Processo n.º 835/09.9TBPTM-V.E1
*
Sumário:
1 – A nulidade
da sentença prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC verifica-se, não
só na hipótese de absoluta
ausência de fundamentação, de facto ou de direito, mas também na de tal fundamentação
ser de tal modo incompleta, que não permita a percepção das razões de facto e
de direito que determinaram o tribunal a decidir como decidiu.
2 – A habilitação do cessionário, nos termos do artigo 356.º do CPC,
determina que este passe a ocupar a posição processual que, até então, o era
pelo cedente. Consequentemente, a partir da sua habilitação, o cessionário
passa a ser titular de todos os direitos processuais e a estar onerado com
todos os deveres processuais que, até então, cabiam ao cedente.
3 – Um desses deveres processuais é o de, na hipótese de o valor da
parte não depositada do valor da adjudicação exceder aquele que, de acordo com
a proposta de rateio final, tem direito a receber, o credor restituir a diferença
à massa insolvente, nos termos do n.º 4 do artigo 815.º do CPC, aplicável ex vi artigos 17.º, 164.º e 165.º do
CIRE.
*
Insolvente: Sociedade
1, S.A..
Credora/recorrente:
Sociedade 2, S.A.R.L..
Despacho
recorrido:
- Julgou improcedente a
reclamação apresentada pela Sociedade 2, S.A.R.L. contra a proposta de
distribuição e rateio final;
- Determinou que é a Sociedade
2, S.A.R.L., enquanto habilitada no lugar da Sociedade 3, S.A., quem se
encontra onerada com o dever de restituir, à massa insolvente, a quantia de €
154.498,97, correspondente à diferença entre a parte não depositada do valor da
adjudicação e aquele que, de acordo com a proposta de distribuição e rateio
final, tem direito a receber.
Conclusões do
recurso:
1 – A decisão proferida
no douto
despacho ora recorrido padece de nulidade, nos
termos e para
os efeitos
do disposto no artigo 615.º,
n.º 1, al.
b) do CPC.
2 – Em 31.12.2018, na pendência dos autos de insolvência, foi outorgada escritura de cessão de créditos entre
a cedente Sociedade
3, S.A. e a cessionária, ora
recorrida, Sociedade
2, S.A.R.L., dando-se
a habilitação processual em 2019, através do apenso S.
3 – A adjudicação dos imóveis deu-se seis anos antes da cessão, pelo que o preço da adjudicação
já foi imputado
no preço de venda dos créditos, na cessão.
4 – Nunca poderia ser sobre a ora recorrente que poderia pender o ónus de devolver à massa um
valor que nunca
recebeu, já
que esse
ónus deve
recair
unicamente sobre o
credor que, à data, adjudicou os imóveis e deixou de pagar o remanescente do preço,
tanto mais que
a ora recorrente, na qualidade de credora nos autos, nunca
foi ressarcida com qualquer montante, advindo da venda dos imóveis, rateios parciais ou
pagamentos no âmbito do artigo 174.º do CIRE.
5 – A decisão recorrida não apreciou os factos invocados pela recorrente, limitando-se a transcrever a factualidade que a administradora de insolvência carreou para os autos, decidindo, sem mais, na senda da opinião infundada de tal administradora, ser a recorrente
a devolver o montante
em apreço.
6 – É sabido que são os factos alegados (e
só esses, com as previstas
excepções quanto aos complementares
ou concretizadores) que fixam o objecto de determinado
pleito e
inerente pedido/pretensão jurisdicional.
7 – Esta decisão não contém qualquer fundamentação de facto (nem de direito) que
sustente a decisão
proferida, limitando-se a concluir
que o credor Sociedade
2, S.A.R.L., ora
recorrente, foi
habilitado como cessionário em lugar do credor Sociedade
3, S.A. e, portanto,
caberia à recorrente a devolução do montante.
8
– Esta conclusão
só poderia ser extraída da comprovação
e descrição dos factos para tal alegados pelas
ora partes, bem como da descrição do iter processual dos autos,
no sentido de se aferir sobre quem incumbe
a obrigação de devolução
desta quantia, designadamente os termos em que foi negociada a cessão de créditos
e se as partes
tiveram ou não em linha de
conta que a Sociedade 3, S.A. havia adjudicado os imóveis.
