quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 12.09.2024


Processo n.º 6/24.4T8NIS.E1

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O processo especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge não é de jurisdição voluntária.

Apreciação crítica da prova.

Ausência de prova do fundamento invocado para o divórcio.

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Autora/recorrente:

AAA.

Réu/recorrido:

BBB.

Pedido:

Decretamento do divórcio entre a autora e o réu.

Sentença recorrida:

Julgou a acção improcedente, por não provada.

Conclusões do recurso:

1. A recorrente delimita objectivamente o presente recurso à parte da decisão que considerou não provados os factos contidos em D.2. A), B) e C).

2. Não foram valorizados os meios probatórios apresentados no processo, mormente a prova documental constante do processo – apresentada em requerimento probatório.

3. E o que constitui o objecto/matéria nuclear dos presentes autos, por se considerar serem estes (dada a manifesta simplicidade da causa “sub judice”) os concretos pontos de facto incorrectamente julgados.

4. Levando a erro na apreciação da prova por parte do tribunal “a quo”.

5. Deste modo, não se conforma e muito menos compreende a recorrente a razão pela qual o tribunal “a quo” não indagou com maior acuidade a prova documental vertida nos autos.

6. Não a valorando de forma lógica, sincera, com sentido de responsabilidade e sobretudo com bom senso segundo parâmetros da lógica do homem médio, em face das circunstâncias do caso concreto e as regras da experiência.

7. A sentença proferida nos autos e agora colocada em crise, faz uma incorrecta ilação da matéria de facto.

8. Dando como não provados factos -D.2. A), B) e C) – que manifestamente estão em contradição com outros dados como provados – D.1. nºs 3), 4) e 5).

9. É por demais evidente que a partir de 2015 a recorrente deixou a casa de morada de família (sita em Vila Nova de Gaia) e passou a residir, desde então, na habitação a que se reporta o facto n.º 3, ou seja, na vila de Nisa, de onde nunca mais se ausentou, passando aí a trabalhar (facto nº 4) e desvinculando-se de qualquer economia comum com o réu, mormente no que concerne a (não) partilha de leito, mesa e habitação com BBB;

10. O erro de interpretação dos factos constitui erro de julgamento, e ao fazer uma incorrecta ilação da matéria de facto irá igualmente proceder a uma incorrecta subsunção dos factos ao direito, violando, assim, o disposto nos artºs 1781º e 1782º do C. Civil;

11. Daí que a decisão:

- Seja parca na fundamentação de facto;

- Não conheceu de todas as questões que na perspectiva da recorrente/autora não foram tidas em consideração;

- Logo, o erro de julgamento, é motivo de alteração ou revogação da decisão ora em crise.

12. Afinal, a decisão deveria ser outra e não aquela que retrata, pois no entender da recorrente os factos de A. a C. e o alegado na P.I. ficou demonstrado e atestado pelos elementos probatórios carreados para os autos.

13. Tratando-se de divórcio-remédio, a autora exerceu um direito potestativo que tem amparo na previsão constitucional contida no artº 36º, nº 2 da Lei Fundamental, sendo admissível a dissolução de qualquer casamento, por divórcio.

14. Daí que a ora recorrente não compreenda nem se conforme com a “teimosia” da Mmª Juíza “a quo” em não querer decretar a extinção de uma relação matrimonial irremediavelmente comprometida, objectivamente baseada na ruptura definitiva deste matrimónio (imagine-se que a Recorrente – ora manietada pelo casamento que se teima em não decretar - pretenda agora engravidar de um outro homem que não o seu marido, o que é que aconteceria…? Haja respeito!!!).

15. Sendo certo que a mesma tão só pretende alterar o seu estado civil de casada para divorciada (de modo a poder refazer a sua vida), tendo nisso um interesse definido e legítimo, exercendo o respectivo direito potestativo.

16. Os processos judiciais, mais do "pontos e vírgulas" têm a ver com a vida das pessoas, seres humanos que merecem ser respeitados e, ver os seus interesses e direitos acautelados enquanto cidadãos cumpridores.

17. Razão pela qual, e com vista a se alcançar a boa decisão da causa deverá ser considerado procedente o pedido/causa de pedir da Autora e decretado o divórcio do matrimónio colocado em crise, fazendo-se justiça.

Questão a decidir:

Verificação do fundamento de divórcio invocado pela recorrente.

Factos julgados provados pelo tribunal a quo:

1) A autora e o réu contraíram casamento católico, no dia 01.05.1982, sem estipulação de convenção antenupcial.

2) A autora e o réu são pais de CCC, nascido no dia 20.03.1985.

3) A autora dispõe de habitação, desde Novembro de 2017, na Estrada (…), n.º (…), em Nisa.

4) A autora exerce funções de ajudante de acção directa, no Centro (…), desde 15.06.2022.

5) A autora tem a intenção de romper a vida em comum com o réu.

Factos julgados não provados pelo tribunal a quo:

A. A autora e o réu desentenderam-se no ano de 2015.

B. A autora abandonou a casa de morada de família, desde o ano de 2015, tendo estado a residir, desde então, na habitação a que se reporta o facto n.º 4.

