Processo n.º 6/24.4T8NIS.E1
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O processo especial de
divórcio sem consentimento do outro cônjuge não é de jurisdição voluntária.
Apreciação crítica da prova.
Ausência de prova do
fundamento invocado para o divórcio.
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Autora/recorrente:
AAA.
Réu/recorrido:
BBB.
Pedido:
Decretamento do divórcio entre a autora
e o réu.
Sentença recorrida:
Julgou a acção improcedente, por não
provada.
Conclusões do recurso:
1. A recorrente delimita objectivamente
o presente recurso à parte da decisão que considerou não provados os factos
contidos em D.2. A), B) e C).
2. Não foram valorizados os meios
probatórios apresentados no processo, mormente a prova documental constante do processo
– apresentada em requerimento probatório.
3. E o que constitui o objecto/matéria
nuclear dos presentes autos, por se considerar serem estes (dada a manifesta
simplicidade da causa “sub judice”) os concretos pontos de facto incorrectamente
julgados.
4. Levando a erro na apreciação da prova
por parte do tribunal “a quo”.
5. Deste modo, não se conforma e muito
menos compreende a recorrente a razão pela qual o tribunal “a quo” não indagou
com maior acuidade a prova documental vertida nos autos.
6. Não a valorando de forma lógica,
sincera, com sentido de responsabilidade e sobretudo com bom senso segundo
parâmetros da lógica do homem médio, em face das circunstâncias do caso
concreto e as regras da experiência.
7. A sentença proferida nos autos e
agora colocada em crise, faz uma incorrecta ilação da matéria de facto.
8. Dando como não provados factos -D.2.
A), B) e C) – que manifestamente estão em contradição com outros dados como provados
– D.1. nºs 3), 4) e 5).
9. É por demais evidente que a partir de
2015 a recorrente deixou a casa de morada de família (sita em Vila Nova de
Gaia) e passou a residir, desde então, na habitação a que se reporta o facto
n.º 3, ou seja, na vila de Nisa, de onde nunca mais se ausentou, passando aí a trabalhar
(facto nº 4) e desvinculando-se de qualquer economia comum com o réu, mormente
no que concerne a (não) partilha de leito, mesa e habitação com BBB;
10. O erro de interpretação dos factos
constitui erro de julgamento, e ao fazer uma incorrecta ilação da matéria de
facto irá igualmente proceder a uma incorrecta subsunção dos factos ao direito,
violando, assim, o disposto nos artºs 1781º e 1782º do C. Civil;
11. Daí que a decisão:
- Seja parca na fundamentação de facto;
- Não conheceu de todas as questões que
na perspectiva da recorrente/autora não foram tidas em consideração;
- Logo, o erro de julgamento, é motivo
de alteração ou revogação da decisão ora em crise.
12. Afinal, a decisão deveria ser outra
e não aquela que retrata, pois no entender da recorrente os factos de A. a C. e
o alegado na P.I. ficou demonstrado e atestado pelos elementos probatórios
carreados para os autos.
13. Tratando-se de divórcio-remédio, a autora
exerceu um direito potestativo que tem amparo na previsão constitucional
contida no artº 36º, nº 2 da Lei Fundamental, sendo admissível a dissolução de qualquer
casamento, por divórcio.
14. Daí que a ora recorrente não
compreenda nem se conforme com a “teimosia” da Mmª Juíza “a quo” em não querer
decretar a extinção de uma relação matrimonial irremediavelmente comprometida, objectivamente
baseada na ruptura definitiva deste matrimónio (imagine-se que a Recorrente –
ora manietada pelo casamento que se teima em não decretar - pretenda agora
engravidar de um outro homem que não o seu marido, o que é que aconteceria…?
Haja respeito!!!).
15. Sendo certo que a mesma tão só
pretende alterar o seu estado civil de casada para divorciada (de modo a poder
refazer a sua vida), tendo nisso um interesse definido e legítimo, exercendo o
respectivo direito potestativo.
16. Os processos judiciais, mais do
"pontos e vírgulas" têm a ver com a vida das pessoas, seres humanos
que merecem ser respeitados e, ver os seus interesses e direitos acautelados
enquanto cidadãos cumpridores.
17. Razão pela qual, e com vista a se
alcançar a boa decisão da causa deverá ser considerado procedente o
pedido/causa de pedir da Autora e decretado o divórcio do matrimónio colocado
em crise, fazendo-se justiça.
Questão a decidir:
Verificação do fundamento de divórcio
invocado pela recorrente.
Factos julgados provados
pelo tribunal a quo:
1) A autora e o réu contraíram casamento
católico, no dia 01.05.1982, sem estipulação de convenção antenupcial.
2) A autora e o réu são pais de CCC,
nascido no dia 20.03.1985.
3) A autora dispõe de habitação, desde Novembro
de 2017, na Estrada (…), n.º (…), em Nisa.
4) A autora exerce funções de ajudante
de acção directa, no Centro (…), desde 15.06.2022.
5) A autora tem a intenção de romper a
vida em comum com o réu.
Factos julgados não provados
pelo tribunal a quo:
A. A autora e o réu desentenderam-se no
ano de 2015.
B. A autora abandonou a casa de morada
de família, desde o ano de 2015, tendo estado a residir, desde então, na
habitação a que se reporta o facto n.º 4.
C. A autora não partilha leito, mesa e
habitação há mais de um ano com o réu.
