Processo n.º 3307/22.2T8STB.E1
*
Sumário:
Por si só, a decisão sobre a
matéria de facto proferida num processo não pode produzir efeitos noutro
processo por via da autoridade de caso julgado.
*
Autor/recorrente:
AAA.
Réus/recorridos:
Sociedade 1;
Sociedade 2.
Pedidos:
«a)
Determinar a nulidade da escritura pública realizada em 29 de setembro de 2011
em virtude da sua falsidade, uma vez que a mesma não verte a real vontade das
partes, isto é, entre a vontade das Rés e em consequência ser anulado o registo
da Ap. 3940 de 2011/09/29 inscrita no prédio rustico em causa, a favor da Ré Sociedade
1;
b)
Caso assim, não se entenda, deve ser declarado nulo o negócio entre as Rés por
simulação do negócio, uma vez que era intenção das partes procederem à
celebração de um mútuo e em face da existência de falta de forma dever ser
determinada a nulidade da mesma;
c)
Deve ainda ser declarado nulo o negócio, em virtude de ser nula a convenção
pela qual o credor faça sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir de
acordo com o artigo 694º do Código Civil, uma vez que estamos perante um mútuo;
d)
Deve ainda ser decretada a nulidade em virtude de estarmos perante um negócio
usuário, que nos termos do artigo 282º do Código Civil é nulo, em virtude de a
Ré SOCIEDADE 1 ter beneficiado de uma fraqueza da Ré SOCIEDADE 2
e)
Por fim, caso assim não se entenda o supra peticionado nas alíneas anteriores
a), b), c) a d), deve ser reconhecido o direito de propriedade do Autor, em
virtude da realização de obras que valorizaram superiormente o prédio rustico
da Ré SOCIEDADE 1 nos termos do artigo 1340º nº 1 do Código Civil, devendo o
douto tribunal notificar o Autor para prestar o pagamento do valor de €
45.000,00 e consequentemente que tal reconhecimento obste a realização da
diligencia de entrega de coisa certa instaurada no Processo executivo nº
414/18.0T8STB-B a correr termos no Juiz 1 do Juízo de Execuções de Setúbal.»
Sentença recorrida:
Julgou a acção improcedente.
Conclusões do recurso:
«1.
O presente recurso vem interposto da douta sentença de 22.01.2024, que julgou a
acção improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu as rés dos
vários pedidos deduzidos pelo autor, aqui apelante;
2.
O autor instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo
comum, contra as rés, ora apeladas, peticionando a declaração de nulidade da
escritura de compra e venda, realizada em 29/09/20211, em virtude da sua
falsidade, uma vez que não corresponde à vontade real das partes e, em
consequência, a anulação do registo da Ap. 3940 de 2011/09/29, inscrita no
prédio rústico a favor da 1.ª ré, aqui apelada;
3.
Pediu, ainda, subsidiariamente: a) que o negócio seja declarado nulo, por
simulação; b) a declaração de nulidade do negócio, ao abrigo do disposto no
artigo 694.º, do CC; que seja decretada a nulidade, por tratar-se de um negócio
usurário; por fim, ao abrigo do disposto no artigo 1340.º, n.º 1, do CC, que
seja lhe seja reconhecido o direito de propriedade;
4.
Apesar de regularmente citadas, as rés não contestaram a acção;
5.
O Tribunal a quo considerou provados os factos, essenciais, de 1. a 11. da
factualidade dada como provada, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente
reproduzido;
6.
Porém, considerou não provados: a) no âmbito do negócio descrito em 5., não foi
intenção do pai do autor alienar a parcela urbana que faz parte integrante do
prédio em 1.; b) no âmbito do negócio descrito em 5., não foi intenção das
partes realizar uma escritura de compra e venda;
7.
Segundo a douta decisão recorrida, por sentença proferida em 21/09/2017, no
âmbito do procedimento cautelar, melhor identificado nos autos, em que foi
deferida a inversão do contencioso, foi dada como provada a factualidade
assente no ponto 11. dos factos provados que, só por si, afasta a hipótese do
pai do autor não ter pretendido a alienação do prédio em construção, bem como a
de as partes não terem tido intenção de realizar uma escritura de compra e
venda;
8.
Ora, com o devido respeito, o Tribunal a quo, socorrendo-se da autoridade do
caso julgado, não podia dar como não provados os factos das alíneas a) e b) e,
muito menos, como provada a factualidade do ponto 11., pelos fundamentos que
passamos a enumerar;
9.
O autor, ora apelante, não foi parte naquela providência cautelar, nem sequer
existe identidade da causa de pedir e/ou dos pedidos;
10.
