Processo n.º 2301/12.6TBABF-A.E1-A
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Sumário:
1 – Viola o princípio do
esgotamento do poder jurisdicional, consagrado no n.º 1 do artigo 613.º do CPC,
o despacho que, com fundamento em determinada interpretação do artigo 411.º do mesmo código, não
admite a junção aos autos de documentos que, através de despacho anteriormente
proferido, o tribunal ordenara que fossem juntos aos autos com fundamento em
interpretação diversa do mesmo artigo 411.º.
2 – Tal alteração do
sentido da decisão primeiramente proferida não é permitida pelo artigo 616.º do
CPC, que prevê a reforma das decisões judiciais.
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
AAA deduziu embargos de terceiro contra BBB, CCC, DDD e EEE.
A audiência final prolongou-se por três sessões.
Na sessão que teve lugar no dia 14.03.2016, após a prestação de
declarações de parte pelo embargado CCC, foi proferido o seguinte despacho: “O
declarante apresentou cheques referentes ao contrato promessa alegadamente
celebrado com o Sr. AAA. Entende o Tribunal que tais elementos são relevantes,
pelo que determino a respectiva junção aos autos, passando a rubricar as cópias
apresentadas.” Em seguida,
de acordo com a acta, os advogados do embargante e do embargado BBB requereram
“prazo de contraditório quanto à junção dos documentos”, na sequência do que o
tribunal recorrido proferiu o seguinte despacho: “Considerando o
contraditório requerido pelas partes, determino que estes documentos aguardem o
termo do respectivo prazo, por linha aos autos de embargo de terceiro. (…)”.
O embargante e o embargado BBB
exerceram o contraditório.
O embargado BBB concluiu nos
seguintes termos: “Face a tudo o exposto, e no exercício
do contraditório que lhe compete face aos documentos juntos na Audiência de
Discussão e Julgamento dos presentes Embargos, e no que aos mesmos refere,
requer-se a V. Exa. Se digne
a)
ordenar o desentranhamento das cópias de cheques bancários apresentadas na
Audiência datada de 14.03.2016 por intempestivos; ou
b)
considerar que os documentos juntos, embora válidos, não fazem prova dos factos
que visam demonstrar, nomeadamente Ponto 2. dos Temas da Prova fixados em
Despacho Saneador, pelo que deverão ser desconsiderados.
O embargante pronunciou-se, na parte
respeitante ao objecto deste recurso, nos seguintes termos: “Os cheques foram juntos por
ordem de V. Ex.Cia e no uso dos poderes que são conferidos a V. Ex.Cia pelo
artº 411 do CPC, pelo que carecem de boa fundamentação as considerações
sobre a pretensa intempestividade da sua junção.”
Na sessão seguinte da audiência
final, realizada no dia 26.04.2016, foi proferido o seguinte despacho:
“Foi concedido contraditório às partes no que respeita à junção
dos documentos ocorrida na última sessão de julgamento a 14 de Março de 2016.
Nesse âmbito veio o exequente alegar que tal junção não é possível neste
momento processual, porquanto esses documentos foram apresentados pelo
executado/embargado e que para fazê-lo tinha um momento próprio que era o prazo
que dispunha para apresentação de contestação.
Acrescentou ainda a exequente/embargada impugnação do teor dos
documentos.
Notificado o embargante, pugnou pela admissão da junção dos
documentos e requereu que fossem tomadas diligências no sentido de obter cópias
integrais dos documentos e por fim requereu a admissão do extracto bancário
constante do requerimento data do dia 21 de Abril de 2016.
A junção dos documentos pelo tribunal ocorreu na sequência das
declarações de parte prestadas pelo Sr. CCC, aqui embargado e ao abrigo do
preceituado no art.º. 411 do C.P.C..
Neste aspecto a exequente diz que o Tribunal não pode proceder a
esta diligência, porquanto a parte interessada nos autos deixou precludir um
ónus processual de que dispunha, com o decurso do prazo para apresentação da
devida procuração.
