quinta-feira, 23 de maio de 2024

Acórdão da Relação de Évora de 09.05.2024

Processo n.º 6713/22.9T8STB.E1

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Sumário:

1 – A admissibilidade da dedução de reconvenção depende da verificação de um dos pressupostos de natureza substancial ou factores de conexão estabelecidos nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 266.º do CPC.

2 – O poder-dever de gestão processual, a garantia constitucional de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva, o princípio da economia processual e a existência de outros litígios entre as partes da acção de divisão de coisa comum não afastam a exigência referida em 1.

3 – Apenas há lugar para a ponderação da verificação do pressuposto da compatibilidade processual entre o pedido do autor e o pedido reconvencional, nos termos do n.º 3 do artigo 266.º do CPC, se se verificar algum dos factores de conexão estabelecidos no n.º 2.

4 – O n.º 3 do artigo 266.º do CPC não constitui uma via alternativa ao n.º 2 para a admissão de reconvenção.

5 – Não se verifica o factor de conexão estabelecido no artigo 266.º, n.º 2, al. c), do CPC, se, em acção com processo especial de divisão de coisa comum, a ré deduz um pedido reconvencional de reconhecimento de um direito de crédito, contra o autor, correspondente a metade das quantias que alega ter pago para amortização do empréstimo contraído com vista à aquisição da fracção autónoma a dividir, bem como a título de despesas de condomínio, nos seguintes termos: 1) em caso de adjudicação da fracção à ré, o montante do crédito ser deduzido no valor de eventuais tornas a pagar ao autor; 2) Na hipótese de a fracção ser adjudicada ao autor, o montante do crédito acrescer às tornas que a ré tiver direito a receber; 3) Na hipótese de o prédio ser vendido a terceiro, o montante do crédito acrescer ao valor que a ré tiver direito a receber.

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Autor/recorrido:

- AAA.

Ré/recorrente:

- BBB.

Pedido do autor:

- «(…) deve a presente ação ser julgada procedente por provada e, em consequência, sendo indivisível o 3º andar Esqº, correspondente à fração autónoma “G” do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, e um lugar demarcado na cave com o nº 3 para parqueamento situado na Rua (…), lote (…), da freguesia e concelho de (…), descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…) da freguesia e concelho de Setúbal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), da citada freguesia e concelho, deve proceder-se à adjudicação mediante o pagamento de tornas ao comproprietário a quem não for adjudicado ou que não o arremate, ou à venda do mesmo a terceiros com a respetiva repartição do valor da venda pelos seus comproprietários em igual proporção, nos termos do artigo 925º do CPC.»

Pedido reconvencional:

- «Que sejam reconhecidos os créditos da ora R. sobre o A. no valor de € 28.683,53 acrescido de todos os valores que a ora R. pagar até ao final do processo, e que, em caso de adjudicação do imóvel à R., os mesmos sejam deduzidos no valor de eventuais tornas a pagar ao A.

Ou;

Que sejam reconhecidos os créditos da ora R. sobre o A. no valor de €28.683,53 acrescido de todos os valores que a ora R. pagar até ao final do processo, e que, em caso de adjudicação do imóvel ao A., o mesmo seja condenado no respetivo pagamento à R.

Ou;

Que sejam reconhecidos os créditos da ora R. sobre o A. no valor de € 28.683,53 acrescido de todos os valores que a ora R. pagar até ao final do processo, devendo, no caso de venda a terceiro do imóvel o A. ser condenado a pagar à ora R. o montante de que esta seja credora à data da venda, ainda que a quota parte do produto da venda do imóvel que caiba ao A. não seja suficiente para cobrir o valor em dívida.»

Decisão recorrida:

- Não admitiu a reconvenção, com fundamento na não verificação de qualquer dos pressupostos estabelecidos no artigo 266.º, n.º 2, do CPC.

Conclusões do recurso:

A. A Recorrente deduziu pedido reconvencional com a sua contestação pedindo o reconhecimento e posterior compensação de créditos que detém sobre o A., derivados dos pagamentos que tem vindo a efetuar referentes ao mútuo bancário contraído pelos ex-unidos de facto, bem como das despesas de condomínio do imóvel em causa, pagamentos esses que tem vindo a efetuar às suas expensas desde 2011.

B. Por despacho datado de 27/11/2023 o tribunal a quo recusou a apreciação do pedido reconvencional deduzido pela Recorrente, fundamentando o mesmo na falta de enquadramento em alguma das alíneas do n.º 2 artigo 266.º do CPC.

C. A interpretação do artigo 266.º do CPC feita apelo tribunal a quo é errada e incompleta pois desconsidera o n.º 3 do mesmo artigo, que remete para os n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º do CPC, prevendo a possibilidade de admissão da reconvenção contando o que as formas de processo dos pedidos não sejam manifestamente incompatíveis e exista interesse atendível na apreciação conjunta dos mesmos.

D. O processo especial de divisão de coisa comum e o processo comum são perfeitamente compatíveis, estando a convolação do primeiro no último prevista no n.º 3 do artigo 926.º do CPC, nos casos aí previstos.

E. Existe, de forma clara, um interesse atendível em que a questão de créditos relativos a mútuo bancário contraído para aquisição do imóvel, bem como despesas do condomínio, sejam apreciadas no processo de divisão de coisa comum para a boa composição do litígio e para o respeito pela economia processual.

F. Em boa verdade, tais créditos radicam na “aferição e cômputo dos encargos com a coisa comum e deriva[m] da contitularidade ou compropriedade do imóvel cuja divisão se peticiona, no sentido de bulir com a justa composição do litígio subjacente à peticionada divisão da coisa comum, interferindo no âmago desta”.