9
– Nos termos do artigo 578.º, n.º 1, do Código Civil, os requisitos e efeitos da cessão
entre as partes definem-se
em função do tipo de negócio
que lhe serve
de base.
10
– A ora recorrente
alegou
que a
Sociedade 3, S.A. cedeu os seus créditos à ora credora
em 2012, seis anos depois desta
aquisição e que, portanto, quando
cedeu os seus
créditos
à ora credora, este
crédito já não estava incluído na cessão.
11
– O tribunal a quo deveria ter determinado a notificação da Sociedade
3, S.A. para, no limite, exercer
o contraditório quanto a esta factualidade e ter
determinado, após, a devolução, na posse da factualidade integral, para, no
caso de questões relacionadas com
a eventual inexigibilidade ou existência de um crédito, determinar o
que as partes
regulamentaram autonomamente face a
tais ocorrências.
12
– Tais elementos nem
sequer constam dos autos, pelo que
não nos é possível aferir da respectiva eficácia contratual.
13
– Factos, estes que necessariamente
têm de ser apurados e estar elencados
na decisão que aprecia o pedido de devolução em causa,
e não estão, limitando-se
a decisão recorrida, a concluir
que a responsabilidade é da recorrente, sem
que tal
conclusão tenha o correspondente suporte
fáctico.
14
– Tal omissão de decisão sobre
estes pontos de facto, no caso a completa omissão de descrição de
qualquer factualidade que sustente
a decisão proferida, acarreta a
anulação
da decisão ora recorrida.
15
– De acordo com o estipulado nos artigos 154.º, n.º 1 e 607.º,
nº 3 e 4 do CPC,
em sede de julgamento da matéria de facto, importa proferir decisão, fundamentada, que declare quais os factos que se julgam por provados
e como não provados, mediante
a análise
crítica das provas
e com a especificação dos fundamentos
que
foram decisivos
para a
convicção
do julgador.
16
– A consequência a extrair de tal situação, não pode
ser outra
que não a anulação da decisão recorrida, impondo-se a anulação da decisão
recorrida a fim de ser colmatada
a omissão de os factos supra não terem sido objecto de qualquer decisão em sede
de julgamento da matéria de facto.
17
– Termos em que, padecendo
de nulidade a decisão ora recorrida, deverá a mesma ser revogada, nos termos do disposto no artigo
615.º, n.º 1, al.
b) do CPC.
18
– A escritura de cessão
de créditos celebrada entre
a recorrente e Sociedade 3, S.A., respeita
à cessão
de uma carteira
de créditos decorrentes de contratos de crédito em incumprimento, denominados non performing loans (NPL), cujo preço
vertido naquele documento respeita ao conjunto
desses créditos incumpridos e reclamados judicialmente.
19 – O preço pelo qual o crédito foi objeto de venda em Dezembro de 2018, considera não só o valor existente em virtude do incumprimento dos contratos celebrados com a sociedade insolvente e reclamados nos presentes autos, como também o abatimento/imputação das adjudicações que tiveram lugar em 2016, antes da
cessão.
20 – Não obstante a recorrente não tenha sido ressarcida de qualquer montante nos autos de insolvência
quanto
ao incumprimento dos contratos reclamados, pela
Sociedade 3,
S.A. foi imputado ao valor atribuído aquando da cessão de créditos o
montante relativo ao valor
das adjudicações.
21 – Com o douto despacho proferido, ora recorrido, a recorrente é colocada numa
posição extrema de ter de “pagar duas vezes”, sem ser ressarcida de qualquer
montante, porquanto, num primeiro momento, pagou pela aquisição do crédito
incumprido aquando da cessão de créditos (onde se encontra imputado
das adjudicações) e, num segundo momento, pagará aquando da devolução
de um montante advindo de uma adjudicação em que
não foi
parte e no qual não teve benefício, acarretando, para a recorrente, um prejuízo
objectivo.
22
– A decisão proferida não tem em conta o contratualmente disposto, entre
recorrente
e a Sociedade 3, S.A., fazendo tábua
rasa da posição da recorrente, que é
punida pela aquisição de um crédito, quando
deveria ocorrer a situação
contrária, já que
a recorrente, nos termos do despacho ora recorrido, paga pelos erros anteriores nos autos, cegamente,
quando
à data da aquisição não só não constava
dos autos,
como nem sequer havia adquirido o crédito em causa, o que ofende violentamente os princípios da equidade
e segurança jurídica.