C. A autora não partilha leito, mesa e habitação há mais de um ano com o réu.

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A recorrente inicia as suas alegações dissertando acerca dos critérios de apreciação da prova e de decisão nos processos de jurisdição voluntária. Trata-se, porém, de matéria sem relevância para a decisão da causa, porquanto o processo especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, regulado pelos artigos 931.º e 932.º do CPC, não é de jurisdição voluntária. Os processos de jurisdição voluntária encontram-se regulados nos artigos 986.º e seguintes do mesmo código.

A recorrente pretende que os factos julgados não provados pelo tribunal a quo sejam julgados provados pelo tribunal ad quem, considerando que a prova documental por si oferecida foi mal valorada.

A recorrente juntou ao processo seis documentos: 1) Certidão do assento do seu casamento com o réu; 2) Certidão do assento de nascimento do filho do casal; 3) Comunicação da nomeação de patrono; 4) Notificação da decisão de concessão de apoio judiciário; 5) Declaração, emitida pelo Centro (…), segundo a qual a recorrente «exerce funções nesta instituição, na categoria profissional de Ajudante de Acção Directa de 3.ª, desde 15 de Junho de 2022»; 6) Declaração, emitida pela União das Freguesias de (…), segundo a qual a recorrente reside na Rua Estrada (…), n.º (…), 6050-378 Nisa, desde Novembro de 2017. Não foi produzida qualquer outra prova, nomeadamente testemunhal.

Os factos que resultam destes documentos são apenas aqueles que o tribunal a quo julgou provados nos n.ºs 1 a 4 (o facto constante do n.º 5 foi julgado provado com fundamento na simples propositura desta acção). Nada mais resulta de tais documentos, directa ou indirectamente.

Concretamente, do facto de a recorrente residir em Nisa e trabalhar no Centro (…) não é possível inferir seja o que for acerca da vida do casal, nomeadamente:

- Que o casal haja tido casa de morada da família em Vila Nova de Gaia, ou em qualquer outra localidade;

- Que a recorrente e o recorrido se tenham desentendido, em 2015 ou em qualquer outra data;

- Que a recorrente tenha abandonado a casa de morada de família, em 2015 ou em qualquer outra data;

- Que a recorrente e o recorrido não partilhem leito, mesa e habitação há mais de um ano.

Tudo isto nos parece evidente. O facto de a recorrente residir em Nisa e trabalhar no Centro (…) nada indicia sobre qual fosse a sua anterior residência ou a ocorrência de desentendimentos fosse com quem fosse. O mesmo facto é, inclusivamente, compatível com a hipótese de a recorrente continuar a partilhar leito, mesa e habitação com o recorrido. O tribunal a quo fundamentou devidamente a sua convicção sobre esta matéria, na linha do que acabamos de afirmar.

A circunstância, invocada pela recorrente, de, na audiência final, o tribunal a quo ter dado, «sem mais», a palavra ao seu patrono para alegações, não tem qualquer significado neste contexto. Resulta, aliás, da acta daquela audiência, que a primeira coisa que o tribunal a quo fez após a declarar aberta foi dar a palavra ao patrono da recorrente para requerer o que tivesse por conveniente. Como este nada tivesse sido requerido, foi-lhe, então, dada a palavra para alegações. A falta de iniciativa foi do patrono da recorrente, não do tribunal a quo. Se, com fundamento no exposto, aquele supôs que «tudo estaria devidamente esclarecido», fez mal. Objectivamente, a única evidência que se verificava era a absoluta ausência de meios de prova da matéria julgada não provada, essencial para a procedência da acção, devido à inércia probatória da recorrente.

Argumenta a recorrente que, sendo embora verdade que, como na sentença recorrida se afirma, «os cônjuges podem, por exemplo, ter residências separadas e, todavia, manter uma autêntica comunhão de vida», não é esse o seu caso. E porquê? Porque, diz a recorrente, se, apesar de ela e o recorrido terem «residências separadas», mantivessem «uma autêntica comunhão de vida», «qual a razão que a levaria/motivaria a interpôr a presente acção de divórcio?»

Salta à vista a improcedência deste argumento. Do facto de a recorrente ter tomado a iniciativa de propor a presente acção apenas pode inferir-se que ela pretende divorciar-se ou, conforme consta do n.º 5 do enunciado da matéria de facto provada, «romper a vida em comum com o réu». Não que exista algum dos fundamentos legalmente exigidos para o decretamento do divórcio, nomeadamente a ausência de «uma autêntica comunhão de vida». Por outras palavras, de um acto da recorrida apenas pode inferir-se que ela tem determinada intenção, não que seja verdade o que ela alega tendo em vista concretizá-la.

O trecho do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.03.2007, invocado pela recorrente, não diz respeito à problemática em questão nestes autos, mas sim à de saber se, para o divórcio poder ser decretado, o prazo de duração da situação de separação de facto exigido por lei [actualmente, pela al. a) do artigo 1781.º do CC] tem de estar decorrido à data da propositura da acção ou, ao invés, basta que o esteja no momento do encerramento da discussão da causa. No caso dos autos, não se provou a existência de uma situação de separação de facto entre a recorrente e o recorrido, pelo que a questão da contagem do prazo da sua duração nem sequer se coloca.

Concluindo, o tribunal a quo decidiu bem ao julgar a acção improcedente, devendo a sentença recorrida ser mantida na íntegra.

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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente, sem prejuízo do decidido em matéria de apoio judiciário.

Notifique.

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Évora, 12.09.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.ª adjunta)

(2.º adjunto)


Acórdão da Relação de Évora de 12.09.2024

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