G. Assim, preenchidos os requisitos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º do CPP, dúvidas não restam que não existe qualquer obstáculo à admissão do pedido reconvencional da recorrida, posição sufragada pela maioria da jurisprudência.

H. Esteve mal o tribunal a quo ao decidir no douto despacho pela não apreciação do pedido reconvencional deduzido pela Recorrente, fazendo uma interpretação e aplicação erradas e incompletas do artigo 266.º do CPC, e eximindo-se de aplicar os n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º do CPC.

Questão a decidir:

- Saber se, nesta acção com processo especial de divisão de coisa comum, é admissível que a ré/recorrente deduza um pedido reconvencional de reconhecimento de um direito de crédito, contra o autor/recorrido, correspondente a metade das quantias que alega ter pago para amortização do empréstimo contraído com vista à aquisição do prédio a dividir, acrescida de metade do valor das contribuições para o condomínio que também alega ter pago, nos seguintes termos: 1) Na hipótese de o prédio lhe ser adjudicado, o direito de crédito que invoca deverá ser compensado com o direito de crédito que o autor/recorrido vier a adquirir a título de tornas; 2) Na hipótese de o prédio ser adjudicado ao autor/recorrido, aquele direito de crédito deverá acrescer às tornas que a ré tiver direito a receber; 3) Na hipótese de o prédio ser vendido a terceiro, aquele direito de crédito deverá acrescer ao valor que a ré/recorrente tiver direito a receber.

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A questão da admissibilidade da dedução de reconvenção em acção com processo especial de divisão de coisa comum tem vindo a ser objecto de acesa discussão na jurisprudência.

Tal discussão desenvolve-se em dois planos:

1.º – O da verificação de um dos pressupostos de natureza substancial, material ou objectiva previstos no n.º 2 do artigo 266.º do CPC (diploma ao qual pertencem as normas legais doravante citadas sem indicação da sua proveniência);

2.º – O da verificação do pressuposto da compatibilidade processual entre a acção de divisão de coisa comum e o pedido reconvencional, previsto no n.º 3 do mesmo artigo.

Estes dois planos da discussão aparecem, frequentemente, insuficientemente distinguidos, quando não mesmo confundidos. Há que mantê-los claramente separados, para que a discussão possa ser rigorosa.

Realce-se, por outro lado, que apenas perante cada caso concreto é possível dar resposta à questão de saber se a reconvenção é admissível. Esta observação tem particular acuidade no domínio da discussão sobre a compatibilidade processual entre a acção de divisão de coisa comum e o pedido reconvencional, onde, por vezes, nos deparamos com tomadas de posição peremptórias no sentido da admissibilidade deste último sem se atentar devidamente na totalidade das circunstâncias relevantes à luz do disposto no n.º 3 do artigo 266.º e nos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º.

A jurisprudência diverge em qualquer dos dois referidos planos de discussão. Mais útil, para a fundamentação deste acórdão, que recensear exaustivamente as decisões jurisprudenciais proferidas em cada um dos sentidos, é analisar os tópicos em torno dos quais a discussão se vem desenvolvendo que possam ter interesse para a decisão do presente recurso. É o que faremos em seguida.

1 – Pressupostos da admissibilidade de reconvenção:

Os pressupostos da admissibilidade da dedução de reconvenção encontram-se previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 266.º.

O n.º 2 estabelece, em alternativa, vários pressupostos de natureza substancial, material ou objectiva, que garantem a existência de «uma certa conexão entre o pedido do autor e o pedido reconvencional»[1], ou seja, entre as duas acções cruzadas que, por efeito da dedução da reconvenção, passam a existir no mesmo processo[2]. A admissibilidade irrestrita da dedução de reconvenção «poderia redundar em grave perturbação da regular e ordenada tramitação do processo»[3]. «Se ao exercício do poder reconvencional não fossem postos quaisquer entraves, resultariam graves inconvenientes para o autor, ocasionados sobretudo pelo retardamento da concessão da tutela judiciária por ele invocada. De facto, a reconvenção incondicionada abriria as portas a quaisquer pedidos formulados pelo réu contra o autor, pedidos de que o tribunal teria de conhecer concomitantemente com o formulado por este, que veria assim, o processo marchar morosamente, talvez com inevitáveis e irreparáveis repercussões sobre a sua esfera jurídica.»[4]

O n.º 3, por seu turno, estabelece que não é admissível a reconvenção quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações.

Como acima referimos, é imperativo que a discussão sobre a verificação, por um lado, dos pressupostos de natureza material e, por outro, do pressuposto de natureza processual, distinga claramente uns e outro. Em especial, que a discussão sobre a verificação dos pressupostos de natureza material não seja contaminada por argumentos que apenas têm cabimento no plano da discussão sobre a verificação do pressuposto de natureza processual.

2 – Articulação entre os pressupostos materiais e processuais da reconvenção:

De um ponto de vista lógico, a primeira operação a que deve proceder o julgador que seja confrontado com um pedido reconvencional é verificar se, entre este e o(s) pedido(s) do autor, existe uma das conexões previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 266.º.

Esta operação é imprescindível. O julgador não pode omiti-la e passar imediatamente a analisar se se verifica o pressuposto da compatibilidade processual, previsto no n.º 3 do mesmo artigo, para, respondendo positivamente a essa questão, concluir, sem mais, que a reconvenção é admissível. A aplicabilidade da restrição, de natureza processual, estabelecida no n.º 3, pressupõe que se verifica um dos pressupostos substanciais previstos nas diversas alíneas do n.º 2. Se nenhum destes pressupostos substanciais se verificar, a questão da compatibilidade processual entre os pedidos do autor e do réu nem sequer se coloca. «Para que a reconvenção seja admissível, terá de se verificar algum dos factores de conexão com o pedido do autor indicados no art. 266-2 e não poderá verificar-se nenhum dos requisitos negativos de compatibilidade processual a que se refere o art. 266-3, sem prejuízo do disposto no art. 37, n.ºs 2 e 3.»[5] (o sublinhado é da nossa autoria).

