Processo n.º 363/21.4T8SSB.E2
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Ampliação da matéria de facto.
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Autor/recorrente:
AAA.
Réus/recorridos:
BBB;
CCC (interveniente principal).
Pedidos:
Que seja decretado o despejo do réu BBB,
condenando-se este a restituir imediatamente o locado ao autor, livre e
desocupado de pessoas e bens;
Condenação do réu BBB no pagamento de
uma indemnização pela mora na restituição do locado, no valor, vencido à data
da propositura da acção, de € 2.500, acrescido dos demais valores vincendos e
juros até integral pagamento.
Sentença recorrida:
Julgou a acção improcedente, absolvendo
os réus do pedido.
Conclusões do recurso:
1 – O recorrente suscita com o presente
recurso: o erro de julgamento da decisão recorrida por violação do art. 1096.º,
n.º 1 e art. 12.º, n.º 1, ambos do Código Civil, com as devidas consequências.
A decisão recorrida chega à conclusão de que «Em face da factualidade dada por assente vemos que é ineficaz a
notificação efetuada pelo autor ao réu, a 20.08.2020., por carta datada de
11.08.2020., que constituía na oposição do senhorio à renovação automática do
contrato de arrendamento celebrado entre as Partes. Chegamos a esta conclusão
porquanto por efeito do artigo 1.º, da lei n.º 13/18, de 12.02., o contrato de
arrendamento renovou-se em 2019 não por dois anos, mas por três anos, ou seja,
até 31.01.2022.»
2 – A referida Lei «13/18, de 12/02» entendemos ser referida na decisão recorrida
apenas por lapso que deverá ser retificado para referir-se à Lei 13/19 de
12/02.
3 – A Lei 13/19, de 12/2, cfr. ao seu
art. 16.º entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, ou seja, a
13/2/2019.
4 – A 1/2/2019, o contrato de
arrendamento em causa renovou-se em conformidade ao contrato e à lei então em
vigor, por dois anos, cfr. a redação do artigo 1096.º, n.º 1, do Cód. Civil
então vigente, redação da Lei 31/2012.
5 – A 1/2/2019 não estava sequer
publicada a supra referida Lei 13/2019.
6 – Na falta de norma transitória que
regule a aplicação no tempo da Lei n.º 13/2019, aos contratos em execução à
data de 13 de fevereiro, somos remetidos ao disposto no artigo 12.º do Cód.
Civil, cujo n.º 1 consagra o princípio geral da não retroatividade da lei,
presumindo ressalvados os efeitos jurídicos já produzidos mesmo quando lhe seja
atribuída eficácia retroativa.
7 – Acrescentando-se ainda o que resulta
da primeira parte do n.º 2 do artigo 12.º do Cód. Civil que as leis ou normas
que disponham sobre os requisitos de validade substancial ou formal de quaisquer
factos ou sobre os seus efeitos só se aplicam a factos novos.
8 – A renovação do contrato a 1/2/2019
era um facto já ocorrido à data de 13/2/2019 da entrada em vigor da Lei
13/2019.
9 – Ainda que cfr. a segunda parte do
n.º 2 do art. 12.º do Cód. Civil que as leis ou normas que disponham sobre o
conteúdo de certas relações jurídicas, sem olhar aos factos que lhe deram
origem, abrangem as próprias relações já constituídas que subsistam à data da
sua entrada em vigor, entenda-se como óbvio que as eventuais renovações do
arrendamento em causa posteriores a 13/2/2019 estariam sujeitas à Lei 13/2019;
à renovação em execução, não.
10 – A renovação do contrato de
arrendamento a 1/2/2019 tem como termo final de dois anos, 31/1/2021.
11 – Pelo que a notificação enviada pelo
senhorio, autor, aqui Recorrente, cfr. ao ponto 5 dos factos provados da
decisão recorrida e ao art. 1097.º, n.º 1, al. b) do Cód. Civil é eficaz para a
resolução do contrato de arrendamento e consequente entrega do mesmo no termo
final da renovação a 31/1/2021.