23
– Otribunal a quo não especifica qual
a norma
jurídica que entende aplicável à situação, o que é passível de ser enquadrado como atentatório da mais elementar prudência e não assegura uma decisão
equitativa concreta.
24
– No que concerne as responsabilidades existentes
entre a Sociedade
3, S.A., enquanto cedente e a ora recorrente, enquanto
cessionária, deverá
considerar-se a existência de um vínculo negocial
resultante da cessão de créditos ocorrida, pelo que
e de acordo com o contratualmente definido, caberia
uma decisão que desse, pelo
menos, a oportunidade processual de esclarecimento fáctico no que
diz respeito ao
contrato de cessão
de crédito.
25
– Violou, pois,
com o despacho proferido, o tribunal a quo as disposições contidas nos artigos 154.º,
n.º 1, 356.º, 607.º, n.º 3 e
4, 615.º,
nº 1, al. b)
do CPC e artigo 578.º do
Código Civil, pelo que a
decisão ora recorrida
deverá
ser revogada.
Questões a
decidir:
1 – Nulidade do despacho
recorrido;
2 – Quem se encontra
onerado com o dever de restituir a quantia de €
154.498,97 à massa
insolvente.
Factos
julgados provados pelo tribunal a quo:
1 – O segmento do rateio final de que reclama a credora Sociedade
2, S.A.R.L. tem o seguinte teor:
A-2) Produto da venda dos bens imóveis com garantia hipotecária
à Sociedade
3, S.A., tendo os créditos sido cedidos à Sociedade 2, S.A.R.L. (Apenso S) - verbas n.ºs 2 e 9: 1.013.628,47.
|
Reconhecido
|
Recebe
|
Em dívida
|
Graduado em 1.º lugar
Fazenda Nacional - IMI
|
768,25
|
768,25
|
0,0
|
Resta:
1.012.860.22 (1.013.628,47 - 768,25)
|
|
Reconhecido
|
Recebe
|
Em dívida
|
Graduado em 2.º lugar
Fazenda Nacional – Imposto de Selo
(26,63% de € 222,286)
|
59,19
|
59,19
|
0,0
|
Resta:
1.012.801.03 (1.012.860,22 - 59,19)
|
|
Reconhecido
|
Recebe
|
A receber
|
Em dívida
|
Graduado em 3.º lugar - Hipotecário
Sociedade 2, SARL
|
2.395.943,78
|
1.167.300,25
|
-154.498,97
|
1.383.142,75
|
Resta: 0,00
|
Nota: O produto da
liquidação das verbas n.ºs 2 e 9 permite pagar integralmente o crédito
respeitante a IMI e Imposto de Selo e apenas parcialmente o crédito do credor
hipotecário, pelo que não é possível por insuficiência da massa, contemplar os restantes
créditos.
2 – Quanto ao valor a
entregar pelo credor indicado em terceiro lugar da graduação (- € 154.498,97), o
Senhor Administrador Judicial mais esclareceu o seguinte:
(…) como consta da
proposta de rateio apresentada, o valor da liquidação do activo é de € 4.495.417,37.
A tal valor temos que
deduzir as despesas efectuadas no âmbito da insolvência constantes das suas
contas de administração, bem como outras, devidamente discriminadas, na
proposta de rateio, cujo valor monta a € 390.297,52.
Este valor (€ 390.297,52)
é deduzido do valor da liquidação do activo (€ 4.495.417,37), daí resultando o
resultado da liquidação, ou seja € 4.105.119,85 (€ 4.495.417,37 - € 390.297,52).
O indicado valor (€ 4.105.119,85)
é o que efectivamente será distribuído pelos Senhores Credores, função a douta
Sentença de Verificação e Graduação de Créditos, pelo que se determinou o
coeficiente de forma a fazer corresponder a cada imóvel o proporcional das
respectivas despesas, coeficiente este calculado da seguinte forma:
Valor para
distribuição = 4.105.119,85 = 0,913178803
Liquidação do activo =
4.495.417,37
Conforme consta da
proposta de rateio na página 1 e 2.
O indicado coeficiente
será multiplicado pelo valor de venda de cada imóvel.