No mesmo sentido, escreve-se que «o objecto processual adquire alguma rigidez desde o momento da propositura da acção. Apesar de se admitirem alterações supervenientes, estas dependem da verificação de conexões com o objecto tal como inicialmente conformado. (…) A admissibilidade do pedido reconvencional depende da verificação de um dos factores de conexão objectiva previstos no art. 274.º/2 do CPC.»[6]

O n.º 3 não constitui, pois, uma via alternativa ao n.º 2 para a admissão da reconvenção. Ao contrário, constitui um pressuposto adicional àquele que decorre do n.º 2.

3 – Poder-dever de gestão processual:

Na jurisprudência que considera admissível a dedução de pedido reconvencional na acção de divisão de coisa comum, é recorrente o apelo ao poder-dever de gestão processual. Embora válido, este argumento parece ser, por vezes, utilizado para além das suas forças. Importa, por isso, circunscrever o seu alcance com rigor.

Para enunciar este argumento, recorremos ao acórdão mais citado na jurisprudência produzida (inclusivamente no Supremo Tribunal de Justiça) sobre o tema da admissibilidade da dedução de reconvenção em acção de divisão de coisa comum: o acórdão da Relação de Évora de 17.01.2019 (Albertina Pedroso). Transcrevemos a parte relevante: «(…) compete ao juiz adoptar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a almejada justa-composição do litígio em prazo razoável. Neste sentido, tal poder/dever de gestão processual permite a admissibilidade da reconvenção, em circunstâncias como as da presente lide –, sendo esta a única interpretação que se harmoniza com os princípios que regem a lei processual civil, cada vez mais arredados de visões de pendor marcadamente formalista em detrimento da busca da garantia de uma efectiva composição do litígio que reponha a paz social quebrada com as visões antagónicas que as partes têm do caso que as divide e que são o fundamento da demanda. Deste modo, fazemos nossas as judiciosas considerações tecidas no Ac. TRG de 20.09.2014, para concluir que “o interesse em discutir e decidir todas as questões que, para além da divisão, envolvem os prédios dividendos, (…) evitando dessa forma que ele se veja compelido a recorrer à propositura de uma outra acção para ver o seu direito reconhecido, para além de não beliscar qualquer daqueles princípios estruturantes, assume indiscutível relevância e que justifica plenamente a admissão da reconvenção. E o próprio processo especial de divisão de coisa comum contém em si os mecanismos adequados para adaptar o processo à cumulação autorizada bastando, para o efeito, seguir o “iter” inverso ao do despacho recorrido: em vez de decidir em primeiro lugar da possibilidade de proferir logo decisão sobre as questões suscitadas pelo pedido de divisão para, em face disso, concluir depois pela incompatibilidade de tramitação, começar por, reconhecendo o interesse relevante na admissão da reconvenção e, verificada a impossibilidade de conhecer sumariamente das questões suscitadas, mandar seguir os termos, subsequentes à contestação, do processo comum. Parece-nos, assim, que os princípios subjacentes àqueles poderes/deveres de gestão e adequação processual atribuídos ao juiz impõem que, acção de divisão de coisa comum, se for deduzida reconvenção em que o demandado formule pedido de indemnização por benfeitorias feitas no prédio dividendo, deverá a reconvenção ser admitida, ao abrigo do disposto nos artigos 266º, n.º 3 e 37º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Civil ordenando-se, em consequência, que o processo siga os termos, subsequentes à contestação, do processo comum.”»

No recurso que este acórdão decidiu, estava em discussão a verificação, não de uma das conexões previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 266.º, mas, apenas, do pressuposto previsto no n.º 3 do mesmo artigo. Ou seja, estava unicamente em causa a questão da compatibilidade da tramitação requerida pela dedução de reconvenção com a daquela concreta acção de divisão de coisa comum. A esta questão, o colectivo que proferiu o acórdão respondeu positivamente, tendo sido nesse contexto que invocou o poder-dever de gestão processual como argumento. Nunca se afirmou que a consagração, pelo artigo 6.º, do dever de gestão processual, permite, ao julgador, dispensar a verificação de um dos factores de conexão previstos no n.º 2 do artigo 266.º para admitir uma reconvenção deduzida em acção de divisão de coisa comum.

Nesta medida, acompanhamos, nomeadamente, a manifestação de preferência de uma visão do processo civil que propicie uma efectiva composição dos litígios em detrimento de «visões de pendor marcadamente formalista». Contudo, a proclamação desta posição de princípio está longe de resolver todos os problemas suscitados pela dedução de reconvenção em acção de divisão de coisa comum. Poderá contribuir para resolver a questão da adaptação da tramitação desta acção ao conhecimento de um pedido reconvencional, mas não dispensa a verificação de um dos factores de conexão previstos no n.º 2 do artigo 266.º para que tal pedido possa ser admitido. O poder-dever de gestão processual não tem esse alcance. Não o tem no processo especial de divisão de coisa comum, como o não tem no processo comum.

4 – Garantia constitucional de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva:

Outro tópico frequentemente convocado pela jurisprudência que considera admissível a dedução de pedido reconvencional na acção de divisão de coisa comum é a garantia constitucional de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva, consagrada no artigo 20.º da Constituição, cujo n.º 1 estabelece que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

Esta garantia é concretizada pelo artigo 2.º nos seguintes termos: a protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar (n.º 1); a todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção (n.º 2).