12 – Constitui violação dos artigos
1096.º, n.º 1 na redação da Lei 31/2012 e 12.º, n.º 1, ambos do Código Civil, a
decisão recorrida na parte em que fundamenta a improcedência do pedido do Autor
com fundamento na aplicação da redação do mesmo artigo 1096.º, n.º 1 na redação
da Lei 13/2019.
13 – Em consequência deve ser revista a
decisão recorrida também nas custas.
14 – É aplicação da lei o decretar do
despejo do Réu e da Interveniente Principal, bem como condenar os mesmos à
indemnização a que se refere o art. 1045.º, n.º 2 do Código Civil, desde
31/1/2021 atualmente no valor de 20.000,00€ até à entrega do locado livre de
pessoas e bens.
Factos julgados provados
pelo tribunal a quo:
1. O autor é proprietário da fracção
designada pela letra "A" do prédio urbano sito na Rua (…), lote (…), (…),
freguesia de (…), Sesimbra, descrito na Conservatória de Registo Predial de
Sesimbra sob o n.º (…), inscrito na matricial urbana com o n.º (…), com licença
de habitação n.º (…), de (…), da Câmara Municipal de Sesimbra.
2. Por contrato de 1 de Fevereiro de
2017, autor e réu celebraram o contrato de arrendamento.
3. Autor e réu estabeleceram que a
retribuição a título de renda mensal estipulada no referido contrato era de €
6.000,00 anual, a pagar em duodécimos de € 500,00.
4. As partes mais estabeleceram que o
prazo do contrato seria de dois anos com termo em 1/2/2019, renovável por
sucessivos e iguais períodos, salvo denúncia por qualquer das partes.
5. A 20 de Agosto de 2020 o autor
apresentou oposição à renovação automática do referido contrato visando a
entrega do local arrendado a 31.01.2021, o que fez por carta datada de
11.08.2020.
6. A 30 de Setembro de 2020, o autor recebeu
uma resposta à oposição à renovação do contrato de arrendamento do réu,
subscrita pela advogada do réu, o qual se opôs à referida oposição automática
do contrato de arrendamento em causa.
7. Até à presente data, o réu não
entregou a fracção ao autor e recusa-se a fazê-lo.
8. CCC é igualmente arrendatária do
imóvel identificado em 1.
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Coloca-se-nos uma questão
logicamente anterior àquelas que o recorrente suscita: a da suficiência da
matéria de facto julgada provada pelo tribunal a quo para a resolução de todas as questões em discussão neste
processo.
O recorrente demandou apenas
o recorrido BBB. Ao longo da petição inicial, referiu-se apenas a este, como se
fosse o único arrendatário. Coerentemente, alegou ter-se oposto à renovação do
contrato de arrendamento através de carta remetida apenas para o recorrido BBB.
Na contestação, o recorrido BBB
alegou que também a recorrida CCC, sua mulher, outorgou no contrato de
arrendamento, na qualidade de co-arrendatária, que o locado constitui a casa de
morada da família e que, não obstante, o recorrente não notificou a recorrida CCC
da sua oposição à renovação daquele contrato. Com fundamento nestes factos, o
recorrido BBB concluiu que o contrato de arrendamento não cessou na data
pretendida pelo recorrente, antes se tendo renovado em 01.02.2021, pelo que a
acção terá de improceder.
Na réplica, o recorrente
alegou ignorar se os recorridos são casados entre si. Para a hipótese de vir a
provar-se a existência desse casamento, requereu a intervenção principal da
recorrida CCC, como associada do recorrido BBB.
O recorrido BBB opôs-se à
intervenção principal provocada da recorrida CCC. Justificou esta tomada de
posição alegando que, não tendo a chamada sido notificada da oposição à
renovação do contrato de arrendamento, «inexiste
título subjacente à ora acção», pelo que não se justificava a sua
intervenção.
O tribunal a quo indeferiu o requerimento de
intervenção principal provocada da recorrida CCC, com fundamentação na linha da
argumentação expendida pelo recorrido BBB. Resumidamente: não tendo o
recorrente manifestado a sua oposição à renovação do contrato de arrendamento
perante a recorrida CCC, esta poderá, em qualquer hipótese, continuar a habitar
o locado na qualidade de arrendatária; daí que a intervenção principal da
recorrida CCC nada adiantasse; mesmo com essa intervenção, a decisão não produziria
o seu efeito útil normal.