Os créditos reclamados
pela Sociedade 3, S.A., como créditos garantidos por hipoteca, montam a € 2.395.943,78,
hipoteca esta que tem subjacente os imóveis consubstanciados nas verbas 2, 3 e
9 do Auto de Apreensão de Bens, sendo que em relação à verba n.º 3, a douta
Sentença de Verificação e Graduação de Créditos gradua o crédito da Sociedade 4
(direito de retenção) de forma precedente à Sociedade 3, S.A. (credora
hipotecária), que consumiu o produto da venda, pelo que, em termos práticos, o
crédito reclamado pela Sociedade 3, S.A. é garantido por hipoteca sobre as
verbas n.ºs 2 e 9, sendo que a verba n.º 3, atenta a graduação de créditos,
teve tratamento individualizado.
Como se constata do
início da fls. 2 da proposta de rateio e do Título de Compra e Venda, outorgado
em 21/06/2012 com a Caixa Geral de Depósitos, S. A., junta pela reclamante, as
referidas verbas, não incluindo a verba n.º 3, foram vendidas por:
- Verba n.º 2 (CRP
Lagoa n.º …) – € 93.000;
- Verba n.º 2 (CRP
Lagoa n.º …) – € 63.000;
- Verba n.º 2 (CRP
Lagoa n.º …) – € 67.000; e
- Verba n.º 9 (CRP
Portimão n.º …) – € 887.000.
Após a aplicação do
coeficiente atrás referido (0,913178803) aos referidos valores de venda, para
afectação proporcional das despesas, o resultado é:
- Verba n.º 2 (CRP
Lagoa n.º …) – € 84.925,63;
- Verba n.º 2 (CRP
Lagoa n.º …) – € 57.560,26;
- Verba n.º 2 (CRP
Lagoa n.º …) – € 61.182,98; e
- Verba n.º 9 (CRP
Portimão n.º …) – € 809.989,60.
Sendo o total para
distribuição de acordo com a douta Sentença de Verificação e Graduação de
Créditos, como também referido no início da fls. 2 da proposta de rateio, o
valor de € 1.013.628,47 (€ 84.925,63 + € 57.560,26 + € 61.182,98 + € 809.989,60).
Passando à fase de
distribuição, de acordo ainda com a douta Sentença de Verificação e Graduação
de Créditos, e referenciada na fls. 3, com a designação
A-2) Produto da venda
dos bens imóveis com garantia hipotecária à Sociedade 3, S.A., tendo os créditos
sido cedidos à Sociedade
2, S.A.R.L.
(Apenso S).
Efectuada a
distribuição pelos credores graduados em 1.º e 2.º lugar, restou para o credor
graduado em 3.º lugar (credor hipotecário), no caso em apreço por força da
decisão proferida no referido apenso S, a Sociedade 2, S.A.R.L., o valor de € 1.012.801,03, porquanto à sua frente há que
deduzir € 768,25 referente a IMI e € 59,19 a imposto de selo.
Como a credora
originária (Sociedade 3, S.A.), através de Título de Compra e Venda, outorgado
cm 21/06/2012, adquiriu os imóveis sobre os quais detinha hipoteca pelo valor
global de € 1.297.000,00, e no acto entregou 10% (€ 129.700,00), valor este
depositado na conta da massa insolvente, conforme consta das suas contas de
administração sob o doct.° 468, ficando a adquirente (Sociedade 3, S.A.)
dispensada do pagamento do restante preço no valor de € 1.167.300,00,
referenciado na proposta de rateio, fis 3, parte final, como recebido.
Atento que o valor que
coube à credora após a distribuição pelos credores que a precederam foi de € 1.012.801,03 (€ 1.013.628,47 - € 768,25 - € 59,19), foi
calculada a diferença entre esse valor e o não depositado (€ 1.167.300,00), ou
seja, € 1.167.300,00 - € 1.012.801,03 = € 154.498,97, valor este indicado na
referida proposta como valor negativo a receber pela credora, em termos
práticos a entregar à massa insolvente.
O referido valor (€ 154.498,97),
para se proceder aos pagamentos, terá de ser depositado na conta da massa
insolvente e, atenta a decisão proferida no apenso S, consta o nome da
reclamante (…)”.