Não nos parece curial o recurso a este argumento no contexto da discussão sobre a admissibilidade da dedução de reconvenção na acção com processo especial de divisão de coisa comum. A garantia de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva não impõe que os direitos de crédito de que o réu eventualmente seja titular contra o autor possam ser exercidos, por via reconvencional, na referida acção. Desde que tais direitos possam ser eficazmente exercidos em acção autónoma proposta contra o ali demandante – e não vemos por que razão tal não seja possível –, aquela garantia constitucional ficará salvaguardada.

Seja como for, aquilo que, seguramente, a garantia constitucional de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva não permite, e muito menos impõe, é a admissão da dedução de reconvenção sem que se verifique um dos factores de conexão previstos no n.º 2 do artigo 266.º.

5 – Economia processual:

Na fundamentação de decisões que admitem a dedução de reconvenção em acções de divisão de coisa comum, é também habitual o apelo ao princípio da economia processual, de acordo com o qual «O resultado processual deve ser atingido com a maior economia de meios», economia de meios esta que «exige que cada processo, por um lado, resolva o maior número de litígios (economia de processos) e, por outro, comporte só os atos e formalidades indispensáveis ou úteis (economia de atos e formalidades)»[7].

Este princípio, cuja validade é indiscutível, «explica as disposições que permitem o litisconsórcio inicial, a cumulação de pedidos, o pedido subsidiário, a ampliação do pedido e da causa de pedir, a reconvenção e os incidentes de intervenção de terceiros»[8]. Ou seja, a lei concretiza o princípio da economia processual através dos referidos regimes jurídicos, sendo um deles o da reconvenção, em particular as normas que estabelecem os termos em que esta é admissível.

Partindo do princípio de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, princípio este que o n.º 3 do artigo 9.º do CC impõe ao intérprete, torna-se evidente que este não pode rotular os pressupostos materiais da reconvenção, constantes das diversas alíneas do n.º 2 do artigo 266.º, como obstáculos à prossecução do princípio da economia processual. Muito pelo contrário, os limites em que a lei admite a reconvenção têm de ser considerados coincidentes com aqueles em que a dedução desta proporciona uma efectiva economia de meios. Para lá desses limites, a admissibilidade da reconvenção não proporcionaria tal economia de meios e, mais do que isso, em muitos casos constituiria um factor de perturbação da regular e ordenada tramitação do processo, com graves inconvenientes para o autor, ocasionados sobretudo pelo retardamento da concessão da tutela judiciária por ele invocada, como vimos em 1. As opções do legislador impõem-se ao intérprete.

É fácil imaginar situações desta natureza. Por exemplo, se alguém propuser uma acção em que peça a demarcação de um prédio contra o proprietário de um prédio confinante, a admissão de um pedido reconvencional de condenação do autor a pagar uma indemnização por danos resultantes da invasão do prédio do réu por um cavalo àquele pertencente não proporcionará qualquer economia de meios e, em vez disso, apenas constituirá um factor de perturbação do processo. Apesar de a admissão da reconvenção abrir a porta à resolução de dois litígios no mesmo processo, desse facto não resultaria qualquer ganho. Em vez disso, a perturbação que resultaria da discussão, em simultâneo, de duas situações (dois pedaços de vida, em linguagem cara aos penalistas) que nada têm a ver uma com a outra, é evidente.

Tudo isto para concluir que é errado considerar que, quantos mais litígios forem resolvidos por processo, maiores serão os ganhos em matéria de economia de meios. Se assim fosse, não faria sentido a lei estabelecer limites à dedução de reconvenção. O réu deveria, então, poder deduzir todos os pedidos reconvencionais que entendesse contra o autor, sem qualquer outra conexão entre si e com o pedido deste que não fosse a coincidência de sujeitos. E o autor, por seu turno, deveria poder reagir à reconvenção formulando novos pedidos contra o réu sem qualquer restrição. Assim se possibilitaria a liquidação, através de um único processo, de todos os litígios, todas as «contas» entre duas pessoas.

O absurdo de tal objectivo é evidente. Ainda que duas pessoas, singulares ou colectivas, mantenham mais de um litígio entre si, não há, em princípio, vantagem em dirimir todos eles num único processo. Fazê-lo, facilmente conduziria a que a nenhum desses litígios fosse dirimido em tempo útil, devido ao «monstro processual» que se teria permitido criar. Do ponto de vista da gestão processual, isso redundaria num absoluto desastre. Melhor teria sido resolver cada litígio através de um processo mais simples e mais célere. Aquilo que se passa no processo penal, com a conhecida, mas nunca resolvida, problemática dos «mega-processos», resultante de uma pouco criteriosa aplicação das normas sobre conexão de processos (artigos 24.º e 25.º do CPP), ilustra bem os riscos gerados por um excessivo alargamento do objecto do processo.

Daí as apertadas limitações legais à dedução de reconvenção, que, elas próprias, encontram suporte no princípio da economia processual. «Economia judicial que aqui está dirigida para dentro do processo – quer-se um processo célere ou vários processos céleres em detrimento de um único processo moroso. Assim a nossa ordem jurídica adoptou, desde 1939, o modelo da reconvenção defesa-ataque, exigindo uma conexão entre as duas acções. Nesta linha de economia processual, a conexão exigida tem de ser forte, não se bastando, no entendimento da doutrina, com uma ténue ligação entre os dois objectos processuais. Assim se explicam as opções restritivas vigentes no nosso ordenamento jurídico quanto à reconvenção.»[9]