Ainda que, para a verificação da autoridade do caso julgado não seja exigida a
coexistência da tripla identidade das partes, pedido e causa de pedir, que se
impõe para a procedência do caso julgado, aquela visa, essencialmente, obstar a
que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença, por
questões de certeza ou segurança jurídicas, possa ser definida de modo diverso
por uma decisão posterior;
11.
Como se disse, a douta sentença apelada atendeu, ao teor da decisão proferida
nos autos de procedimento cautelar, ou seja, considerou que a decisão sobre os
factos provados (cfr. ponto 11.) se impõe pela autoridade de caso julgado;
12.
Porém, com o devido respeito, segundo a doutrina e a jurisprudência, o caso
julgado incide sobre a decisão e não abrange os fundamentos de facto;
13.
Pois, conforme defende o saudoso Professor Antunes Varela, em obra já citada,
“os factos considerados como provados da sentença não podem considerar-se
isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles
outras consequências, além das contidas na decisão final”;
14.
E, “os fundamentos de facto, quando autonomizados da decisão de que são
pressuposto, não adquirem valor de caso julgado de molde a poderem impor-se
extraprocessualmente” (Acórdão STJ, de 09/06/2021, já citado);
15.
Acresce que, “a decisão das questões e incidentes suscitados não constitui,
porém, caso julgado fora do processo respetivo, exceto se alguma das partes
requerer o julgamento com essa qualidade (…)” – cfr. artigo 91.º, n.º 2, do CPC;
16.
Por fim, sempre se dirá que os factos apreciados num processo não se impõem
noutro processo, porque a sentença apenas prova plenamente a realização do
julgamento, ou seja, os actos praticados pelo juiz, mas já não prova a
realidade dos factos dados como assentes;
17.
Pelo exposto, a factualidade do ponto 11., não pode ser dada como provada,
devendo ser desentranhada da matéria assente, com as demais consequências
legais;
18.
E, contrariamente ao decidido na sentença recorrida, considerando que a acção
não foi contestada, bem como não se verifica a autoridade do caso julgado, os
factos não provados, em a) e b), ao invés, devem integrar o elenco da
factualidade dada como provada;
19.
O facto de a lei determinar que se o réu não contestar se consideram confessados
os factos articulados pelo autor, tal não determina, sem mais, a procedência da
sua pretensão, mas, tão só, que seja assumido o quadro factual vertido na
petição inicial;
20.
Pois, o juiz terá de julgar a causa conforme o direito, conforme decorre da
parte final do n.º 2, do artigo 567.º, do CPC;
21.
Ainda que se considere ou venha a considerar que a factualidade alegada pelo
autor é insuficiente e/ou defeituosa para a procedência da acção, o que por
mera hipótese académica se admite, mas sem conceder, entendemos que, não
obstante a revelia do réu, deve o julgador convidar o autor a aperfeiçoá-la,
nos termos do n.º 1, do artigo 590.º, do CPC.
22.
Com a prolação da douta sentença, ora recorrida, foram violados, entre outros,
os artigos 91.º, n.º 2, 567.º e 590.º, n.º 1, todos, do CPC.»
Questões a decidir:
1 – Impugnação da decisão sobre o
conteúdo do n.º 11;
2 – Autoridade de caso julgado;
3 – Insuficiência da matéria de facto
julgada provada;
4 – Impugnação da decisão sobre o
conteúdo das alíneas a) e b);
5 – Erro sobre o objecto do negócio;
6 – Simulação;
7 – Venda a retro;
8 – Negócio usurário;
9 – Pacto comissório;
10 – Acessão imobiliária;
11 – Convite ao aperfeiçoamento.
Factos julgados provados
pelo tribunal a quo:
1. O autor reside há cerca de 20 anos no
imóvel urbano existente no prédio rustico, com a área de 5.032 m2, sito na
freguesia de (…), descrito na CRP (1ª) de Setúbal, sob n.º (…) e inscrito na
matriz predial rústica sob o artigo (…), secção A, da União das freguesias de (…).
2. O referido prédio rustico é composto,
por 5 parcelas, as quais infra se descrevem:
a) Parcela 1 – Cultura arvense e uma
dependência agrícola;
b) Parcela 2 – Pomar de laranjeiras;
c) Parcela 3 – Urbano;
d) Parcela 4 – Cultura arvense;
e) Parcela 5 – Pomar de laranjeiras.
3. O prédio urbano correspondente à
parcela 3 do rústico, é destinado a habitação, com aproximadamente 640 m2, e é
compostos por dois pisos:
• Piso 1: cozinha, sala, duas suites, dois
quartos e uma IS de apoio;
• Piso 2: três quartos, uma sala com
varanda exterior, um escritório e uma zona de arrumos;
• Em anexo, garagem coberta com uma
cozinha adjacente e IS;
• No exterior: telheiro, com
churrasqueira e forno, e uma piscina com jardim envolvente.