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A recorrente inicia as suas
alegações dissertando acerca dos critérios de apreciação da prova e de decisão
nos processos de jurisdição voluntária. Trata-se, porém, de matéria sem
relevância para a decisão da causa, porquanto o processo especial de divórcio
sem consentimento do outro cônjuge, regulado pelos artigos 931.º e 932.º do
CPC, não é de jurisdição voluntária. Os processos de jurisdição voluntária
encontram-se regulados nos artigos 986.º e seguintes do mesmo código.
A recorrente pretende que os
factos julgados não provados pelo tribunal a
quo sejam julgados provados pelo tribunal ad quem, considerando que a prova documental por si oferecida foi
mal valorada.
A recorrente juntou ao
processo seis documentos: 1) Certidão do assento do seu casamento com o réu; 2)
Certidão do assento de nascimento do filho do casal; 3) Comunicação da nomeação
de patrono; 4) Notificação da decisão de concessão de apoio judiciário; 5)
Declaração, emitida pelo Centro (…), segundo a qual a recorrente «exerce funções nesta instituição, na
categoria profissional de Ajudante de Acção Directa de 3.ª, desde 15 de Junho
de 2022»; 6) Declaração, emitida pela União das Freguesias de (…), segundo
a qual a recorrente reside na Rua Estrada (…), n.º (…), 6050-378 Nisa, desde
Novembro de 2017. Não foi produzida qualquer outra prova, nomeadamente
testemunhal.
Os factos que resultam
destes documentos são apenas aqueles que o tribunal a quo julgou provados nos n.ºs 1 a 4 (o facto constante do n.º 5
foi julgado provado com fundamento na simples propositura desta acção). Nada
mais resulta de tais documentos, directa ou indirectamente.
Concretamente, do facto de a
recorrente residir em Nisa e trabalhar no Centro (…) não é possível inferir
seja o que for acerca da vida do casal, nomeadamente:
- Que o casal haja tido casa de morada
da família em Vila Nova de Gaia, ou em qualquer outra localidade;
- Que a recorrente e o recorrido se
tenham desentendido, em 2015 ou em qualquer outra data;
- Que a recorrente tenha abandonado a
casa de morada de família, em 2015 ou em qualquer outra data;
- Que a recorrente e o recorrido não partilhem
leito, mesa e habitação há mais de um ano.
Tudo isto nos parece
evidente. O facto de a recorrente residir em Nisa e trabalhar no Centro (…) nada
indicia sobre qual fosse a sua anterior residência ou a ocorrência de
desentendimentos fosse com quem fosse. O mesmo facto é, inclusivamente,
compatível com a hipótese de a recorrente continuar a partilhar leito, mesa e
habitação com o recorrido. O tribunal a
quo fundamentou devidamente a sua convicção sobre esta matéria, na linha do
que acabamos de afirmar.
A circunstância, invocada
pela recorrente, de, na audiência final, o tribunal a quo ter dado, «sem mais»,
a palavra ao seu patrono para alegações, não tem qualquer significado neste
contexto. Resulta, aliás, da acta daquela audiência, que a primeira coisa que o
tribunal a quo fez após a declarar
aberta foi dar a palavra ao patrono da recorrente para requerer o que tivesse
por conveniente. Como este nada tivesse sido requerido, foi-lhe, então, dada a
palavra para alegações. A falta de iniciativa foi do patrono da recorrente, não
do tribunal a quo. Se, com fundamento
no exposto, aquele supôs que «tudo
estaria devidamente esclarecido», fez mal. Objectivamente, a única
evidência que se verificava era a absoluta ausência de meios de prova da
matéria julgada não provada, essencial para a procedência da acção, devido à
inércia probatória da recorrente.
Argumenta a recorrente que,
sendo embora verdade que, como na sentença recorrida se afirma, «os cônjuges podem, por exemplo, ter
residências separadas e, todavia, manter uma autêntica comunhão de vida»,
não é esse o seu caso. E porquê? Porque, diz a recorrente, se, apesar de ela e
o recorrido terem «residências separadas»,
mantivessem «uma autêntica comunhão de
vida», «qual a razão que a
levaria/motivaria a interpôr a presente acção de divórcio?»
Salta à vista a
improcedência deste argumento. Do facto de a recorrente ter tomado a iniciativa
de propor a presente acção apenas pode inferir-se que ela pretende divorciar-se
ou, conforme consta do n.º 5 do enunciado da matéria de facto provada, «romper a vida em comum com o réu». Não
que exista algum dos fundamentos legalmente exigidos para o decretamento do
divórcio, nomeadamente a ausência de «uma
autêntica comunhão de vida». Por outras palavras, de um acto da recorrida
apenas pode inferir-se que ela tem determinada intenção, não que seja verdade o
que ela alega tendo em vista concretizá-la.
O trecho do acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça de 06.03.2007, invocado pela recorrente, não diz
respeito à problemática em questão nestes autos, mas sim à de saber se, para o
divórcio poder ser decretado, o prazo de duração da situação de separação de
facto exigido por lei [actualmente, pela al. a) do artigo 1781.º do CC] tem de
estar decorrido à data da propositura da acção ou, ao invés, basta que o esteja
no momento do encerramento da discussão da causa. No caso dos autos, não se
provou a existência de uma situação de separação de facto entre a recorrente e
o recorrido, pelo que a questão da contagem do prazo da sua duração nem sequer
se coloca.
Concluindo, o tribunal a quo decidiu bem ao julgar a acção
improcedente, devendo a sentença recorrida ser mantida na íntegra.
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Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto,
julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente,
sem prejuízo do decidido em matéria de apoio judiciário.
Notifique.
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Évora, 12.09.2024
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª adjunta)
(2.º adjunto)