3 – Nos autos do apenso de verificação e graduação de créditos foi
reconhecido por sentença já transitada em julgado o crédito que consta da lista
de créditos reconhecidos
com o n.º 53, sendo titular Sociedade 3, S.A., no valor global de € 2.699.453,51, sendo o montante de € 2.395.943,78 garantido por hipoteca sobre os imóveis
descritos na C.R.P. de Lagoa sob os n.ºs (…), (…), (…) e (…) e na C.R.P. de Portimão sob o n.º (…).
4 – Na petição inicial
apresentada em 26 de abril de 2019 pela Sociedade 2, S.A.R.L., no apenso “S”,
autos de habilitação do adquirente ou cessionário, consta, nomeadamente, o
seguinte:
a) No artigo 1.º- “Que
a Requerente celebrou com a Sociedade 3, S.A. (de ora em diante “Cedente”), em
31 de Dezembro de 2018 uma escritura pública de cessão de créditos e garantias,
contrato ao abrigo do qual foram transmitidos créditos e garantias da segunda
para a primeira”;
b) No artigo 3.º “O
Cedente transmitiu para a Requerente todos os direitos e garantias acessórias
aos referidos créditos, assim como a sua posição processual nos processos
judiciais em curso para cobrança dos mesmos”;
c) No artigo 9.º
“Deverá a Requerente ser admitida nos presentes autos a substituir o Cedente,
na qualidade de legítima credora dos créditos supra referidos detidos sobre o
Insolvente bem como na qualidade de única titular e beneficiária das garantias
e direitos acessórios dos mesmos, nos termos da aplicação conjugada dos artigos
577.º, n.º 1 e 583.º, n.º 1 do Código Civil, e dos artigos 262.º, alínea a),
263.º, n.º 1 e 356.º do CPC”;
d) No pedido final
“Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá,
requer-se, muito respeitosamente, a V. Exa. se digne admitir e, a final,
deferir o presente incidente de habilitação, habilitando a
Cessionária/Requerente na qualidade de Credor nos presentes autos, em
substituição do Cedente. Mais se requer se digne ordenar a citação/notificação
do Insolvente para os presentes autos, a fim de tomar conhecimento da cessão de
créditos e garantias operada entre Cedente e Cessionária e para, querendo,
contestar nos termos do disposto no artigo 356.º, n.º 1, alínea a) do CPC”.
5 – Em concordância com
a alegação mencionada em 3.º foi proferida sentença nos autos do apenso “S”, em
03/06/2019, consta o seguinte: “Pelo exposto, julgo procedente o presente
incidente de habilitação de cessionário e, em consequência, declaro habilitada
como cessionária a Sociedade 2, S.A.R.L. nos autos de insolvência na qualidade de credor reclamante”.
6 – A Sociedade 3,
S.A., através de Título de Compra e Venda outorgado em 21 de junho de 2012,
adquiriu, pelo preço total de € 1.297.000,00, 5 prédios urbanos apreendidos a
favor do processo de insolvência, todos eles hipotecados a favor da Sociedade 3, S.A., respetivamente
relativamente à verba n.º 2, o prédio urbano (CRP Lagoa n.º …), o prédio urbano
(CRP Lagoa n.º …), o prédio urbano (CRP Lagoa …), no que concerne à verba n.º
9, o prédio urbano (CRP Portimão n.º …), e, por último, no que respeita à verba
n.º 3, o prédio urbano (CRP Lagoa n.º …), tendo depositado nos autos a
importância de € 129.700,00 e ficado dispensado do depósito no valor de € 1.167.300,00
(€ 1.167.300,00 + € 129.700,00 = € 1.297.000,00).
7 – A Sociedade 3,
S.A. cedeu à Sociedade
2, S.A.R.L.,
as 14 (catorze) operações de crédito identificadas no ponto 3. do requerimento
de 27/10/2023.