Determina o art.º. 6 sob égide do princípio da gestão
processual, que cumpre ao Juiz determinar todas as diligências que se lhe
afigurem necessárias ao normal prosseguimento da acção.
Para esse efeito, incumbe ao Juiz realizar ou ordenar, todas as
diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do
litígio quanto aos factos de que lhe é ilícito conhecer.
Trata-se de um dever imposto por lei, contudo tal dever não deve
ter um âmbito que permita suprir o cumprimento de ónus processuais que vinculam
as partes.
Embora o art.º. 411 configure uma norma habilitadora de tal
junção, na verdade tal junção apenas é possível quanto a factos que estejam na
disponibilidade do tribunal e não das partes.
Assim essa prorrogativa só deve ser exercida quando incumba ao
Juiz o dever de impulsionar o suprimento de excepções processuais ou de adoptar
diligências com vista ao prosseguimento dos autos.
A presente norma não visa suprir um ónus processual da inteira
responsabilidade das partes e nem decorre desse normativo que o tribunal o
possa suprir.
De facto, tal junção foi ordenada pelo tribunal na sequencia da
apresentação pelo embargado sendo certo que o mesmo deixou transcorrer o prazo
de que dispunha para fazê-lo e por conseguinte o Tribunal não pode determinar a
válida junção dos mesmos, já que o facto a que se predispunha provar, compete
unicamente às partes interessadas.
Com efeito, assiste razão à embargada/exequente no que se refere
à possibilidade de junção dos documentos apresentados pelo embargado/executado
e que por não se tratarem de factos que o Tribunal possa conhecer ex officio,
não se pode manter a junção desses documentos.
No que se refere às diligências probatórias requeridas pelo
embargante, o mesmo se dirá quanto à sua tempestividade, já que terá deixado a
parte transcorrer o respectivo prazo para solicitar a sua realização e a junção
não válida dos documentos que ora foram indeferidos não justifica a junção que
se pretende com o requerimento de 21 de Abril de 2016.
Em face do exposto após contraditório das partes e reformando o
despacho proferido na audiência de 14 de Março de 2016, não se admite a junção
dos documentos aí determinada, devendo os mesmos serem devolvidos à respectiva
parte, após o trânsito em julgado deste despacho;
E por intempestividade, indeferem-se as diligências requeridas
pelo embargante AAA, assim como a junção do documento anexo ao requerimento de
21 de Abril de 2016, o qual deverá ser devolvido à respectiva parte, após
trânsito em julgado do presente despacho.
Notifique.”
O embargante recorreu deste último despacho, formulando as
seguintes conclusões:
1 – O Meritíssimo Senhor Juiz por seu
despacho de 14/03 determinou oficiosamente a junção aos autos das fotocópias de
quatro cheques que lhe foram exibidos pelo co-embargado CCC e no decurso da
prestação das suas declarações de parte.
2 – Nesse despacho o Meritíssimo
Senhor Juiz justificou o que ordenara porque “tais elementos são relevantes” e
depois esclareceu que ordenara ao abrigo do artº 411º do CPC.
3 – Este despacho não admite
contraditório sobre a admissibilidade, e apenas pode ser impugnado por
via de recurso, o que, no caso concreto não ocorreu, pelo que o mesmo transitou
em julgado.
4 – Por outro lado, com a prolação
daquele despacho ficou esgotado o poder jurisdicional do Meritíssimo Senhor
Juiz pelo que não lhe é lícito revogá-lo, sobretudo por via de invocada reforma
do mesmo.
5 – No douto despacho ora recorrido o
Meritíssimo Senhor Juiz aplica erradamente os nº 2 e 3 do artº 613 do CPC (segmento:
reforma de despacho) e 616-1 e 2 do mesmo CPC, e também os artº 628º (transito
em julgado) e 613º-1-3 (extinção do poder jurisdicional), ambos do CPC.
