sábado, 8 de junho de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 06.06.2024

Processo n.º 100/23.9T8ORM-A.E1 – Inventário.

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Sumário:

Padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, a sentença que, conhecendo do mérito da causa, omite o enunciado dos factos provados e não provados e a análise crítica da prova.

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Cabeça-de-casal/recorrente:

- AAA;

Interessada/recorrida:

- BBB.

Sentença recorrida:

- Julgou procedente a reclamação, apresentada pela interessada BBB, contra a relação de bens, tendo ordenado, além do mais, que o cabeça-de-casal apresente uma relação de bens que não inclua, como passivo da herança, uma alegada dívida ao seu cônjuge.

Conclusões do recurso:

1) Conforme resulta de fls. a interessada veio requerer o inventário por morte dos pais alegando o que consta de fls.;

2) Citado para o efeito o cabeça-de-casal veio apresentar a relação de bens, nomeadamente o que acima se transcreveu;

3) Notificada da relação de bens, a interessada reclamou, alegando o que consta de fls.;

4) O cabeça-de-casal veio responder à reclamação apresentada, alegando o que acima se transcreveu;

5) Realizou-se a audiência de inquirição de testemunhas;

6) Por sentença de fls., foi decidido o acima transcrito;

7) Não podemos aceitar tal decisão quanto à exclusão da verba única do passivo, consistente numa alegada dívida da herança da inventariada à referida CCC;

8) Conforme resultou da prova testemunhal, nomeadamente da testemunha DDD, a inventariada não tinha capacidade física, nem faculdades mentais para tomar conta de si própria, desde, pelo menos dezembro de 2014;

9) A inventariada, a partir dessa data, começou a fazer as refeições em casa do cabeça-de-casal, em virtude de se encontrar desnutrida;

10) A inventariada começou a ficar desorientada, sem saber dos seus pertences, tendo ido diversas vezes ao serviço de urgências do hospital, tendo ficado internada;

11) Em virtude da inventariada não poder ficar sozinha, foram os filhos convocados para uma reunião com a assistente social, a fim de se decidir onde ficaria a mesma;

12) A interessada BBB não compareceu, nem demonstrou qualquer interesse com o estado de saúde da inventariada, nem sequer se preocupou quando a mesma desaparecia, ou não se alimentava;

13) A interessada nunca visitou a inventariada no hospital, nem lhe prestou assistência, pois nunca lhe fez comida, nem cuidou dela;

14) Nunca providenciou pelo zelo da inventariada quanto a alimentação, medicação, etc.;

15) Foi o cabeça-de-casal e a sua esposa que tiveram de tomar conta da inventariada, pois a CCC deixou de trabalhar para prestar assistência à inventariada, teve de adaptar a sua casa para receber a inventariada, nomeadamente o quarto, casa de banho e equipamentos para a mesma;

16) Foi a esposa do cabeça-de-casal que teve de deixar de trabalhar para prestar assistência à inventariada, tendo em conta que a interessada nunca se disponibilizou para o fazer, nem o fez, quer em virtude dos seus problemas alcoólicos, quer por não se interessar pelo estado de saúde da inventariada;

17) Todos os filhos têm o dever de prestar assistência aos pais e não apenas um filho;

18) Não pode um filho ser beneficiado, em detrimento do outro, sendo legalmente obrigados a contribuir para a assistência dos pais os dois;

19) Tendo em conta que a interessada, conforme ficou provado, não prestou assistência, nem nunca se importou com a inventariada, bem como não assegurou assistência àquela, e tendo a esposa do cabeça-de-casal prestado assistência à inventariada, deve esta ser ressarcida;

20) Até porque a esposa do cabeça-de-casal não tinha qualquer obrigação de assistência para com a inventariada, mas apenas o cabeça-de-casal, em conjunto com a sua irmã, aqui interessada;

21) Conforme resultou da prova, a inventariada esteve quatro anos em casa do cabeça-de-casal, foi a esposa deste que tomou conta dela, por padecer de alzheimer;

22) Deve ser revogada a sentença proferida e consequentemente ser mantida a verba do passivo, com todas as consequências legais daí resultantes;

23) Caso assim não entendesse, o Meritíssimo Juiz deveria ter remetido para os meios comuns, quanto à questão de apurar o valor devido pela prestação de serviços à CCC;

24) A questão da assistência aos pais presume-se gratuita quando todos os filhos contribuem para tal assistência e não só um, o que leva a uma injustiça;

25) Tendo em conta o alegado e o provado nos presentes autos, deve a sentença recorrida ser revogada, com todas as consequências legais daí resultantes;