4. Por escritura pública denominada «justificação e compra e venda», datada
de 24 de Abril de 2009, o pai do autor e a sua mulher declararam serem donos e
legítimos possuidores do imóvel descrito em 1, invocando a usucapião,
declarando vender o mesmo à 2.ª ré, pelo preço de € 5.000,00.
5. As rés, em 29 de Setembro de 2011,
outorgaram uma escritura de compra e venda, em que interveio o pai do autor
como legal representante da 2.ª ré, em que declararam:
«Que
pelo preço de quarenta e cinco mil euros, que já recebeu, vende à sociedade
representada pelos segundos, livre de ónus ou encargos, um prédio rústico com a
área de cinco mil e trinta e dois metros quadrados, sito em (…), freguesia de (…),
concelho de Setúbal, inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…), Secção A,
com o valor patrimonial de 78,40 €, e descrito na Primeira Conservatória do
Registo Predial de Setúbal sob o número (…), e registado a favor da sociedade
vendedora pela apresentação (…).
Disseram
os segundos outorgantes:
Que
aceitam a venda, para a sociedade sua representada, e declaram que o referido
prédio se destina a revenda.»
6. A 2.ª ré, o gerente da sociedade e o autor
sempre tiveram a sua morada de família no referido imóvel [Rua (…), n.º (…), (…),
em Setúbal], ao longo dos seus 20 anos, sendo que o segundo acabou por lá
falecer.
7. O referido prédio urbano foi
construído pelo pai do autor e ao longo dos anos foram feitas diversas
construções, designadamente:
a) Em 1991 foi construído o imóvel
urbano destinado habitação e procedida de plantação de toda a vegetação e
arvoredo existente ainda hoje na propriedade;
b) Em 1993 foi construída a garagem;
c) Em 1996 foi construída a piscina, com
todo o equipamento necessário;
d) Entre 1997 e 2014 foram efectuadas
diversas obras, nos jardins, muros, portões, conservação e manutenção do prédio
urbano;
e) Entre 2015 e 2016 já pelo autor em
diante, continuaram a ser suportadas obras nos jardins, muros, portões,
piscina, conservação e manutenção do prédio urbano;
f) Em 2017 foi realizada uma
implementação do telheiro junto à piscina;
g) Em 2018 foi realizada uma
implementação da churrasqueira e forno do telheiro;
h) Em 2019 foi instalado um recuperador
de calor na zona da cozinha.
8. As rés não se opuseram à edificação
de tais construções.
9. O custo suportado com as construções
ascende a cerca de € 80.000,00 (oitenta mil euros).
10. Na decorrência de tais construções,
o prédio referido em 1 tem um preço de mercado de cerca de € 300.000,00
(trezentos mil euros).
11. No âmbito do procedimento cautelar,
que correu termos sob o n.º 535/17.6T8STB, no Juiz 3 do Juízo Local Cível de
Setúbal, foi proferida sentença, datada de 21/09/2017, na qual foi dada como
provada a seguinte factualidade:
«1.
A Requerente é uma sociedade comercial por quotas, que tem por objecto social a
compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim,
construção civil e obras públicas, decorações e remodelações, entre outros;
2.
Por escritura pública de compra e venda, celebrada no dia 29 de Setembro de
2011, a Requerente declarou ter adquirido à Requerida um prédio rústico com a
área de cinco mil e trinta e dois metros quadrados (5.032 m2), sito na
freguesia de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número (…),
e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), Secção (…), da União das
Freguesias de (…), do concelho e distrito de Setúbal, tendo a aquisição sido
inscrita através da Apresentação n.º (…);
3.
No referido prédio rústico, encontra-se implantada uma moradia térrea, de
tipologia T4, com piscina e um anexo, construção que não se encontra ainda licenciada
pela Câmara Municipal de Setúbal;
4.
A Requerente, na prossecução do seu objecto social, declarou comprar o prédio e
a construção nele implantada, por € 45.000,00 (Quarenta e Cinco Mil Euros),
para, posteriormente, obter o licenciamento da construção e a consequente
licença de habitação, no intuito de proceder à sua revenda;
5.
Porém, dada a relação de amizade entre o legal representante da requerida, à
data da escritura, DDD, e os legais representantes da Requerente, ainda antes
da escritura aquele informou que fazia questão de voltar a adquirir o prédio
rústico e a construção, no máximo pelo prazo de um ano, e que a sua venda
naquele momento era apenas motivada pela necessidade de realização de capital imediato;
6.