No mesmo sentido, afirmava-se, em 1985, perante dados legislativos que, no tocante aos pressupostos materiais da reconvenção, não diferiam substancialmente dos actuais, «É princípio pragmático do processo que a cada acção deve corresponder um só pedido, isto para se evitar perturbações no respectivo desenvolvimento. Por isso mesmo a cumulação está sujeita a certos requisitos, e se é assim com os pedidos do autor, igual tendência restritiva deve haver para os pedidos do réu em reconvenção. Aliás, com mais razão ainda. Se ao réu fosse permitido fazer livremente pedidos na contestação, haveria mais complicação, mais demora, mais formalidades, e só mais tarde o autor veria efectivado o seu direito. A reconvenção é, precisamente por isso e de algum modo, uma figura excepcional: as disposições que a regulam são, necessariamente, de interpretação restritiva.»[10]

Aqui chegados, podemos concluir que o princípio da economia processual em caso algum poderá justificar a preterição dos pressupostos materiais da reconvenção. Estes traçam o limite a partir do qual o legislador considera que a admissibilidade de ampliação do objecto do processo através da dedução de reconvenção não proporciona ganhos ao nível da economia processual e, em vez disso, gera uma perturbação indesejável na discussão e julgamento da causa.

Podemos, igualmente, concluir que, mesmo no âmbito da discussão sobre a verificação do pressuposto da compatibilidade processual entre a acção e a reconvenção, previsto no n.º 3 do artigo 266.º, se impõe uma cuidadosa ponderação, em cada caso concreto, dos ganhos e perdas resultantes da ampliação do objecto do processo.

6 – A acção de divisão de coisa comum e o litígio:

Um argumento recorrente na discussão sobre a admissibilidade da dedução de reconvenção na acção de divisão de coisa comum é o de que, sem aquela, esta passa ao lado do verdadeiro litígio existente entre as partes. Mais concretamente, afirma-se que, na acção de divisão de coisa comum adquirida pelas partes enquanto mantiveram uma união de facto entre si, o verdadeiro litígio é, em última instância, a liquidação do património constituído na pendência daquela união, o que terá de se reflectir na delimitação do objecto do processo, cuja ampliação deverá ser permitida através da admissão da reconvenção.

Divisamos, neste argumento, dois problemas. Por um lado, a substituição do conceito técnico-jurídico por uma acepção vulgar de litígio. Por outro, leva-nos longe demais.

Juridicamente, haverá tantos litígios entre duas pessoas quantos os conflitos existentes entre uma e outra sobre determinados bens. Na acepção corrente da palavra, essas duas pessoas estarão «em litígio». Juridicamente, verificar-se-á um litígio por cada concreto conflito de vontades – que tem, por detrás, um objectivo conflito de interesses – que se verifique sobre cada bem jurídico.

Duas pessoas que hajam vivido uma com a outra em união de facto podem encontrar-se «em litígio», no sentido corrente ou vulgar do termo, em diversas frentes: na contitularidade do direito de propriedade sobre bens, móveis e/ou imóveis, que tenham adquirido em comum, na vinculação a obrigações assumidas em comum ou por uma delas no interesse de ambas e/ou de filhos que tenham em comum, no acerto de contas por despesas suportadas por cada uma delas nos vários domínios da vida familiar (habitação, educação dos filhos, mobilidade dos membros do agregado familiar), no exercício das responsabilidades parentais relativas a filhos menores em comum, que envolve questões de natureza patrimonial, no exercício de seus direitos sociais se tiverem constituído uma sociedade familiar para o exercício de uma actividade económica, etc.. Podem, inclusivamente, reclamar indemnizações um do outro pela prática de crimes ocorridos no seio familiar, maxime de violência doméstica. Essas mesmas pessoas podem também encontrar-se em litígio sobre questões surgidas posteriormente à cessação da união de facto mas com esta relacionadas, como o pagamento de despesas relacionadas com bens adquiridos em comum ou a utilização destes por apenas uma delas.

Cada uma destas situações poderá dar origem a um concreto litígio, no rigoroso sentido técnico-jurídico do termo, que não pode ser menorizado com o argumento de que, ao lado, existe um outro litígio que deve ser considerado mais importante e, por isso, é «o verdadeiro litígio». Tal abordagem do problema não é rigorosa e não proporciona qualquer vantagem para a sua resolução.

Esta última observação conduz-nos à segunda objecção que o argumento que agora analisamos nos suscita. Pretender que a acção de divisão de coisa comum, cujo objecto típico se circunscreve à justa composição do litígio decorrente de uma situação de compropriedade sobre determinado bem, atraia os restantes litígios que existam entre as partes, de forma a nela resolver todos eles (o que equivaleria a resolver o supra referido «litígio global»), facilmente conduziria a resultados desastrosos sob o ponto de vista da gestão processual, gerando grave perturbação do processo e pondo seriamente risco a desejável celeridade deste. Com o pretexto de se pretender tudo resolver no mesmo processo (a pretensa economia de processos referida em 5), acabar-se-ia por nada resolver em tempo útil. E, no final, a acção de divisão de coisa comum só residualmente serviria para prosseguir o seu fim típico.