Na sequência de recurso
interposto pelo ora recorrente, esta Relação admitiu a intervenção principal
provocada da recorrida CCC e anulou o processado subsequente ao despacho
recorrido, com base no entendimento de que tal admissão não pode ser
condicionada por um pré-juízo sobre a viabilidade da acção relativamente à
chamada; em vez disso, a acção destinada a fazer operar os efeitos da cessação
do contrato de arrendamento deve, em qualquer hipótese, correr termos entre
todos os contratantes.
Porém, dado o efeito
meramente devolutivo do recurso, fora, entretanto, proferida sentença, julgando
a acção improcedente e absolvendo o recorrido BBB dos pedidos, com
fundamentação que assim se resume: 1) A oposição à renovação do contrato de
arrendamento é ineficaz, porquanto, por efeito do artigo 1.º da Lei n.º 13/2019
(e não 13/2018, como o tribunal a quo
erradamente refere), de 12.02, em 2019, aquele contrato renovou-se por três e
não por dois anos; 2) A Lei n.º 75-A/2020, de 30.12, determinou a suspensão,
até 30.06.2021, da produção de efeitos da oposição à renovação de contratos de
arrendamento habitacional e não habitacional efectuadas pelo senhorio.
Por efeito da anulação do
processado determinada por esta Relação, a sentença que acabamos de referir
ficou sem efeito.
Realizou-se uma audiência
prévia, na sequência da qual foi proferida a sentença recorrida. Nesta, o
enunciado da matéria de facto julgada provada apresenta, em relação ao da
sentença anteriormente proferida, uma única diferença: foi aditado o n.º 8,
segundo o qual a recorrida CCC é co-arrendatária do imóvel. A fundamentação
jurídica limita-se a reproduzir a da primeira.
Ou seja, o tribunal a quo decidiu a causa como se a
recorrida CCC continuasse a não ser parte no processo. Apesar de a recorrida CCC
ser, no plano substantivo, co-arrendatária, e, no plano processual, parte no
processo, o tribunal a quo não
cuidou, nem de apurar os factos alegados pelo recorrido BBB que relevam em
virtude dessa dupla qualidade, nem de conhecer a questão, que precede
logicamente as restantes em discussão, de saber se o recorrente também
manifestou, perante aquela, a vontade de se opor à renovação do contrato, e, na
hipótese negativa (alegada pelo recorrido BBB), se isso tem consequências, e
quais, ao nível da procedência da acção.
É certo que a acção foi
julgada improcedente com fundamento diverso da alegada falta de manifestação, pelo
recorrente, perante a recorrida CCC, da vontade de se opor à renovação do
contrato. Porém isso não torna inútil o conhecimento daquela questão, que
pressupõe a inclusão, no enunciado da matéria de facto, dos factos alegados com
relevância para tal conhecimento.
O tribunal de primeira
instância deve ter em conta que, em caso de recurso da sentença, o tribunal ad quem necessita de um enunciado
completo da matéria de facto relevante para o conhecimento, pela sua ordem
lógica, de todas as questões que estejam em discussão. Não pode actuar como se
fosse ele a primeira e última instância.
Portanto, a sentença
recorrida encontra-se incompleta, quer na fundamentação de facto, quer na
fundamentação de direito. Daí que, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, al. c),
do CPC, se imponha a sua anulação, para que o tribunal a quo proceda à ampliação da matéria de facto, conhecendo dos
factos alegados nos artigos 4.º, 5.º e 7.º da contestação e, em sede de
fundamentação de direito, se pronuncie sobre a questão suscitada nos artigos
1.º a 15.º do mesmo articulado, que precede logicamente as demais.
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Dispositivo:
Delibera-se,
pelo exposto, anular a sentença recorrida e ordenar que o tribunal a quo elabore nova sentença, ampliando a
matéria de facto e pronunciando-se sobre a questão suscitada nos artigos 1.º a
15.º da contestação, nos termos expostos.
Custas a cargo da parte
vencida a final.
Notifique.
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Évora, 21.11.2024
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª adjunta)
(2.º adjunto)