Os legais representantes da Requerente assentiram, e permitiram assim que a
requerida mantivesse a posse do imóvel;
7.
Como a Requerida pretendia readquirir o imóvel, a Requerente permitiu que esta
continuasse dele a fazer uso, mesmo sem qualquer contrapartida, uma vez que a
situação seria meramente transitória, e por um período de cerca de um ano;
8.
Dedicando-se a Requerente à compra de imóveis, para revenda, está isenta de IMT
por um período de 3 anos, caso revenda o imóvel, o que sempre tencionou fazer,
logo que o licenciamento estivesse completo e o imóvel pudesse ser colocado no
mercado;
9.
Porém, decorridos mais de três anos da data da escritura pública de venda do
imóvel, a Requerida não apresentou qualquer proposta para a sua recompra;
10.
A requerida deixou de responder aos contactos da Requerente;
11.
A Requerente remeteu carta datada de 23 de Outubro de 2014, declarando, por via
da mesma, interpelar a Requerida para exercer o direito de recomprar o imóvel,
ou em alternativa para proceder à sua desocupação, no prazo máximo de 30 dias;
12.
A Requerida não respondeu e também não manifestou qualquer interesse na
aquisição do imóvel;
13.
Nem procedeu à sua desocupação e entrega;
14.
A Requerente suporta custos e encargos com o imóvel, como impostos, e não pode
dá-lo de arrendamento ou vendê-lo por o mesmo não se encontrar na sua posse;
15.
Sendo que, por algumas vezes, teve propostas de aquisição do mesmo, e apenas
não pôde concretizar o negócio por ter garantido à Requerida que lho revenderia,
e que poderia, pelo menos por um ano, dele fazer o mesmo uso e fruição que até
então vinha fazendo;
16.
A Requerente teve propostas para o seu arrendamento por valor superior a €
1.500,00 mensais, uma vez que o imóvel tem implantada uma moradia, com piscina,
armazém e um terreno de 5.032 m2, e que não aceitou porque o mesmo se encontra
ocupado.»
Factos julgados não provados
pelo tribunal a quo:
a) No âmbito do negócio descrito em 5,
não foi intenção do pai do autor alienar a parcela urbana que faz parte
integrante do prédio descrito em 1.
b) No âmbito do negócio descrito em 5,
não foi intenção das partes realizar uma escritura de compra e venda.
*
1 – Impugnação da decisão
sobre o conteúdo do n.º 11:
O recorrente pretende que o
conteúdo do n.º 11 do enunciado dos factos provados seja julgado não provado e
que, em consequência, o conteúdo das als. a) e b) do enunciado dos factos não
provados seja julgado provado.
Importa começar por fazer
uma precisão. No n.º 11, julgou-se provado que os factos nele enunciados foram
julgados provados na sentença proferida no procedimento cautelar. O objecto do
juízo probatório emitido pelo tribunal a
quo não foram os factos em si mesmos, mas sim o juízo probatório emitido
pelo tribunal que decidiu o procedimento cautelar. São coisas distintas julgar
um facto provado num processo e julgar provado que esse facto foi julgado
provado noutro processo. Na segunda hipótese, das duas, uma: ou o tribunal que
profere a segunda decisão considera que não pode utilizar tais factos, ou
considera que os pode utilizar. Na primeira sub-hipótese, a transcrição desses
factos no enunciado da matéria de facto provada será inútil; na segunda
sub-hipótese, tal transcrição é necessária, mas a utilização desses factos não
decorre, como é normal, de eles terem sido julgados provados no próprio
processo (o que não aconteceu), antes carecendo da mediação de uma operação, de
natureza puramente jurídica, que determine a recepção, no segundo processo, de
factos julgados no primeiro processo.
O caso dos autos integra
esta segunda sub-hipótese. O tribunal a
quo julgou provado o juízo probatório emitido pelo tribunal que decidiu o
procedimento cautelar, descrevendo o conteúdo desse juízo, tendo em vista a
utilização desse conteúdo para decidir a causa com fundamento na autoridade de
caso julgado. Portanto, em rigor, a discordância do recorrente dirige-se, não
ao julgamento dos factos enunciados no n.º 11, que não foi feito pelo tribunal a quo, mas sim à sua recepção e
utilização nos presentes autos com o referido fundamento.
