Processo n.º 1455/19.5T8SLV-C.E1
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Execução para entrega de
coisa certa.
Suspensão da execução da restituição de imóvel.
*
Exequentes/requeridos/recorridos:
AAA;
BBB.
Executados/requerentes/recorrentes:
CCC;
DDD.
Pedido:
Suspensão da execução da entrega do
imóvel aos exequentes, ao abrigo do disposto no n.º 6 do artigo 861.º e nos
n.ºs 3 a 5 do artigo 863.º do CPC.
Despacho recorrido:
Indeferiu o pedido.
Conclusões do recurso:
1 – Esta execução baseia-se numa
sentença judicial que condenou o possuidor ou detentor a restituir ao
proprietário o imóvel possuído ou detido, sendo este imóvel a casa de morada de
família do obrigado à restituição.
2 – A requerente (…) tem fundamento
legal para lançar mão do incidente do diferimento da desocupação de imóvel,
embora confrontando – com o entendimento – o qual apenas está previsto
excepcionalmente no artigo 864.º do Código de Processo Civil para o caso de
entrega de imóvel arrendado para habitação ao próprio executado.
3 – Quanto ao entendimento de que os
artigos 863.º e 864.º em questão aplicam-se apenas à «Execução Para Entrega de Coisa Imóvel Arrendada» (cfr. artigo
862.º), significando que apenas têm aplicabilidade quando se trata da entrega
do imóvel objecto de contrato de arrendamento para habitação, em que a pessoa a
entregar é o próprio executado arrendatário e não qualquer terceiro.
4 – Há que atender que neste caso
concreto os ora requerentes ocupam o imóvel há mais de 30 anos numa estrutura
habitacional construída por si com inscrição na matriz urbana.
5 – No caso concreto aplica-se o artigo
864.º do CPC, atinente ao diferimento da desocupação de imóvel arrendado para
habitação, visa a protecção do inquilino, por razões sociais imperiosas, pode
aplicar-se por interpretação extensiva.
6 – É uma questão de humanidade social,
direito à habitação, consagrado na nossa Constituição.
7 – É consabido como está a habitação no
nosso país, praticamente inacessível para pessoas com poucos rendimentos.
8 – Os recorrentes não têm habitação
alternativa para ir viver, num estado de carência económica, daí o pedido de
habitação social aos serviços da Câmara Municipal de (…).
9 – A executada é pessoa muito doente e
não tem habitação própria.
10 – Obter a suspensão da execução da
sentença até que lhes seja dada casa própria pela Administração Pública local –
Câmara Municipal de (…).
11 – Invocam os artigos 861.º, n.º 6, e
863.º, n.ºs 3 a 5, que podem ser interpretados e articulados com o disposto no
artigo 864.º, todos do CPC.
12 – No caso concreto de aplicação o
artigo 864.º do CPC, atinente ao diferimento da desocupação de imóvel arrendado
para habitação, visa a proteção do inquilino, por razões sociais imperiosas,
aplica-se por interpretação extensiva.
13 – É aplicado nas hipóteses em que,
por omissão do legislador, a lei não diz tudo o que deveria dizer, cabendo ao
juiz (intérprete) ampliar o seu alcance para além do que está expresso no texto
legal, nomeadamente no caso concreto dos requerentes – têm na sua posse
caderneta predial de habitação construído nesse imóvel, artigo 9.º do Código
Civil.
14 – Deve ser revogada a douta decisão
recorrida que julga improcedente a pretensão dos executados, requer-se a
suspensão da execução da entrega do imóvel, ao abrigo do disposto no artigo
861.º, n.º 6 – Tratando-se da casa de habitação principal do executado, é
aplicável o disposto nos 3 a 5 do artigo 863.º e, caso se suscitem sérias
dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente
o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes.
Questão a decidir:
Se existe fundamento legal para a
suspensão da execução da entrega do imóvel aos recorridos.