8 – Entre Sociedade 3,
S.A. e Sociedade 2, S.A.R.L. foi celebrado, em 31 de dezembro de 2018, um
contrato de compra e venda de uma carteira de empréstimos em incumprimento,
também designado non performing,
constando do instrumento escrito que quanto a definições:
a) No anexo 1,
relativo a definições, consta que “data de corte” significa a data de
determinação, pela Vendedora, do saldo em divida da carteira de NPLs, conforme
indicado nas Data Tapes (31/07/2018)”;
b) No anexo 1,
relativo a definições, consta que “data de fecho” significa a Primeira data ou
a Segunda data de fecho, consoante aplicável;
c) No anexo 1,
relativo a definições, consta que “data de termo do período de
responsabilidade” significa o dia em que se cumpriram 24 (vinte e quatro) meses
após a data de fecho relevante;
d) No anexo 1,
relativo a definições, consta que “fecho” significa a celebração de uma
escritura de compra e venda de Carteira de NPLs de acordo com o disposto no
presente contrato;
e) No anexo 1,
relativo a definições, consta que Escritura de Compra e Venda de uma carteira
de NPLs significa o contrato, com as formalidades exigidas pela Lei, a ser
assinado na data do fecho relevante pela Vendedora e pelo Comprador com a
finalidade de efetuar a compra e venda da Carteira de NPLs, substancialmente
nos termos estabelecidos no Anexo 2 do presente contrato.
9 – Face ao contido
nas alíneas a) a e), do ponto que antecede a data do termo de responsabilidade
da CGD, enquanto Vendedora da carteira de NPLs teve lugar no dia 31/12/2020,
tendo tido o seu início na data de 31/12/2018 em que foi celebrada a escritura
de compra e venda de Carteira de NPLs.
10 – No âmbito no
ponto 10, que regula a substituição da devedora em processos judiciais, quanto
ao suporte das despesas que tenham lugar no processo, ficou clausulado, no
ponto 10.7, com relevância, o seguinte: - “Após a data do fecho relevante (ou
seja, após o dia 31/12/2018), o Comprador (ou seja o cessionário, Sociedade 2, S.A.R.L.) assumirá e será
responsável por, aceitando manter indemne a Vendedora (Sociedade 3, S.A.) de e contra, todas
as despesas com Entidades Terceiras razoáveis, (incluindo, sem limitação,
honorários de advogados razoáveis e documentados), impostos, comissões e de
quaisquer custos judiciais ou legais, multas e despesas e inclusivamente
aquelas relativas a agentes de execução, relativos a qualquer Processo Judicial
e incorridos após a Data de Corte (ou seja, o dia 31/07/2018),
independentemente do pedido de habilitação processual em relação a qualquer
processo judicial ter sido apresentado ou não junto do tribunal competente”.
11 – Quanto à
limitação da responsabilidade da Sociedade 3, S.A. no âmbito do contrato de compra e venda de NPLs mais acordaram
as partes:
a) Ponto 15.4., “A
responsabilidade potencial da Vendedora ao abrigo do presente Contrato expirará,
em qualquer caso, na Data de Termo do Período de Responsabilidade (ou seja, no
dia 31/12/2020), exceto no que diz respeito a qualquer pedido de indemnização
ou reclamação para o qual a notificação seja entregue à Vendedora antes da Data
do Termo do Período de Responsabilidade (ou seja, até a data limite de
31/12/2020), que estabelecerá na medida disponível do Comprador ao tempo, a
reclamação específica, a alegada violação do presente Contrato e os danos
reclamados”;
b) Ponto 15.5., “A
Vendedora (ou seja, a CGD), não será responsável por reclamações notificadas
pelo Comprador à Vendedora após a Data de Termo do Período de Responsabilidade
(ou seja, depois da data de 31/12/2020);
c) No Ponto 15.6, “A
Vendedora será somente responsável pela existência de um NPL Defeituoso de
acordo com as disposições da Cláusula 16 e, em qualquer caso, exclusivamente em
relação aos NPLs Defeituosos cuja existência seja notificada pelo Comprador à
Vendedora antes da Data do Termo do Período de Responsabilidade (ou seja, até
ao dia 31/12/2020) e sujeito aos limites previstos na Cláusula 15”.
*
1 –
Nulidade do despacho recorrido:
Síntese da
posição da recorrente:
a) O despacho recorrido
padece da nulidade prevista no
artigo 615.º, n.º 1, al.
b), do CPC, pois não apreciou os factos por si alegados.
b) O tribunal a
quo limitou-se a transcrever a factualidade que o administrador da insolvência carreou para os autos e a decidir
no sentido por este proposto.
c) O despacho recorrido não contém qualquer fundamentação de facto e de direito que sustente a decisão,
tendo-se o tribunal a quo limitado
a concluir que
a recorrente foi
habilitada como cessionária em lugar do credor Sociedade
3, S.A. e, portanto,
está obrigada a devolver o montante em causa.
d) Em vez disso, o tribunal a quo devia ter analisado os termos em que foi negociada a cessão de créditos e se as partes tiveram, ou não, em
linha de conta, que a cedente havia adjudicado os
imóveis.
e)
O tribunal a quo devia ter determinado a notificação da Sociedade
3, S.A. para exercer o
contraditório quanto à factualidade
alegada pela recorrente, só decidindo depois de possuir toda a factualidade
relevante.