Ainda assim, analisaremos se
o n.º 11 deverá manter-se no enunciado dos factos provados. Não por falta de
correspondência com a realidade. Desse ponto de vista, o n.º 11 é inatacável. É
certo que, na sentença proferida no procedimento cautelar, os factos ali
enunciados foram julgados provados. O fundamento da eventual eliminação do n.º
11 apenas poderá ser a sua inutilidade para a decisão da causa. Para podermos
concluir por essa eventual inutilidade, teremos de analisar a questão de saber
se a decisão sobre a matéria de facto proferida num processo poderá, por si só,
valer noutro processo com fundamento na autoridade de caso julgado.
2 – Autoridade de caso
julgado:
Resulta da sentença
recorrida que o tribunal a quo utilizou
os factos que a sentença proferida no procedimento cautelar julgou provados,
descritos no n.º 11, por entender que a decisão proferida sobre esses factos
produz efeitos nos presentes autos por via da autoridade de caso julgado.
Mais, o tribunal a quo considerou que a autoridade de
caso julgado se sobrepõe ao regime estabelecido no n.º 1 do artigo 567.º do
CPC, segundo o qual, se o réu não contestar, tendo sido ou devendo
considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado
procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, se consideram
confessados os factos articulados pelo autor. Foi com esse fundamento que
julgou não provado o conteúdo das als. a) e b).
O recorrente insurge-se
contra este entendimento, sustentando que a decisão sobre a matéria de facto nunca
produz efeitos fora do processo em que é proferida, não lhe podendo, portanto,
ser reconhecida a autoridade de caso julgado. Acresce, segundo o recorrente,
que ele não foi parte no procedimento cautelar e que o pedido e a causa de
pedir deste último também não coincidem com os da presente acção.
O recorrente tem razão. Não
há fundamento para reconhecer a autoridade de caso julgado à decisão sobre a
matéria de facto, isoladamente considerada. Quer na jurisprudência, quer na
doutrina, verifica-se unanimidade quanto a esta questão. Louvamo-nos no acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça de 17.05.2018 (Rosa Tching), que analisou a
questão com profundidade, referenciando a jurisprudência e a doutrina
pertinentes, de cujo sumário transcrevemos os pontos relevantes: «O caso julgado resultante do trânsito em
julgado da sentença proferida num primeiro processo, não se estende aos factos
aí dados como provados para efeito desses mesmos factos poderem ser invocados,
isoladamente, da decisão a que serviram de base, num outro processo»; «Os fundamentos de facto não adquirem,
quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado,
de molde a poderem impor-se extraprocessualmente»; «Nem o princípio da aquisição processual, previsto no artigo 413.° do
CPC, nem o princípio da eficácia extraprocessual das provas, consagrado no art.
421º, nº 1 do mesmo código, habilitam o tribunal a, sem mais, dar como provados
os factos que assim foram considerados numa ação anterior».
Sendo assim, como vimos no
ponto 1, é inútil a reprodução, no n.º 11, dos factos julgados provados na
providência cautelar. Atento o que referiremos no ponto 3, a exigência de
clareza no enunciado dos factos provados aconselha a que aquele n.º 11 seja
eliminado, o que adiante se determinará.
3 – Insuficiência da
matéria de facto julgada provada:
Por ter utilizado os factos
descritos no n.º 11 para decidir a causa mediante a aplicação (indevida) da
figura da autoridade de caso julgado, o tribunal a quo não necessitou de incluir, no enunciado da matéria de facto
provada, a totalidade da matéria de facto alegada na petição inicial. A
inutilizabilidade, nesta acção, da decisão sobre a matéria de facto que integra
a sentença proferida no procedimento cautelar, com a consequente supressão, por
inutilidade, do n.º 11, põe a descoberto uma lacuna no enunciado dos factos
provados que consta da sentença recorrida. Esse enunciado não inclui os factos
alegados no artigo 31.º da petição inicial, essenciais para a decisão da causa.
Factos esses que, curiosamente, coincidem com alguns dos que constam dos n.ºs 5
e 6 do enunciado da matéria de facto julgada provada no procedimento cautelar,
que o recorrente pretende, agora, que sejam suprimidos.
Expliquemo-nos.
No artigo 31.º da petição
inicial, é alegado o seguinte: «Mais, do
conteúdo da douta sentença do procedimento cautelar do processo n.º
535/17.6T8STB, que correu termos no Juiz 3 do Juízo Local Cível de Setúbal,
consta que DDD, pai do Autor:
a)
(…) “ainda antes da realização da escritura, aquele informou que fazia questão
de voltar a adquirir o prédio rustico a construção, no prazo máximo de um ano,
e que a sua venda naquele momento era apenas motivada pela necessidade de
realização de capital imediato. – Fundamentação no n.º 5 da sentença;
b)
Os legais representantes da requerente assentiram (…)” – Fundamentação no nº 6
da sentença».