Confrontada com situações como aquela que acabámos de hipotisar, alguma jurisprudência vai traçando limites ao poder atractivo da acção de divisão de coisa comum relativamente a outros litígios que se verifiquem entre as partes. Assim, no acórdão da Relação de Lisboa de 07.06.2018 (Jorge Leal), não foi admitido um pedido reconvencional de divisão de outros dois imóveis de que as partes eram comproprietárias. No acórdão da Relação de Évora de 29.04.2021 (Cristina Dá Mesquita), entendeu-se que «quando o encontro entre o “deve” e o “haver” entre as partes não se cingir à contribuição de cada um para a amortização do empréstimo e encargos inerentes, concretamente quando a reconvinda invoca também direitos de crédito sobre o reconvinte, emergentes quer da sua contribuição para as restantes despesas do agregado familiar de ambos, quer do uso exclusivo que o reconvinte faz do imóvel objeto da divisão, desde a data da separação, a controvérsia que tem por objeto o “deve e haver” de cada um dos comproprietários relativamente ao outro (incluindo, portanto, os alegados créditos do reconvinte emergentes da amortização do empréstimo, seguros inerentes e juros) deve ser decidida em ação de condenação em que o membro da união de facto que se considere empobrecido relativamente a bens em cuja aquisição participou peça a condenação do outro a reembolsá-lo com fundamento no enriquecimento sem causa, não se admitindo, neste caso, o pedido reconvencional.» No acórdão da Relação de Lisboa de 24.03.2022 (Arlindo Crua), circunscreveu-se a admissão de reconvenção à «aferição e cômputo dos encargos com a coisa comum (…) no sentido de bulir com a justa composição do litígio subjacente à peticionada divisão da coisa comum, interferindo no âmago desta», excluindo-se «quaisquer outros direitos creditícios que o reconvinte reivindique junto do reconvindo, alheios àquele cômputo dos encargos com a coisa comum dividenda, e sem terem qualquer interferência ou reflexo na reivindicada divisão da coisa comum.»

Fica, assim, patente a fluidez da questão que vimos analisando. Se se admitir a entrada, por via da dedução de reconvenção, da questão da contribuição de cada parte para a aquisição da coisa cuja divisão é pretendida, muito dificilmente se conseguirá fechar a porta a outras questões pendentes entre as mesmas partes. E, na medida em que isso seja feito, estar-se-á a negar a finalidade visada com a admissão de reconvenção relativamente à contribuição de cada parte para a aquisição da coisa cuja divisão é pretendida, que é a resolução da «totalidade do litígio» entre as partes. A entrada, na acção de divisão de coisa comum, da questão da contribuição de cada parte para a aquisição daquela, deixando de fora todas as restantes contas pendentes, acaba por frustrar aquela finalidade e gerar distorções agravadas no acerto global de contas entre as partes.

Concluindo este ponto, não faz sentido alargar o objecto da acção de divisão de coisa comum, através da admissão de reconvenção, com o fito de, por essa forma, resolver «a totalidade do litígio», ou «o verdadeiro litígio» entre as partes. A perturbação processual daí resultante é inevitável, com perdas ao nível da celeridade e da simplicidade do processo, e aquele objectivo não passará, as mais das vezes, de uma miragem, pois dificilmente as contas a acertar entre as partes, nomeadamente quando se trate de pessoas que viveram uma com a outra em união de facto durante um longo período, se resumirão à contribuição de cada uma delas para a aquisição da coisa a dividir.

7 – Ponto da situação:

Aqui chegados, podemos concluir que:

a) Se não se verificar um dos factores de conexão ou pressupostos materiais previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 266.º, a reconvenção não será admissível, seja na acção com processo especial de divisão de coisa comum, seja em qualquer outra forma de processo;

b) Os argumentos que analisámos nos pontos 3 a 6 não colocam em causa a conclusão anterior.

Podemos ainda concluir, embora sem interesse directo para a decisão do recurso, que, mesmo no âmbito da discussão sobre a verificação do pressuposto da compatibilidade processual entre a acção de divisão de coisa comum e o pedido reconvencional, previsto no n.º 3 do artigo 266.º, a valia dos argumentos que analisámos nos pontos 3 a 6 é limitada ou, em alguns casos, nula.

Acompanhamos, assim, o entendimento adoptado na seguinte jurisprudência:

- Acórdão da Relação de Coimbra de 12.03.2013 (Sílvia Pires);

- Acórdão da Relação de Évora de 22.03.2018 (Mário Coelho);

- Acórdão da Relação de Lisboa de 25.06.2020 (Teresa Sandiães);

- Acórdão da Relação de Coimbra de 03.11.2020 (Freitas Neto);

- Acórdão da Relação de Lisboa de 07.01.2021 (Gabriela de Fátima Marques);

- Acórdão da Relação do Porto de 26.01.2021 (Anabela Dias da Silva).

O relator deste acórdão também tomou, anteriormente, posição idêntica, em acórdão desta Relação de 15.09.2022.

8 – Verificação dos pressupostos materiais previstos no n.º 2 do artigo 266.º:

Começamos por salientar que a própria recorrente parece reconhecer que nenhum dos pressupostos materiais da admissibilidade de reconvenção se verifica. Com efeito, a recorrente não invoca qualquer desses pressupostos e, em vez disso, critica o tribunal a quo por exigir a verificação de um deles como condição de admissibilidade da reconvenção.

Citamos, a este propósito, os seguintes trechos das alegações de recurso:

«Errou, logo ao início, o tribunal a quo ao analisar o teor do artigo 266.º do CPC e a sua aplicação ao caso sub judice. Isto porque, se bem atentarmos ao douto despacho recorrido, o mesmo não excogita a possibilidade de o pedido reconvencional ser admissível pela via dos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º, aplicáveis ex vi do n.º 3 do artigo 266.º, limitando-se a analisar a aplicação de cada uma das alíneas do n.º 2 do artigo 266.º.»

«(…) o tribunal a quo fez uma interpretação e aplicação erradas e incompletas do artigo 266.º do Código de Processo Civil, deixando de fora aquele que se crê ser o caminho a seguir - os n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º - e pelo qual se demonstrará ser admissível o pedido reconvencional formulado pela Recorrente.»

«Ora a forma de processo especial de divisão de coisa comum não é manifestamente incompatível com a forma de processo comum (…)»

«Assim, preenchidos os requisitos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º do CPP, dúvidas não restam que não existe qualquer obstáculo à admissão do pedido reconvencional da recorrida, que apenas pretende ver os seus créditos sobre o autor reconhecidos e compensados, à posteriori, na fase executiva do processo de divisão de coisa comum.»

