a obviar a uma participação criminal que foi anunciada pela autora e que o visaria por ele se ter recusado a depor como testemunha no âmbito de processos que a proponente tinha pendentes contra outros trabalhadores. Motivo esse pelo qual considera que a declaração de divida constituiu um negócio usurário, sendo anulável. Mais alegou que o crédito invocado tem natureza laboral e que se acha prescrito nos termos do artigo 337.º do Código do Trabalho. No mais, impugnou os factos alegados pela autora, tendo negado a existência da dívida.

4 – O tribunal de 1.ª instância enunciou, como questões a decidir, as seguintes: a) Se os réus, por via do reconhecimento de dívida que subscreveram, devem a quantia peticionada à autora; b) Se existe algum fundamento que seja invalidante do(s) acordo(s) firmado(s).

5 – O tribunal de 1.ª instância proferiu sentença mediante a qual julgou a acção totalmente procedente.

6 – Os réus interpuseram recurso da sentença.

7 – O tribunal de 2.ª instância proferiu decisão sumária mediante a qual julgou o recurso procedente e anulou a sentença recorrida.

8 – Na decisão referida em 7, escreveu-se, nomeadamente, o seguinte:

«Ora, sobre tal problemática a averiguar nestes autos – factualidade essa que, por via de excepção, foi devidamente alegada pelos RR. na sua contestação – importava ouvir, em concreto, os diversos intervenientes nas negociações, não só os representantes legais da sociedade A., DDD e EEE (identificados na parte final da petição inicial), como também o advogado da dita A. (a identificar) que terá “participado activamente” em tal reunião e que, como causídico, terá elaborado a declaração/reconhecimento de dívida aqui em discussão, a qual foi subscrita pelas partes.

Por outro lado, foi alegado que o 1º R. devia testemunhar em processos judiciais contra os funcionários da A., FFF e GGG (identificados no art.4º da contestação), por aquele ter conhecimento directo dos factos aí em litígio e, por isso, poder sustentar e defender em tribunal a “posição” sufragada pela A.

Todavia, sobre as condições e as vicissitudes várias que levaram à celebração da referida declaração/reconhecimento de dívida, assinada pelos representantes legais da A. e pelos RR., constata-se que apenas foi inquirido como testemunha, em audiência, HHH, muito embora, nem os dois representante legais da sociedade A. (acima identificados), nem o advogado que elaborou tal documento, tenham sido ouvidos em julgamento, sendo certo que os mesmos tomaram parte activa e directa nas negociações em causa e, por isso, quer as declarações dos legais representantes da A., quer o depoimento como testemunha do referido causídico (a identificar), são essenciais para o completo esclarecimento e apuramento da verdade material, nomeadamente a diversa factualidade constante dos arts.1.º a 10.º e 15.º a 20.º da contestação, bem como concretizarem se a declaração de dívida assinada entre as partes era para vigorar de imediato (ou não), uma vez que nada consta expressamente a tal propósito (podendo, se necessário, solicitar-se a dispensa do respectivo dever de sigilo profissional por parte desta última testemunha, advogado de profissão – cfr. arts.497º nº3 e 417º nº4 do C.P.C. – e, também, se estiverem verificados os pressupostos, realizar-se uma acareação entre eles e os RR. cfr. art.523º do C.P.C.).

(…)

Por isso, todas as dúvidas, contradições ou divergências que necessitem de esclarecimentos e respostas cristalinas, com vista ao cabal apuramento da verdade e da justa composição do litígio – nos termos do disposto no referido art. 411º do C.P.C. – poderão ser dadas no tribunal a quo, com a tomada de declarações de parte aos dois representantes legais da sociedade A., acima identificados, bem como através da inquirição oficiosa em julgamento do advogado representante da A., a identificar por esta (cfr. art.526º do C.P.C.), uma vez que, não será aqui demais repetir, todos eles terão tido uma actuação e uma participação directa e activa nas negociações com vista à elaboração da declaração/reconhecimento de dívida aqui em causa, podendo ainda esclarecer se tal declaração assinada entre as partes era para vigorar de imediato (ou não) - sublinhado nosso.

(…)

Nestes termos, e com vista ao esclarecimento cabal dos termos e das circunstâncias em que foi negociada e subscrita pelas partes a declaração/reconhecimento de dívida, e também sobre a sua entrada em vigor, resulta claro que as respostas dadas ao ponto 2 dos factos provados, bem como as respostas negativas aos pontos 1 a 3 dos factos não provados, não se poderão manter, de todo, pelo que, nos termos do disposto no art.662º nº2 alínea c) do C.P.C., anulam-se tais respostas constantes da factualidade provada e não provada e, por consequência, anula-se também a sentença recorrida, a fim de ser devidamente apurada a matéria fáctica alegada na contestação - nomeadamente os arts.1º a 10º e 15º a 20º de tal articulado - o que deverá ser feito com a realização de todas as diligências de prova mencionadas supra, sendo certo que, na repetição do julgamento, o tribunal a quo deverá ter em atenção o estipulado no n.º 3 alínea c) do citado art. 662.º - sublinhado nosso.»