O recorrente alegou,
obviamente, esses factos na suposição de que os mesmos lhe são favoráveis. Tais
factos são essenciais à sustentação das suas sucessivas teses de que ocorreu um
erro de seu pai sobre o objecto do contrato de compra e venda celebrado entre
as recorridas, de que este consubstanciou uma venda a retro, de que o mesmo
contrato de compra e venda foi simulado, sendo de mútuo o contrato dissimulado,
e de que se tratou de um negócio usurário.
Porém, o tribunal a quo discordou da interpretação que o
recorrente fez dos mesmos factos, interpretando-os de forma diversa, que
desfavorece o segundo. Perante isso, o recorrente pretende agora que esses
factos sejam ignorados. Daí pugnar pela supressão do n.º 11.
Como referimos, o n.º 11
tem, efectivamente, de ser suprimido. Contudo, independentemente daquela que
seja a actual vontade do recorrente, os factos que ele alegou e não foram
julgados provados pelo tribunal a quo
terão, agora, de ser incluídos no enunciado da matéria de facto ao abrigo do
disposto no n.º 1 do artigo 567.º do CPC.
Atento o exposto, deverão
ser aditados, ao enunciado da matéria de facto provada, os seguintes factos:
11. Antes da realização da escritura
pública referida em 5, DDD, pai do autor, informou que fazia questão de voltar
a adquirir o prédio rústico e a construção no prazo máximo de um ano e que a
sua venda naquele momento era apenas motivada pela necessidade de realização de
capital imediato.
12.
Os legais representantes da requerente deram o seu acordo a essa pretensão.
4 – Impugnação da decisão
sobre o conteúdo das alíneas a) e b):
Recordemos o conteúdo das
alíneas a) e b):
a) No âmbito do negócio descrito em 5.,
não foi intenção do pai do autor alienar a parcela urbana que faz parte
integrante do prédio descrito em 1.
b) No âmbito do negócio descrito em 5.,
não foi intenção das partes realizar uma escritura de compra e venda.
Trata-se de matéria
conclusiva, constante dos artigos 17.º, 22.º, 29.º, 32.º e 33.º da petição
inicial. Segundo o recorrente, os factos que imporiam tais conclusões seriam os
seguintes:
- A escritura pública de compra e venda
apenas menciona a parte rústica do prédio;
- A recorrida Sociedade 2, o recorrente
e o pai deste sempre tiveram a sua morada na parte urbana do prédio;
- Mesmo após a realização da escritura
pública de compra e venda, o recorrente e seu pai efectuaram construções na
parte urbana, sem oposição da recorrida Sociedade 1;
- Antes da realização da escritura
pública de compra e venda, o pai do recorrente informou que fazia questão de
voltar a adquirir o prédio rústico e a construção, no prazo máximo de um ano, e
que a sua venda naquele momento era apenas motivada pela necessidade de
realização de capital imediato, ao que os legais representantes da recorrida Sociedade
1 assentiram.
O recorrente não tem razão.
Ao contrário do que o
recorrente pretende inculcar, o prédio é um só, sendo a sua identificação
aquela que consta do n.º 1 do enunciado dos factos provados: «prédio rustico, com a área de 5.032 m2,
sito na freguesia de (…), descrito na CRP (1ª) de Setúbal, sob n.º (…) e
inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), secção (…), da União das
freguesias de (…) ». É composto por quatro parcelas rústicas e uma urbana,
mas, na sua globalidade, tem natureza rústica, como resulta, quer da sua
descrição no registo, quer da sua inscrição na matriz.
Em conformidade com isso, o
prédio foi descrito como rústico nas escrituras públicas referidas nos n.ºs 4 e
5. Tendo ainda em conta a área nelas mencionada (5.032 m2), mostra-se evidente
que tais escrituras se referem à totalidade do prédio, como, aliás, não poderia
deixar de ser, por imposição legal. Não é, pois, verdade que a escritura
pública referida no n.º 5 apenas mencione a parte rústica do prédio. Este foi
vendido na sua totalidade.
O facto de a recorrida Sociedade
2, o recorrente e o pai deste terem mantido a sua morada na parte urbana do
prédio não é incompatível com o de este ter sido vendido na sua totalidade,
como realmente aconteceu. Tudo indica que isso aconteceu devido à intenção do
pai do recorrente de readquirir posteriormente o prédio, por ele manifestada
aos representantes da compradora antes da realização da escritura pública de
compra e venda. O mesmo se diga do facto de, mesmo após a realização da
escritura pública de compra e venda, o recorrente e seu pai terem efectuado
construções na parte urbana sem oposição da recorrida Sociedade 1.