Apreciando:
A al. b) do
n.º 1 do artigo 615.º do CPC estabelece que a sentença é nula quando não
especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. É
recorrente a afirmação de que esta nulidade só se verifica na hipótese de absoluta ausência de
fundamentação, de facto ou de direito. Esta tomada de posição encontra amparo
na sempre imprescindível lição de JOSÉ ALBERTO DOS REIS.
A essa hipótese, vem a melhor jurisprudência equiparando a de a fundamentação,
de facto ou de direito, ser de tal modo incompleta que torne a decisão
incompreensível, isto é, que não permita, aos seus destinatários, a percepção
das razões de facto e de direito que determinaram o tribunal a decidir como
decidiu.
Todavia, nem sequer à luz desta concepção mais
ampla se verifica a nulidade invocada pela recorrente.
O despacho recorrido contém um extenso
enunciado dos factos que o tribunal a quo
julgou provados, acima transcrito. Contém, igualmente, uma fundamentação de
direito em que são analisadas as questões relevantes para a decisão da causa.
Não pode afirmar-se, com seriedade, que uma decisão judicial que contém 7
páginas de matéria de facto provada e 4 páginas de fundamentação de direito não
se encontra fundamentada de facto e de direito. A afirmação de que o tribunal a quo
se limitou a transcrever a factualidade que o administrador da insolvência carreou para os autos é rotundamente falsa.
Impõe-se, assim, concluir que o
despacho recorrido não padece da nulidade prevista no
artigo 615.º, n.º 1, al.
b), do CPC.
A propósito da questão da nulidade que
acabámos de analisar, a recorrente invoca duas outras que lhe são estranhas:
1.ª – O incumprimento do contraditório relativamente
à cedente;
2.ª – A falta de apreciação dos factos por si
alegados e de uma questão jurídica que afirma ter suscitado.
Relativamente ao alegado incumprimento
do contraditório relativamente à cedente, a recorrente carece, obviamente, de
legitimidade para o invocar. Tal legitimidade cabe exclusivamente à cedente,
que teria sido a única prejudicada pelo referido incumprimento. Acresce que este
não se verificou, pois a cedente pronunciou-se sobre a reclamação da recorrente
através de peça processual apresentada em 15.11.2023.
No que concerne à alegada falta de
apreciação de factos por si alegados na reclamação contra a proposta de
distribuição e rateio final, a
recorrente não especifica que concretos factos tem em vista, pelo que não é
possível apreciar se tem razão. Limitamo-nos a notar que o enunciado da matéria
de facto provada contém inúmeros factos relativos ao contrato de cessão de
créditos que a recorrente celebrou com a Sociedade 3, S.A., por si alegados.
Mais, como veremos no ponto 2 da presente fundamentação, não falta, naquele
enunciado, qualquer facto alegado com relevo para a decisão da causa.
A questão que a recorrente considera
não ter sido objecto de pronúncia por parte do tribunal a quo é a de saber se, tendo em conta os termos em que foi negociada a cessão de créditos, cedente e cessionária tiveram em conta que a primeira havia adquirido a propriedade dos imóveis por adjudicação.
Também aqui, a recorrente não tem
razão.
Em primeiro lugar, porque ela não
alegou, na reclamação que deduziu contra a proposta de distribuição e rateio final, qualquer facto
concreto relativo a essa questão.
Em segundo
lugar, porque a própria questão não se encontra expressamente formulada naquela
reclamação. A recorrente argumenta que não deve ser ela a restituir a quantia
em causa à massa insolvente, mas em parte alguma alega seja o que for acerca da
negociação das partes sobre essa matéria e de uma eventual vontade comum de
ambas sobre ela, concretizada no clausulado do contrato.