6 – Em conformidade com as conclusões
supra, Vossas Excelências revogarão o douto despacho ora impugnado, ordenarão
que os documentos continuem nos autos para efeitos probatórios bem como
ordenarão que o Meritíssimo Senhor reaprecie os requerimentos do embargante /
aqui recorrente que foram indeferidos na sequência do decidido e ora impugnado.
Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi
admitido, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação, foi proferido despacho
mediante o qual se rectificou o regime de subida do recurso, sendo essa subida
em separado e com efeito meramente devolutivo.
Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, que
definem o objecto deste e delimitam o âmbito da intervenção do tribunal de
recurso, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, a
única questão a resolver consiste em saber se é legalmente admissível, ao juiz,
alterar, nos termos acima descritos, um despacho que proferiu anteriormente.
Como anteriormente referimos, na sessão da audiência final que
teve lugar no dia 14.03.2016, após a prestação de declarações de parte pelo
embargado CCC, foi proferido o seguinte despacho: “O declarante apresentou
cheques referentes ao contrato promessa alegadamente celebrado com o Sr. AAA.
Entende o Tribunal que tais elementos são relevantes, pelo que determino a
respectiva junção aos autos, passando a rubricar as cópias apresentadas.” A interpretação deste despacho não oferece
qualquer dúvida. O tribunal recorrido não se limitou a suscitar, perante as
partes, a questão da necessidade e oportunidade da junção dos documentos em
causa aos autos, para que as mesmas se pronunciassem sobre se essa junção
devia, ou não, ter lugar, deixando a decisão para momento posterior ao
exercício do contraditório. Em vez disso, determinou, desde logo e sem
contraditório, a junção dos mesmos documentos aos autos, por os considerar
“relevantes”. Tanto assim foi, que os mesmos documentos foram, então, rubricados.
A base legal dessa decisão foi o artigo 411.º do CPC[1], de acordo com o qual
incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências
necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto
aos factos de que lhe é lícito conhecer. O despacho em causa não o diz
expressamente, mas o despacho recorrido esclarece que assim foi.
Na sequência da prolação desse despacho, o embargante e o
embargado BBB exerceram o
contraditório, o qual, uma vez que a junção dos documentos aos autos já fora
decidida, tinha apenas por objecto o valor probatório dos mesmos documentos.
Não obstante, o embargado BBB requereu, a título principal, que fosse determinado
o desentranhamento dos documentos, com fundamento na intempestividade da sua
apresentação. Em resposta, o embargante pronunciou-se no sentido da manutenção
da junção já ordenada.
Na sessão seguinte da audiência final,
foi proferido o despacho recorrido, em sentido diametralmente oposto ao de 14.03.2016. Sem pôr em
causa que tinha anteriormente ordenado a junção dos documentos em questão ao
abrigo do disposto no artigo 411.º, o tribunal recorrido considerou ter feito,
então, uma errada interpretação deste artigo e, alterando essa interpretação,
concluiu pela inadmissibilidade da referida junção. Nomeadamente, afirmou-se,
no despacho recorrido, que “tal junção foi ordenada pelo tribunal na
sequência da apresentação pelo embargado sendo certo que o mesmo deixou transcorrer
o prazo de que dispunha para fazê-lo e por conseguinte o Tribunal não pode
determinar a válida junção dos mesmos, já que o facto a que se predispunha
provar, compete unicamente às partes interessadas” e que “não se pode
manter a junção desses documentos”. Decidiu-se, por fim, que, “Em face
do exposto após contraditório das partes e reformando o despacho proferido na
audiência de 14 de Março de 2016, não se admite a junção dos documentos aí
determinada, devendo os mesmos serem devolvidos à respectiva parte, após o
trânsito em julgado deste despacho; E por intempestividade, indeferem-se as
diligências requeridas pelo embargante AAA, assim como a junção do documento
anexo ao requerimento de 21 de Abril de 2016, o qual deverá ser devolvido à respectiva
parte, após trânsito em julgado do presente despacho.”
