Processo n.º 100/23.9T8ORM-A.E1 – Inventário.
*
Sumário:
Padece da nulidade prevista no artigo
615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, a sentença que, conhecendo do mérito da causa, omite o enunciado dos
factos provados e não provados e a análise crítica da prova.
*
Cabeça-de-casal/recorrente:
- AAA;
Interessada/recorrida:
- BBB.
Sentença
recorrida:
- Julgou procedente a
reclamação, apresentada pela interessada BBB, contra a relação de bens, tendo
ordenado, além do mais, que o cabeça-de-casal apresente uma relação de bens que
não inclua, como passivo da herança, uma alegada dívida ao seu cônjuge.
Conclusões do recurso:
1) Conforme resulta de
fls. a interessada veio requerer o inventário por morte dos pais alegando o que
consta de fls.;
2) Citado para o efeito o cabeça-de-casal
veio apresentar a relação de bens, nomeadamente o que acima se transcreveu;
3) Notificada da relação
de bens, a interessada reclamou, alegando o que consta de fls.;
4) O cabeça-de-casal veio
responder à reclamação apresentada, alegando o que acima se transcreveu;
5) Realizou-se a audiência
de inquirição de testemunhas;
6) Por sentença de fls.,
foi decidido o acima transcrito;
7) Não podemos aceitar tal
decisão quanto à exclusão da verba única do passivo, consistente numa alegada
dívida da herança da inventariada à referida CCC;
8) Conforme resultou da
prova testemunhal, nomeadamente da testemunha DDD, a inventariada não tinha
capacidade física, nem faculdades mentais para tomar conta de si própria,
desde, pelo menos dezembro de 2014;
9) A inventariada, a
partir dessa data, começou a fazer as refeições em casa do cabeça-de-casal, em
virtude de se encontrar desnutrida;
10) A inventariada começou
a ficar desorientada, sem saber dos seus pertences, tendo ido diversas vezes ao
serviço de urgências do hospital, tendo ficado internada;
11) Em virtude da inventariada
não poder ficar sozinha, foram os filhos convocados para uma reunião com a
assistente social, a fim de se decidir onde ficaria a mesma;
12) A interessada BBB não
compareceu, nem demonstrou qualquer interesse com o estado de saúde da inventariada,
nem sequer se preocupou quando a mesma desaparecia, ou não se alimentava;
13) A interessada nunca visitou
a inventariada no hospital, nem lhe prestou assistência, pois nunca lhe fez
comida, nem cuidou dela;
14) Nunca providenciou
pelo zelo da inventariada quanto a alimentação, medicação, etc.;
15) Foi o cabeça-de-casal
e a sua esposa que tiveram de tomar conta da inventariada, pois a CCC deixou de
trabalhar para prestar assistência à inventariada, teve de adaptar a sua casa
para receber a inventariada, nomeadamente o quarto, casa de banho e
equipamentos para a mesma;
16) Foi a esposa do cabeça-de-casal
que teve de deixar de trabalhar para prestar assistência à inventariada, tendo
em conta que a interessada nunca se disponibilizou para o fazer, nem o fez,
quer em virtude dos seus problemas alcoólicos, quer por não se interessar pelo
estado de saúde da inventariada;
17) Todos os filhos têm o
dever de prestar assistência aos pais e não apenas um filho;
18) Não pode um filho ser
beneficiado, em detrimento do outro, sendo legalmente obrigados a contribuir
para a assistência dos pais os dois;
19) Tendo em conta que a interessada,
conforme ficou provado, não prestou assistência, nem nunca se importou com a inventariada,
bem como não assegurou assistência àquela, e tendo a esposa do cabeça-de-casal prestado
assistência à inventariada, deve esta ser ressarcida;
20) Até porque a esposa do
cabeça-de-casal não tinha qualquer obrigação de assistência para com a inventariada,
mas apenas o cabeça-de-casal, em conjunto com a sua irmã, aqui interessada;
21) Conforme resultou da
prova, a inventariada esteve quatro anos em casa do cabeça-de-casal, foi a
esposa deste que tomou conta dela, por padecer de alzheimer;
22) Deve ser revogada a sentença
proferida e consequentemente ser mantida a verba do passivo, com todas as
consequências legais daí resultantes;
23) Caso assim não
entendesse, o Meritíssimo Juiz deveria ter remetido para os meios comuns,
quanto à questão de apurar o valor devido pela prestação de serviços à CCC;
24) A questão da
assistência aos pais presume-se gratuita quando todos os filhos contribuem para
tal assistência e não só um, o que leva a uma injustiça;
25) Tendo em conta o
alegado e o provado nos presentes autos, deve a sentença recorrida ser revogada,
com todas as consequências legais daí resultantes;
26) Lendo, atentamente, a
decisão recorrida, verifica-se que não se indica nela factos concretos suscetíveis
de revelar, informar, e fundamentar, a real e efetiva situação, do verdadeiro motivo
da não procedência da pretensão do recorrente;
27) Neste caso em
concreto, o Meritíssimo Juiz do tribunal a
quo não fundamentou de facto e de direito a sua decisão e a lei proíbe tal
comportamento;
28) Segundo se encontra
claramente patente nos termos supra invocados, a sentença recorrida padece das
nulidades acima transcritas, pelo que deverá ser revogada, com todas as consequências
legais daí resultantes;
29) O tribunal, com a
decisão recorrida, não assegurou a defesa dos direitos do recorrente ao não
fundamentar exaustivamente a sua decisão, e nem se quer aplicar a as normas
legais aplicáveis ao caso em concreto;
30) O Meritíssimo Juiz a quo limitou-se apenas e tão só, a
emitir uma sentença “economicista”, isto é, uma decisão onde apenas de uma
forma simples e sintética foram apreciadas algumas das questões sem ter em
conta todos os documentos juntos, assim como todos os elementos constantes no
processo e tudo o que acima já se alegou;
31) Deixando o Meritíssimo
Juiz a quo de se pronunciar sobre
algumas questões que são essenciais à boa decisão da causa, nomeadamente as
acima expostas;
32) Neste caso em
concreto, o Meritíssimo Juiz não fundamentou de facto e de direito a sua decisão,
cometendo, assim, uma nulidade;
33) Pelo que se impõe a revogação
da sentença recorrida.