9 – O tribunal de 1.ª instância reabriu a audiência final, na qual compareceu, para depor na qualidade de testemunha, AAA, o qual se identificou como advogado e, ao ser inquirido sobre a matéria da causa, se recusou a responder. O fundamento invocado para essa recusa foi o de que tomou conhecimento dos factos acerca dos quais estava a ser inquirido na qualidade de advogado da autora e não tinha solicitado, à Ordem dos Advogados, o levantamento do sigilo profissional a que se encontra vinculado.

10 – Perante isso, o tribunal de 1.ª instância proferiu despacho com o seguinte teor:

«Tendo em consideração o estatuído no art.º 92.º do estatuto da ordem dos advogados, que determina que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita aos factos cujo conhecimento advenha do exercício das suas funções, nomeadamente aos factos que tenha tido conhecimento durante negociações para pôr termo ao litígio, o Tribunal considera que e legitima a recusa do Sr. Advogado em depor – Art.º417.º, n.º3, al.c) do CPC.

Tendo contudo em consideração que o segredo profissional não tem valor absoluto e não deverá obstar à realização da justiça nem à descoberta da verdade, sendo evidente que o Sr. Advogado tem amplo conhecimento dos factos que estão em discussão, nomeadamente porque terá sido a pessoa que redigiu a declaração de dívida que se encontra junta aos autos e presenciou a sua subscrição, mais se constatando que em sede recursiva foi ordenada a sua inquirição na qualidade de testemunha, se necessário o levantamento do sigilo profissional, ao abrigo do disposto no art 135, n.º3 do Código de Processo Penal, determino que se solicite ao Tribunal da Relação de Évora para que, caso assim seja entendido, autorize a quebra do sigilo profissional. (…)»

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Resulta do artigo 92.º, n.º 1, al. a), do Estatuto da Ordem dos Advogados, que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente a factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste.

Pretende-se que AAA deponha, na qualidade de testemunha, sobre factos por si percepcionados e praticados na qualidade de advogado da autora. Em face do disposto na norma citada, é fora de dúvida que tais factos se encontram abrangidos pelo dever de sigilo profissional a que esta testemunha se encontra vinculada.

O artigo 135.º do CPP, aplicável ex vi artigos 417.º, n.º 4, e 497.º, n.º 3, do CPC, estabelece, na parte que nos interessa, que os advogados podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos pelo dever de sigilo profissional (n.º 1). Contudo, o tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado pode determinar que a testemunha preste depoimento «com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos» (n.º 3). Isto é, «o dever de sigilo pode e deve ceder quando em confronto com outros interesses, igualmente relevantes, como é o caso do interesse, também ele de ordem pública, na descoberta da verdade dos factos e na boa administração da justiça, de que o dever genérico e alargado de cooperação consagrado no art. 417º do CPC é instrumental»[1]. Impõe-se, assim, proceder a uma ponderação dos interesses em conflito tendo em consideração as circunstâncias do caso concreto.

Resulta da decisão parcialmente transcrita em 8 que os factos acerca dos quais se pretende que AAA se pronuncie são absolutamente fundamentais para a decisão da causa. Resulta da mesma decisão que o depoimento desta testemunha é indispensável para o apuramento dos mesmos factos. Importa, também, considerar que se encontra em discussão a existência de um direito de crédito de montante significativo.

Nestas circunstâncias, consideramos que o interesse na descoberta da verdade dos factos, condição essencial para a justa composição do litígio, deverá prevalecer sobre os interesses protegidos pela consagração do dever de sigilo profissional do advogado. Consequentemente, deverá ser determinado que AAA preste depoimento, na qualidade de testemunha, sobre toda a matéria referida na decisão parcialmente transcrita em 8, com quebra do seu dever de sigilo profissional.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, que AAA preste depoimento, na qualidade de testemunha, sobre toda a matéria referida na decisão parcialmente transcrita em 8, com quebra do seu dever de sigilo profissional.

Custas a cargo da parte vencida a final.

Notifique.

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Évora, 12.09.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.ª adjunta)

(2.ª adjunta)

 


[1] Acórdão da Relação de Évora de 25.05.2023 (José Lúcio).


Voto de vencido exarado em acórdão da Relação de Évora de 30.01.2025

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