Factos relevantes para a
decisão do recurso, resultantes dos documentos constantes destes autos:
1 – Os recorridos propuseram, contra os
recorrentes, uma acção declarativa em que pediram, além do mais, a condenação
dos segundos a restituírem-lhes o prédio rústico sito em (…), freguesia e
concelho de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…)
e inscrito na matriz sob o artigo (…) da Secção (…);
2 – Essa acção foi julgada procedente,
tendo os recorrentes sido condenados a procederem à referida restituição;
3 – A sentença foi proferida em 19.11.2018
e já transitou em julgado;
4 – Os factos julgados provados na
sentença são os seguintes:
1 – O autor é dono e legítimo
proprietário do prédio rústico sito em (…), freguesia e concelho de (…),
descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…) e inscrito na
matriz sob o artigo (…) da Secção (…);
2 – Em 12.04.1993, o seu pai, EEE, havia
autorizado os réus a, conforme doc. de fls. 12, v., e ss. e que aqui se dá por
reproduzido, «armar uma barraca com
telhas de zinco, com as medidas de 8m x 6m, não podendo ocupar mais qualquer
área, pelo período de seis meses que serão renovados por igual período se o
proprietário julgar conveniente»;
3 – Mais se tendo então estabelecido que
«caso o proprietário tenha falta de
terreno deve avisar no termo do contrato, com a antecedência de um mês. Se o
mesmo não sair pagará 500.000$00 (quinhentos mil escudos) mensais a título de
indemnização ao dono»;
4 – Não obstante terem sido instados a
desocupar o prédio, os réus recusam-se a fazê-lo, mesmo tendo sido efectuada a
notificação judicial avulsa que consta de fls. 7 e ss. e que aqui se dá por
reproduzida;
5 – Desde o ano de 1993, os réus habitam
o referido prédio, com a sua família – filhos e netos;
6 – No qual pernoitam e preparam as suas
refeições;
7 – Tendo no mesmo construído a
habitação, na qual residem desde esse ano;
8 – No terreno, estão implantadas três
edificações;
9 – O referido em 5 a 8 ocorreu e ocorre
à vista de toda a população de (…) e do concelho de (…);
10 – Consta da caderneta predial urbana,
inscrito sob o n.º (…) (no ano de 1994), um imóvel, com 32,0000 m2, composto
por uma barraca de madeira, com uma divisão, em nome de FFF;
5 – Como, apesar de condenados a procederem
à restituição do prédio, os recorrentes não o fizeram, os recorridos instauraram,
contra eles, em 16.07.2019, uma acção executiva para entrega de coisa certa,
tendo oferecido a sentença acima referida como título executivo;
6 – Nesta acção executiva, os
recorrentes requereram a suspensão da execução da entrega do imóvel aos
exequentes, ao abrigo do disposto no n.º 6 do artigo 861.º e nos n.ºs 3 a 5 do
artigo 863.º do CPC;
7 – Através do despacho recorrido, o
tribunal a quo indeferiu tal
requerimento;
8 – De acordo com o «relatório médico» junto aos autos pelos recorrentes, datado de
16.09.2022, a recorrente:
«Tem
história clínica de doença do foro psiquiátrico com perturbações funcionais
moderadas, com ligeira diminuição do nível de eficiência pessoal ou
profissional. Apesar de medicada com psicotrópicos e antidepressivos não refere
melhorias.»
«Hipertensa,
obesa, dislipidemia, com varizes dos membros inferiores, associada a
elefantíase por insuficiência venosa e linfática.»
«Com
cansaço fácil, dispneia de esforço e ortopneia, sofre de um quadro clínico
compatível com insuficiência cardíaca congestiva, taquidisritmia, fibrilação
auricular e síndroma coronário crónico. Tem pacemaker.»
«Apresenta
lombociatalgias e radiculalgias por espondilartrose. O TAC revela alterações
degenerativas dos discos intervertebrais e hérnias discais. Déficit na
mobilidade e diminuição da força muscular.»
«Necessita
de uma terceira pessoa para todas as AVDs, tendo o seu marido como cuidador.»
*
Em abono da sua pretensão,
os recorrentes invocam o disposto nos artigos 861.º, n.º 6, 863.º, n.ºs 3 a 5,
e 864.º do CPC, este último por via de interpretação extensiva.
O n.º 6 do artigo 861.º
estabelece que, tratando-se da casa de habitação principal do executado, é
aplicável o disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo 863.º; caso se suscitem sérias
dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica
antecipadamente esse facto à câmara municipal e às entidades assistenciais
competentes.