26) Lendo, atentamente, a decisão recorrida, verifica-se que não se indica nela factos concretos suscetíveis de revelar, informar, e fundamentar, a real e efetiva situação, do verdadeiro motivo da não procedência da pretensão do recorrente;

27) Neste caso em concreto, o Meritíssimo Juiz do tribunal a quo não fundamentou de facto e de direito a sua decisão e a lei proíbe tal comportamento;

28) Segundo se encontra claramente patente nos termos supra invocados, a sentença recorrida padece das nulidades acima transcritas, pelo que deverá ser revogada, com todas as consequências legais daí resultantes;

29) O tribunal, com a decisão recorrida, não assegurou a defesa dos direitos do recorrente ao não fundamentar exaustivamente a sua decisão, e nem se quer aplicar a as normas legais aplicáveis ao caso em concreto;

30) O Meritíssimo Juiz a quo limitou-se apenas e tão só, a emitir uma sentença “economicista”, isto é, uma decisão onde apenas de uma forma simples e sintética foram apreciadas algumas das questões sem ter em conta todos os documentos juntos, assim como todos os elementos constantes no processo e tudo o que acima já se alegou;

31) Deixando o Meritíssimo Juiz a quo de se pronunciar sobre algumas questões que são essenciais à boa decisão da causa, nomeadamente as acima expostas;

32) Neste caso em concreto, o Meritíssimo Juiz não fundamentou de facto e de direito a sua decisão, cometendo, assim, uma nulidade;

33) Pelo que se impõe a revogação da sentença recorrida.

34) A sentença recorrida viola:

a) O disposto no artigo 615.º do CPC;

b) O disposto no artigo 13.º, 20.º, 202.º, 204.º e 205.º da CRP.

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O recorrente sustenta que a sentença recorrida padece da nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, porquanto não indica «factos concretos suscetíveis de revelar, informar, e fundamentar, a real e efetiva situação, do verdadeiro motivo da não procedência da pretensão do recorrente», nem contém fundamentação de direito.

Não é exacto que a sentença recorrida não contenha fundamentação de direito. Na realidade, a fundamentação jurídica da decisão de excluir, da relação de bens, a verba única do passivo, ocupa mais de três páginas da sentença.

Já no que concerne à falta de fundamentação de facto da parte da sentença recorrida respeitante à mesma questão, o recorrente tem razão.

Vejamos.

O artigo 154.º do CPC, em consonância com o disposto no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição, estabelece um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, sendo concretizado, no que concerne às sentenças, pelo artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC. O n.º 3 deste artigo estabelece que, às menções referidas no n.º 2 (identificação das partes e do objecto do litígio e enunciado das questões a resolver), seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final. O n.º 4 do mesmo artigo dispõe que, na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que considera provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.

O incumprimento do dever de fundamentação da sentença gera a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC. Esta norma estabelece que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

O enunciado de factos provados e não provados que consta da sentença recorrida respeita exclusivamente à questão da inclusão da verba relativa à moto-enxada na relação de bens. Isso resulta, não só do próprio teor dos factos em causa, mas também da expressa restrição, feita na sentença recorrida, ao âmbito daquele enunciado: «Da análise dos meios de prova produzidos nos autos, considera-se que ficaram provados os seguintes factos com relevância para esta parte da reclamação da relação de bens deduzida no processo».

Com interesse para a decisão da questão da exclusão, da relação de bens, da verba única do passivo, a sentença recorrida não discrimina, nos termos impostos pelo artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, quais são os factos que o tribunal a quo considera provados e não provados. Também não se procede à análise crítica da prova, não se explicitando as razões que levaram o tribunal a quo a julgar provados determinados factos e não provados outros. A fundamentação de facto, pura e simplesmente, não existe. Nesta parte, estamos perante uma sentença sem factos, perante a qual, nem as partes têm a possibilidade de exercer devidamente o direito ao recurso, nem o tribunal ad quem dispõe de elementos fácticos que lhe permitam exprimir um juízo concordante ou divergente.

A sentença recorrida padece, pois, da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, nulidade essa que não pode ser suprida pelo tribunal ad quem, dado que foi perante o tribunal a quo que a prova foi produzida.

Consequentemente, deverá a sentença recorrida ser anulada, para que o tribunal a quo elabore outra, devidamente fundamentada em conformidade com o disposto nas normas acima referenciadas.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, anulando-se a sentença recorrida e determinando-se que o tribunal a quo enuncie os factos, com relevo para a decisão da questão da exclusão, da relação de bens, da verba única do passivo, que, atenta a prova produzida, considera provados e não provados, fundamentando a sua convicção e decidindo o incidente em conformidade.

Sem custas.

Notifique.

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Évora, 06.06.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.º adjunto)


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