A esta argumentação, responde o recorrido nos seguintes termos:

«(…) a Recorrente parece querer afirmar que a admissibilidade da reconvenção pode ser feita única e exclusivamente mediante a aplicação do artigo 37.º, n.ºs 2 e 3 ex vi artigo 266.º, n.º 3 do CPC.

Ora, ignora a Recorrente, por completo, o disposto no artigo 266.º, n.º 2 do CPC que estabelece os fatores de conexão com o pedido do autor que legitimam o recurso pelo Réu à reconvenção, sob pena de se admitir reconvenções cujo teor são manifestamente incompatíveis com o objeto do processo.»

«Sendo tais requisitos taxativos, a análise da compatibilidade processual apenas terá relevância e será pertinente quando se verifique um fator de conexão material com o pedido do autor, por razões de celeridade e economia processual.»

A razão está do lado do recorrido, como resulta do que afirmámos nos pontos 1, 2 e 7. O n.º 3 do artigo 266.º não constitui uma via alternativa ao n.º 2 para a admissão da reconvenção. Se não se verificar um dos factores de conexão previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 266.º, a reconvenção não será admissível.

Não obstante a posição da recorrente ser a que descrevemos, analisemos se se verifica algum dos factores de conexão entre a acção e a reconvenção que o n.º 2 do artigo 266.º estabelece.

Não se verifica o factor de conexão previsto na al. a) porquanto o pedido reconvencional formulado pela recorrente não emerge do facto que serve de fundamento à acção ou à defesa. Como acertadamente se afirma na decisão recorrida, «o facto jurídico que serve de fundamento à ação do Autor é a situação de compropriedade, que não é contestada pela Ré na sua defesa.»

Não se verifica o factor de conexão previsto na al. b) porquanto o pedido do recorrente não é de entrega de uma coisa.

Não se verifica o factor de conexão previsto na al. d) porquanto a recorrente não pretende, por via do pedido reconvencional, obter, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o recorrido pretende.

A análise da hipótese de subsunção do pedido reconvencional formulado pela recorrente na previsão da al. c) requer uma análise mais detalhada.

A al. c) admite a reconvenção quando o réu pretenda o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação, seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor. Tem-se em vista a hipótese de o direito invocado pelo autor ter natureza creditícia. A sua parte final não deixa dúvidas a esse respeito, ao prever a hipótese de o reconhecimento de um direito de crédito invocado por via reconvencional visar a obtenção do pagamento do valor «em que o crédito invocado excede o do autor». Prevê-se, claramente, a hipótese de confronto entre dois direitos de crédito, invocados, um pelo autor e o outro pelo réu.

O regime substantivo da compensação, constante dos artigos 847.º a 856.º do CC, confirma a exigência de que, para que a reconvenção seja admissível ao abrigo do disposto no artigo 266.º, n.º 2, al. c), do CPC, têm de estar em confronto direitos de crédito. O corpo do n.º 1 do artigo 847.º não podia ser mais claro a esse respeito: «Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor (…)». Portanto, não há compensação se um ou ambos os direitos em confronto não tiverem natureza creditícia.

No caso dos autos, a recorrente, através da dedução da reconvenção, pretende o reconhecimento dos direitos de crédito que invoca para: na hipótese de o imóvel lhe ser adjudicado, o seu montante ser deduzido no valor de eventuais tornas que tenha de pagar ao recorrido; na hipótese de o imóvel ser adjudicado ao recorrido, este ser condenado a pagar-lhe, além das tornas, o montante dos referidos créditos; na hipótese de o imóvel ser vendido a terceiro, o recorrido ser condenado a pagar-lhe o montante dos mesmos créditos, ainda que a quota-parte do produto da venda que caiba ao recorrido não seja, para tanto, suficiente.

Nas segunda e terceira hipóteses, nada que se assemelhasse a uma compensação ocorreria, pois o direito de crédito cujo reconhecimento a recorrente pretende somar-se-ia a um novo direito de crédito que ela própria adquiriria por via da adjudicação ao recorrido ou da venda a terceiro.

Na primeira hipótese, estaríamos perante uma compensação entre um direito de crédito de que a recorrente já seria titular à data da dedução da reconvenção com um direito de crédito que, eventualmente, o recorrido viesse a adquirir futuramente, em função do resultado da fase executiva do processo. Ora, uma compensação nesses termos não é admitida pelos artigos 847.º a 856.º do CC, que pressupõem que aquela opere entre créditos existentes e não entre um crédito existente e um crédito que eventualmente possa vir a constituir-se no futuro. Daí que o artigo 266.º, n.º 2, al. c), também tenha em vista o confronto entre um direito de crédito invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão e o direito de crédito que o réu pretende invocar mediante reconvenção. Se o direito invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão não tiver natureza creditícia, como acontece na acção de divisão de coisa comum, ficará inexoravelmente afastada a aplicabilidade da referida alínea c) e, consequentemente, a reconvenção não poderá ser admitida ao abrigo de tal norma. O direito potestativo à divisão, concedido a qualquer dos comproprietários pelo n.º 1 do artigo 1412.º do CC, tem natureza real, pois integra o conteúdo do direito de propriedade quando este tenha mais de um titular, e não creditícia, pelo que não é compensável com o direito de crédito invocado pela recorrente.