Será isto admissível?
O artigo 613.º estabelece que, proferida a sentença, fica
imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa
(n.º 1), que é lícito, porém, ao juiz rectificar erros materiais, suprir
nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes (n.º 2) e que
o disposto nos números anteriores, bem como nos
artigos subsequentes, se aplica, com as necessárias adaptações, aos despachos
(n.º 3). Com interesse para a situação em análise, resulta deste artigo que,
uma vez proferido um despacho, o tribunal que o proferiu só poderá alterá-lo
para rectificar erros materiais, suprir nulidades ou reformá-lo, nos
termos dos artigos seguintes.
Como vimos, o tribunal recorrido qualificou
a alteração, através do despacho recorrido, do que decidira na sessão da
audiência final que teve lugar no dia 14.03.2016, como uma reforma da decisão. Porém,
o artigo 616.º não dá cobertura legal à descrita actuação do tribunal
recorrido.
Desde logo, nenhuma das partes requereu a reforma do despacho de
14.03.2016. Nomeadamente, não foi essa a posição assumida pelo embargado BBB quando exerceu o contraditório. Em parte
alguma da peça processual mediante a qual este embargado se pronunciou sobre os
documentos em causa é requerida a reforma daquele despacho nos termos do artigo
616.º. Ora, resulta deste artigo que, em qualquer das hipóteses nele previstas,
a reforma só é admissível na sequência de requerimento das partes.
Por outro lado, a situação descrita (decidir
que os documentos apresentados pelo embargado CCC não
ficam nos autos depois de se ter ordenado a sua junção a estes últimos) não se
enquadra, nem no n.º 1, nem no n.º 2 do artigo 616.º.
Não se enquadra no n.º 1 porque este apenas prevê a reforma
quanto a custas e multa.
Não se enquadra no n.º 2 por duas razões. Por um lado, porque
este exige que a decisão que se pretende alterar seja irrecorrível, o que não
era o caso do despacho de 14.03.2016. Por outro lado, porque a situação que
vimos analisando não se traduziu, nem num “manifesto lapso do juiz”, nem num
erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos,
nem numa alteração imposta por documentos ou outro meio de prova plena
constantes dos autos.
Do que, na realidade, se tratou foi de o tribunal recorrido ter
feito interpretações diversas do artigo 616.º em dois momentos distintos, que o
levaram a decidir, primeiro num sentido e, mais tarde, em sentido oposto. Ora,
isto não constitui fundamento de reforma do despacho de 14.03.2016. Aliás, o
despacho recorrido nem sequer precisa o seu enquadramento em alguma das normas
constantes do artigo 616.º, limitando-se a qualificar a alteração da sua
decisão anterior como “reforma”, sem mais.
Sendo assim, é forçoso concluir que o despacho recorrido violou
o princípio do esgotamento do poder jurisdicional, consagrado no n.º 1 do
artigo 613.º. O despacho proferido em 14.03.2016, bem ou mal (não nos compete
dizê-lo, pois o presente recurso não o tem por objecto), ordenou a junção aos
autos dos documentos apresentados pelo embargado CCC, pelo que, por força
daquela norma, estava vedado, ao tribunal recorrido, voltar atrás e decidir
precisamente o contrário.
O despacho recorrido deverá, pois, ser revogado, mantendo-se nos
autos os documentos cuja junção foi ordenada no despacho proferido em
14.03.2016. Em face de tal revogação, o tribunal recorrido deverá reapreciar os
requerimentos do recorrente que indeferiu na sequência de ter ordenado a
devolução dos referidos documentos ao recorrente.
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Decisão:
Acordam
os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, revogando
o despacho recorrido e determinando que o tribunal recorrido proceda em
conformidade com o acima exposto.
Custas a cargo da parte com elas onerada a final.
Notifique.
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Évora, 26.04.2018
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.ª adjunta)
(2.º adjunto)
[1] Diploma ao qual
pertencem todas as normas doravante referenciadas.