O facto de, antes da
realização da escritura pública de compra e venda, o pai do recorrente ter
informado que fazia questão de voltar a adquirir o prédio no prazo máximo de um
ano e que a sua venda naquele momento era apenas motivada pela necessidade de realização
de capital imediato, e de os legais representantes da recorrida Sociedade 1
terem assentido, apenas demonstra que ambas as partes quiseram celebrar um verdadeiro
contrato de compra e venda. Só é possível alguém querer voltar a comprar um bem
se o tiver efectivamente vendido. Mesmo quem vende contrariado, vende. Mesmo
quem vende com a intenção de recuperar o direito de propriedade sobre a coisa
vendida no futuro, vende. A perfeição do contrato de compra e venda não é
afectada por estados de espírito dessa natureza.
Na realidade, a matéria
vertida nas als. a) e b) é incompatível com a matéria de facto julgada provada
pelo tribunal a quo que consta dos
n.ºs 1 a 5, bem como com aquela que consta dos novos n.ºs 11 e 12. Se, também
ela, fosse julgada provada, gerar-se-ia uma insanável contradição. Deverá,
pois, manter-se a decisão do tribunal a
quo sobre a matéria que consta das als. a) e b).
5 – Erro sobre o objecto
do negócio:
O artigo 251.º do CC
estabelece que o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se
refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável
nos termos do artigo 247.º. Este último, por seu turno, estabelece que quando,
em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do
autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou
não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre o
qual o erro incidiu.
Nada, na matéria de facto
julgada provada, permite concluir que o pai do recorrente, na qualidade de
legal representante da recorrida Sociedade 2, tenha formado a sua vontade de
vender o prédio identificado no n.º 1 à recorrida Sociedade 1, com base numa
falsa representação da realidade relevante, nomeadamente respeitante ao objecto
do negócio. Ele vendeu o prédio sabendo que estava a vendê-lo e a quem estava a
vendê-lo. Daí, como vimos, ter manifestado, perante a compradora, a intenção de
o readquirir em momento ulterior.
6 – Simulação:
O n.º 1 do artigo 240.º do
CC estabelece que se, por acordo entre declarante e declaratário e no intuito
de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a
vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.
Está provado que, antes da
realização da escritura pública referida em 5, o pai do autor informou que
fazia questão de voltar a adquirir o prédio no prazo máximo de um ano e que a
sua venda naquele momento era apenas motivada pela necessidade de realização de
capital imediato, tendo os legais representantes da compradora dado o seu
acordo a essa pretensão. Isto demonstra que vendedora e compradora quiseram,
efectivamente, celebrar um contrato de compra e venda, pelas razões que
referimos no ponto 4.
O recorrente afirma que, ao
outorgarem a escritura pública referida no n.º 5, as recorridas pretenderam, na
realidade, celebrar um contrato de mútuo, sendo mutuante a recorrida Sociedade
1 e mutuária a recorrida Sociedade 2. Esta tese não encontra qualquer
sustentação na matéria de facto provada. Transmitir a outrem o direito de
propriedade sobre um bem com o intuito de receber, como contrapartida,
determinada quantia, constitui o efeito típico de um contrato de compra e venda
e não de um contrato de mútuo, como decorre dos artigos 874.º, 879.º e 1142.º
do CC. E não deixa de ser assim por o vendedor manifestar, ao comprador, um
propósito de readquirir a coisa vendida em determinado prazo e o segundo manifestar,
de alguma forma, o seu assentimento a essa pretensão.
Portanto, não se verificou
qualquer divergência entre a declaração negocial e a vontade real, quer da
vendedora, quer da compradora. A primeira quis vender e a segunda quis comprar
o prédio. Ainda que assim não fosse, sempre faltaria o pressuposto do intuito
de enganar terceiros. Pelo que não houve simulação.
7 – Venda a retro:
Uma das propostas de
enquadramento jurídico do contrato referido no n.º 5 que o recorrente faz é a
qualificação deste como uma venda a retro.
Tal enquadramento é de
afastar liminarmente. O artigo 927.º do CC define a venda a retro como aquela
em que se reconhece ao vendedor a faculdade de resolver o contrato. Na
escritura pública descrita no n.º 5, não se estipulou tal faculdade.
8 – Negócio usurário:
Nos artigos 46 e 47.º da
petição inicial, o recorrente afirma que o contrato referido no n.º 5 constitui
um negócio usurário, porquanto «foi
celebrado por uma questão de necessidade» da recorrida Sociedade 2 «em obter dinheiro, traduzindo-se numa
fraqueza»; a venda foi feita por «um
valor muito abaixo do preço de mercado»; consequentemente, tal contrato é
nulo nos termos do artigo 282.º do CC.