34) A sentença recorrida
viola:
a) O disposto no artigo
615.º do CPC;
b) O disposto no artigo 13.º,
20.º, 202.º, 204.º e 205.º da CRP.
*
O recorrente sustenta
que a sentença recorrida padece da nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do
artigo 615.º do CPC, porquanto não indica «factos
concretos suscetíveis de revelar, informar, e fundamentar, a real e efetiva
situação, do verdadeiro motivo da não procedência da pretensão do recorrente»,
nem contém fundamentação de direito.
Não é exacto
que a sentença recorrida não contenha fundamentação de direito. Na realidade, a
fundamentação jurídica da decisão de excluir, da relação de bens, a verba única
do passivo, ocupa mais de três páginas da sentença.
Já no que
concerne à falta de fundamentação de facto da parte da sentença recorrida respeitante
à mesma questão, o recorrente tem razão.
Vejamos.
O artigo 154.º
do CPC, em consonância com o disposto no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição,
estabelece um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, sendo
concretizado, no que concerne às sentenças, pelo artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do
CPC. O n.º 3 deste artigo estabelece que, às menções referidas no n.º 2 (identificação
das partes e do objecto do litígio e enunciado das questões a resolver),
seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera
provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes,
concluindo pela decisão final. O n.º 4 do mesmo artigo dispõe que, na
fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que considera
provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas,
indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais
fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em
consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos
ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida
e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras
de experiência.
O
incumprimento do dever de fundamentação da sentença gera a nulidade prevista no
artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC. Esta norma estabelece que a sentença é
nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam
a decisão.
O enunciado de
factos provados e não provados que consta da sentença recorrida respeita
exclusivamente à questão da inclusão da verba relativa à moto-enxada na relação
de bens. Isso resulta, não só do próprio teor dos factos em causa, mas também
da expressa restrição, feita na sentença recorrida, ao âmbito daquele
enunciado: «Da análise dos meios de prova
produzidos nos autos, considera-se que ficaram provados os seguintes factos com
relevância para esta parte da reclamação da relação de bens deduzida no
processo».
Com interesse
para a decisão da questão da exclusão, da relação de bens, da verba única do
passivo, a sentença recorrida não discrimina, nos termos impostos pelo artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do
CPC, quais são os factos que o tribunal a
quo considera provados e não provados. Também não se procede à
análise crítica da prova, não se explicitando as razões que levaram o tribunal a quo a julgar provados determinados
factos e não provados outros. A fundamentação de facto, pura e simplesmente,
não existe. Nesta parte, estamos perante uma sentença sem factos, perante a
qual, nem as partes têm a possibilidade de exercer devidamente o direito ao
recurso, nem o tribunal ad quem
dispõe de elementos fácticos que lhe permitam exprimir um juízo concordante ou
divergente.
A sentença recorrida padece, pois, da nulidade prevista no artigo
615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, nulidade essa que não pode ser suprida pelo
tribunal ad quem, dado que foi
perante o tribunal a quo que a prova
foi produzida.
Consequentemente,
deverá a sentença recorrida ser anulada, para que o tribunal a quo elabore outra, devidamente
fundamentada em conformidade com o disposto nas normas acima referenciadas.
*
Dispositivo:
Delibera-se,
pelo exposto, julgar o recurso procedente, anulando-se a sentença recorrida e
determinando-se que o tribunal a quo
enuncie os factos, com relevo para a decisão da questão da exclusão, da relação
de bens, da verba única do passivo, que, atenta a prova produzida, considera
provados e não provados, fundamentando a sua convicção e decidindo o incidente
em conformidade.
Sem custas.
Notifique.
*
Évora,
06.06.2024
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.º adjunto)
(2.º adjunto)