Sobre esta problemática, pronunciou-se recentemente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.03.2023 (Manuel Aguiar Pereira), cujo sumário transcrevemos:

«I. Na acção de divisão de coisa comum é admissível a formulação de pedido reconvencional do réu tendente a demonstrar que na aquisição e manutenção da coisa comum declarada indivisível em substância, e por causa da situação de indivisão, realizou despesas de montante superior ao que lhe caberia em função da sua quota na comunhão ou compropriedade sobre o bem por forma a serem consideradas no apuramento do valor a repartir;

II. Não impede o funcionamento do mecanismo da compensação a circunstância de os créditos do autor e da ré em relação ao bem comum serem ilíquidos no momento da formulação do pedido, já que o valor económico do direito de cada um deles só fica definido na conferência de interessados;

III. Não se discutindo entre as partes nem a proporção na titularidade do direito sobre o bem comum nem a indivisibilidade deste em substância, tendo sido formulado pedido reconvencional pela ré com fundamento na titularidade de créditos sobre o autor decorrentes da sua participação nas despesas de aquisição e posterior satisfação de encargos bancários relativos ao bem comum, em valor superior ao da sua quota, deve o juiz admitir tal pedido e ordenar que a tramitação processual observe os termos do processo comum subsequentes à contestação (artigo 926.º n.º 3 do Código de Processo Civil).»

Por um lado, faz-se depender a admissibilidade da reconvenção da verificação de um dos pressupostos materiais previstos no n.º 2 do artigo 266.º, no caso o da al. c). Resulta da exposição anterior que secundamos este entendimento.

Por outro lado, considera-se que esse pressuposto se encontra preenchido porquanto a iliquidez dos créditos das partes da acção de divisão de coisa comum, em relação a esta, no momento da formulação do pedido reconvencional, não impede o funcionamento do mecanismo da compensação. Neste ponto, salvo o devido respeito, discordamos, pelas razões que passamos a expor.

Como acima referimos, a al. c) tem unicamente em vista a hipótese de o direito invocado pelo autor ter natureza creditícia. Com efeito, prevê-se a hipótese de o reconhecimento de um direito de crédito invocado por via reconvencional visar a obtenção do pagamento do valor «em que o crédito invocado excede o do autor». Isto é, para a reconvenção ser admissível nos termos da al. c), têm de estar em confronto dois direitos de crédito, um deles invocado pelo autor como causa de pedir da acção e o outro invocado pelo réu como causa de pedir da reconvenção.

Ora, a causa de pedir da acção de divisão de coisa comum não é um direito de crédito. Estamos perante uma acção real, que visa pôr termo a uma situação de compropriedade. A causa de pedir consiste nesta situação, à qual o autor, exercendo o direito potestativo que o n.º 1 do artigo 1412.º do CC, pretende pôr termo. Repetimos, o autor não pretende exercer qualquer direito de crédito através da acção de divisão de coisa comum. É quanto basta para afastar a possibilidade de enquadrar um pedido reconvencional como aquele que a recorrente deduziu na previsão da al. c) do n.º 2 do artigo 266.º.

Mas há mais.

No caso dos autos, à semelhança daquele sobre o qual o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que vimos referenciando se pronunciou, a ré/recorrente formulou um pedido reconvencional de reconhecimento de um direito de crédito contra o autor/recorrido com um dos seguintes objectivos, em alternativa: compensação com um crédito de tornas que, eventualmente, o segundo adquirisse em consequência da adjudicação da coisa à primeira; condenação do recorrido a pagar-lhe o montante do crédito invocado como causa de pedir da reconvenção, em acréscimo às tornas de que ele passaria a ser devedor na hipótese de a coisa lhe ser adjudicada; condenação do recorrido a pagar-lhe o montante do mesmo crédito, na hipótese de a coisa ser vendida a terceiro.

Nas duas últimas hipóteses, nem sequer no decurso da acção o autor/recorrido adquiriria qualquer direito a receber tornas da ré/recorrente, pelo que nunca teria cabimento equacionar-se a compensação entre esse inexistente crédito e o invocado como causa de pedir da reconvenção.

Na primeira hipótese, o direito de crédito com o qual poderia pretender-se operar a compensação não existe no momento da propositura da acção, nem sequer no da dedução da reconvenção. O direito a tornas é consequência da adjudicação da coisa à ré/recorrente, pelo que só no momento da adjudicação se constitui. Antes disso, não é um direito de crédito meramente ilíquido, mas sim um direito de crédito pura e simplesmente inexistente. Não é líquido, nem é ilíquido, pela simples razão de que não existe. Logo, é insusceptível de legitimar a dedução de reconvenção ao abrigo do disposto na al. c) do n.º 2 do artigo 266.º.

Concluímos, assim, que não se verifica o factor de conexão entre o pedido do recorrido e o pedido reconvencional previsto no artigo 266.º, n.º 2, al. c), do CPC. Consequentemente, o tribunal a quo decidiu acertadamente ao não admitir o pedido reconvencional deduzido pela recorrente, improcedendo o recurso.

*

Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.

*

Évora, 09.05.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

(1.º adjunto)

(2.ª adjunta) 



[1] FRANCISCO MANUEL LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, Volume II, 2.ª edição - Reimpressão, Edições Almedina, 2020, página 174.

[2] ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada de acordo com o Dec.-Lei 242/85, Coimbra Editora, Limitada, 1985, página 324.

[3] FRANCISCO MANUEL LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA, obra citada, página 174.

[4] ARTUR ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, Livraria Almedina, 1981, página 172.

[5] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4.ª edição, página 144-145.

[6] PAULA COSTA E SILVA, Acto e Processo – O Dogma da Irrelevância da Vontade na Interpretação e nos Vícios do Acto Postulativo, Coimbra Editora, 2003, página 289.

[7] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código, 4.ª edição, página 205.

[8] Ibidem, página 205.

[9] MARIANA FRANÇA GOUVEIA, A Causa de Pedir na Acção Declarativa, Reimpressão, Edições Almedina, S.A., 2019, páginas 253 e 254.

[10] FERNANDO LUSO SOARES, Processo Civil de Declaração, Livraria Almedina, Coimbra, 1985, páginas 674 e 675.

Acórdão da Relação de Évora de 06.06.2024

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