Também esta tese do
recorrente carece de sustentação na matéria de facto provada.
O n.º 1 do artigo 282.º do
CC estabelece que é anulável (e não nulo), por usura, o negócio jurídico,
quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza,
dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste,
para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou
injustificados.
Não está provado que a
recorrida Sociedade 2 tenha vendido o prédio por se encontrar numa situação de
necessidade como a configurada nesta norma legal, nem que a recorrida Sociedade
1 tenha explorado essa hipotética situação para obter um benefício excessivo ou
injustificado. Acresce que o recorrente carece de legitimidade para arguir a
anulabilidade e que o prazo dessa arguição já decorreu há muito, como decorre
do n.º 1 do artigo 287.º do CC.
9 – Pacto comissório:
A tese do recorrente segundo
a qual o contrato referido no n.º 5 é nulo por força do disposto no artigo
694.º do CC tem como pressuposto a qualificação daquele como mútuo, pelo que,
atento o que referimos no ponto 6, é obviamente infundada.
10 – Acessão imobiliária:
As questões suscitadas pelo
recorrente relativamente à decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto são absolutamente alheias à sua
pretensão de aquisição do direito de propriedade sobre o prédio por acessão,
pelo que tem de se entender que esta última se encontra fora do âmbito do
recurso.
11 – Convite ao
aperfeiçoamento:
Segundo o recorrente, o tribunal
a quo, ao fundamentar juridicamente a
sua decisão de improcedência dos pedidos de declaração da nulidade do contrato
de compra e venda por simulação, por constituir um pacto comissório e por
usura, e de reconhecimento da aquisição do direito de propriedade sobre o
prédio por acessão imobiliária, considerou não se mostrarem alegados todos os pressupostos
de facto necessários para a procedência dos mesmos. Embora discordando desse
entendimento, o recorrente considera que, em face dele, o tribunal a quo violou o seu dever de o convidar a
aperfeiçoar a petição inicial.
O recorrente não tem razão.
A leitura da fundamentação jurídica da sentença recorrida revela que o
fundamento da improcedência de qualquer daqueles pedidos não foi uma mera
insuficiência ou imprecisão na exposição ou concretização da matéria de facto
alegada (cfr. artigo 590.º, n.º 4, do CC).
O tribunal a quo julgou improcedente o pedido de declaração
da nulidade do contrato de compra e venda por simulação por: 1) Ser patente a
ausência de divergência entre a vontade real e a declarada; 2) Não ter ficado
demonstrada a existência de um acordo simulatório; 3) Não ter ficado
demonstrado o intuito de prejudicar ou enganar terceiros.
O tribunal a quo julgou improcedente o pedido de
declaração da nulidade do contrato de compra e venda por constituir um pacto
comissório como decorrência lógica do afastamento da sua qualificação como
mútuo.
O tribunal a quo julgou improcedente o pedido de
declaração da nulidade do contrato de compra e venda com fundamento em usura «por falta de quaisquer elementos que nos
levem a concluir que no acordo havido entre as partes tivesse havido por banda
da 1.ª Ré um aproveitamento ilícito de um eventual estado de necessidade da 2.ª
Ré».
Finalmente, o tribunal a quo julgou improcedente o pedido de
reconhecimento da aquisição do direito de propriedade sobre o prédio por
acessão imobiliária por considerar que os respectivos pressupostos não se
verificam.
Sendo assim, o tribunal a quo não violou o seu dever de convidar
o recorrente a aperfeiçoar a petição inicial ao abrigo do disposto no n.º 4 do
artigo 590.º do CPC. As razões da improcedência dos pedidos em questão foram
mais profundas que a mera insuficiência ou imprecisão na exposição ou
concretização da matéria de facto alegada.
*
Dispositivo:
Pelo exposto, delibera-se:
- Eliminar o n.º 11 do enunciado da
matéria de facto provada.
- Aditar, ao enunciado da matéria de
facto provada, os seguintes factos:
11. Antes da realização da escritura
pública referida em 5, DDD, pai do autor, informou que fazia questão de voltar
a adquirir o prédio rústico e a construção no prazo máximo de um ano e que a
sua venda naquele momento era apenas motivada pela necessidade de realização de
capital imediato.
12.
Os legais representantes da requerente deram o seu acordo a essa
pretensão.
- Manter as alíneas a) e b) do enunciado
da matéria de facto não provada.
- Julgar o recurso improcedente,
confirmando a decisão de improcedência da acção.
Custas a cargo do
recorrente.
Notifique.
*
Évora, 25.10.2024
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª adjunta)
(2.ª adjunta)