Os n.ºs 3 a 5 do artigo
863.º estabelecem o seguinte:
3 – Tratando-se de arrendamento para habitação, o agente de execução suspende
as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique
fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a
diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões
de doença aguda.
4 – Nos casos referidos nos n.ºs 2 e 3, o agente de
execução lavra certidão das ocorrências, junta os documentos exibidos e adverte
o detentor, ou a pessoa que se encontra no local, de que a execução prossegue,
salvo se, no prazo de 10 dias, solicitar ao juiz a confirmação da suspensão,
juntando ao requerimento os documentos disponíveis, dando do facto imediato
conhecimento ao exequente ou ao seu representante.
5 – No prazo de cinco dias, o juiz de execução, ouvido
o exequente, decide manter a execução suspensa ou ordena o levantamento da
suspensão e a imediata prossecução dos autos.
O artigo 864.º estabelece o
seguinte:
1 – No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro
do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da
desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas
disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
2 – O diferimento de desocupação do locado para
habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o
juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o
arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas
que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral,
a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido
desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de
rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se
presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual
ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de
inserção;
b) Que o arrendatário é portador de deficiência com
grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
3 - No caso de diferimento decidido com base na alínea
a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão
Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao
período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste.
Na sentença que constitui o
título executivo, ficou provado que os recorrentes residem no prédio desde
1993, juntamente com descendentes seus. Tudo indica, pois, que se trata da sua
casa de habitação principal, sendo, assim, aplicável o disposto nos n.ºs 3 a 5
do artigo 863.º, por via da remissão operada pelo n.º 6 do artigo 861.º.
Porém, não se encontra
demonstrado que a restituição do prédio aos recorridos ponha em risco a vida de
qualquer dos recorrentes por razões
de doença aguda. O «relatório médico»
junto aos autos pelos recorrentes data de 16.09.2022, pelo que nunca poderia
provar a existência de uma doença aguda actual que crie o referido risco. Daí
que não se encontre preenchida a previsão do n.º 3 do artigo 863.º.
A remissão
operada pelo n.º 6 do artigo 861.º não abrange o artigo 864.º, o qual
circunscreve o seu âmbito de aplicação às hipóteses de entrega de imóvel
arrendado para habitação. O prédio dos autos nunca esteve arrendado aos
recorrentes, pelo o artigo 864.º não é aplicável. Não existe fundamento para
proceder a uma interpretação extensiva deste artigo, tese que os recorrentes,
aliás, não fundamentam. Tudo aponta no sentido de o legislador se ter
expressado devidamente ao circunscrever o âmbito de aplicação do artigo 864.º
nos termos descritos.
Todavia, ainda que se considerasse o regime do artigo
864.º aplicável a hipóteses diversas da de desocupação de imóvel arrendado para
habitação, os recorrentes não poderiam beneficiar dele.
Desde logo, porque a pretensão dos recorrentes
contraria frontalmente as exigências da boa-fé. Os recorrentes foram condenados
na restituição do prédio há mais de seis anos, pelo que tiveram tempo mais que
suficiente para diligenciarem, nomeadamente junto das entidades assistenciais competentes, no
sentido de obterem uma solução habitacional alternativa. Em vez disso, vêm-se
recusando a cumprir a sentença que os condenou a procederem àquela restituição,
contando com sucessivos adiamentos da sua execução. Sintomático desta vontade
dos recorrentes de protelarem indefinidamente a restituição do prédio é o facto
de nem sequer indicarem o período pelo qual o diferimento da desocupação
deveria, no seu entendimento, ser decretado.
Por outro lado, não se verificam os pressupostos
estabelecidos por qualquer das alíneas do n.º 2 do artigo 864.º.
Concluindo, inexiste fundamento para suspender a
execução da restituição do prédio aos recorridos. O tribunal a quo decidiu acertadamente ao ordenar
que se proceda, de imediato, a tal restituição.
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Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto,
julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas a cargo dos
recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Notifique.
*
Évora,
16.01.2025
Vítor
Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª
adjunta)
(2.ª
adjunta)