Em terceiro lugar, porque,
considerando as razões em que o tribunal a
quo se baseou para decidir que o dever de restituição recai sobre a
recorrente, é indiferente o que a cedente e a cedida tiveram em mente aquando
da negociação e celebração do contrato de cessão de créditos. Na lógica da
argumentação do despacho recorrido, tal questão apenas poderá relevar no âmbito
da relação contratual entre a recorrente e a cedente, em nada podendo afectar
os efeitos decorrentes da habilitação da primeira no processo.
2 – Quem se
encontra onerado com o dever de restituir a quantia de € 154.498,97 à massa insolvente:
O tribunal a quo considerou que, por efeito da sua
habilitação nos autos enquanto cessionária, é a recorrente, e não a cedente, quem
se encontra onerada com o dever de restituir a quantia de € 154.498,97 à massa insolvente. Isto porque, por efeito da habilitação, a
recorrente passou a ocupar, sem limitações eventualmente decorrentes do
contrato de cessão de créditos, a posição processual anteriormente ocupada pela
cedente. Tanto mais, sublinha-se no despacho recorrido, que a habilitação da
cessionária era facultativa, nos termos do n.º 1 do artigo 263.º do CPC. Ao
requerer a sua habilitação, levando ao decretamento desta, a recorrente
sujeitou-se a todos os seus efeitos, favoráveis e desfavoráveis. Aquilo que
tenha sido acordado no contrato de cessão de créditos apenas vincula as partes
deste, não podendo limitar os efeitos legais da habilitação.
A recorrente
não refuta esta argumentação, demonstrando que os efeitos legais da sua
habilitação no processo possam ser, em alguma medida, limitados pelos termos do
contrato de cessão de créditos. Limita-se a insistir que, tendo em conta os
pressupostos deste contrato, a restituição, por si, da quantia de € 154.498,97 à massa insolvente, constitui um facto com que não contava e que
afecta o equilíbrio económico do mesmo contrato. Com isto, limita-se a tentar
contornar a argumentação que sustenta o despacho recorrido, sem a enfrentar directamente.
Secundamos o
entendimento do tribunal a quo, que
consideramos inatacável. É fora de dúvida que a habilitação do cessionário, nos
termos do artigo 356.º do CPC, determina que este passe a ocupar a posição
processual até então o era pelo cedente. Consequentemente, a partir da sua
habilitação, o cessionário passa a ser titular de todos os direitos processuais
e a estar onerado com todos os deveres processuais que, até então, cabiam ao
cedente. Trata-se de um efeito legal da habilitação, que não pode ser limitado
pelo contrato de cessão de créditos que constituiu pressuposto daquela.
Um desses
deveres processuais é o de, na hipótese de a parte não depositada do valor da
adjudicação exceder aquele que, de acordo com a proposta de rateio final, tem direito
a receber, o credor restituir a diferença à massa insolvente, nos termos do n.º
4 do artigo 815.º do CPC, aplicável ex vi
artigos 17.º, 164.º e 165.º do CIRE. Por efeito da sua habilitação no processo,
a recorrente passou a estar onerada com esse dever, em termos idênticos àqueles
em que a cedente anteriormente o estava.
Se, por efeito
do cumprimento do referido dever de restituição, a recorrente se sentir
injustamente prejudicada face ao estipulado no contrato de cessão de créditos e
ao cálculo económico em que este se baseou, poderá demandar a cedente, com esse
fundamento, que respeita exclusivamente às relações internas entre elas. Aquilo
que carece, em absoluto, de fundamento legal, é a pretensão da recorrente de
limitar os efeitos legais da sua habilitação neste processo com fundamento no
conteúdo da sua relação contratual com a cedente ou nos pressupostos com base
nos quais tomou a decisão de com esta contratar.
Concluindo, é
a recorrente quem se encontra onerada com o dever de proceder à restituição da quantia
de € 154.498,97 à massa insolvente, tal como se decidiu no despacho recorrido.
Daí que este deva ser confirmado, improcedendo o recurso.
*
Dispositivo:
Delibera-se,
pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas a cargo
da recorrente.
Notifique.
*
Évora,
06.06.2024
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
(1.º adjunto)
(2.ª adjunta)
Código de Processo Civil
Anotado, volume V (reimpressão), Coimbra Editora, 1981, p. 140.
No sentido que vimos sustentando, decidiu o acórdão da Relação
de Lisboa de 21.03.2023 (Fátima Reis Silva).